domingo, 21 de abril de 2024

The Last of Us (2023 - ?)


Fiquei decepcionada com esta série. “The Last of Us” é a adaptação de um jogo de vídeo num mundo pós-apocalíptico. O que causou o apocalipse foi um fungo mutante que começou a infectar seres humanos, controlando-lhes o cérebro e tornando-os agressivos de modo a contagiarem o máximo de pessoas possível (é-nos dito no prólogo que isto acontece na natureza, mas não em seres humanos). Chamam-lhes Infectados mas na verdade são mais “colonizados”, e comportam-se como uma mente única, a do fungo, que inclusivamente tem tentáculos subterrâneos que os controlam como uma só unidade. No entanto, embora se assemelhem a zombies, estes Infectados não o são e o próprio fungo acaba por matá-los mais tarde ou mais cedo.
Devo avisar que algumas imagens de Infectados são imensamente repugnantes. O fungo aloja-se dentro do hospedeiro mas acaba por sair para fora. Numa das cenas, uma professora universitária de Micologia está a fazer uma autópsia a um deles e, ao abrir uma incisão no cadáver, o interior do corpo é só fungo. A professora fugiu disparada da sala de autópsias e eu até fiquei com comichões e com os pêlos dos braços em pé de tanto nojo. Na verdade, acredito que “The Last of Us” podia ter feito os Infectados ainda mais repulsivos (alguns fungos são bastante repelentes) mas se calhar recearam que as pessoas não conseguissem ver a série devido à reacção física de repugnância.
Com este cenário, pensei que talvez “The Last of Us” viesse a preencher o vazio deixado por “The Walking Dead”, mas isso não aconteceu por várias razões. Uma das maiores é a notória falta de Infectados. Enquanto que em “The Walking Dead” tínhamos zombies em quase todos os episódios, aqui, por alguma razão, em 9 episódios só existem 3 ou 4 confrontos com Infectados. Terá sido falta de orçamento ou uma aposta maior no drama entre os personagens? Não tenho nada contra séries dramáticas, antes pelo contrário, mas se toda a história gira em torno dos Infectados não deveríamos vê-los mais vezes?
Voltando ao enredo, vinte anos depois do início da pandemia a sociedade organizou-se numa ditadura militar dentro de centros fortemente vigiados chamados Zonas de Quarentena. As pessoas vivem mal, tendo de trocar trabalho por rações. Existe uma Resistência bastante activa mas não consegue grandes resultados. Joel, um homem de 56 anos que perdeu a filha adolescente no início da pandemia, é um deles e vive na Zona de Quarentena de Boston. Joel também trabalha, mas é mais para disfarçar a actividade de contrabandista que comporta risco de execução sumária.
Acidentalmente, a Resistência encontra uma adolescente muito especial, Ellie, que parece ser imune ao fungo. Na sequência de um ataque imprevisto, a líder da Resistência incumbe Joel (a troco de contrapartidas) de acompanhar Ellie em segurança até às instalações médicas onde, têm a certeza, Ellie será fulcral para desenvolver uma vacina ou uma cura. É este o enredo: Joel e Ellie têm de atravessar o país enfrentando Infectados, salteadores, militares, rebeliões e até fanáticos religiosos canibais (o episódio dos canibais foi o melhor).
Como acontece sempre neste tipo de história, a princípio Joel encara Ellie como mais um “trabalho”, uma mercadoria a transportar, mas obviamente o seu instinto protector e a culpa por não ter conseguido salvar a vida da filha começam a vir ao de cima e Joel acaba por desenvolver um sentimento paternal para com Ellie. Ellie, em princípio à defesa e relutante em confiar, acaba por se afeiçoar também a Joel como ao pai que nunca teve (como em “The Witcher”, na verdade, só para citar um caso em milhentos). É nesta relação que se baseia o fundo dramático da história, que acaba por suplantar os elementos pós-apocalípticos da premissa.
Agora, as razões do meu desapontamento. Para além do exíguo número de Infectados que Joel e Ellie encontram pelo caminho (e esta queixa não é só minha), o que mais me afastou da série foi mesmo a miúda (e a queixa também não é só minha). Não tenho nada contra a actriz Bella Ramsey, pelo contrário, adorei-a como Lyanna Mormont em “Guerra dos Tronos”, mas Ellie é uma miúda embirrante, armada em boa, com 14 anos mas mentalidade de 12, inculta, tem acesso a livros mas os seus preferidos são uma compilação de trocadilhos sem piada nenhuma e uma banda desenhada do mais básico possível que só um miúdo de 8 anos partilha com ela (já nem falo do “auge” da vida dela que foi jogar Mortal Kombat), e ainda por cima acha-se muito engraçada. Ainda me irrita mais quando outros personagens dizem que ela é engraçada (não é) e que tem capacidades de liderança (eu não vi nada, qual liderança, a miúda segue Joel como um cachorrinho atrás do dono). Enfim, detestei-a. Preferia muito mais que a protagonista fosse a filha de Joel, essa sim, uma personagem empática, mas infelizmente tiveram de a matar logo a princípio.
Outra coisa que me desagradou na série foram os episódios filler, isto é, de encher chouriços. Sem nunca ter visto o jogo à frente (nem vi nem quero ver) fiquei com a impressão de que não havia enredo que chegasse e tiveram de arranjar maneira de esticar a massa. Um dos exemplos mais flagrantes é logo o terceiro episódio (de uma hora e vinte minutos!) que é o flashback da relação entre Bill e Frank. Bill é um survivalista quarentão que aparentemente não sabe que é homossexual quando conhece Frank, já depois do apocalipse. Apaixonam-se, vivem felizes e envelhecem juntos apesar de tudo o que se passa no mundo. É um episódio muito bonito, muito romântico, muito comovente, mas eu tive a sensação de que estava a ver outro filme. Bill e Frank nem nunca se cruzam com Joel e Elllie e o episódio não faz nada para avançar o enredo. Quando estava a ver pensei que Bill e Frank deviam ser muito importantes para o jogo para terem direito a tanto destaque e tão pormenorizado, mas ao ler as críticas percebi que (mais uma vez) a queixa não era só minha. Frank e Bill só têm importância marginal para o enredo em geral, não são personagens assim tão relevantes. Mas não é caso único. Novo episódio, novos personagens, novo sub-plot, morrem todos, novo episódio. E a série vai assim até ao fim. Tendo em conta que são apenas 9 episódios, esperava-se uma história mais coesa e focada nos protagonistas. Isto nem vai parecer eu a falar, mas realmente faltaram Infectados e confrontos a dificultar a vida a Joel e Ellie. Os adversários que eles encontraram, em vez disso, foram outros humanos, alguns muito monstruosos, é verdade, mas isto devia ser uma série sobre um fungo que infecta humanos e não sobre a monstruosidade humana em geral. Um título mais apropriado para o drama realmente retratado na história devia ter sido “Joel e a Filha Perdida”.
E ainda outra coisa que me irritou bastante na série: ao fim de 20 anos aquelas alminhas ainda não aprenderam que a maneira mais eficiente de matar um Infectado é o inescapável tiro na cabeça (até porque é lá que o fungo se aloja e de onde controla o hospedeiro). Foi tanta a munição desperdiçada ao desbarato que se Daryl Dixon ou Carol ou até a pequena Judith vissem aquilo abanavam a cabeça em desdém: “Amadores!”
Não detestei a série mas esperava muito melhor e um enredo mais baseado na premissa. É sobre humanos controlados por fungos. O drama pode ficar à mesma, mas mostrem-nos os fungos, bolas!
Pelo menos assistimos a 15 minutos do desagregar da sociedade antes do salto temporal de vinte anos para a frente, o que eu gosto sempre de ver, mas ainda não foi desta que fiquei satisfeita. Quando é que nos vão mostrar a sociedade a desagregar-se como deve ser?

PS: Já depois de escrever o artigo, para não morrer estúpida, fui espreitar um stream do jogo, que por acaso estava precisamente na parte mais emocionante do episódio dos canibais. Não tive paciência para ver mais de um minuto. Definitivamente, não gosto de jogos.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies, Young Adult, mundos pós-apocalípticos, distopia


terça-feira, 16 de abril de 2024

The Call / A Chamada (2013)

Jordan, uma operadora do 911 (linha de emergência como o 112) recebe uma chamada de uma adolescente que tem um intruso em casa, e comete um erro. Em resultado disso, a adolescente é raptada e encontrada morta.
Durante muito tempo, traumatizada com a experiência, Jordan deixa de atender chamadas e passa a ser formadora de novos operadores. Até ao dia em que uma novata recebe uma chamada semelhante. Em pânico, a principiante passa a chamada a Jordan, que por alguns indícios percebe que está a falar com o mesmo serial killer. Jordan tem de ultrapassar a insegurança e a culpa para salvar esta outra adolescente que o homem já transporta na mala do carro. A cada momento do filme, principalmente quando o raptor se apercebe do telefonema, adivinha-se outra tragédia.
“The Call” é um thriller que recordará a muitos de “Psycho” e, principalmente, de “O Silêncio dos Inocentes”. Mas o que gostei mais, admito, é como se mostra os bastidores de um call centre de elevado stress, em que cada decisão pode significar vida ou morte. Neste aspecto, o filme faz tudo o que tem de fazer. Recomendo vivamente.

14 em 20


domingo, 14 de abril de 2024

Deep Rising / O Barco do Inferno (1998)


Quem não gosta de um bom desastre num navio de luxo? (Quem disse que não está a mentir.)
Meia dúzia de mercenários têm por missão assaltar um cruzeiro, mas quando lá chegam este já tinha sido atacado por monstros marinhos e todos os passageiros tinham desaparecido. Quem é que não gosta de um navio-fantasma? (Quem disse que não também está a mentir.) Agora os mercenários têm de fugir aos monstros marinhos, se conseguirem.
Duas coisas engraçadas neste filme. Os assaltantes têm um “homem infiltrado” que procede à sabotagem do computador de bordo com três CD-Roms. Mais engraçado só se fossem disquetes.
A outra coisa engraçada foi quando alguém disse que o único mecânico de bordo era “dispensável”. Não sei quem é que teve a ideia deste diálogo desastrado, porque como o próprio filme demonstra o único mecânico de bordo é quem consegue fazer as reparações quando elas são necessárias.
“Deep Rising” é na sua essência um filme de terror, com o número obrigatório de monstros e mortes pavorosas (com os efeitos especiais possíveis à altura), mas possui o bastante de acção, os comic reliefs suficientes e até uns pozinhos de romance para poder ser visto em família desde que todos tenham mais de 10 anos.
Este é daqueles filmes que tem tudo para agradar e entreter e não chocar. Nada de original, tudo já testado e experimentado.
Parece-me que o final se destinava a preparar uma sequela tipo King Kong. Desconheço se foi feita e espero mesmo que a ideia não tenha passado do papel.

12 em 20

domingo, 7 de abril de 2024

The Fall of the House of Usher (2023)

Roderick Usher é um homem acabado, com uma doença incurável que causa demência, alucinações e morte. Nos últimos 15 dias enterrou os seis únicos filhos, todos mortos em circunstâncias horríveis. Quase tínhamos pena de Roderick se não soubéssemos que este mesmo homem é o dono de um império farmacêutico, as indústrias Fortunato, responsável por vender um analgésico altamente viciante (um opióide) garantindo que é inócuo e causando milhões de dependentes de heroína em todo o mundo com as mortes consequentes. Roderick sempre soube que estava a vender uma droga perigosíssima e os efeitos que esta causava, pensando apenas no lucro. Todos os elementos da família, desde a irmã de Roderick, Madeline, aos seus filhos, estão a par da situação e não se importam de viver como bilionários à custa do sofrimento dos outros. Finalmente a Fortunato é levada a tribunal com provas substanciais pelo Procurador Auguste Dupin e uma condenação é iminente.
É exactamente a Auguste Dupin que Roderick convida uma noite à sua casa de infância, prometendo-lhe uma confissão completa. Roderick assegura a Dupin que as mortes dos seus filhos estão relacionadas e que ele, Roderick, é responsável por todas elas. Dupin, que conhece Roderick há 40 anos e que acha que não há um único Usher “bom”, pensa que Roderick está apenas a sentir-se culpado uma vez que todas as mortes foram investigadas e não existe relação entre elas. Roderick volta a insistir que há e passa a prová-lo.
“The Fall of the House of Usher”, como o nome indica, é uma série genial que reúne vários trabalhos de Edgar Allan Poe em torno da história da família Usher, o que obrigou a algumas adaptações perfeitamente compreensíveis. Cada um dos episódios é dedicado a um dos membros da família Usher e tem o nome de uma das obras de Poe, mas não vou explicar muito sobre isto por causa dos spoilers.
Quanto às mortes, digo apenas duas coisas:
1) não matem o gato preto do vosso namorado; dá muito azar. Aliás, não matem gato nenhum, dá sempre azar.
2) se acham que ter um espelho por cima da cama é sexy, um dos episódios vai de certeza fazer com que reconsiderem.
Estou a fazer humor mas não há nada de engraçado no que acontece aos membros da família Usher, e quase todos o merecem excepto a jovem Lenore. Quando se diz que o final deles é horrível não é um eufemismo e esta não é série para pessoas impressionáveis (mas tendo em conta que é inspirada em Edgar Allan Poe não era de esperar outra coisa).
Sem querer mesmo entrar em spoilers, existe de facto uma mulher misteriosa que persegue cada um dos Ushers antes da morte. A princípio não percebi o que ela era, se anjo vingador ou apenas demónio. Esta mulher apresenta-se a Roderick como Verna (um anagrama de Raven), e aparece a todos os seus filhos com uma identidade diferente, aparentemente tentando levá-los a tomar uma boa decisão e a castigá-los quando eles persistem em agir mal (todos os Ushers agem mal porque são privilegiados, prepotentes e egoístas). Mais tarde percebemos que esta entidade é ao que Arthur Gordon Pym (advogado e capanga dos Ushers) chama um demónio num sentido mais lovecraftiano.
[Neste caso é o contrário, uma vez que Lovecraft se inspirou em Poe, mas foi Lovecraft quem explorou o conceito da sua forma única e inconfundível, de tal forma que quando se fala em lugares e seres sobrenaturais “fora do tempo e do espaço” pensamos logo nele, enquanto que Poe ficou mais conhecido pela sua poesia lúgubre, funesta e desoladora.]
Episódio a episódio, vamos descobrindo o papel de Roderick e Madeline Usher na destruição do seu próprio império e linhagem. Ambiciosos, gananciosos e sem escrúpulos, são os candidatos perfeitos para um pacto com The Raven.
Apesar da antiguidade dos originais, “The Fall of the House of Usher” aborda temas modernos. Tenho para mim que a droga Ligodone vendida pela farmacêutica Fortunato é uma referência a uma droga muito real e adictiva, a Oxicodone, que os americanos tomam por tudo e por nada (e ficam dependentes). A certa altura há um toque de humor quando Verna diz que prometeu a um dos seus “clientes” que podia até dar um tiro a alguém na 5ª Avenida sem que lhe acontecesse nada. Foi engraçado.
Esta foi uma das melhores séries que vi nos últimos tempos e só lamento não poder revelar mais pormenores para evitar spoilers. É também uma excelente introdução à obra de Poe para quem não a conhece. A estes recomendo o meu conto preferido, “O Poço e o Pêndulo”, e, claro, o poema “The Raven”.
Deixo ainda um grande elogio à actriz Carla Gugino (Verna / The Raven) que também já tinha feito o papel de Olivia Crain em “The Haunting of Hill House”. Tal como Vera Farmiga, ambas têm aquela beleza e sensualidade quase maternal de mulheres mais velhas, ambas belas e por isso ainda mais perigosas. Por onde andou esta actriz durante toda a minha vida? Adoro-a, e nesta série ela brilha acima de todos.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: quantas vezes for possível aguentar vê-la

PARA QUEM GOSTA DE: Edgar Allan Poe, terror

 

terça-feira, 2 de abril de 2024

Witch Hunt / Caça às Bruxas (2021)

Numa América dos nossos dias onde a bruxaria é ilegal e as bruxas sofrem pena de morte, uma adolescente tem de decidir de que lado está.
“Witch Hunt” é muito melhor do que devia ser, nem que seja pela tentação despropositada de lhe meter “sustos” à filme de terror, quando o terror aqui é a perseguição e a execução sumária (inclusive na fogueira) de mulheres inocentes só porque fazem magia. Sim, a magia é sobrenatural, mas isto só funcionaria se o filme mostrasse uma bruxa que usasse a magia para fazer o mal. Como as bruxas são representadas como inofensivas, o que nos incomoda é uma perseguição implacável a lembrar os piores regimes totalitários de que há memória onde as minorias são exterminadas. Por exemplo, nesta sociedade faz-se mesmo o teste da água: todas as jovens de certa idade são imersas numa piscina: se flutuarem é porque são bruxas. Pelo menos aqui, ao contrário de outros tempos, as raparigas estão atadas a uma cadeira mas têm direito a um tubo de oxigénio. Mesmo assim, algumas entram em pânico e afogam-se. Nenhuma flutua. São estes os momentos de terror, os momentos de fanatismo absurdo.
Mas “Witch Hunt” conta com um trunfo, a actriz Elizabeth Mitchell (a Juliet de “Lost”), que é a mãe da adolescente em causa e faz parte de uma Resistência para ajudar as mulheres acusadas a fugir do país. Elizabeth Mitchell ilumina o écran no momento em que aparece. (Por exemplo, quando diz a uma vizinha que na sua opinião “até deviam ter construído um muro mais alto”, é uma piada política que nem parece cómica.) Assim que vemos a Juliet de “Lost” pensamos logo que ela vai salvar tudo porque é uma durona. Mas salvará mesmo?
Uma das dicas que nos é dada é o apelido da miúda (muito óbvio para quem sabe alguma coisa dos julgamentos de Salem). Outra é o fascínio de algumas raparigas pelo filme “Thelma & Louise”. O próprio final quer fazer uma homenagem a este clássico (à mistura com ”Harry Potter”, não sei), mas não correu muito bem.
As verdadeiras cenas de tensão são aquelas tiradas da vida real, em que pessoas perseguidas são transportadas às escondidas na mala do carro e aparece alguém que o manda parar. São bruxas, mas podiam ser judeus, ou outra minoria qualquer a fugir ao extermínio.

13 em 20 (porque o fim não esteve à altura da premissa)

 

domingo, 31 de março de 2024

Transcendence / Transcendence: A Nova Inteligência (2014)


Tive de ver este filme duas vezes para perceber porque é que não gostei. A própria premissa não é original: um cientista que tenta fazer com que o seu intelecto sobreviva à morte. Lembro-me de um filme da série B em que tinham o cérebro de um cientista preservado numa redoma a comunicar através de um microfone. Esta é uma história que vem desde… Frankenstein? E só estou a pensar nas histórias modernas. Antes da electricidade e da ciência era tudo explicado com fantasmas.
Em “Transcendence” um casal de cientistas (Will e Evelyn Caster) e um amigo (Max Waters) estão a trabalhar no desenvolvimento de uma Inteligência Artificial quando um grupo de terroristas tenta assassinar Will, bem como a outros pesquisadores de Inteligência Artificial, porque a julgam perigosa. A princípio parece que não conseguem matar Will, mas este foi atingido por uma bala com polónio, o que significa que vai morrer de radiação.
Entretanto, Evelyn tem a ideia de fazer o upload da consciência de Will para um computador antes que ele morra (algo que já teria sido conseguido com a consciência de um macaco). Will aceita. Quando morre, a consciência na máquina, a que eu vou chamar Programa Will, acorda e imediatamente pede acesso à internet e às Bolsas. O primeiro a expressar dúvidas é o amigo Max: “Mas será que é mesmo ele?” Evelyn, a viúva, não tem dúvidas. É mesmo Will.
Mas Will corre perigo de vida (ou, neste caso, de ser destruído por terroristas), por isso convence Evelyn a instalar-se numa cidade quase fantasma onde não há quase nada nem ninguém de modo a construírem ali uma base de segurança.
Não é fácil escrever o resumo do filme porque este é longo (ou assim parece) e cheio de reviravoltas. Dois anos depois, o “casal” conseguiu montar um laboratório informático onde desenvolve experiências com nanotecnologia. Quando um dos trabalhadores é assaltado e espancado e fica às portas da morte, os nanitos salvam-lhe a vida. Mas não é só o que fazem. Também lhe dão uma força sobre-humana e, e aqui é que as coisas começam a dar para o torto, ligam-no ao Programa Will numa espécie de “consciência de colmeia”. Este trabalhador, de seguida, apresenta-se a Evelyn como Will, que lhe diz que agora já encontrou “uma maneira de lhe tocar”. Evelyn fica horrorizada, e é de ficar, mas permanece no laboratório. As imagens na internet da recuperação milagrosa do trabalhador atraem às instalações um corrupio de paralíticos, cegos e doentes incuráveis, todos eles no desejo de serem curados, e todos eles passando a pertencer à mesma “consciência de colmeia” a que o Programa Will chama Híbridos. O governo americano começa a pensar que Will está a criar um exército e decide destruir as instalações, nem que tenha de desligar completamente a internet para que o Programa Will não consiga escapar para outro lado.
No meio disto tudo, o filme também é uma história de amor. A princípio não percebi o que me alienou, mas nem sequer foi a pseudo-ciência. Foi a quantidade de vezes que Evelyn se virou contra o “marido”, e cinco minutos depois o defendeu, e logo a seguir se virou contra ele outra vez, e o defendeu outra vez… É caso de não perceber o que é que ela queria afinal. Nada me desagrada mais do que motivações incoerentes numa personagem, e acabei o filme sem compreender o que ela esperava daquelas experiências (que apoiou e em que participou), ou do próprio casamento. Da mesma forma, também não percebi muito bem se Will queria mesmo curar as pessoas e o planeta, ou se isso era apenas o início para dominar o mundo. Obviamente, como Programa, Will esqueceu que entrar na cabeça de alguém e modificá-la sem pedir autorização viola o livre-arbítrio dessa pessoa. Isto é agir sem escrúpulos, por muito boas intenções que se tenham.
Aconselho outras pessoas a verem por si e tecerem as suas próprias opiniões, porque a minha é muito má.

11 em 20

domingo, 24 de março de 2024

The Walking Dead: Dead City (2023 - ?)


Muito era esperado deste spin-off que confronta Maggie e Negan de “The Walking Dead”. Algumas críticas acreditam que o conflito entre os dois (a morte à cacetada de Glenn) ficou superado na série original. Eu nunca fui dessa opinião. Negan decide afastar-se da gente de Alexandria/Hilltop/etc exactamente por saber que um dia Maggie vai acabar por matá-lo. Maggie tenta interiorizar o facto de que Negan passou anos preso em Alexandria a pagar pelo seu crime, mas Maggie não estava lá para ver (porque a actriz Lauren Cohan estava a fazer outro programa). Desta forma, embora na última temporada tenham sido obrigados a trabalhar juntos, o conflito entre Maggie e Negan está longe de resolvido (se é que alguma vez poderá estar).
Passaram-se alguns anos desde o final de “The Walking Dead”. Existe uma nova Federação de Estados chamada New Babylon em que se aplica Lei & Ordem. Maggie e as pessoas de Hilltop tiveram de se mudar para outra localização depois do incêndio causado pelos Whisperers (não percebi se a comunidade de Maggie faz parte de New Babylon ou não). Hershel, o filho de Maggie e Glenn, é agora um adolescente na fase rebelde que responde mal à mãe (como é normal). Mas parece que a sociedade está menos caótica em geral. Até têm bares com álcool, jogo e prostituição. Fiquei surpreendida mas achei interessante. Se é fascinante ver a sociedade desagregar-se também é interessante vê-la voltar ao normal.
No final da série original, Negan tinha uma esposa e um filho a caminho, mas não se encontra com eles porque, como sempre, Negan está metido em sarilhos. É procurado pelos delegados de New Babylon pelo homicídio de 5 homens (mas depois percebemos que teve grandes razões para fazer o que fez). Maggie descobre-o escondido num motel (já têm motéis outra vez) para o obrigar a ajudá-la. A comunidade de Maggie foi atacada por um antigo parceiro de Negan dos tempos do Santuário, chamado o Croata (a quem Negan apelida de “o filho da puta mais demente que já conheci”), que lhes roubou todo o grão, levou Hershel como refém, e ameaçou regressar frequentemente para lhes levar a produção agrícola. Maggie quer a ajuda de Negan porque este conhece o Croata, e porque Negan “lhe deve”, além de andar fugido e já não ter muitos sítios onde se esconder. O problema é que o tal Croata levou Hershel para a ilha de Manhattan, um dos locais mais perigosos da América. Acredito que Negan só tenha aceitado por causa de Hershel, porque tem a tal “dívida”.
Perseguidos pelos delegados de New Babylon, Negan e Maggie chegam de barco a Manhattan. Manhattan está particularmente devastada porque foi um dos epicentros do apocalipse zombie. Numa tentativa de conter a epidemia, os militares destruíram as pontes e os túneis, deixando as pessoas abandonadas à sua sorte. Manhatan é agora um deserto negligenciado de prédios semi-destruídos e vegetação, hordas de zombies pelas avenidas, esgotos cheios de mortos e veados a pastar nas ruas. É neste cenário de ficção-científica (desolador, mas não é a bela França) que Negan e Maggie têm de procurar onde se esconde o Croata, o que vão descobrir mais depressa do que pensavam graças à ajuda de sobreviventes originais de Manhattan. No entanto, Maggie não está a ser tão honesta como parece…
Durante a aventura em Manhattan, Maggie fica a conhecer facetas de Negan que não julgava existirem. Por outro lado, Negan parece reconhecer o monstro que existe dentro de si e que ele não quer ver de volta à luz do dia.
“The Walking Dead: Dead City” é um bom spin-off, com mais originalidade e tensão do que a série original nos últimos tempos (o que não seria difícil). O último episódio promete uma sequela, uma vez que Maggie admite que está na altura de resolver a questão de Negan de uma vez por todas. Aconselho a todos os fãs de “The Walking Dead” e, depois de ver dois spin-offs, estou surpreendida pela qualidade que já não esperava tendo em conta como a série original acabou a arrastar-se.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies

 

terça-feira, 19 de março de 2024

12 Years a Slave / 12 Anos Escravo (2013)


Por alguma razão, este filme não teve em mim o impacto que devia ter tido. A história é baseada em factos verídicos. Um homem negro de Nova Iorque, Solomon Northup, nascido livre, é raptado e forçado a viver em escravidão na Luisiana durante doze anos até conseguir ser libertado e voltar a casa. As suas memórias foram registadas em livro.
O filme claramente quer mostrar-nos o que foi a escravatura no sul dos Estados Unidos. Acontece que nada disto é novidade para mim, como o deve ter sido para outros espectadores. Cresci com a telenovela brasileira “A Escrava Isaura” e assisti ao soberbo “Raízes” (“Roots”). Em vários filmes e séries do género já assisti a tudo o que vi aqui e pior. (Até em “Outlander”, imagine-se.) Logo, não houve factor novidade. Conheço estas atrocidades todas.
O que faltou? O filme quer mostrar-nos o que era a escravatura, mas nunca nos mostra quem é de facto Solomon Northup. Sim, é um homem decente, sabemos que quer sobreviver e escapar e regressar para a sua família (quem não quereria?), mas tudo isto é demasiado genérico e bidimensional. Solomon Northup não é um personagem em si próprio; é um símbolo. Muitas vezes dei por mim a pensar antes em “The Handmaid’s Tale”, que estava a ver na altura, e em como em narrativas semelhantes (as Servas são forçadas à escravidão pela violência) as personagens são tão bem desenvolvidas.
E depois temos a aparição deus ex machina de Bratt Pitt, qual anjo salvador, que só ali está para ajudar Solomon, finalmente.
Ou seja, o filme adquire uma tonalidade quase panfletária em vez de contar a história do homem de carne e osso que foi Solomon Northup. Exemplo disto é que só lhe vemos a família no princípio e no fim. Se calhar o objectivo do filme era mesmo que não olhássemos para o homem mas antes para os horrores da escravatura. Se era isso, objectivo conseguido, mas podia-se conseguir melhor.

13 em 20

domingo, 17 de março de 2024

The Prodigy / O Prodígio (2019)

Uma mãe descobre que o seu filho, uma criança-prodígio, está possuído pela entidade falecida de um serial killer.
Este é mais um filme do tipo “creepy kid” com todos os clichés que vêm com isso desde “O Exorcista”. É curioso que o filme insiste que não é possessão mas reencarnação (a alma do falecido “entrou” no recém-nascido para terminar assuntos pendentes) mas, lamento, a reencarnação não é nada disto. Isto é possessão e não lhe chamarei outra coisa.
À medida que o miúdo cresce mais se manifesta a personalidade manipuladora e perigosa do serial killer. A grande questão do filme é saber o que uma mãe é capaz de fazer para salvar o filho, e esta mãe está disposta a quase tudo. Mas conseguirá cumprir o último desejo do serial killer?
“O Prodígio” é um filme mediano que faz tudo o que tem de fazer dentro do género. Pese embora a falta de originalidade, agradará aos espectadores que já sabem com o que podem contar.

12 em 20


terça-feira, 12 de março de 2024

Insidious / Insidioso (2010)


Alguns filmes podem ser resumidos por fórmulas. “Insidious” seria [família em crise muda-se para casa nova] + [criança possuída] e os amantes de terror já sabem tudo o que esperar daqui. Mas vamos lá ao resumo propriamente dito.
Uma família em crise, com três filhos pequenos, muda-se para uma casa nova para recomeçar. Logo numa das primeiras noites, o filho mais velho sobe ao sótão e cai de uma escada. No outro dia não acorda: está num coma que os médicos não conseguem explicar. O filho do meio tem medo de estar sozinho no quarto, e muito depressa também a mãe começa a ter visões de espectros à volta do quarto do filho em coma.
Pensando que a casa está assombrada, convence o marido a mudar de casa, e assim fazem. (O que não acontece muitas vezes neste tipo de filmes, note-se.) Só que na casa nova as manifestações sobrenaturais continuam, o que demonstra que não era a casa que estava assombrada, é a família! (Reviravolta original, admito.)
Entra mais um elemento na fórmula: [caça-fantasmas]! Não estavam à espera desta, pois não? Eu confesso que não estava. Pensei mesmo que os caça-fantasmas e os seus aparelhómetros (que parecem mais uma coisa de “Sobrenatural” mas ainda menos profissional) eram apenas um comic relief temporário. Mas depois chamam mesmo uma vidente-exorcista.
A partir daqui o filme torna-se histérico, exactamente o contrário de insidioso, subtil. Aparecem fantasmas e demónios de todo o lado. As luzes piscam e rebentam. O costume. Eu desatei a rir quando mostraram os cascos do demónio. (Mais um à imagem do deus Pan, coitado, que não tem culpa nenhuma.) Foi assim, desatei-me mesmo a rir! E não há nada pior num filme de terror do que pôr os espectadores a rir.
E assim continuou. Os caça-fantasmas ficaram até ao fim a fazer-me rir, e nunca mais parou. Pena, porque a coisa ia bem. Onde é que o filme falhou? Fórmula demasiado comprida: [família em crise muda-se para casa nova] + [criança possuída] + [caça-fantasmas]. Quiseram meter tudo e mais alguma coisa num filme que se anunciava “insidioso” e que se tornou “excessivo”.
Fica a parte boa e a parte em que me ri.
Ah! E vejam os créditos finais até ao fim para mais uma gargalhada!

12 em 20


domingo, 10 de março de 2024

Cybele's Secret, de Juliet Marillier


Segundo livro da série iniciada em “Wildwood Dancing”, esta é a história de Paula, uma das cinco irmãs do original. Paula acompanha o pai, o mercador Teodor, a Istambul, na tentativa de adquirirem a estatueta de Cybele, um artefacto pagão de uma deusa da antiguidade, que se diz trazer prosperidade ao seu possuidor.
Em Istambul, chegada da Transilvânia, Paula encontra uma cultura islâmica muito diferente da sua que obriga o mercador a arranjar-lhe um guarda, o búlgaro Stoyan, que a acompanha para todo o lado. Numa sociedade de intrigas e traições, Paula, a erudita da família, conhece outra erudita, a grega Irene de Volos, e o capitão do navio Esperança, o português com fama de pirata Duarte da Costa Aguiar, ambos interessados no mesmo artefacto. (Fiquei muito surpreendida e entusiasmada por haver um português na história, com palavras e canções em português e tudo!) As autoridades de Istambul suspeitam que o culto pagão de Cybele está a ser praticado às escondidas e também querem pôr as mãos no que consideram um ídolo proibido.
Duarte é atrevido e considerado sem escrúpulos, e é ele quem consegue comprar a estatueta, mas, como Paula vem a descobrir, não é o lucro que o move, antes a promessa que fez a um amigo de restituir o artefacto ao povo a quem este pertence.
Paula torna-se amiga de Duarte mas apaixona-se por Stoyan, o que não vai ser uma relação fácil porque Paula adora conhecimento e instrução e Stoyan nem sabe ler ou escrever.
“Cybele's Secret” é um romance Young Adult (e toda a gente aqui sabe que não é o meu género) mas o que realmente não apreciei foi a aventura à Indiana Jones em que Paula, Duarte e Stoyan se metem para levar a estatueta ao povo que a idolatra. Quem gosta de aventuras tem aqui uma boa história, no entanto. Para mim, admito, foi uma seca. Aliás, “Cybele's Secret” ainda é mais juvenil do que “Wildwood Dancing” e faltam-lhe os elementos dramáticos que me enchem as medidas. Bom livro para oferecer a uma pessoa muito jovem, mas para mim não.


terça-feira, 5 de março de 2024

The Girl On The Train / A Rapariga No Comboio (2016)

Este é um daqueles filmes baseados em romances que talvez não tenham sido bem traduzidos para o cinema, fazendo com que a princípio pareça um drama psicológico que subitamente se transforma num suspense/policial à Hitchcock. A sensação geral é de que estes dois elementos andam sempre desconjuntados.
Começa logo pelo princípio, em que somos apresentados a três personagens femininas distintas, uma de cada vez, nenhuma delas particularmente empática. Achei aborrecido e fez-me questionar porque é que nos devíamos interessar por elas. Rachel, a protagonista, é uma alcoólica que todos os dias finge que vai trabalhar (embora tenha sido despedida) e se mete no comboio que passa à frente da casa do ex-marido, onde este agora mora com outra esposa e uma filha bebé. Da perspectiva desta nova esposa, descobrimos que Rachel não se limita a observar. Passa os dias e as noites de embriaguez a telefonar e a mandar mensagens ao ex-marido, e certa vez, bêbeda, entrou em casa deles (que tinha sido também a casa dela) e pegou na bebé e levou-a com ela, o que é aterrador para uma mãe.
Mas o interesse de Rachel não se limita ao ex-marido. Durante as viagens de comboio desenvolveu um fascínio/obsessão com outra vizinha que parece viver o amor perfeito com o marido (desta outra vizinha). Se soa confuso, é porque o filme também é algo confuso. Demorei um bocadinho a perceber que este “casal perfeito” é vizinho do ex-marido e que Rachel possivelmente só ficou fascinada por eles porque passava por lá todos os dias. Quando Rachel descobre que esta mulher (que Rachel não conhece mas fantasia conhecer) anda a trair o marido, fica enraivecida porque a vê a destruir algo de perfeito. Perfeito na cabeça de Rachel, isto é. Embriagada, Rachel tem um apagão e acorda em casa coberta de sangue e nódoas negras. Pouco mais tarde vê no jornal que a mulher, chamada Megan, desapareceu. Rachel pensa que a matou e fica apavorada. Continuando na linha stalker, apresenta-se ao marido de Megan como amiga dela, imiscui-se na investigação, começa a frequentar o psiquiatra de Megan. E aqui o filme começa a ser um “quem matou Megan?”, mas significativamente mais interessante do que tinha sido nos primeiros 20 minutos.
Infelizmente, após tanto tempo de filme, a revelação aparece um bocado aos trambolhões. Não era nada do que pensávamos porque o filme nos tentou enganar noutra direcção e também não nos deu nada para suspeitarmos outra coisa. Logo, o fim parece-nos uma reviravolta forçada. Aliás, toda a dinâmica entre estes vizinhos e Rachel parece forçada e “coincidência a mais”. Foi pena, porque o filme até estava a tomar forma e a recompensar-nos pelos 20 minutos em que tivemos de conhecer personagens sem percebermos qual era o papel delas na história.
Das críticas que li, o livro resulta, o filme é que não. Mesmo assim, tem momentos interessantes e vale a pena ver. A parte do saca-rolhas é de algum humor negro. Quem melhor do que um alcoólico para usar um saca-rolhas como arma? Acho que não era para rir, mas ri-me.

12 em 20

domingo, 3 de março de 2024

The First Purge / A Primeira Purga (2018)


O primeiro filme da série “A Purga” era assumidamente um filme de terror com comentário social implícito. Nos dois filmes seguintes, “The Purge: Anarchy” e “The Purge: Election Year”, o comentário social começou a tomar um lugar central sem que mesmo assim saíssem do género que lhes deu origem.
Já não posso dizer o mesmo deste “The First Purge”. A história começa com cenas de protestos em que duas facções de americanos se enfrentam com tal antagonismo que podiam passar-se hoje. De facto, parece o que vemos no telejornal. Isto arrepia, mas de outra maneira: não porque é ficção mas porque é real.
“The First Purge” conta-nos como começou a noite da Purga, quando o Partido chamado Novos Pais Fundadores subiu ao poder. Basicamente, é um partido do tipo “fazer a América grande outra vez” sem usar exactamente este slogan, que acredita que o Estado está muito sobrecarregado com despesas de apoio aos mais pobres e que aproveita, para os eliminar, uma experiência científica que defende que deixando as pessoas darem largas aos impulsos mais criminosos impunemente, durante uma única noite no ano, a violência decresce. Mais uma vez, esta barbaridade é vendida em troca da promessa de mais segurança. Segundo me lembro do primeiro filme, alguns números confirmavam o sucesso da experiência, mas por outro lado os números podiam estar manipulados. Não é possível acreditar em nada que os Novos Pais Fundadores dizem oficialmente.
A primeira Purga foi assim vendida como experiência na ilha de Staten Island, e aos mais pobres foram oferecidos 5 mil dólares para permanecer no local (na altura havia a possibilidade de escapar para outro sítio) e ainda mais se participassem. A maioria das pessoas aceitou porque precisava do dinheiro, mas há uma minoria de outros que está a salivar pela oportunidade de fazer mal ao próximo, mesmo a desconhecidos, até por questões de frustrações e raivas acumuladas.
Enquanto os activistas anti-Purga se organizam para manter as pessoas em segurança durante a noite, os traficantes de droga, por seu lado, também não gostam da ideia porque não é bom para o negócio. Daqui nascerá uma estranha aliança quando as coisas se complicam.
A princípio, “The First Purge” ainda tenta um toque do género terror, fazendo os “purgantes”, chamemos-lhes assim, usar umas lentes de contacto com câmaras integradas (a transmitirem para o centro de observação da experiência) que ficam néon e dão uma aparência alienígena. Isto é interessante, mas depressa abandonado.
Curiosamente, na noite da Purga as pessoas não se lançaram todas umas às outras. Houve quem aproveitasse para organizar festas. Houve quem decidisse ir arrombar o Multibanco para roubar o banco que lhe cobra comissões muito altas (e podemos censurá-lo?). Mas, é claro, há sempre o psicopata que aproveita para dar vazão aos seus instintos, e é assim que as mortes começam.
É igualmente curioso que as pessoas que decidem “purgar” comecem a fazê-lo usando máscaras, mesmo que a lei lhes permita impunidade. É a maneira de esconderem a vergonha de cometerem actos que sabem estar errados, um apontamento de psicologia interessante.
Todavia, as coisas continuavam relativamente calmas na opinião do centro de observação. Previam que houvesse muito mais violência. Na falta dela, enviam mercenários para começarem o que as pessoas comuns não queriam fazer, e então sim, foi a mortandade.
Um dos heróis do filme é mesmo o traficante de droga que tenta proteger as pessoas do bairro, o bairro que, afinal, também é o dele. Isto leva a cenas de grandes tiroteios e combates nas ruas, mas, e aqui é que lamento, um filme de tiros não é um filme de terror. Em suma, é o que acho de “The First Purge”, que abandonou completamente o género inicial e se transformou quase num filme de acção, os bons contra os maus e isso tudo. Não digo que tenha perdido o interesse, mas perdeu alguma coisa do seu ADN.
Este filme é todo feito na perspectiva de pessoas de cor, o que também me incomodou um bocadinho. Todos os personagens brancos são ricos e maus. Não há aqui um único branco pobre e/ou bom. É verdade, o primeiro filme passou-se numa casa da classe alta branca mas os “maus” também eram brancos. Em “The First Purge” acho que se exagera na questão racial, como se não houvesse brancos pobres. É quase um “brancos a matar negros oprimidos” carregadinho de ideias políticas tão fracturantes que, se eu estivesse a escrever isto nos Estados Unidos, caía-me tudo em cima a chamar-me racista. (As coisas já estão assim tão extremadas que nem se pode emitir uma opinião de meio-termo.) Pelo contrário, só estranhei a falta dos brancos pobres porque também há muitos e vivem nos mesmos bairros sociais e degradados.
Não gostei que esta “Purga” tenha perdido o elemento de terror. Os filmes anteriores já estavam a caminhar nesse sentido, mas eram mais subtis. Esta “Purga” é muito óbvia, quase panfletária. O paralelo com a situação política actual funciona, mas perde-se quando se entra no território da Purga propriamente dita, num salto da realidade para a ficção sem terror e/ou drama que o sustentem.

13 em 20

domingo, 25 de fevereiro de 2024

The Walking Dead: Daryl Dixon (2023 - ?)

[contém spoilers]

Pensavam que “The Walking Dead” tinha acabado? “The Walking Dead” nunca vai acabar porque, como o próprio nome indica, vai andar por cá durante séculos… ou enquanto der dinheiro. Já estava na calha um spin-off protagonizado por Daryl Dixon, em que Carol, inicialmente, era suposto ter participado também.

França: mais uma personagem
Confesso, fiquei agradavelmente surpreendida com esta série filmada em França (fui confirmar) que nem precisava de enredo, bastava Daryl a matar zombies pelos fascinantes cenários franceses, mas por acaso até tem.
Comecemos pelo princípio. Daryl dá à costa em França e põe-se a deambular por lá como um peixe fora de água (passe o trocadilho). Como é que Daryl dá à costa em França? Isto pode parecer pateta mas o penúltimo episódio explica-nos o que aconteceu. (Voltarei a isto no fim.) *
Quanto mais vejo a série mais sentido faz o contraste entre o redneck (campónio) americano Daryl, um homem sem educação nem requinte que não percebe uma palavra de francês, e a cultura de milénios onde acaba de aterrar. Não estou com isto a menosprezar ou a subestimar Daryl. Pelo contrário, parece-me que a série original é que o menosprezou em favor de personagens menos interessantes, porque em “Daryl Dixon” percebemos que Daryl até pensa e diz umas coisas muito acertadas.
O que Daryl encontra ao chegar não é muito diferente do que se passa nos Estados Unidos: zombies mortos e vivos, cidades e estradas desertas, falta de recursos. O que muda é o cenário, e que cenário! A série leva-nos a muitos locais belos, mais do que eu consigo enumerar, como um convento, um castelo medieval, um palácio barroco, as Catacumbas, a paisagem campestre francesa, Paris, o cemitério de Père-Lachaise e o túmulo de Jim Morrison, o Mont Saint Michel, entre outros lugares icónicos. A Notre Dame deve ter sido inserida por computador porque, ironicamente, ardeu no nosso mundo mas não ardeu no apocalipse zombie. A Torre Eiffel, por outro lado, sofreu um choque com um helicóptero e tem o pináculo derrubado. É quase como se França fosse mais uma personagem da história. Inclusive descobrimos que o avô de Daryl morreu no desembarque na Normandia na Segunda Guerra Mundial, o que fez com que o pai de Daryl fosse ausente e negligente, no que Daryl chama “o repetir da história”. No fim temos uma cena muito emocional em torno disto.

Voltar a casa
Mas vamos ao enredo. Daryl quer encontrar uma maneira de voltar para casa, mas mete-se logo em sarilhos. Durante uma escaramuça com os novos senhores de França, os guerriers do Pouvoir des Vivants, uma força militarizada e comandada pela implacável Madame Genet, um destes homens é morto e o irmão dele jura perseguir Daryl até à morte.
Daryl é encontrado por uma freira, Isabelle, que o leva para um convento. Antes ainda da escaramuça com os homens de Genet, Daryl fica ferido por uma espécie de zombies que ele nunca tinha visto (nem nós) que têm sangue ácido e que queima. Não é explicado se isto tem a ver com as experiências com zombies que Genet anda a conduzir (já lá vamos) ou se é uma coisa completamente diferente e característica do apocalipse zombie em França. O convento de Isabelle pertence a uma nova doutrina, uma reunião de várias religiões na Union de l’Espoir (afinal o apocalipse sempre serviu para uma coisa boa), e Isabelle tenta convencer Daryl a ajudá-la a viajar para norte onde ela pretende levar o jovem Laurent, apontado como o futuro líder da Union. Laurent é um miúdo de 12 anos, muito inteligente e puro, mas igualmente ingénuo e inocente. Quando Daryl descobre que as freiras têm um zombie fechado no convento, o venerado padre Jean que morreu, decide logo ir-se embora como quem já viu esse filme (o celeiro da segunda temporada de “The Walking Dead”). Mas, na verdade, as freiras apenas estão a viver de acordo com o que acreditam, à espera que padre Jean se “erga” outra vez. Daryl vai-se mesmo embora, mas regressa quando o convento é atacado por homens do Pouvoir. Acaba por decidir ajudar Isabelle, não por acreditar que Laurent seja um Messias, mas, bem pelo contrário, por achá-lo completamente impreparado para sobreviver no mundo fora do convento. Aqui, Daryl está a tentar fazer com que a história não se repita. Esta informação sobre o avô que morreu na guerra explica-nos muita coisa sobre o personagem. Por outro lado, Daryl quer chegar ao porto de Le Havre, de onde há rumores de navios a funcionar, e parte do caminho é coincidente.

Os vilões
Entretanto, a Union chamou a atenção do Pouvoir, que os considera inimigos. Como diz Genet, a Union vende contos de fadas e cada pessoa que se junta a eles enfraquece o Pouvoir. O Pouvoir recorda-me os regimes fascizantes do século XX. Como estes, Genet chega mesmo a dizer que o impressionismo é uma arte degenerada. E, obviamente, Genet também quer “fazer a França grande outra vez”. Para isso, pretende aniquilar “movimentos de fracos” como a Union. Durante o caminho, Daryl, Isabelle e Laurent são perseguidos pelos guerriers. Laurent, porque as pessoas acreditam nele, torna-se um alvo a abater.
O Pouvoir anda a fazer experiências sinistras com zombies, injectando-lhes um líquido que os torna super-zombies (e que provoca o tal sangue ácido), sem dúvida para tentar transformá-los em armas. Geralmente não gosto de super-zombies, mas mais uma vez  “The Walking Dead” apresenta os melhores zombies de Hollywood. Estes super-zombies não funcionam perfeitamente: alguns não resistem ao soro, outros ficam fortes e rápidos mas têm espasmos e paragens, outros atacam outros zombies. As experiências não estão a correr nada de feição para o Pouvoir.
Um segundo vilão, Quinn, antigo amante de Isabelle, é o delicioso Adam Nagaitis que interpretou o infame Mr. Hickey em “The Terror”. Quinn não é tão maléfico como Mr. Hickey, nem nada que se pareça, mas Nagaitis é um excelente actor em papéis de vilão. O que ele consegue transmitir com um simples franzir de sobrancelhas ou um esgar dos lábios! Estou encantada com o actor e queria vê-lo em muitos outros papéis.
As lutas de zombies continuam a ser do melhor que há. A certa altura Daryl é obrigado a lutar com super-zombies, como num combate de gladiadores em Roma com armas medievais, e mata um deles com a bandeira de França. No contexto em que a cena se passa, é épico em todos os sentidos. Mais tarde, Daryl e Quinn são obrigados a enfrentar mais super-zombies, desta vez agrilhoados um ao outro. Uma das manobras que empregaram lembrou-me “Spartacus”, só que em “Spartacus” a pobre vítima estava muito viva. Toda a cena das correntes recordou-me também de “The Terror”. Afinal, foi por causa de Mr. Hickey e de uma corrente que o Tuunbaq conheceu a sua desgraça.

O fenómeno Dixon
Daquilo que tenho lido, Daryl Dixon é a única personagem de “The Walking Dead” que não estava na banda desenhada original. Tenho para mim que Daryl era daqueles personagens destinados a morrer logo na primeira temporada, mas, graças à performance carismática de Norman Reedus, e àquele primeiro feito heróico em que Daryl regressa ao telhado para salvar o irmão Merle (que devia ter sido heroísmo de Rick mas que granjeou mais pontos a Daryl), o personagem ganhou a simpatia do público para sempre. É um fenómeno que uma personagem não original tenha chegado até aqui, e ainda mais que tenha alcançado tal estatuto que merece um spin-off protagonizado por ele sozinho (isto é, sem mais personagens originais de “The Walking Dead”). A popularidade de Daryl Dixon é igualmente um fenómeno. Daryl tem milhões de fãs, não apenas “em casa” como da Europa à Ásia e em qualquer lugar onde haja um televisor e passe “The Walking Dead”. Como explicar que um redneck de um estado obscuro da América, um homem sem educação, sujo e de poucas falas, se tenha tornado tão amado pelos fãs? Talvez porque Daryl sempre tenha sido menosprezado pelo pai e subestimado pelo irmão, aprendendo a desenvencilhar-se sozinho desde infância, o que o preparou invulgarmente para o apocalipse. Talvez a sua vulnerabilidade escondida, que o faz isolar-se na floresta de forma anti-social porque ter amigos é sinónimo de os perder ou de ser traído por eles. Talvez o seu bom coração debaixo daquela carapaça durona. Talvez tudo isto tenha tocado os corações de todo o mundo e criado uma empatia com os fãs. É possível, nesta altura, que Daryl tenha mais fãs do que o protagonista, Rick, que já nem está na série.
Por todos estes motivos, Daryl mereceu o seu próprio spin-off num cenário deslumbrante onde ele melhor contrasta. Não sei se a série vai ser renovada, mas eu não me importava de ver Daryl numa perambulação pela Europa toda (por exemplo, aqui vemos os primeiros dias do apocalipse em França, e os primeiros dias é o que eu gosto mais de ver, confesso), mostrando-nos o apocalipse zombie no velho continente desde o Reino Unido à Noruega. E talvez, até, neste jardim à beira-mar plantado.
“The Walking Dead: Daryl Dixon” é um spin-off que se podia ver só pelos cenários mas que, ao invés disso, tem uma componente dramática que há muito tempo não se vislumbrava na série original.

* Spoiler / teoria
Daryl Dixon é levado para França num transatlântico que transporta zombies a bordo. Isto pode parecer estúpido porque os franceses não precisam de ir à América buscar zombies mas, se pensarmos que a CRM (República Civil Militar) também estava a fazer experiências com zombies em “The Walking Dead: World Beyond” para o mesmo objectivo e que a CRM tem capacidade de comunicar por rádio (e se calhar também por satélite?), será que o navio francês foi antes buscar equipamento, conhecimento, fórmulas, o tal soro? Afinal, os cientistas franceses começaram logo a fazer as experiências durante a travessia. É a minha teoria, pelo menos, porque gosto que as coisas façam sentido.


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes (pelos cenários de França)

PARA QUEM GOSTA DE: The Walking Dead, zombies


terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Whiteout / Inferno Branco (2009)


Já tinha visto este filme há alguns anos e lembrei-me logo disso devido a uma certa cena de nudez algo cómica e difícil de esquecer que acontece no princípio. (Não, não é a gaja no duche, que era completamente dispensável e puramente dirigido à audiência masculina.)
Carrie é uma polícia norte-americana destacada para um complexo de pesquisa científica na Antártida, onde já passou vários invernos seguidos. Finalmente decide voltar para casa, mesmo antes da noite polar, quando aparece um corpo em circunstâncias estranhas. Tudo indica que é um homicídio. Após anos de monotonia, Carrie decide ficar e apanhar o assassino.
“Whiteout” é um filme que deve muito a “The Thing”, nem que seja pelo cenário e pela sensação de isolamento, claustrofobia e desconfiança. Basta dizer que a história começa num avião russo, em 1957, em que os tripulantes se matam uns aos outros por algo que levam na carga. Da primeira vez que vi o filme fiquei frustrada porque não saiu de lá um extraterrestre que os comesse a todos, embora nada na narrativa me levasse a concluir isso excepto as semelhanças iniciais com o filme de John Carpenter. Efectivamente, não é um filme de terror, é apenas um policial passado no Pólo Sul.
A crítica destruiu este filme (se calhar ficaram tão frustrados como eu) mas, mesmo ao segundo visionamento, não desgostei, embora já não me lembrasse nada de quem era o culpado. É verdade que algumas cenas durante o nevão na parte fulcral tornam difícil de perceber quem é quem e quem está a fazer o quê. Só se vê um véu de neve a voar ao vento, vultos à distância, e todos vestidos com parkas semelhantes, ainda por cima. Admito, foi confuso.
 “Whiteout” não mudou a minha vida, não houve aqui nada que me fizesse lembrar o filme para todo o sempre (excepto aquela cena de nudez inicial, que tem a sua piada), e ensinou-me pouco *, mas de modo geral é um filme agradável de ver. As críticas acharam o fim previsível, mas, novamente, não posso concordar. Não estava mesmo à espera daquilo. Aconselho a quem gosta de um bom policial, mas quem viu “The Thing” deve logo deixar as expectativas à porta.

13 em 20

* Minto. Se três pessoas vão a passear no Pólo Sul deserto e uma delas cai dentro de um buraco no gelo, é melhor descer só um para a ir buscar enquanto o outro fica cá em cima à espera, não vá dar para o torto e alguém precisar de ir pedir ajuda. Agora já sabem: duas pessoas num buraco instável é mau. Todas as pessoas a descerem voluntariamente ao buraco instável é estar mesmo a pedi-las. Mas aposto que este mesmo pensamento me passou pela cabeça da primeira vez que vi o filme.


domingo, 18 de fevereiro de 2024

December Boys / Os Rapazes de Dezembro (2007)

Quatro órfãos, todos nascidos em Dezembro, são convidados por um casal idoso e caridoso a passar umas férias à beira-mar longe do orfanato. Três deles ainda são miúdos (onze anos no máximo?) e ainda querem uma família acima de tudo, mas o mais velho, Maps (interpretado por Daniel Radcliffe = Harry Potter), tem no mínimo 14 anos, talvez mesmo 15 ou 16, e interesses mais adultos.
A experiência da liberdade à beira-mar, para os órfãos, é emocionante o bastante, mas toma contornos mais excitantes quando conhecem um casal sem filhos que pensa em adoptar um deles. Todos competem para ser adoptados, excepto Maps, mais interessado na filha do vizinho e quase pronto para a vida adulta em que a ideia de ter pais já não o seduz.
Este é um filme sensível, quase tirado da vida real, onde há muitas ocasiões para chorar. Eu própria dei por mim com lágrimas nos olhos uma ou duas vezes, e se calhar não as mais previsíveis.
Melhor do que falar sobre o filme é mesmo vê-lo, e recordar as crianças que nós (os mais velhos) fomos numa época diferente, mais difícil, mas ao mesmo tempo mais livre e menos protectora.

16 em 20

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Black Mirror (2011 -?)

Li muitas críticas que mencionavam esta série que já cá anda desde 2011 antes de me resolver a vê-la. “Black Mirror” é uma antologia de histórias que têm em comum a tecnologia, desde o poder das redes sociais à inteligência artificial, até à ficção científica mais avançada como o upload de consciências humanas como se fossem software para dispositivos de hardware.
Nunca é dito claramente, mas este “black mirror” tem todo o aspecto de ser o écran dos nossos telemóveis, portáteis, computadores, interfaces em geral, que nos podem vir a mostrar o espelho negro de nós próprios se deixarmos demasiada tecnologia reger as nossas vidas.
Os episódios são muito díspares e abordam vários temas, podendo ir do mais puro terror (“Playtest”, “Metalhead”, “Black Museum”), à comédia romântica e não romântica (“Demon 79”, “Joan Is Awful”, “Rachel, Jack and Ashley Too”, “Striking Vipers”) ou ao drama mais pesado (“Beyond the Sea”). Vou apenas referir os meus preferidos ou os que me atingiram mais.

The National Anthem
Este é um episódio inesquecível pelo seu fim perturbador e repugnante. Uma princesa muito popular da família real britânica é raptada e a exigência em troca da sua libertação é a de que o primeiro-ministro faça sexo com um animal em directo na televisão. A princípio a opinião pública fica escandalizada mas, quando o raptor envia à polícia um dedo cortado, as sondagens indicam que o primeiro-ministro se deve sacrificar pela vida da princesa.
O episódio é particularmente chocante na medida em que explora o voyerismo colectivo alimentado pelas redes sociais.
Achei o episódio demasiado desagradável (e não gostei que a brutalidade para com o animal não tivesse sido sequer considerada) e comecei a apreciar muito mais a série quando esta passou para a Netflix.

Nosedive
Imaginem se a vossa vida social e profissional dependesse dos likes recebidos nas redes sociais, a ponto de terem influência no preço de uma casa que pretendam arrendar? É o caso de Lacey, cuja média de likes está nos 4,2 e precisa de subir para 4,5 para arrendar uma casa num bairro só de 4,5s, isto é, de pessoas com avaliações acima de 4,5. Lacey tem uma amiga de infância que é um 4 muito elevado e quando é convidada para o casamento dela vê aí a sua oportunidade de subir as suas avaliações e tornar-se mais popular. Mas uma série de azares fazem com que a avaliação de Lacey desça para os 2 e qualquer coisa e agora a “amiga” não a quer no casamento.
Um episódio para nos fazer pensar na importância (ou não) e sinceridade dos likes que recebemos nas redes sociais.

Hated in the Nation
Garanto que ninguém se vai esquecer deste episódio, o episódio das abelhas. Foi o que me recordou mais dos “X-Files”.
Após a extinção das abelhas estas são substituídas por drones mecânicos para efeitos de polinização, até que todo o sistema cai nas mãos erradas. As abelhas começam a ser utilizadas para assassinar pessoas que têm sido alvo de ódio na internet. Mais um episódio para nos fazer pensar até que ponto queremos inteligência artificial nas nossas vidas e até que ponto a indignação “atrás de um écran” não é uma grande cobardia.

USS Callister
Os “trekkies” vão detestar este episódio em que um nerd, fanático de uma série de culto muito igual a “Star Trek”, desenvolve um jogo a partir do programa. Só que, para tripular a nave, este “Capitão Kirk” utiliza o upload das consciências de toda a gente que o chateou na empresa onde é sócio-proprietário, quer estes queiram quer não, tornando-se num tirano sádico que os maltrata e aterroriza. Muita ficção científica para o meu gosto, mas os “trekkies” (não) vão apreciar o humor.

Striking Vipers
Este foi dos episódios mais engraçados de todos. Dois amigos de longos anos, muito hetero ambos, começam a jogar “Striking Vipers”, como jogavam nos dias da faculdade, mas agora em realidade ultra-virtual. Um deles joga com uma personagem feminina e o outro com uma personagem masculina, e em vez de se porem à porrada, como dantes, começam uma relação sexual e tórrida no espaço virtual. Isto deixa-os bastante confusos porque não sentem qualquer atracção física um pelo outro na vida real (inclusive até tentam beijar-se para tirar a coisa a limpo) mas o affair no mundo virtual é o melhor sexo que já experimentaram na vida toda. Agora têm de decidir se devem continuar (até porque o jogo já começa a causar problemas no casamento de um deles) ou parar completamente.

Rachel, Jack and Ashley Too
O episódio mais engraçado de todos. Tal como disse aqui sobre Lady Gaga, esta foi a primeira vez que vi Miley Cyrus a sério e nem a reconheci. Miley Cyrus faz o papel de Ashley O, uma cantora pop com uma audiência muito jovem e mensagens muito positivas. O que eu conheci imediatamente foi o refrão de “Head Like a Hole” dos Nine Inch Nails, aqui transformado com as letras “I’m full of ambition and verve, I’m gonna get what I deserve”. “Black Mirror” tornou-se uma série tão importante que um agradecimento a Trent Reznor até aparece nos créditos.
Ashley O é dominada por uma manager (e tia) malvada que a põe em coma quando ela começa a desejar mudar o repertório para algo mais adulto e pessimista. Ashley O, como os fãs a conhecem, é a galinha dos ovos de ouro e a tia não vai permitir que isso mude. Para continuar a ganhar dinheiro com ela, transforma-a num holograma que pode actuar em muitos sítios ao mesmo tempo e mais outras vantagens.
Ashley O é salva por duas fãs miúdas (em sequências hilariantes) e acaba a cantar uma versão espectacular de “Head Like a Hole” (com as letras verdadeiras). Fabuloso! Adorei!

Joan Is Awful
Outro episódio engraçado que não teria graça nenhuma se fosse connosco. Joan é uma pessoa comum, chefe de departamento numa empresa tecnológica, a viver com o noivo mas ainda apaixonada pelo ex, que frequenta o psiquiatra. Qual não é o seu espanto quando encontra uma série numa espécie de Netflix ficcional que retrata toda a sua vida. Consequência, todos os seus segredos são expostos: perde o emprego e o noivo, e até o ex. E porquê? Porque deu permissão, naquelas letras pequeninas das licenças de software, que todas as suas conversas fossem gravadas sem ela saber, o que originou o enredo da série. Para agravar as coisas, a série não é filmada com actores verdadeiros mas antes criada por CGI, o que permite que seja feita em tempo real, isto é, ao fim do dia o episódio é sobre o que se passou nesse mesmo dia. A fazer o papel de Joan (na série ficcional) está Salma Hayek, que igualmente deu permissão para usarem a sua imagem em CGI e que não está nada contente com o papel que a põem a fazer. Há toda uma sequência hilariante numa igreja quando Joan tenta pôr fim à série sobre a sua vida, mas o melhor mesmo é ver.

Loch Henry
Este podia ser qualquer episódio de uma série de crime. A ligação à tecnologia acontece através das câmaras de filmar. Um estudante de cinema e a namorada visitam a casa da mãe dele na Escócia. A princípio ambos têm a intenção de fazer um documentário sobre um protector da natureza quando a namorada descobre que a pitoresca vila, toda rodeada de montanhas e lagos, foi cenário para um serial killer local que raptava, torturava e matava as vítimas de forma particularmente cruel. À medida que investigam, o estudante vai descobrir coisas sobre a sua família que preferia nunca ter chegado a saber.

Beyond the Sea

Dois astronautas estão no espaço mas têm réplicas mecânicas/sintéticas na Terra junto das suas famílias (estas réplicas contêm o upload das consciências dos astronautas). Todo o episódio é filmado num ambiente retro que nos remete para os anos 60/70. Neste contexto, um culto fanático entra em casa de um dos astronautas e mata a família toda, crianças e tudo, alegando que o que lá se passa é anti-natural. Este crime chocante foi claramente inspirado nos assassinatos a mando de Charles Manson e é difícil de assistir. Entretanto, no espaço, o astronauta toma conhecimento do que aconteceu à sua família. Para o animar, o colega deixa-o usar a sua réplica na Terra. “Beyond the Sea” é um episódio trágico do princípio ao fim, protagonizado por Aaron Paul (Jesse Pinkman em “Breaking Bad”) que também já tinha contribuído com a voz em “Black Mirror” numa passagem de “USS Callister”.

Mazey Day
“Mazey Day” parece um episódio banal sobre uma estrela de cinema em reabilitação perseguida por paparazzis, mas o fim é tão inesperado que não vou contar mais nada. 


 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

After Earth / Depois da Terra (2013)

Num mundo apocalíptico… Ó meu Blogger, quantas críticas eu tenho escrito ultimamente a começar com estas palavras! É uma moda, sim senhor, e admito que já estou a ficar farta deste tema. Mas é de facto um mundo tão apocalíptico que a humanidade conseguiu poluir a Terra de tal maneira que esta se tornou inabitável e os terráqueos se mudaram para outro planeta (para o destruírem também, digo eu).
A história é muito simples. O comandante das tropas deste novo mundo e o seu filho vão a qualquer sítio numa nave espacial de modo a estreitarem os laços pai-filho quando uma chuva de meteoritos faz despenhar a nave precisamente na velhinha Terra, a nossa Terra.
Se gostei de alguma coisa neste filme foi mesmo da Terra destruída para a humanidade, onde, por exemplo, um ser humano não consegue respirar sem ajuda de comprimidos, mas onde igualmente a fauna e a flora evoluíram no que é uma autêntica selva com vegetação luxuriante e predadores que já não temem o homem. Não sei se acredito na ficção de que nas horas nocturnas a temperatura desce ao ponto de congelação mas aquela flora toda consegue adaptar-se (não são abetos), mas se calhar isso não interessa nada. Também anda um extraterrestre à solta a tentar matar os protagonistas, mas isso é que não interessa mesmo nada.
Esta é a história de um adolescente que quer provar-se à altura do pai, que é uma lenda viva. Durante o despenhamento a nave parte-se ao meio e o pai fica gravemente ferido e impossibilitado de se mexer. Tem de ser o miúdo a empreender a jornada épica até à outra metade da nave onde há (talvez) um localizador que ele pode usar para pedir socorro. Entretanto tem de evitar ser comido pelos predadores terrestres, fugir ao extraterrestre, e não morrer congelado durante a noite.
É também a desculpa para M. Night Shyamalan se armar em filósofo, como já é costume, e pôr o personagem a dizer: “O medo não existe. É uma abstracção. O perigo é real mas o medo é uma escolha”. Sim, se eu der de caras com um leão à solta vou mesmo lembrar-me disto: “O medo é uma abstracção. Tu não existes. Estás a comer-me viva mas não passas de uma escolha”. Estou a brincar mas a teoria de que “o medo é uma escolha” funciona em casos de ansiedades imaginárias, longínquas, obsessivas. Não funciona grandemente com o leão e não funciona neste filme em que o miúdo estava mesmo a arriscar a vida. O medo, tal como a dor, é um mecanismo de alerta e sobrevivência. Misturar perigos reais e imediatos com psicologia de algibeira não me parece muito inteligente.
O filme vale pela ficção daquilo em que a Terra se torna sem o Homem a estragá-la mais. E se calhar o Homem não faz cá falta nenhuma.

12 em 20

 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

The Haunting of Hill House (livro, 1959), The Haunting (filme, 1963)

The Haunting, 1963

Mais um dos casos raros em que o filme me estragou completamente o livro. Depois de ver a série “The Haunting of Hill House” (2018), e uma vez que “The Haunting” (1963) é um dos meus filmes de terror preferidos de sempre, tive a compulsão de ir ler o livro original “The Haunting of Hill House” de Shirley Jackson, publicado em 1959. Finalmente queria descobrir o que fazia parte do livro original, do filme e da série.
Desta vez não tenho qualquer problema em dizê-lo: o filme é muito melhor do que o livro. Não só criou uma atmosfera (e história) muito mais arrepiante como cortou toda a palha desnecessária.
Eleanor Vance continua a ser a protagonista (o apelido é ligeiramente alterado no filme para Lance), uma mulher de trinta anos que sempre viveu com a irmã e que passou os últimos 11 anos a cuidar da mãe doente sem ter qualquer vida própria (onde é que estava a irmã que nunca ajudou a cuidar da mãe?). Eleanor é submissa, passiva (diria mesmo passivo-agressiva), insegura, isolada, eternamente à espera que algo de importante lhe aconteça. Finalmente algo lhe acontece, quando é convidada por um investigador do sobrenatural, o doutor Montague (Markway no filme) para um estudo experimental em Hill House. Eleanor recebe o convite devido a uma experiência documentada com um poltergeist na infância. Os outros investigadores são Theodora, uma médium (curiosamente,Theodora é lésbica no livro, no filme e na série, mas apenas declaradamente na série, sinal dos tempos), e um representante da família dos donos da casa e potencial herdeiro, Luke. São estes igualmente os protagonistas do filme. Mais tarde aparece a esposa do doutor Markway num papel ultra secundário, e ainda bem, porque a esposa do doutor Montague no livro é uma personagem execrável, ainda mais fanática pelo espiritismo do que ele, que critica, desvaloriza e trata o marido abaixo de cão. Eu, sinceramente, tive pena do homem. Se fosse a ele fechava-a no berçário e deixava-a lá para todo o sempre. Não exagero, a mulher é tão mandona e convencida (se calhar foi inserida no livro como comic relief) que nem a casa quer nada com ela. A mulher bem tenta ser assombrada mas Hill House nem lhe passa cartão, o que é dizer tudo.
Por falar em berçário, há uma diferença significativa no livro, em que Hugh Crain, o dono original de Hill House, tem duas filhas e não apenas uma. Na morte do pai, as duas irmãs digladiaram-se encarniçadamente pela herança da casa e seus conteúdos, o que nos recorda as brigas de família da série “The Haunting of Hill House” em que os irmãos quase andaram à porrada no velório da irmã.
Tanto o livro como o filme se centram fundamentalmente em torno de Eleanor, cuja fragilidade psicológica a torna presa fácil para ser possuída (ou enlouquecida, se quisermos) por Hill House, onde ela julga ter encontrado o seu lugar. Outra diferença significativa é que no livro Eleanor se interessa romanticamente por Luke enquanto que no filme os seus afectos se dirigem ao doutor Markway, o que até faz mais sentido porque um homem mais velho lhe oferece mais estabilidade emocional, estabilidade que é feita em pedaços quando Eleanor descobre que ele é casado. Tanto no livro como no filme Eleanor começa por pensar que descobriu amigos nos três companheiros e acaba a considerar que afinal não tem um lugar entre eles, que eles a gozam e subestimam (apenas na imaginação dela), exactamente como a sua família sempre fez. É caso para dizer que Eleanor nunca consegue perceber que é ela quem tem de aprender a socializar e a impor-se, com consequências trágicas. A série, até pelo formato televisivo, teve de desenvolver a história de outra maneira, mas foi buscar muita coisa tanto ao livro como ao filme.
Não considerando a série (pelo motivo referido), continuo a preferir o filme original ao livro, também porque visualmente é mais impressionante sem que envolva grandes efeitos especiais, até porque acabamos por nunca ver nenhuma assombração mas conseguimos senti-la numa casa onde os personagens se perdem a caminho do quarto para a sala de estar e onde não existe um único ângulo recto, o que é muito lovecraftiano.
Em suma, não digo a ninguém que não leia o livro, mas “The Haunting” conseguiu fazer mais e melhor.

 

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

The Forest / A Floresta (2016)


Sara desconfia que algo de muito errado se passa com a sua irmã gémea Jess, a trabalhar no Japão, quando esta deixa de atender o telefone. Sara parte para o Japão, onde lhe dizem que a irmã se embrenhou na floresta Aokigahara, também conhecida pela Floresta dos Suicídios tendo em conta que é um local onde as pessoas vão para porem termo à vida. (Esta floresta e os suicídios são factos verídicos, o que levou ao boicote do filme em alguns lugares, e que eu acho uma parvoíce. A arte também serve para mostrar a realidade e não é segredo para ninguém que os japoneses têm uma cultura muito própria em relação ao suicídio.) Esta floresta foi igualmente usada em tempos para algo ainda mais sinistro: durante “a fome”, era onde as famílias iam abandonar os velhos e os doentes, para os deixar à morte. Não é de estranhar que o folclore do local tenha medo dos fantasmas da floresta, acreditando que estes se aproveitam da tristeza das pessoas que lá penetram, especialmente à noite, levando-as, através de visões e argumentos destrutivos, a matarem-se.
Sara fica muito preocupada porque a irmã Jess tem um historial de tentativas de suicídio e decide ir procurá-la à floresta, onde esta foi vista pela última vez. A intenção era ir sozinha, mas conhece um repórter australiano que a apresenta ao guarda florestal Michi, que frequentemente caminha pela floresta à procura de corpos.
Como acontece nestas coisas, Sara acaba por se perder de ambos e tem de enfrentar os fantasmas sozinha, sem nunca desistir de procurar a irmã.
Achei a premissa muito interessante e acredito que se fazia daqui um melhor drama do que outra coisa qualquer. Como filme de terror, “A Floresta” é mediano, senão mesmo abaixo disso. É um daqueles filmes que vivem de sustos fáceis (as caras feias que aparecem subitamente, os gritos inesperados, etc, etc) que já ninguém suporta. Também recorre muito a visões que “afinal eram um sonho”, levando-nos a perceber que não há nenhuma verdadeira ameaça senão na cabeça da protagonista. A nível de uma base substancial que meta medo e nos leve a pensar no filme sozinhos no escuro, esta simplesmente não existe. (A não ser, talvez, que nos percamos numa floresta gelada à noite sem luz nem mantimentos nem agasalhos, mas aí teríamos mais com que nos preocupar do que com fantasmas.)
Foi um filme decepcionante, que se vê e se esquece. Esperava mais desta premissa.

12 em 20

domingo, 28 de janeiro de 2024

The Vanishing / Keepers / O Mistério da Ilha Flannan (2018)


“The Vanishing” é uma mistura de “The Terror” e “Breaking Bad”. “The Terror” porque é um filme inspirado na história verídica de três faroleiros, dois veteranos, Thomas e James, e um novato, Donald, que desapareceram sem deixar rasto nem explicação. A parte “Breaking Bad” já vão perceber a seguir.
Depois de uma grande tempestade, dá à costa da ilha do farol um pequeno barco com um único tripulante. Com este vem um baú cheio de barras de ouro. Mas o náufrago não está morto e inclusive tenta matar o faroleiro mais novo quando este lhe quer salvar a vida. Donald leva a melhor, em legítima defesa.
Imediatamente os faroleiros planeiam livrar-se do corpo e repartir o espólio entre todos. É aqui que o faroleiro mais velho, Thomas, se arma em Walter White, proibindo os outros de manifestarem qualquer sinal de riqueza durante alguns anos porque não têm provas de legítima defesa com que evitarem a acusação de homicídio por roubo.
Tudo parece correr bem quando aparece na ilha um barco maior, que procura o náufrago e o ouro. Depreende-se que este ouro não foi adquirido por meios legais, uma vez que os tripulantes do barco são criminosos que atacam e torturam os faroleiros. Num esforço desesperado de salvarem as suas vidas, os três homens conseguem defender-se e matar os bandidos. O que eles não conseguem é livrar-se do sentimento de culpa, da paranóia e da desconfiança. James, principalmente, começa a perder a cabeça. É aqui que o plano de Thomas se esboroa, porque estes homens não são criminosos nem sociopatas e não conseguem viver com o que fizeram. Walter White mandava alguns deles para o “Belize”, mas aqui é mesmo James, fora de si, quem mata o mais novo, o que conhece menos, por não confiar nele.
Esta podia ser apenas uma história de ganância, mas é muito mais do que isso. É uma contemplação da alma de homens decentes confrontados com a tentação e levados a praticar males que não conseguem superar. Recomendo vivamente.
 
Nota 1: Este é um drama ficcional. Ninguém sabe o que aconteceu aos três faroleiros desaparecidos.
 
Nota 2: O filme teve o título provisório de “Keepers” antes de ser renomeado “The Vanishing”. A versão que eu vi intitulava-se “Keepers”.

18 em 20

domingo, 21 de janeiro de 2024

Wildwood Dancing, de Juliet Marillier

Vampiros!
Certo, Juliet Marillier chama-lhes antes Night Folk mas que não haja ilusões: são vampiros mesmo. Como grande amante de vampiros não estava à espera deles numa história de Marillier, mas que boa surpresa!
“Wildwood Dancing” destina-se claramente a um público mais jovem. Até o local e a época são diferentes. Nunca é dito mas tudo me cheira a século XIX.
Cinco jovens irmãs mudam-se com o seu pai, comerciante, para um castelo na Transilvânia onde descobrem um portal para um Outro Reino. Neste outro mundo de fadas e seres mágicos da floresta, todas as Luas Cheias há um baile onde as cinco irmãs são bem recebidas há largos anos e onde se divertem bastante.
Tudo muda quando o pai fica doente e precisa de ir passar o inverno a um clima mais quente, deixando as filhas entregues ao seu irmão, igualmente comerciante. Mas uma desgraça nunca vem só. Da próxima vez que as irmãs vão ao Outro Reino, para além das fadas e dos seres mágicos, aparecem também uns seres mal-afamados, até entre as Fadas, chamados os Night Folk. Os Night Folk mantêm-se à parte e também dançam, mas à maneira deles. As fadas não gostam muito deles mas a presença vampiresca não as incomoda muito, com certeza porque eles só gostam de sangue humano e não bebem sangue de fada (muito ao contrário do que acontecia em “True Blood”, mas essas são outras histórias). A irmã mais velha,Tatiana, apaixona-se por Sorrow, um jovem que pode já ser um dos vampiros ou apenas estar escravizado por eles.
Como não há duas sem três, o tio das irmãs morre inesperadamente, e o filho deste, Cezar, primo delas, começa a exibir um comportamento de ditador e a retirar-lhes o negócio das mãos por achar que trabalhar não é próprio de mulheres. Ao mesmo tempo, começa a insinuar-se à segunda filha mais velha, Jena, que não sente nada por ele. Cezar é também um grande inimigo dos seres mágicos da floresta porque acredita que eles afogaram o seu irmão mais velho, Costi, quando este era criança. Cezar está desconfiado das saídas nocturnas das primas, uma desconfiança agravada pelo frágil estado de saúde em que Tatiana parece ter caído desde que conheceu Sorrow, muito coincidente com alguém que está a ser vítima de um vampiro. Entretanto, Jena tinha sido atraída a falar com o líder dos vampiros durante um dos bailes, o que causou que estes visitassem a aldeia e fizessem vítimas. Cezar chega a trancar as primas no quarto em noite de Lua Cheia, com guardas em toda a casa, tornado-as autênticas prisioneiras.
Jena ainda tenta pedir ajuda à rainha das fadas, que lhe responde qualquer coisa como “a resposta está debaixo do teu nariz”.
Esta é que foi a parte que me surpreendeu. Jena tem um sapo de estimação, Gogu, que não é bem um sapo mas um sapo mágico que fala com ela por telepatia. Surpreendeu-me, conhecendo o gosto de Marillier por histórias tradicionais, ter demorado mais de um quarto do livro até perceber onde as coisas iam dar.
Curiosamente, a parte mais tensa da história não são os vampiros mas as tentativas de Cezar de controlar as primas e torná-las em meros objectos decorativos, já para não falar da passagem em que Cezar quer obrigar Jena a casar com ele.
As irmãs são obrigadas a tornar-se adultas e a assumir as escolhas que querem para as suas vidas, um tema recorrente em Young Adult. Aliás, esta história é dedicada à neta de Juliet Marillier.
Diria que “Wildwood Dancing” é mais leve do que outras histórias de Marillier mas vai agradar aos fãs do costume. Eu teria preferido mais sangue e mais vampiros, mas isto não é uma história de terror. Acredito mesmo que os fãs vão adorar o fim.



terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Serena (2014)

Sem contemplações: este é um filme sobre destruição. Não há heróis, só vilões (se descontarmos o pobre xerife que apenas estava a fazer o seu trabalho da melhor maneira que o deixavam).
No pós-Depressão, nas florestas virgens da Carolina do Norte, George Pemberton é um chamado “barão da madeira”, abatendo todas as árvores que pode. (Pemberton também tem propriedades no Brasil, onde tenciona fazer o mesmo.)
Desde a primeira cena, o protagonista ficou “fornicado” comigo. Na companhia do guia de caça Mr. Galloway, insiste que quer matar uma pantera, mas uma pantera grande, como se desconfiava que já não existisse na área devido à destruição do habitat. Ora, tendo em conta o local deduzi logo que esta “pantera” era um puma, e acontece que eu tenho um carinho por pumas desde a primeira vez que lhes vi a fotografia era eu miúda. Odiei imediatamente o homem. Mas há mais razões para não gostar dele, até porque é desonesto. Já nem falo da falta de consciência ecológica porque naquele tempo não existia.
Mas se fosse só isto! O canalha, para não lhe chamar pior, aproveita-se de uma empregada a quem engravida sem querer assumir qualquer responsabilidade. Um homem “super decente”, como se pode ver.
Até que este velhaco conhece uma mulher à altura, Serena, uma verdadeira “pantera”, igualmente rica e filha de madeireiros com uma história trágica na infância: durante um incêndio toda a sua família morreu, mas ela escapou.
A atracção entre ambos é imediata e casam logo de seguida.
Assim que Serena Pemberton chega a casa do marido, repara que Buchanan, o sócio deste, “gosta mais dele do que deve”.
Entretanto, alguns cidadãos preocupados com o desbaste das florestas querem comprar a propriedade para fazer dela um parque natural. Pemberton não aceita vender por menos de um milhão, mas em época de recessão oferecem-lhe menos. Buchanan quer vender, e ameaça o sócio de expor todas as ilegalidades do negócio, inclusive subornos a senadores. Qual Lady Macbeth, Serena aconselha o marido a “livrar-se do assunto”, o que este faz durante uma caçada ao urso. Fingindo um acidente, alveja o sócio no coração. Um empregado vê e cala-se, mas mais tarde acaba por denunciar o patrão ao xerife. O empregado é alvo de novo homicídio a mando de Pemberton e Serena.
Por fim, Serena vira-se contra o filho ilegítimo do marido, mandando matar a criança que considera uma ameaça ao amor entre ambos (já que ela não pode ter filhos), e é aqui que Pemberton se apercebe do monstro com quem casou. Mas ele também não é muito melhor e só tem o que merece.
Por momentos, julguei que o filme ia ter um final feliz. Para mim, isto é. Mas nem isso.
“Serena” é uma história de ganância, egoísmo e falta de escrúpulos. Um “Macbeth” dos anos 30. Leva-nos a ponderar por que motivo Serena foi a única a escapar ao incêndio. Sorte, ou outra coisa?
Um filme para ver e reflectir.

15 em 20