Este foi possivelmente o meu livro preferido de Juliet Marillier. Não é difícil, porque mais parece uma história de terror com meios-fantasmas/meios-zombies e tudo.
Caitrin é uma jovem escriba em fuga. Desde que o pai morreu e a irmã casou, Caitrin ficou à mercê de uns primos distantes que se instalaram em sua casa para reclamar a herança e que a maltratam física e psicologicamente.
Em desespero, Caitrin foge para Oeste, em busca de parentes da sua mãe, mas os seus parcos fundos deixam-na apeada junto à povoação de Whistling Tor, cujos aldeões morrem de medo da colina onde fica a respectiva fortificação do nobre que os devia liderar, Anluan.
Os estalajadeiros contam a Caitrin que Anluan está sob uma maldição centenária. O seu bisavô Nechtan, através de feitiçaria, conjurou um exército de espíritos, a que chamam “a hoste”, para combater nobres vizinhos, mas algo correu mal e Nechtan perdeu o controlo sobre os mortos-vivos assim que estes saíram da colina. A hoste chacinou o inimigo, as pessoas da povoação, e os espíritos atacaram-se uns aos outros. Desde aí, o senhor de Whistling Tor não pode abandonar a fortificação sem perder o poder sobre a hoste.
Mas Caitrin está mesmo desesperada, e desconfia que os parentes malvados a perseguem para que ela case com o primo (de modo a que ele possa ter direito legal à herança). Ao ouvir dizer que Anluan procura um escriba que saiba irlandês e latim para lhe organizar uns documentos antigos, Caitrain prefere enfrentar os fantasmas e procurar emprego seguro.
Assim que chega, Caitrin percebe que algo de muito errado se passa na fortificação, onde só vivem o próprio Anluan, o guerreiro Magnus, que agora faz tudo incluindo a comida, um conselheiro e um monge, uma dama de poucos sorrisos, e um homem (?) de quem só sabemos que já vivia em Whistling Tor antes de Nechtan e da hoste, Olcan (e nada mais nos é dito sobre a natureza desta criatura). Pior um pouco, Caitrin descobre rapidamente que Anluan, Magnus e ela própria são os únicos seres humanos em Whistling Tor. Tirando Olcan, que não é humano mas não sabemos o que é, os outros três são fantasmas, parte da hoste, que simplesmente conseguiram controlar melhor os seus impulsos a ponto de quase conseguirem passar por humanos. (Parece ou não parece uma história de terror?)
O trabalho de Caitrin consiste em traduzir os documentos de Nechtan em busca de um feitiço que anule o primeiro e devolva a hoste ao sítio de onde veio. Mas, entre os pertences do feiticeiro, Caitrin encontra um espelho negro que lhe permite não apenas visualizar como sentir o que Nechtan sentia, por exemplo, ao torturar uma velha senhora e o seu cão de estimação… (Mais terror.) No entanto, no meio de todas estas monstruosidades, Caitrin vê motivos para acreditar que a hoste não é tão desprovida de humanidade como parece e que a chave para a dominar reside na auto-confiança de Anluan, um homem que não acredita nas suas capacidades embora seja o único capaz de manter a hoste sob controlo.
Não seria um livro de Juliet Marillier se isto não desse uma história de amor.
Contudo, e muito importante para a trama e o desenlace, “Heart’s Blood” conta também com um “policial”. Acontece que todas as esposas dos senhores de Whistling Tor morreram em acidentes misteriosos, excepto a mulher de Nechtan (mas não vou revelar como). Logo, existe um assassino à solta em Whistling Tor e a própria Caitrin é alvo de uma ou duas tentativas de assassinato quase conseguidas. Gostei da maneira como Marillier foi deixando pistas para o leitor e consegui estar sempre um passo à frente da heroína em todas as descobertas, até porque quem está de fora consegue ser mais imparcial do que os intervenientes.
Também gostei que desta vez Marillier tenha conseguido criar uma personagem cuja vilania não é a preto e branco como eu nunca tinha encontrado nos livros dela até agora. Por outro lado, a heroína também não é tão perfeita e segura e estóica e tudo e tudo como as anteriores. Não gosto de heroínas tão fortes que nem pareçam reais. Caitrin podia ser real, e isso cria empatia.
Fiquei agarrada à história do princípio ao fim e recomendo a todos os fãs de Juliet Marillier. E não se assustem com os fantasmas/zombies: afinal são apenas almas aprisionadas numa situação que abominam e tudo o que desejam é voltar para onde vieram. “Heart’s Blood” é uma história sensível em todos os sentidos.
domingo, 21 de julho de 2024
Heart’s Blood, de Juliet Marillier
domingo, 10 de março de 2024
Cybele's Secret, de Juliet Marillier
Segundo livro da série iniciada em “Wildwood Dancing”, esta é a história de Paula, uma das cinco irmãs do original. Paula acompanha o pai, o mercador Teodor, a Istambul, na tentativa de adquirirem a estatueta de Cybele, um artefacto pagão de uma deusa da antiguidade, que se diz trazer prosperidade ao seu possuidor.
Em Istambul, chegada da Transilvânia, Paula encontra uma cultura islâmica muito diferente da sua que obriga o mercador a arranjar-lhe um guarda, o búlgaro Stoyan, que a acompanha para todo o lado. Numa sociedade de intrigas e traições, Paula, a erudita da família, conhece outra erudita, a grega Irene de Volos, e o capitão do navio Esperança, o português com fama de pirata Duarte da Costa Aguiar, ambos interessados no mesmo artefacto. (Fiquei muito surpreendida e entusiasmada por haver um português na história, com palavras e canções em português e tudo!) As autoridades de Istambul suspeitam que o culto pagão de Cybele está a ser praticado às escondidas e também querem pôr as mãos no que consideram um ídolo proibido.
Duarte é atrevido e considerado sem escrúpulos, e é ele quem consegue comprar a estatueta, mas, como Paula vem a descobrir, não é o lucro que o move, antes a promessa que fez a um amigo de restituir o artefacto ao povo a quem este pertence.
Paula torna-se amiga de Duarte mas apaixona-se por Stoyan, o que não vai ser uma relação fácil porque Paula adora conhecimento e instrução e Stoyan nem sabe ler ou escrever.
“Cybele's Secret” é um romance Young Adult (e toda a gente aqui sabe que não é o meu género) mas o que realmente não apreciei foi a aventura à Indiana Jones em que Paula, Duarte e Stoyan se metem para levar a estatueta ao povo que a idolatra. Quem gosta de aventuras tem aqui uma boa história, no entanto. Para mim, admito, foi uma seca. Aliás, “Cybele's Secret” ainda é mais juvenil do que “Wildwood Dancing” e faltam-lhe os elementos dramáticos que me enchem as medidas. Bom livro para oferecer a uma pessoa muito jovem, mas para mim não.
domingo, 21 de janeiro de 2024
Wildwood Dancing, de Juliet Marillier
Vampiros!
Certo, Juliet Marillier chama-lhes antes Night Folk mas que não haja ilusões: são vampiros mesmo. Como grande amante de vampiros não estava à espera deles numa história de Marillier, mas que boa surpresa!
“Wildwood Dancing” destina-se claramente a um público mais jovem. Até o local e a época são diferentes. Nunca é dito mas tudo me cheira a século XIX.
Cinco jovens irmãs mudam-se com o seu pai, comerciante, para um castelo na Transilvânia onde descobrem um portal para um Outro Reino. Neste outro mundo de fadas e seres mágicos da floresta, todas as Luas Cheias há um baile onde as cinco irmãs são bem recebidas há largos anos e onde se divertem bastante.
Tudo muda quando o pai fica doente e precisa de ir passar o inverno a um clima mais quente, deixando as filhas entregues ao seu irmão, igualmente comerciante. Mas uma desgraça nunca vem só. Da próxima vez que as irmãs vão ao Outro Reino, para além das fadas e dos seres mágicos, aparecem também uns seres mal-afamados, até entre as Fadas, chamados os Night Folk. Os Night Folk mantêm-se à parte e também dançam, mas à maneira deles. As fadas não gostam muito deles mas a presença vampiresca não as incomoda muito, com certeza porque eles só gostam de sangue humano e não bebem sangue de fada (muito ao contrário do que acontecia em “True Blood”, mas essas são outras histórias). A irmã mais velha,Tatiana, apaixona-se por Sorrow, um jovem que pode já ser um dos vampiros ou apenas estar escravizado por eles.
Como não há duas sem três, o tio das irmãs morre inesperadamente, e o filho deste, Cezar, primo delas, começa a exibir um comportamento de ditador e a retirar-lhes o negócio das mãos por achar que trabalhar não é próprio de mulheres. Ao mesmo tempo, começa a insinuar-se à segunda filha mais velha, Jena, que não sente nada por ele. Cezar é também um grande inimigo dos seres mágicos da floresta porque acredita que eles afogaram o seu irmão mais velho, Costi, quando este era criança. Cezar está desconfiado das saídas nocturnas das primas, uma desconfiança agravada pelo frágil estado de saúde em que Tatiana parece ter caído desde que conheceu Sorrow, muito coincidente com alguém que está a ser vítima de um vampiro. Entretanto, Jena tinha sido atraída a falar com o líder dos vampiros durante um dos bailes, o que causou que estes visitassem a aldeia e fizessem vítimas. Cezar chega a trancar as primas no quarto em noite de Lua Cheia, com guardas em toda a casa, tornado-as autênticas prisioneiras.
Jena ainda tenta pedir ajuda à rainha das fadas, que lhe responde qualquer coisa como “a resposta está debaixo do teu nariz”.
Esta é que foi a parte que me surpreendeu. Jena tem um sapo de estimação, Gogu, que não é bem um sapo mas um sapo mágico que fala com ela por telepatia. Surpreendeu-me, conhecendo o gosto de Marillier por histórias tradicionais, ter demorado mais de um quarto do livro até perceber onde as coisas iam dar.
Curiosamente, a parte mais tensa da história não são os vampiros mas as tentativas de Cezar de controlar as primas e torná-las em meros objectos decorativos, já para não falar da passagem em que Cezar quer obrigar Jena a casar com ele.
As irmãs são obrigadas a tornar-se adultas e a assumir as escolhas que querem para as suas vidas, um tema recorrente em Young Adult. Aliás, esta história é dedicada à neta de Juliet Marillier.
Diria que “Wildwood Dancing” é mais leve do que outras histórias de Marillier mas vai agradar aos fãs do costume. Eu teria preferido mais sangue e mais vampiros, mas isto não é uma história de terror. Acredito mesmo que os fãs vão adorar o fim.
domingo, 26 de novembro de 2023
“Seer of Sevenwaters”, de Juliet Marillier
De todos os livros que já li de Juliet Marillier este é o que entra mais no género Fantástico. Claro, a Fantasia faz parte do Fantástico em sentido lato, mas a Fantasia de Marillier é sempre muito humanizada. Há os Fair Folk e os Good Folk, raças de fadas, mas também estes têm personalidades e motivações muito humanas, um mundo paralelo com reis e rainhas e súbditos como os humanos, e muitas vezes tentam mesmo manipular o mundo humano para os seus propósitos. Em “Seer of Sevenwaters” temos uma serpente marinha gigante e mágica!
Desde “Daughter of the Forest” que Marillier conta histórias de selkies, sempre como se fossem folclore e mito. Uma selkie é uma criatura marinha que pode largar a sua pele verdadeira e assumir forma humana, mas quem estiver na posse da sua pele tem controlo sobre a selkie. Desta vez temos mesmo uma personagem selkie, o que me surpreendeu bastante. Não me faz gostar menos ou mais, apenas me diz que Marillier se quis lançar em domínios mais aventurosos (e arriscados) do que os dramas românticos que até aqui a caracterizam.
“Seer of Sevenwaters” é a história de Sibeal, a quinta filha de Sean e Aisling e neta de Sorcha e Red, que desde pequena tem dons de vidência e sonha tornar-se druida. Por esta altura Sibeal já passou muito tempo com os seus tios Conor e Ciarán no treino druíco e está prestes a dedicar-se inteiramente, o que significa uma vida de celibato, contemplação e ritual. Antes de fazer aquilo que numa monja chamaríamos “tomar o véu”, no entanto, é mandada para a ilha de Inis Eala, onde passa o verão com o primo Johnny e duas das suas irmãs. Quando Sibeal lá está, uma violenta tempestade faz naufragar um barco nórdico contra os penhascos de Inis Eala. Há poucos sobreviventes, mas Sibeal consegue descobrir um último, de quem vimos a saber chamar-se Felix, ainda agarrado aos rochedos. Felix está amnésico, mas mesmo assim é ameaçado em segredo por Knut, outro sobrevivente, para não revelar nada do que viu no barco.
Enquanto cuida de Felix na enfermaria de Inis Eala, Sibeal percebe que se apaixonou por ele e que é correspondida, o que lhe põe o maior dilema da sua vida: desistir do druidismo, casar com Felix e eventualmente ser mãe, ou virar as costas ao amor para sempre? Haverá uma terceira opção?
Muito do livro é a paixão entre Sibeal e Felix (até um pouco demais, na minha opinião) antes de percebermos que a grande aventura vai centrar-se em Svala, outra sobrevivente, e a serpente marinha gigante comedora de homens. Disto não vou dizer nada por causa dos spoilers.
“Seer of Sevenwaters” não é, na minha opinião, o melhor de Juliet Marillier, mas não lhe falta a qualidade que já lhe conhecemos. Infelizmente, desta vez, não aconteceu nada de perturbador como estou habituada nos livros de Marillier, o que me decepcionou um pouco.
(Não, uma serpente marinha que come pessoas não é perturbador, é apenas Natureza. Podia ter sido um urso, um leão, outro animal feroz qualquer. É um acontecimento infeliz, sem dúvida, mas para mim são necessários elementos mais estranhos para ser considerado perturbador.)
domingo, 24 de setembro de 2023
The Well of Shades, de Juliet Marillier
Há relativamente pouco tempo, numa resposta a um fã no Goodreads, Juliet Marillier afirmou que Faolan foi um dos seus personagens secundários que ganhou mais protagonismo do que a autora esperava para ele. “The Well of Shades” é um exemplo disso mesmo, onde a história e o destino de Faolan eclipsa os de Bridei e Tuala e Broichan, que aqui são eles os protagonistas do enredo secundário.
Depois da grande vitória de Bridei sobre os gaélicos, Faolan, espião e assassino de Fortriu, é enviado numa missão tripla. Bridei tem razões para desconfiar de um aliado e precisa de saber se está a ser traído. Mas, antes, Bridei faz questão de que Faolan resolva os problemas que deixou para trás com a família. No caminho, Faolan tem o dever de visitar os parentes de Deord para os informar da sua morte heróica que ajudou à fuga de Ana, Drustan e Faolan das terras de Caitt.
É na casa de Deord que encontra Eile, filha de Deord, numa situação de miséria e maus-tratos. Deord e Faolan foram ambos reclusos de uma prisão terrível (confesso que não sei o que os levou lá) e tinham essa “dívida de irmandade” um para com o outro. Deord não conseguiu regressar para a família (tornou-se no carcereiro benévolo de Drustan) e a mulher dele suicidou-se. Eile vive com a tia e o marido desta, Dalach, que não só lhe bate como a viola e Eile até já tem uma filha dele, Saraid. Faolan só se apercebe disto tudo quando Eile mata Dalach e lhe pede ajuda para fugir. Eile é ainda muito jovem mas já bastante traumatizada. No entanto, durante a viagem criam-se laços entre ela, Faolan e Saraid, e este começa a ponderar um futuro como pai e marido, o que é incompatível com a sua “profissão” actual. Além disso, não sabe se Eile está interessada nesse compromisso.
Drustan e Ana estão em White Hill (a residência de Bridei), onde celebram o casamento antes de seguirem viagem para as terras de Drustan no Caitt. Todos partem do princípio de que Eile os acompanhará, especialmente depois da oferta generosa que Ana lhe estende: uma vida na corte de Drustan com todas as honras e regalias como gratidão pelo sacrifício que Deord fez por eles. No entanto, Eile não quer acompanhá-los, antes deseja esperar por Faolan que entretanto já partiu noutra missão.
Ainda mais interessante do que o romance entre Eile e Faolan (quem conhece a obra de Marillier já adivinha que vai ser um “felizes para sempre”) é a chegada a Fortriu de uma comitiva de monges cristãos liderados pelo monge Colm que vêm pedir permissão para se estabelecerem num mosteiro em terras pagãs. Isto prenunciava um grande choque de crenças entre o druida Broichan e o monge Colm, mas devido aos próprios acontecimentos da história este confronto nunca acontece e Bridei cede a utilização das terras por dois anos.
Como sabemos dos livros anteriores, Bridei é muito fiel aos deuses. Desde que proibiu o sacrifício humano e anual ao Deus Sem Nome, Bridei tem existido no pesadelo de que este deus se vingue na sua família. Este medo torna-se real quando o seu primogénito Derelei desaparece da corte e se embrenha na floresta sem deixar rasto… O resto da história é a busca por Derelei, Saraid e Eile (que também desaparecem por mão criminosa).
A escrita de Juliet Marillier está cada vez mais vívida e agradável, mesmo que esta história não seja tão interessante como as anteriores que já li. Deu-me a entender que é uma história de transição para a conclusão da série e um desejo de dar um fim feliz a Faolan. Até agora não foi publicado mais nenhum livro da série “The Bridei Chronicles”. Tenho acompanhado a obra de Marillier desde o primeiro livro “Daughter of the Forest” e tenho efectivamente notado uma grande evolução (excepto quando a autora escreve a palavra “piquenique”, para meu grande desgosto e decepção), a não ser no que já considero o “calcanhar de Aquiles” da autora: a bidimensionalidade dos vilões a que “The Well of Shades” ainda não conseguiu fugir.
Aqui temos dois, o tal Dalach que abusa da sobrinha da esposa (e a certa altura começa a falar em abusar de Saraid também, a sua própria filha) e de quem nem vale a pena falar mais.
E depois temos Breda, uma psicopata e princesa mimada que faz tudo o que lhe dá na gana. Desta vez Marillier tentou dar a Breda maior interioridade escrevendo algumas cenas pela perspectiva dela, o que teria funcionado se Breda tivesse uma interioridade interessante. Acontece que é só invejosa e egoísta e muito aborrecida como vilã. Não digo que não seja credível, eu é que prefiro vilões mais “cinzentos” ou interessantes por muito repulsivos que sejam (por exemplo, um Hannibal Lecter, que nos choca mas é fascinante). Talvez Marillier ainda consiga dar-nos um vilão decente numa história posterior.
Não recomendaria “The Well of Shades” como primeiro livro a quem não conhece Juliet Marillier, mas de certeza que vai agradar aos fãs.
domingo, 25 de setembro de 2022
Heir to Sevenwaters, de Juliet Marillier
Os amantes de sagas, como eu, adoram regressar a um universo familiar e agradável que os encantou. É como encontrar velhos amigos, ou inimigos, conforme o caso. Foi esta a minha sensação ao ler o quarto livro da série Sevenwaters, “Heir to Sevenwaters”, de Juliet Marillier.
Já conheço a família toda. O que me fez muita espécie foi que Ciarán* está lá com eles, embora não na mesma casa porque decidiu retomar os estudos como druida, o que ele já queria ser desde jovem. Pergunto-me por que raio é que um feiticeiro do calibre dele quer ser um druida, mas acho que são sonhos de infância ou uma parvoíce assim. Também me pergunto o que raio faz ele em Sevenwaters depois da velhacaria que Conor, Sean e Red lhe fizeram e a Niamh. Sim, o nosso amado Red, marido de Sorcha e pai de Sean, a quem perdoo mais porque foi o único que foi fazer justiça pela filha com as próprias mãos. (Por alguma razão ele é o nosso amado Red.) Mas, mesmo assim, velhacaria. Conor até tem alguma desculpa, tendo passado tanto tempo com cérebro de pássaro não pode ter ficado muito bem, mas Sean (actual senhor de Sevenwaters) não tem desculpa nenhuma. Logo, o que está Ciarán lá a fazer? A família é uma coisa muito viciante e tóxica, é só o que posso concluir. Eu nunca mais os queria ver, nem que fosse para os transformar em lagartixas. E até tenho a certeza de que Ciarán também teria feito justiça por Niamh se ela o tivesse deixado. Mas o tempo que tiveram juntos foi tão escasso, se calhar não valia a pena desperdiçá-lo. Por outro lado, Fainne, a filha de ambos, também teve para onde ir, e Ciarán ficou mais ou menos sozinho (se exceptuarmos o corvo Fiacha que não me parece grande companhia). Voltar aos planos antigos talvez lhe tenha ocorrido por alguma razão que não é aqui explicada.
Nota-se quem é o meu personagem preferido, não nota? Esta história não é sobre ele, mas de certa forma implica a partida de Fainne para uma ilha sagrada onde será a guardiã de não sei o quê (nunca prestei muita atenção aos aspectos religiosos). Com ela foi, se me lembro correctamente, a Senhora da Floresta e o Senhor dos Cabelos de Fogo. E isto já tem a ver com o quarto livro da série.
Na ausência da Senhora da Floresta (a tal que “ajudou” Sorcha em “A Filha da Floresta”), instala-se na floresta de Sevenwaters (isto é, no Otherworld de Sevenwaters, o reino dos Fair Folk, ou, mais tradicionalmente, das fadas) um príncipe sem escrúpulos chamado Mac Dara. Ora, se os Fair Folk nunca foram muito de fiar, Mac Dará só não é mais violento porque não precisa. Basta-lhe um feitiço e já está. Mas já lá vamos.
O início do livro pode parecer lento e até aborrecido. Nada de interessante acontece. Deirdre, uma das filhas de Sean e Aisling, vai casar-se com um nobre importante. Os guerreiros de Inis Eala, inclusive Johnny (filho de Liadan, irmã gémea de Sean) estão presentes para a boda. A irmã gémea de Deirdre, Clodagh, parece namorar com um destes guerreiros com quem partilha o gosto pela música, e detestar o amigo dele, Cathal, um jovem sardónico que nunca parece ter nada de bom a dizer.
Entretanto, Aisling encontra-se à espera de uma criança, o que na idade dela pode ser muito perigoso. Felizmente, tudo corre bem e nasce um menino, chamado Finbar em homenagem ao tio-avô. Uma vez que Sean não tinha filhos, Johnny, seu sobrinho, seria o herdeiro de Sevenwaters, mas agora há um filho varão.
Até este momento, como eu dizia, pouco acontece. E, de repente, o livro começa a disparar em todos os cilindros. Cathal conta a Clodagh, ao pormenor, a possibilidade de um ataque a uma propriedade de Sean no norte. O pior é que este ataque acontece mesmo. Cathal decide ir-se embora e despedir-se de Clodagh sem dizer nada a mais ninguém. Clodagh estava a tomar conta de Finbar, e, assim que vira costas, num ápice, Finbar desaparece. No lugar dele foi deixado (e agora vai ser difícil explicar isto) um boneco feito de paus, com olhos de pedras e cabelo de musgo. Um changeling.
Não temos palavra em português que equivalha a changeling porque não temos este mito. Quando muito, um “trocado”. Mas na Irlanda e na Escócia, segundo vi em “Outlander”, acreditava-se piamente que as fadas roubavam as crianças e deixavam as delas, os tais changelings.
É claro que cai tudo em cima de Clodagh, e que Cathal é altamente suspeito. Para piorar as coisas, e isto também vai ser difícil de explicar, o changeling é uma espécie de criança, e Clodagh é a única que o ouve chorar e pedir comida. Todos a julgam louca. Todos menos Sibeal, a irmã vidente, que acredita em Clodagh. Clodagh acaba por se afeiçoar à criatura e chama-lhe Becan.
Clodagh e Cathal não são os únicos a quem os dedos são apontados. Já não é a primeira vez que noto como esta família de Sevenwaters é disfuncional. As suspeitas até chegam a recair no próprio Johnny, sobrinho de Sean. Não conhecemos assim tanto de Johnny, mas do que conhecemos é-nos bastante difícil de imaginar que fosse capaz de raptar uma criança (matar, até, o próprio primo) para ser ele o herdeiro de Sevenwaters. Esta família devia ir toda ao psiquiatra.
Entretanto, Clodagh decide que há apenas uma coisa a fazer: procurar um portal para o Otherworld e trocar o irmão pelo changeling, custe o que custar. Parte sozinha e à toa, quando subitamente encontra nada mais nada menos do que Cathal, que está a ser perseguido pela floresta pelos homens de armas de Sevenwaters, aparentemente sem saber porque é que o perseguem.
Aqui as coisas tornam-se estranhas. Cathal sabe muito mais do que diz, mas teima em manter-se em silêncio. No entanto, também ele consegue ouvir Becan, e, mais surpreendentemente, garante a Clodagh que consegue encontrar um portal para o Otherworld. Obviamente, Cathal esconde um segredo qualquer.
E em termos da história fico por aqui porque o resto são spoilers.
Já tinha dito de Juliet Marillier que se consegue sempre encontrar um ou outro elemento perturbador nas suas Fantasias Românticas, e se calhar é mesmo por isso que as leio. Em “Heir to Sevenwaters”, a certa altura (não vou dizer quando), desejei mesmo que a história enveredasse completamente pelo género do Terror, o meu preferido. E teve os seus momentos, se calhar porque são géneros que se tocam bastante e podem derivar um no outro a qualquer instante. Claro que não é o género de Marillier e as coisas suavizaram-se logo de seguida. Mas Marillier conseguiu pôr-me lágrimas nos olhos, o que não tinha acontecido em nenhuma das histórias anteriores (é preciso muito para me tocar tanto).
Por outro lado, fiquei muito triste ao ver que Marillier voltou a usar a palavra “piquenique”, como já não acontecia desde o livro de estreia. Isto põe-me os cabelos em pé. Não havia piqueniques no século VIII. Havia merendas e refeições ao ar livre. O que me chateia mais é que não era preciso usar esta palavra anacrónica. Outra palavra que me fez confusão foi “manequim” para descrever Becan. Não conheço o suficiente de inglês antigo (nem que língua falavam na Irlanda neste tempo) para saber se era uma palavra comum à época, mas às vezes o mais importante é a conotação que a palavra tem na compreensão do leitor moderno, e para um leitor moderno a palavra manequim soa estranha no contexto histórico. Mais uma vez, desnecessariamente. “Boneco”, ou mesmo “pequeno espantalho”, servia muito bem e até dava uma ideia mais clara do changeling. Gostaria muito que Marillier prestasse tanta atenção a estes pormenores como presta aos outros.
Por último, ia falar de Mac Dara, mas apercebi-me de que não há nada que possa acrescentar sem incorrer em spoilers. O que posso dizer é que quando tudo parecia perdido quem é que salvou a situação, quem foi? Ora, quem podia ser senão o meu adorado Ciarán (e já agora o corvo Fiacha também ajudou, mas não sei porquê nunca consegui ir à bola com ele). Ciarán conhece o novo príncipe do Otherworld e diz especificamente “ainda não é a minha altura de fazer guerra com Mac Dara”, o que dá a entender que a altura vai chegar. Se eu fosse a Mac Dara não deixava escrever a sequela, porque dava corda aos sapatos e fugia. Ciarán, filho da malvada feiticeira Oonagh, com quem aprendeu “as artes”, é um feiticeiro tão poderoso que causou uma tempestade para os Vikings não invadirem a terra onde ele morava. Ciarán tem com ele a sua filha Fainne, outra feiticeira de meter medo, e são ambos meio-Fair Folk.
Será que, mais uma vez, Marillier está a introduzir um segundo sentido no título, porque o herdeiro de Sevenwaters (ou do mundo oculto de Sevenwaters), por agora, é Mac Dara? Isto levanta hipóteses interessantes, mas não gosto de especular.
Às vezes penso que o único problema dos universos de Marillier é mesmo a Fantasia Romântica que os rege, porque, na minha opinião, muitos destes romances não faziam falta nenhuma à história.
Até admito mais. Disseram-me que os livros seguintes a “Filha da Floresta” não eram tão bons, mas quanto mais a série se embrenha no universo dos Fair Folk mais me interessa. Afinal, quanto mais Dark Fantasy melhor. A Dark Fantasy é a irmã mais “bem-comportada” do Terror. Um ou outro, é mesmo para mim.
*Por alguma razão atarantada, parece que passei as críticas aos livros anteriores da série a chamar “Chiaran” ao personagem Ciarán, ainda por cima o meu preferido. Acho que se calhar me “apossei” dele e até lhe mudei o nome. As minhas desculpas.
domingo, 19 de junho de 2022
Blade Of Fortriu, de Juliet Marillier
“Blade Of Fortriu” é o segundo livro da trilogia The Bridei Chronicles. Admito que estive algo distraída no primeiro livro porque não percebi onde se passava a acção, o que geralmente não é importante em livros de Fantasia porque os locais são ficcionados. Afinal o reino de Fortriu existiu mesmo, algures na Escócia, e existiu mesmo um Bridei, rei dos Pictos, que travou uma guerra para expulsar as tribos gaélicas do que considerava o seu território, provavelmente por razões que não têm nada a ver com este livro.
Para mim foi um pequeno choque porque estava convencida de que a história se passava na Irlanda, tal como na trilogia Sevenwaters. Aliás, é mencionado o clã dos Uí Néill, tal como em Sevenwaters, o que contribuiu para o meu equívoco. Mas nesta segunda parte da série a localização é importante, porque é aqui que Bridei lidera os seus exércitos contra os gaélicos de Dalriada, tentando expulsar de vez a religião cristã que ameaça os deuses antigos. (Cá para mim ele não vai ter sorte nenhuma a longo prazo, é só um palpite…)
Bridei agora é rei, Tuala é rainha, e já têm um filho pequeno. Confesso igualmente que fiquei preocupada ao perceber que a história ia ser sobretudo acerca da guerra, e comecei logo a imaginar batalhas sem fim. Tudo o que são batalhas é aborrecido. Até em filmes me aborreço a ver batalhas. Quem viu uma, viu todas. Talvez seja defeito meu, mas nunca li sobre uma batalha que me interessasse. Felizmente a autora deve concordar comigo porque nos poupou à maioria das batalhas, escaramuças, exércitos e guerra em geral (só assistimos à última batalha), focando-se antes numa história romântica paralela a isto tudo, que é o que a gente quer do livro.
Em “Blade Of Fortriu” Bridei e Tuala assumem um papel secundário. Esta é a história de Ana, princesa real e refém na corte de Fortriu desde muito jovem. (Era costume as casas reais trocarem reféns para garantir que não se atacariam mutuamente.) Ana é refém mas tal nada afecta a sua posição de realeza. Bridei pede-lhe que viaje até ao reino dos Caitt, no norte, onde esta deverá casar com o chefe de um dos clãs locais em troca da promessa de que este não lutará contra Bridei na operação militar iminente. Claro que é um casamento estratégico e combinado, como o eram todos na altura. Ana, como princesa real, poderá ser a mãe do futuro rei de Fortriu, uma vez que o herdeiro ao trono provém da linhagem materna (outro pormenor que me escapou no primeiro livro). Isto faz-nos confusão, uma vez que as linhagens maternas estão praticamente erradicadas das dinastias reais, mas significa que Derelei, filho de Bridei, não será rei automaticamente. Terá de haver uma eleição entre candidatos reais, como aquela que elegeu Bridei.
Mas basta de política.
Bridei manda Ana e sua escolta para o terreno inóspito dos clãs do norte, com uma comitiva considerável e a protecção do seu homem de confiança Faolan, espião e assassino ao serviço de Fortriu, embora este seja, curiosamente, gaélico de nascimento. Bridei quer assim evitar que ele tenha de combater o seu próprio povo.
A autora volta a fazer um duplo sentido com o título: Bridei, o rei, é a quem todos chamam a Espada de Fortriu, mas durante o livro apercebemo-nos de que Faolan é que é a verdadeira Espada que interessa à história. Durante a viagem, Faolan apaixona-se por Ana, o que o surpreende porque já a conhecia antes e não sabia que ela lhe despertaria esses sentimentos. Faolan não quer ter sentimentos e faz tudo para os evitar, especialmente nesta situação em que lhe é completamente vedada a união com uma princesa de sangue real. O amor que sente é amargo, mas é genuíno.
Foi a primeira vez que li uma história de amor proibido (e “quase” não correspondido) num livro de Juliet Marillier, e gostei. Até aqui, todos os casais românticos que li nos livros da autora se apaixonam à primeira e acabam invariavelmente juntos. Adorei uma relação diferente, triste, dolorosa, sem esperança.
Ana chega à terra do futuro marido depois de bastantes vicissitudes, acompanhada apenas por Faolan porque perdeu a comitiva num acidente pelo caminho. E o futuro marido, Alpin, chefe do clã, é uma besta!
Se mesmo agora elogiei Marillier, diria que o amor impossível de Faolan foi um passo em frente, mas Alpin foi um passo atrás em algo que sempre me desgostou na autora: os vilões a preto-e-branco. A princípio pensamos que Alpin é abrutalhado porque foi educado assim e não sabe portar-se melhor porque nunca aprendeu outra coisa. Afinal não: Alpin é mesmo mau, pérfido. Este é um defeito que já vem do primeiro livro de Marillier, “Daughter of the Forest”, em que um vilão quis queimar Sorcha na fogueira como bruxa porque ela recusou os seus avanços. É preciso ser mau! O fulano também era um traidor ao seu próprio povo, para embelezar ainda mais o ramalhete de vilão. Marillier tem propensão para criar vilões super-malvados, e isto não é interessante. No livro anterior, “The Dark Mirror”, o druida Broichan não era um vilão mas antes um adversário, e a qualidade da história melhorou muito por isso. Também havia uma vilã a preto-e-branco, uma nobre que queria matar Bridei para colocar o seu próprio filho no trono, mas neste caso não era preciso fornecer mais motivações para nós compreendermos tudo. Os vilões de Marillier têm sido maus “porque sim”, e quando são maus são mesmo muito maus, sem quaisquer escrúpulos. Isto é algo que a autora ainda não conseguiu superar (pelo menos neste livro), o que é pena. Pouco me agrada mais do que um vilão “cinzento”, cheio de complexidades e contradições.
Felizmente, Ana acaba por encontrar o amor à mesma, embora não no malvado Alpin, e tem de ser Faolan, que a ama loucamente, a salvá-la das garras de Alpin quando já tudo parece perdido, embora sem esperança nenhuma para si próprio. Faolan é, por isso, a verdadeira Espada de Fortriu. Recentemente, Juliet Marillier disse no Goodreads que Faolan foi um personagem que foi crescendo ao longo da série, que foi merecendo mais do que o papel secundário que lhe estava destinado, e nota-se.
Este foi o livro mais complexo que já li de Marillier, em termos de personagens, localizações, intrigas, e devo dizer que foi tudo muito bem conseguido. Só falhou a questão do vilão. Por outro lado, compensou em não acabar com um “todos felizes para sempre”, como é costume.
Numa última nota, começo a notar uma tendência estranha que leva Marillier a juntar pessoas com aves. Não vou dizer mais nada sobre isto, mas lá que é bizarro, é.
Estou muito curiosa quanto ao livro seguinte.
domingo, 6 de março de 2022
The Dark Mirror, de Juliet Marillier
E se o rei Arthur e Morgan le Fey não tivessem sido meio-irmãos? E se uma história de amor entre os dois não fosse impossível? Foi esta a premissa que me lembrou esta história, quer tenha sido feito de modo consciente ou inconsciente.
“The Dark Mirror” é o primeiro livro da trilogia The Bridei Chronicles. Bridei, filho segundo de um rei, é enviado ainda criança para casa do druida Broichan, conselheiro do rei de Fortriu, para ser educado por este como seu filho adoptivo. Bridei é instruído em todos os tipos de conhecimento, mas sente que algo lhe falta. Quando, numa noite enluarada de Solstício de inverno, é colocada à porta do druida uma estranha trouxa com uma bebé, Bridei recolhe-a e sente que é seu dever cuidar da menina, um presente da deusa Shining One (a Lua). Bridei percebe imediatamente que Tuala (como ele lhe chama, e que significa “princesa”) não é humana, que veio dos Good Folk, mas isso não o dissuade. Os leitores da trilogia Sevenwaters recordarão esta espécie misteriosa pelo nome de Fair Folk, e que nem sempre são de fiar. O mesmo pensa o druida Broichan, que faz todos os possíveis para separar Bridei e Tuala à medida que ambos vão crescendo.
Sem que Bridei saiba, Broichan faz parte de um conselho secreto que pretende prepará-lo para ser o novo rei quando o actual falecer sem deixar descendência. Bridei tem de se afirmar como homem de pensamento e como guerreiro, e no entender de Broichan não há lugar para Tuala, uma rapariga dos Good Folk, na vida do filho adoptivo. O que se torna complicado quando, já ambos em idade casadoira, Bridei e Tuala se apaixonam… À medida que são afastados, e que Bridei é cada vez mais conduzido para o cerne das intrigas políticas, Tuala sente-se tentada a voltar para a sua espécie, os Good Folk, recordando o momento em que Morgana de Avalon procura refúgio entre as fadas. Quem vencerá? Broichan e a ambição, ou o amor dos dois apaixonados?
Devo dizer que estou cada vez mais impressionada com a evolução na escrita da autora. Se critiquei bastante o primeiro livro, “Daughter of the Forest”, aqui quase não encontro nada para criticar. Bem, talvez uma coisinha. Apesar de Bridei e Tuala serem instruídos e precoces, achei que falavam demasiado como dois adultos em vez de se expressarem como as crianças que eram ainda. Não é que a autora não saiba fazer diálogos de crianças. Uma das passagens mais engraçadas é quando dois miúdos dão cabo da paciência a Tuala:
“Porque é que tens a pele tão branca?”
“És uma bruxa?”
“Consegues transformar-me numa lagartixa?”
É assim que as crianças se expressam, inocentemente e sem rodeios, e isto não quer dizer que não consigam falar de coisas muito sérias. Simplesmente achei que Bridei e Tuala podiam ter falado assim enquanto eram crianças.
“The Dark Mirror” não é muito bom para leitores impacientes. O começo é lento, talvez demasiado lento para quem quer acção logo nas primeiras páginas. As coisas só começam a “aquecer” lá pelo segundo terço da história. Mas vale muito a pena esperar e confiar na autora. Algo que me esqueci de referir quando fiz a crítica à trilogia Sevenwaters, e que deve ser o meu aspecto preferido da obra de Marillier, é que podemos contar sempre com um ou mais momentos perturbadores, daqueles que nos gelam a espinha. Aqui não é excepção, e não vou sequer dizer do que se trata para não criar spoilers na parte mais tensa do livro. São elementos tão pesados que podiam bem figurar numa história de terror. Isto pode não agradar a toda a gente que lê Fantasia Romântica, mas a mim delicia certamente. Se Marillier me conquistou, foi especialmente por aqui.
É preciso também ter em conta que o enredo de “The Dark Mirror” é bastante complexo. Se a trilogia Sevenwaters se passa entre meia dúzia de personagens, aqui temos uma ou várias cortes para memorizar, fora os diversos locais onde se passa a acção, com muitas personagens, vários reis e rainhas e princesas e outros nobres e homens de armas importantes, já para não falar nos druidas e sacerdotisas. Até um padre aparece na história, o primeiro que encontro em Marillier. É mesmo muita gente. Cabe ao leitor ter atenção para perceber quais são os personagens verdadeiramente importantes e agarrar-se a eles para não perder o fio à meada. Marillier faz bem o seu trabalho ao apresentar-nos cada um de sua vez, como deve ser.
O fim surpreendeu-me, confesso. Estava à espera de um cliffhanger. Estou demasiado habituada às séries de televisão, pelos vistos. O final foi satisfatório, embora se adivinhe que a história ainda só começou. Mal posso esperar para ler o resto.
domingo, 3 de outubro de 2021
Child of the Prophecy, de Juliet Marillier
[contém alguns spoilers inevitáveis]
“Child of the Prophecy” é o terceiro livro da trilogia Sevenwaters iniciada com “Daughter of the Forest”. Desde o primeiro livro, fui muito crítica com certos problemas da autora, nomeadamente os anacronismos (o piquenique), a falta de massa crítica das personagens (que foi melhorando), e, acima de tudo, os enredos em que a bota não bate com a perdigota, e não há nada que me chateie mais do que este último. Até parece que autora foi lendo as minhas críticas porque os livros foram melhorando de volume para volume, e desta vez até conseguiu arrancar-me um 5 no Goodreads, o que não acontece frequentemente.
Se calhar porque é o último livro e eu já tinha muita bagagem para trás a influenciar-me, o início de “Child of the Prophecy” é um dos melhores primeiros capítulos que já li na vida.
Chiaran sempre se reuniu com Niamh ainda no segundo livro, onde ninguém os conhecesse (apesar de tio e sobrinha), e tiveram uma filha, Fainne, que foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Ficamos logo a saber que Niamh, incompreensivelmente, se suicidou quando Fainne era pequenina, atirando-se de um penhasco. Este “suicídio” é suspeito, como assinala Bran (o marido de Liadan, irmã de Niamh, num dos seus poucos momentos de brilhantismo), mas mais tarde acabamos por saber tudo, tudinho. Chiaran acredita no suicídio (julga que Niahm não conseguiu viver com a relação amaldiçoada entre eles) e fica completamente destruído.
Adorei a personagem Chiaran, um homem destroçado que vive para a filha, o que lhe resta de um amor perdido. Fainne tem os mesmos poderes de feitiçaria do pai e este faz questão de lhe ensinar tudo o que sabe conforme esta vai tendo idade. Mas de repente Chiaran fica doente (o que é incomum para um feiticeiro), com todos os sintomas de tuberculose. Até então, Chiaran nunca tinha contado a Fainne os pormenores que esta devia saber sobre a sua mãe, a sua avó e a sua família em Sevenwaters. Subitamente, conta-lhe tudo, e diz-lhe que vai mandar vir a avó (a Lady Oonagh) para lhe ensinar as coisas que uma rapariga deve saber, e que depois disso a vai enviar para Sevenwaters. Fainne não percebe, naquela negação de quem não quer ver que o pai está a despedir-se e a fazer planos para depois da morte dele. Isto é daquelas coisas que me fazem chorar, e chorei copiosamente. Quando Fainne lhe pergunta se está alguma coisa mal, ele responde sarcasticamente: “Há alguma coisa que esteja bem?” Como não amar um personagem destes? Mas Fainne demora a perceber porque não quer acreditar no que os seus olhos vêem, o lento definhar que está a acontecer ao seu pai.
Já sabíamos que a Lady Oonagh é uma megera. Mas este terceiro livro mostra-nos realmente que tipo de megera ela é. Aqui tenho de criticar novamente, porque esperava mais profundidade desta vilã. Marillier ainda não se consegue livrar (neste livro) dos vilões 100% malvados, daqueles que só servem para fazer mal. Lady Oonagh, afinal, é outra destas, uma vilã sem interioridade. Fiquei desapontada, confesso. Desde o primeiro livro que a Lady Oonagh é a vilã “número um”, merecia mais tridimensionalidade do que teve.
Pois esta megera não mudou nada, e assim que se apanha sozinha com Fainne diz-lhe que é ela quem está a fazer o filho adoecer (o próprio filho, Chiaran!). Para quê? Para controlar Fainne. A Lady Oonagh quer que Fainne vá para Sevenwaters acabar o que ela própria não conseguiu: destruir Sevenwaters e impedi-los de recuperar as ilhas sagradas.
Finalmente compreendemos, mais ou menos, porque é que as ilhas sagradas são tão importantes, e porque é que a Lady Oonagh disse, logo no primeiro livro, que ela e a Senhora da Floresta eram “a mesma”. Quanto a isso, a conclusão é satisfatória, embora tenha ficado um mistério a pairar. Parece que os feiticeiros pertenciam aos Fair Folk e foram expulsos porque alguém de entre eles usou o seu poder para lançar ao mundo um grande Mal, Mal este que nunca é explicado. Fiquei com a ideia de que quem fez isso foi também a Lady Oonagh, mas é dito tão depressa que tive dúvidas. Não me surpreendia nada que tivesse sido TUDO ela, porque a Lady Oonagh é má como as cobras e só sabe fazer o Mal.
Por falar em Mal, a Lady Oonagh confessa que nunca pensou que os seis irmãos transformados em cisnes (“Daughter of the Forest”) sobrevivessem. O que não é muito inteligente, especialmente tendo em conta que ela sabia perfeitamente que tinha os Fair Folk contra ela e bastante capazes de intervir, como intervieram. Parece que a autora também “leu” as minhas críticas neste ponto porque a questão das “empadas” é abordada, uma das vezes sem graça nenhuma (a rapariga transformada em peixe que é incautamente comida pela família). A Lady Oonagh também não teve um fim nada glorioso, desculpem lá o spoiler.
Fiquei contente por ver que finalmente os irmãos restantes se tinham preparado para combater a Lady Oonagh, ao contrário do primeiro livro em que depois de “desencantados” regressam a casa sem qualquer plano, mesmo a pedir para serem transformados em empadas.
(Faço aqui um aparte para comentar que é mesmo por causa destas incoerências de lógica que os contos infantis raramente resultam como ficção para adultos. Se a Lady Oonagh quisesse de facto matar os enteados não os transformava em cisnes só para os deixar ir, arriscando que os seus inimigos fornecessem o contra-feitiço para a derrotarem. Não, transformava-os em patos e fazia empadas com eles. Mas aqui acabava-se a história e não havia trilogia, não era? Logo, muita coerência teve de ser sacrificada em prol de existir um enredo.)
Fainne foi a minha personagem preferida nesta saga toda, e nem sequer por ser feiticeira. Aqui ela é apenas uma miúda assustada a tentar salvar o pai e os amigos das ameaças da Lady Oonagh, compreensivelmente receosa de não ser tão poderosa como a avó.
O final deixa algo de tristeza, porque afinal, pelo que me parece, mesmo salvas as ilhas sagradas, aquilo que os Fair Folk e os Old Ones mais temiam acabou por acontecer: perdemos a conexão com a espiritualidade da Terra e da Natureza, um assunto muito melhor abordado em “As Brumas de Avalon” que aqui é simplesmente tocado ao de leve. Ou será que o facto de estarmos a ler esta saga significa exactamente o contrário, que afinal pelo menos alguns de nós nos reconectámos, ao fim destes séculos todos? Mesmo sem ilhas sagradas, pois as ilhas sagradas estão dentro de nós.
Mas agora já sou eu a filosofar.
Adorei esta saga, mesmo com todos os problemas que assinalei, e reparei que a autora foi melhorando de livro para livro. Por exemplo, aqui não pôde recorrer ao “truque” de mostrar o que o personagem não presenciava através do dom da Visão, que era muito conveniente em termos de escrita mas que se tornou até abusivo no segundo livro. (Para isso, mais valia recorrer ao Narrador Omnisciente, e daqui ninguém me tira.) Vou continuar a ler a autora na esperança de que mais coisas boas venham daqui.
Recomendo vivamente, e que comecem pelo princípio, “Daughter of the Forest”, embora este terceiro livro tenha sido de longe o meu favorito.
Desta vez fico-me por aqui para não incorrer em mais spoilers. Direi, como conclusão, que as perguntas por responder dos livros anteriores tiveram uma resposta satisfatória e que Chiaran (mais até do que Fainne) ficará no meu panteão de personagens preferidos de sempre.
domingo, 2 de maio de 2021
Son of the Shadows, de Juliet Marillier
[contém spoilers]
“Son of the Shadows” é o segundo livro da trilogia Sevenwaters de Juliet Marillier. Há muito tempo que um livro não me agarrava tanto, ainda mais do que o primeiro, “Daughter of the Forest”, em que os seis irmãos são transformados em cisnes.
Até parece que a autora leu a minha crítica de tal forma se evita os plot holes e os anacronismos. (Estou a brincar, é claro. O livro foi escrito muito antes da minha crítica. Mas talvez críticas semelhantes lhe tenham chegado aos ouvidos…) Obrigada, leitores que comentaram, por me terem aconselhado a não desistir. Não desisti e descobri um livro melhor do que o primeiro.
Mas não sem fragilidades. Depois de um início muito promissor, o fim revela-se decepcionante. Talvez Marillier melhore em obras posteriores, mas a sensação geral com que fiquei é de uma autora que vale mais pela sua escrita, e é de facto uma escrita lindíssima, do que pelos seus enredos.
E tal como disse em “Daughter of the Forest”, continua a haver aqui momentos em que a bota não bate com a perdigota, embora menos, mas Marillier ainda não se consegue livrar deles neste segundo livro. O que é pena. Ao contrário do que se costuma dizer, que uma boa história merecia melhor escrita, aqui é caso para dizer que a escrita merecia melhor história.
O que mais gosto em Marillier é que as histórias são tristes, ou, no mínimo, melancólicas. Logo no primeiro capítulo, somos informados de que dois dos irmãos morreram na guerra pelas ilhas sagradas. Isto era de prever, tendo em conta a personalidade de ambos, mas não deixamos de pensar se não teria sido melhor terem permanecido cisnes. Logo a seguir, sabemos que Sorcha está a morrer. Este sim, foi um grande choque, porque Sorcha sempre foi demasiado nova. Aqui é-nos dito que Liam tem 36 anos, o que significa que ela não pode ter mais do que 30.
SPOILER
Não era necessário. Não era mesmo. Sorcha podia ter continuado na série durante muitos mais anos, em pano de fundo, só intervindo ocasionalmente na vida dos filhos e dos netos. Não gostei.
A minha maior crítica ao primeiro livro foi mesmo essa: Sorcha era demasiado nova. Em “Son of the Shadows” a acção começa quando os filhos de Sorcha e Red já são crescidos. A mais velha, Niamh, tem 17 anos, e os mais novos, Liadan e Sean, gémeos, têm 16. Com estas idades já são perfeitamente credíveis, o que não acontecia com uma Sorcha de 12 anos.
A história é contada pela perspectiva de Liadan, uma perfeita réplica da mãe. Tal como esta, Liadan também é curandeira e também tem a Visão. Não gostei que esta personagem parecesse uma substituta da protagonista de “Daughter of the Forest”, confesso. Mas a história mais interessante, a história que me manteve agarrada, nem sequer é a dela. Bom, o melhor será dizê-lo de uma vez. Achei Liadan uma sonsa, uma menina do papá e da mamã, a filha preferida, e ainda por cima burra que nem uma porta. (Já justifico.)
Mas quem sai aos seus não degenera. A burrice parece ser genética em Sevenwaters, ou não tivessem os seis irmãos e a irmã ido confrontar a Lady Oonagh sem um plano que os protegesse caso esta decidisse transformá-los novamente em cisnes e desta vez fazer empadas com eles. As personagens de Sevenwaters não são exactamente brindadas pela inteligência, e este segundo livro vem apenas confirmar o primeiro.
A história
O que me manteve agarrada à história foi uma suspeita, vinda do livro anterior, que depressa se tornou certeza. Um dos “filhos das trevas”, porque o livro se refere a dois, é o filho da Lady Oonagh com Lord Colum, Chiaran, o oitavo irmão. Lady Oonagh levou-o quando saiu de Sevenwaters mas Colum foi à procura dele, encontrou-o, e trouxe-o de volta. O que, como pai, só lhe fica bem.
E que fizeram os irmãos, na morte do pai? Mereciam ser todos transformados em escaravelhos pela porcaria que fizeram, Sorcha incluída. Acharam melhor criar o miúdo junto dos druidas e do irmão Conor, sem lhe dizerem quem era. Chiaran cresceu e conheceu Niamh, sua sobrinha, que também não sabe que Chiaran é seu tio. E aqui está, Tragédia da Rua das Flores. Isto só se “revela” na terceira parte do livro, mas é mais do que óbvio desde o início para quem leu “Daughter of the Forest”.
Não contentes com a porcaria que fizeram, ao descobrirem este affair já consumado, tanto os tios como o pai de Niamh a tratam como a uma galdéria emporcalhada, e arranjam-lhe um casamento sem amor com um nobre qualquer, contra a vontade dela.
O que é curioso, porque à filhinha querida, Liadan, Red diz que nunca a obrigaria a casar contra a sua vontade. Mas isto ainda fica pior.
Ao acompanhar o séquito da irmã, no regresso da boda, Liadan é raptada por um bando de mercenários. Mas não fiquem já assustados porque estes mercenários são uns cavalheiros do melhor que há (é preciso querer acreditar nisto). O mais cavalheiro de todos é mesmo o homem a quem eles chamam o Chefe e a quem Laidan chama Bran, por ele se recusar a dizer o seu nome. Os mercenários raptaram-na porque um deles, serralheiro, sofreu um acidente horrível e precisa de cuidados, e os dotes de Liadan como curandeira (por se saber que aprendeu com Sorcha, sem dúvida) são sobejamente conhecidos. Só querem que ela trate o homem, o que é comovente.
O género de Juliet Marillier é apelidado de Fantasia Romântica, mas fiquei desapontada por Liadan ter conhecido o seu interesse romântico logo à primeira. Esperava mais voltas e reviravoltas antes disso, como em “Daughter of the Forest”, mas aqui vai-se logo aos finalmentes. Liadan apaixona-se por Bran, o líder dos mercenários (e o outro “filho das trevas”), e percebemos logo isso da maneira como os dois embirram um com o outro e discutem como adolescentes (e até são, ou quase). Tanta discussão acaba na cama, ou melhor, nas ervas do campo à chuva. Mas então acontece algo que só pode deixar um leitor de “Daughter of the Forest” completamente boquiaberto. Quando Liadan lhe conta quem é, Bran rejeita-a. Acusa o pai dela, Red, de ser o causador da grande desgraça da sua vida, e Sorcha de ser uma sedutora que desencaminhou um homem fraco. Mostrando a sua misoginia, só falta a Bran chamar prostituta a Liadan (mas acaba mesmo por chamar, indirectamente) antes de a mandar embora.
Ora, quem leu “Daughter of the Forest” fica chocado ao ouvir isto, porque sabe que Red e Sorcha seriam incapazes de fazer mal fosse a quem fosse. As acusações de Bran são muito graves, o que se reflecte na maneira como trata Liadan. Começamos logo a especular o que se teria passado em Harrowfield, na Bretanha, que a gente não sabe. Ter-se-á Simon, irmão de Red, voltado para o mal? Passa-nos tudo pela cabeça. E como gostamos destes personagens do primeiro livro, sentimos que quase nos estão a insultar os amigos e não podemos descansar enquanto não soubermos o que aconteceu ao certo. Eu já estava agarrada às minhas suspeitas de que Chiaran era o filho da Lady Oonagh, e ainda fiquei mais agarrada por causa destas acusações.
Liadan regressa a casa grávida. Desta vez não há censuras, como aconteceu à pobre Niamh, só amor e carinho e aceitação. Filhinha dos papás. A própria Liadan diz várias vezes que é injusto que a tratem melhor do que trataram a Niamh, e que não percebe porquê.
Eu também queria muito saber, e quanto mais ia percebendo mais me parecia que deviam ter sido todos transformados em escaravelhos. Liadan acaba por descobrir que a irmã está a ser espancada e violada pelo marido, completamente sozinha e sem se atrever a pedir ajuda. Culpa dos pais e dos tios. Liadan ajuda-a a escapar e obtém assim uma ajuda mais ou menos inesperada: Chiaran, filho da feiticeira, está a seguir na peugada da mãe, mas tem para com Liadan uma dívida de gratidão. Talvez Chiaran não se torne o génio do mal que os irmãos temiam dele.
Há uma ideia subjacente a todo o livro que me irrita profundamente: que os filhos acabam por ser forçosamente iguais ao que foram os pais. Chiaran, filho de feiticeira, tem de ser maléfico também. De Liadan, filha de Sorcha, espera-se que seja um espelho da mãe. (O próprio Red o diz.) Niamh, porque não saiu à mãe, foi desde sempre a filha enjeitada. (Escaravelhos, Chiaran, transforma-os em escaravelhos porque merecem!) Bran, filho de gente boa, tem de ser gente boa também. Eamonn, filho de um traidor, tem de ser igualmente malvado.
Por falar em Eamonn, pretendente a Liadan a quem esta rejeita, vamos lá então explicar a burrice da personagem. Só houve uma coisa que esta Liadan fez no livro todo com que eu concordei, que foi mandar a Senhora da Floresta às urtigas. (Exactamente! E eu gostei porque já me tinha parecido que a Senhora da Floresta é uma grande sádica.) Não, minto: também gostei que Liadan fosse a única a ter verdadeira compreensão para com o romance entre Niamh e Chiaran. Mas Liadan estraga tudo quando vai confrontar Eamonn, um homem que ela já sabe que é perigoso, que até já traiu Sevenwaters, e leva com ela o bebé. Lembrou-me aquele momento de “Homeland” em que Carrie Mathison leva a filha para um encontro de terroristas, e até um simpatizante de terrorista lhe pergunta: “Mas a senhora é doida? Trouxe para aqui uma criança?” Carrie Mathison é mesmo doida, mas Liadan é simplesmente burra. Quem é que leva o seu bebé para um conflito que pode correr muito mal, quando o bebé não faz lá falta nenhuma e podia tê-lo deixado em segurança?
Só há um personagem inteligente nesta história toda. Não vou dizer quem é para não criar mais spoilers, mas quem se lembra da minha crítica anterior sabe quem é o meu personagem preferido. E nada mais digo.
O fim decepcionante refere-se às acusações monstruosas que Bran faz a Red e Sorcha. Como dizer isto?... Afinal, ele estava completamente enganado. Ouviu mentiras, repetiu mentiras. Foi tudo uma construção artificial para o manter afastado de Liadan até ao fim do livro, porque não podiam ser “felizes para sempre” tão cedo. Não gostei mesmo nada. Como leitora, senti-me defraudada.
Senti-me ainda mais defraudada quando Red diz que tem alguma culpa no assunto, para justificar o truque baixo do livro. Nem Red, e muito menos Sorcha, nem sequer Simon, têm qualquer influência no que aconteceu a Bran. Não era preciso pôr Red a assumir culpa que não tem ao serviço de um enredo mal amanhado. Havia outras maneiras de chegar ao mesmo objectivo. Desta forma, Bran também me pareceu um idiota misógino que se queixa sem razão e acusa quem não deve. A certa altura ele diz a Liadan que ela é uma “mulher perigosa e uma estratega subtil”, e eu fartei-me de rir. Ele também não é muito esperto, por isso estão bem um para o outro. Bran é um personagem atormentado por uma infância de abuso, compreendo perfeitamente, mas, chamem-me insensível à vontade, ou talvez porque conheça casos muito piores em que as pessoas deram a volta “mais por cima”, acho que ele não tinha razão para aquela revolta toda. Até parece que foi o único no mundo a sofrer, ou, pior, é tão focado em si próprio que não sabe que outros sofreram mais. Talvez este personagem ainda melhore, porque, afinal, ele também é muito novo. Bran é quem verbaliza uma das ideias mais filosóficas do livro: “As histórias são perigosas, porque fazem os homens sonhar com o que não podem ter”. Às vezes é verdade, outras vezes é o contrário: em vez de perigosas, as histórias podem ser inspiradoras. Mas como personagem auto-destrutivo e sem auto-estima que é, Bran só consegue ver o lado cínico da vida.
Ainda assim, viciante
Então, do que é que eu gostei tanto neste livro, porque efectivamente gostei de alguma coisa que me manteve agarrada do princípio ao fim? A escrita é muito boa. A autora consegue das melhores descrições que já li na vida, embora eu não seja grande amiga de descrições. (Às vezes dá-me a entender que a autora prefere as descrições e os pormenores a essas chatices de manter o enredo coerente.)
Gostei da história de Niamh e da história de Chiaran, e de como ambas as histórias podem vir a dar uma continuação empolgante. Porque, a verdade é esta, estou em pulgas para ler a terceira parte, “Child of the Prophecy”.
Queria ter gostado mais deste livro, sim, queria. Queria ter-lhe dado 5 estrelas no Goodreads e só lhe pude dar 4 porque o fim me pareceu artificial. Conhecendo as fragilidades da autora, passei o livro todo a temer que isto acontecesse, nomeadamente quando se questionou a integridade de Red e Sorcha (não podia ser verdade!). Infelizmente, os meus piores receios vieram a concretizar-se, ou a autora não me conseguiu convencer das razões de Bran. Aliás, todo o personagem Bran faz pouco sentido, eu é que não quis estar aqui a debicar que nem abutre.
A escrita de Marillier é francamente agradável, mas precisa de enredos mais sólidos. Vou continuar a ler a trilogia na esperança de que a experiência melhore estas fragilidades até elas desaparecerem.
E continuo a querer saber a resposta à questão que ficou a pairar no primeiro livro: porque é que a Lady Oonagh se foi embora sem mais nem ontem quando já tinha conquistado tudo. A questão volta a ser abordada em “Son of the Shadows” e a resposta promete. Resta saber se a trilogia cumpre a promessa. Por esta altura falha-me a esperança, mas se “Son of the Shadows” supera “Daughter of the Forest”, pode ser que o terceiro livro me satisfaça completamente. A ver vamos.
domingo, 17 de fevereiro de 2019
Daughter of the Forest / A Filha da Floresta, de Juliet Marillier
"Daughter of the Forest" é uma história é inspirada no conto infantil em que a madrasta má transforma os enteados em cisnes, mas este é tudo menos um livro para crianças.
Fiquei com sentimentos contraditórios após ler esta história. Por um lado tem partes brilhantes que me fazem querer gostar muito mais do que gostei, e depois tem inconsistências que simplesmente não me deixam apreciar o enredo e as personagens como teria desejado. De 1 a 5 não lhe daria 3 nem 4 mas 3,5. E é pena porque queria ter gostado mais.
A protagonista é demasiado nova
Primeiro que tudo, esta história teria sido infinitamente melhor se a protagonista fosse uns dois anos mais velha. Sorcha, a irmã mais nova que tem por missão salvar os seis irmãos do encantamento que os transformou em cisnes, tem apenas 12 anos quando a história começa. Apesar disso, é uma curandeira respeitada por toda a gente. A história começa logo aqui a desafiar a credibilidade. Sorcha é uma menina nobre e diz que encontrou livros de medicina esquecidos algures (isto eu aceito), e também se informou junto de mulheres sábias da povoação. Pois bem, se havia mulheres sábias porque é que toda a gente recorre a uma fedelha de 12 anos? Nem é a questão dos conhecimentos que ela pudesse ter, é mesmo a questão da autoridade, e nestas coisas da saúde as pessoas só confiam em quem tem autoridade (mesmo que tenha menos conhecimentos). Mas a autora leva isto ao cúmulo quando após ajudar a um parto Sorcha faz respiração boca-a-boca a um recém-nascido que não respirava. Ora, ainda nos anos 70 a solução para isto era dar uma palmada nas nalgas. Como é que uma fedelha de 12 ou 13 anos, dos confins da floresta céltica irlandesa do século IX, sabe mais do que médicos e parteiras do século XX? (Ou éramos nós assim tão atrasados?) Estas coisas arrancaram-me completamente à Fantasia e fizeram-me revirar os olhos. Teria sido bem diferente se Sorcha fosse mais velha e tivesse mais experiência com partos, ou, noutras circunstâncias, se tivesse crescido com uma familiar que era parteira e tivesse aprendido com ela. Assim, Sorcha é demasiado competente para a experiência e idade que tem. Mais dois anos de idade teriam feito maravilhas pela credibilidade da personagem sem interferir com a história.
Há mais incoerências. Quem costuma ler aqui o blog já sabe que me chateia muito quando a bota não bate com a perdigota. Neste caso, acho que a autora se agarrou demasiado ao conto infantil em pontos em que não devia. Quando contamos uma história às criancinhas sobre uma menina e seis irmãos, as criancinhas não questionam. Quando se conta um conto de fadas aos adultos, as perguntas começam a surgir umas após outras. Que idade tem a mais nova, que idade tem o mais velho? Do que percebi, se Sorcha tem 12 anos o mais velho deve andar pelos 18 ou 19 anos, no mínimo. Logo a princípio, quando ele fica noivo e a noiva o vem visitar, este mancebo casadoiro ainda se mostra tão juvenil que se reúne com os irmãos, todos num círculo de mãos dadas como um grupo de putos wiccans. Mas Liam (o mais velho) não é nada juvenil. Não faz sentido nenhum que em vez de querer estar com a noiva (às escondidas, se preciso fosse) preferisse encontrar-se com meia dúzia de fedelhos. Contraria tudo o que conheço da vida. Rapazes desta idade com uma noiva que lhes interessa já não andam com miúdos pré-púberes a não ser para tomarem conta deles (e a maior parte das vezes a fazer um grande frete obrigados pelos pais). Tive de fazer um grande esforço para fingir que acreditava nestes rituais de infância ainda observados por sete jovens em fases da adolescência tão díspares. Todos eles às vezes parecem muito adultos (Sorcha principalmente, apesar dos 12 anos, quando discursa sobre a unidade que os assemelha aos sete ribeiros que dão nome a Sevenwaters) e às vezes portam-se como criancinhas.
A pior destas incoerências relativas à idade da protagonista é quando Sorcha conhece alguém que se apaixona por ela, Red, e ele próprio não sabe se lhe há-de chamar criança ou rapariguinha. Como é que é, Red? Criança ou rapariga? É que não sou eu que estou a inventar estas coisas. Estão explícitas na história quando ele se refere a ela como “criança”. Não sei a idade dele e quero acreditar que não tenha ainda 20 anos (mas neste caso quanto mais velho pior porque ela só tem 13) mas não me parece que um homem (mesmo jovem) que tenha sentimentos românticos por uma rapariga lhe chame criança em nenhuma circunstância. Se a Sorcha fosse apenas uns dois anos mais velha tudo faria muito mais sentido.
O feitiço
Lady Oonagh, a madrasta má, quer livrar-se dos enteados para que o filho dela herde o domínio de Sevenwaters. Até aqui bate certo. Mas depois transforma-os em cisnes e deixa-os ir à vida deles. Não seria muito mais lógico apanhá-los e fazer empadas? (A ideia não é minha, é de uma tragédia grega.) Foi imediatamente em que pensei ao ler algumas críticas que alertavam que este livro tem muito sofrimento, que é muito pesado, etc. É tudo relativo. Habituada como estou a doses descomunais de porno-tortura, esperava muito mais perversidade. A autora podia ter lá ido, e a certas alturas noto-lhe uma perversidade subtil e até perturbadora (ver Finbar) mas não é tão pesado como podia ser sido.
Sorcha consegue escapar por pouco ao feitiço. Eis quando lhe aparece a figura da fada madrinha na Senhora da Floresta que lhe ensina como reverter o encantamento. Tem de fazer seis camisas de uma planta espinhosa que tem de apanhar, fiar e tecer ela própria, tudo isto sem pronunciar uma única palavra ou sequer um som até terminar a tarefa. As camisas têm de ser vestidas aos irmãos exactamente ao mesmo tempo, quando todas estiverem prontas. Duas noites por ano, no solstício de verão e no solstício de inverno, os irmãos escapam ao encantamento e transformam-se de novo em homens desde o anoitecer ao amanhecer.
Admito que a princípio embirrei com a Sorcha. Ela é mimada, convencida, sabichona e, o pior de tudo, daquelas pessoas muito positivas e optimistas porque nunca passaram por nada. Assim que lhe é pedido que se submeta a esta tarefa excruciante, Sorcha responde imediatamente que é “forte” e que vai conseguir tudo e mais alguma coisa, o que ainda me fez embirrar mais. Só comecei a simpatizar com ela quando admitiu que afinal podia não ser tão forte como pensava e que nem tudo na vida está dentro do nosso controlo. Aí sim, deixou de ser uma menina privilegiada e tornou-se uma personagem com que consegui empatizar.
Mas demorou. Tenho de dar os parabéns à autora por ter escrito tão vividamente o sacrifício que implicou toda esta tarefa com a planta espinhosa. A planta é chamada starwort. Pesquisei mas não consegui encontrar o nome em português nem sei se a planta existe entre nós. [Se alguém souber, deixe nos comentários, por favor.] Mas foi tão bem descrito que imaginei o que conheço, aqueles cactos que deitam uns espinhos fininhos, quase invisíveis, que se espetam debaixo da pele e dentro da carne e têm de ser tirados à pinça. Ao ler tantas vezes como era doloroso fiar esta planta, e como as mãos dela incharam e se deformaram, a certa altura também comecei a sentir picadas nas mãos. Verídico. É preciso escrever muito bem para causar esta impressão no inconsciente do leitor. Este foi um dos momentos brilhantes do livro que nos provam que a autora tem grande talento, se bem que nem sempre os enredos mais bem construídos, mas lá voltaremos de novo.
Não percebi, sinceramente, a necessidade de silêncio. A Sorcha está proibida de falar, mas aparentemente só não pode dizer nada sobre o encantamento e não pode explicar a tarefa. De resto, ela comunica por linguagem gestual e “fala” de tudo e mais alguma coisa e até comunica telepaticamente com alguns dos irmãos. Batota! Isto faz com que a Sorcha tenha a vida muito mais facilitada do que se não pudesse mesmo comunicar de forma nenhuma, o que muito possivelmente a colocaria em situações ainda mais periclitantes do que já acontece. Mas, sendo assim, ela podia muito bem falar normalmente e dizer “sobre isso não me perguntem” em relação ao assunto proibido. A Senhora da Floresta também é uma grande sádica e ainda teve o desplante de lhe dizer “não sou eu que invento estes feitiços”. Então quem é, Senhora da Floresta? Sorcha, porque não lhe perguntaste isto?
Por último, a Lady Oonagh diz aos irmãos que não devem contar com a ajuda da Senhora da Floresta porque ambas são “uma só”. Ora, eu acho que isto devia ser explicado. O encantamento é o enredo principal do livro. E ao chegar ao fim da história também concluí que as Fadas (os Fair Folk, no livro) a que a Senhora da Floresta pertence também não são de fiar. Mais uma razão para esta questão ser explicada. Compreendo que a Lady Oonagh pode estar a querer dizer que a magia negra/má e a magia branca/boa são duas faces da mesma moeda, mas a Lady Oonagh é humana, não é Fada (ou será?).
Algo que me deixou perplexa durante o livro todo é que nunca, nem por um instante, Sorcha ou os irmãos pensam em aprender magia também para derrotar a Lady Oonagh. A certa altura (não direi quando) decidem ir confrontá-la os sete sem terem qualquer plano. Isto não foi inteligente. A mulher já os tinha transformado em cisnes, podia transformá-los noutra coisa qualquer ou fazer muito pior. Não me importa que eles tivessem um bom plano ou um mau plano, desde que o tivessem. Convenientemente, a Lady Oonagh sabe da vinda deles e foge. O que não faz sentido nenhum. Agora ela já tinha conseguido tudo o que queria. É uma mulher poderosa capaz de transformar pessoas em cisnes (e não pode ser a única coisa que é capaz de fazer) e foge? Só há uma “desculpa” para esta resolução insatisfatória, e essa é que a autora planeasse desenvolver esta história noutro livro mais dedicado à Lady Oonagh. Não sei se o fez ou não, mas compreendo que o quisesse fazer. Não considero esta ponta solta muito grave mas irritou-me que os sete irmãos não tivessem um plano.
Finbar o Gótico
Finbar é o meu personagem preferido. Um dos irmãos do meio, é o mais próximo de Sorcha e partilha com ela uma ligação telepática. Finbar tem algumas qualidades “vampirescas” que dão logo nas vistas aos “entendidos”. Não só consegue transmitir pensamentos telepáticos (conversas inteiras, com efeito) como consegue transmitir também imagens. Tem dons proféticos. Consegue aproximar-se das pessoas sem fazer barulho como se aparecesse “do ar”. E depois tem alguns traços nitidamente góticos, como o pacifismo, a melancolia e a visão pessimista da vida. E a rebeldia.
Tudo começa com ele, na verdade, quando se revolta contra o pai. Há muito tempo que dura uma guerra com os Bretões (a acção passa-se no século IX, tempo do rei Aethelwulf, mas não o de Vikings em que a série aglutina dois séculos numa única linha temporal). Os três irmãos mais velhos participam na guerra com entusiasmo, mas Finbar prefere aderir à Amnistia Internacional e quando um prisioneiro de guerra é capturado e torturado pelos soldados do pai decide libertá-lo. O que até nos dias de hoje é considerado traição. (Aliás, aquela revolta toda contra o pai caiu ali de pára-quedas. Lord Colum, o pai, é um homem distante dos filhos desde que a esposa que amava morreu de parto quando Sorcha nasceu, mas tirando isso não merecia aquela hostilidade toda em frente dos seus súbditos.) Finbar quer o fim da guerra e o começo de negociações (mas a guerra nunca é algo realmente relevante na história, apenas pano de fundo). Lord Colum e os irmãos mais velhos nem querem ouvir falar do assunto. Novamente a tal inconsistência. Por muito que Sorcha fale de unidade e façam rodinhas wiccans de mãos dadas, não há unidade. A própria Sorcha o diz, que os irmãos mais velhos iam ficar muito zangados se suspeitassem do que Finbar quer fazer. Lá se vai a unidade dos sete ribeiros, não, Sorcha? Direi mesmo mais. A verdadeira unidade entre eles só acontece depois do feitiço que sofrem juntos, não antes.
Finbar recruta Sorcha para lhe preparar uma beberagem que põe os guardas a dormir e lá conseguem libertar o prisioneiro, Simon. Outra grande inconsistência. No decorrer da história percebemos que toda a gente reconhece que Sorcha tem conhecimentos médicos. Que toda a gente recorre a ela quando é necessário. (Passe a falta de credibilidade que isto tem.) E no entanto ninguém desconfia que foi ela quem drogou os guardas? Muito estranho. Seja como for, Finbar e Sorcha conseguem tratar o prisioneiro e dar-lhe uma hipótese de sobreviver e escapar. O começo da história (principalmente toda esta parte em que Sorcha é a enfermeira de Simon) pode ser considerado algo lento para quem gosta de mais acção, mas eu não me importei porque acho que vale a pena esperar pelas partes boas e deixo ao autor a liberdade de me guiar até elas como lhe parecer melhor. Nunca pensei que Simon regressasse, e muito menos que Simon também se tenha apaixonado por Sorcha quando ela ainda era uma miúda. É algo que deve ser de família, gostar delas aos 12 anos, e não digo mais nada.
Finbar personifica um dos momentos mais perturbadores da história. Mais perturbador do que a cena da violação e a morte de alguém que não vou revelar, mais perturbador do que a cena da fogueira. Como cisne, Finbar tem uma “esposa” cisne e dois patinhos. Em forma humana, lembra-se deles e atormenta-o tê-los abandonado. Ora, nem sei o que devo sentir perante isto. Tristeza? Repulsa? Pena? Acabei por decidir-me pela tristeza e foi uma das coisas mais amargas que já li na vida. Entre dois mundos, Finbar não consegue pertencer a nenhum porque está demasiado dividido. O que ele resolve no fim (e desconfio que sei o que é) faz todo o sentido. No final, Finbar é completamente gótico, um espírito atormentado que anseia libertar-se do seu estado humano.
Os vilões
A história tem dois vilões e ambos são apresentados a preto e branco, o que raramente faz personagens cativantes.
Mesmo assim, Lady Oonagh é uma vilã bem conseguida. Talvez seja até a personagem mais bem conseguida da história toda. Todos nós já conhecemos uma Lady Oonagh, pelo menos. Tive o azar de me cruzar com várias e conheço bem a peça. Marillier também a deve conhecer e nota-se na perfeição com que a retrata. Faz-me ficar em pulgas para ler mais sobre ela. Quem era, de onde veio, para onde foi, onde aprendeu as artes mágicas, quem a ensinou. Se não houver um livro sobre a Lady Oonagh vou ficar muito desapontada.
E depois temos outro vilão, Lord Richard, que já não me convenceu. Lord Richard é execrável em vários sentidos. É o tipo de vilão irredimível que ali está para o odiarmos sem reservas. Prefiro vilões complexos e “cinzentos”, mas no que toca às intenções da autora, foram bem conseguidas. A caracterização da personagem, contudo, não foi tanto. Lord Richard revela-se um homem extremamente sádico quando Sorcha recusa os seus avanços. Cheio de orgulho ferido (e com outras motivações adicionais que não vou revelar) arranja maneira de a condenar à fogueira sob várias acusações, uma delas de feitiçaria. Não contente com isto, durante as semanas em que a mantém aprisionada delicia-se a torturá-la psicologicamente com os pormenores da morte que a espera: a construção da fogueira, o fogo, a dor, tudo com tanto detalhe e malvadez que raramente encontrei um vilão tão sádico. Um nível de sádico acima do Hannibal Lecter, acreditem ou não, que ao menos anestesiava as vítimas. É este nível de sadismo que não me convence. Este nível de sadismo não se desenvolve da noite para o dia e não se consegue esconder das pessoas mais íntimas (que são as principais vítimas). Uma rejeição amorosa também não o explica. Um sádico assim começa na infância, e se for narcisista também (e geralmente são) por esta altura já todos conheceriam a peste que ali estava. Das duas uma, ou já teriam cortado relações ou, se não pudessem, viveriam aterrorizados por ele. Não é nada disto que acontece com a família de Lord Richard, que o acha simplesmente desagradável. Não, um sádico destes não é apenas desagradável. É um terror. A família é a primeira a sofrer. Aqui, Marillier errou ou exagerou. Funciona, mas não me convence.
A autora
Juliet Marillier consegue criar uma Fantasia Romântica com uma leve base histórica que resulta muito bem a esse nível. Mas não se espere daqui um romance histórico porque não o é. Aqui reina a Fantasia. Sorcha, na floresta, ouve as fadas das árvores, o que pode parecer algo infantil. Mas há outros seres sobrenaturais. Não há nada de infantil no momento de Dark Fantasy em que as sereias aliciam Sorcha, desesperada e traumatizada, a juntar-se a elas no mundo aquático “onde não há mais dor”. Por um instante temi que Sorcha cedesse à tentação de as ouvir e pusesse fim à vida. Esta é das tais passagens brilhantes que quase nos fazem esquecer as inconsistências.
Mas os momentos mais impressionantes são a violação (muito gráfica, muito pormenorizada, muito traumática) e a fogueira, que realmente nos arrepia. Toda a relação de Sorcha com a floresta é igualmente bonita e bem descrita.
Só tenho algo a apontar à forma como Sorcha, em primeira pessoa, “justifica” ter de contar a violação como “algo que determina” tudo o que aconteceu depois. Não, não determina nada, nem a autora tem de se justificar. A violação é uma coisa que acontece, independente do enredo, e que tem uma influência marginal nos acontecimentos seguintes. Sorcha vivia escondida numa gruta da floresta enquanto se dedicava à sua terrível tarefa, mas a sua subsistência tinha-se tornado insustentável. Mais tarde ou mais cedo teria de procurar um abrigo mais seguro e confortável. Com ou sem violação. Eu sempre pensei que a violação estaria mais ligada ao enredo mas afinal é algo que acontece à margem.
Não é a primeira vez que através da primeira pessoa a autora nos tenta manipular a concordar com o desenvolvimento da narrativa. Eu dispensava estas manipulações que a certa altura se tornam demasiadas, desnecessárias e justificativas. Especialmente quando Sorcha diz “nos contos tradicionais tudo acaba bem, os vilões são castigados, não há pontas soltas, mas esta é a minha história, etc”. Completamente desnecessário e manipulativo. A autora não tem de pedir desculpa.
Outro pormenor que me irritou, mas parece que os autores anglo-saxónicos não prestam tanta atenção a estas coisas como nós, foi a quantidade de anacronismos linguísticos que fui apanhando na história. O pior, o uso da palavra "piquenique", duas vezes!, pela protagonista. Não, não, não. Nem era necessário. Pergunto-me se não foi uma palavra ali inserida pelos editores, uma vez que a autora até respeita a linguagem da época. Aquele “piquenique” e outras que tais destroem a nossa imersão na Fantasia e tornam o livro desleixado. É uma pena.
Outro ponto negativo é o recurso ao deus ex machina, e por duas vezes! Da primeira, quando Red está mesmo prestes a ser morto na floresta e Sorcha se lembra de pedir ajuda aos Fair Folk. (E porque não pediste também antes e depois, Sorcha?) Da segunda, quando Sorcha já está na fogueira e aparece alguém que estava ausente no preciso instante em que a salva por uma unha negra. Ainda estou para encontrar alguém que goste de deus ex machinas, e eu também não gosto. Na segunda vez nem seria necessário porque os irmãos estavam presentes e podiam tê-la salvo sozinhos.
E por falar nisso, lamento dizer que fomos roubados do verdadeiro clímax da história. A autora não “mostra” o fim do feitiço, antes o descreve pela boca de personagens que ainda por cima são secundárias. Não percebi esta opção (a autora tem talento de sobra para mostrar a cena) e senti-me defraudada. Também não achei graça nenhuma àquela ideia de a camisa voar no vento e ir parar por artes mágicas onde era necessária. Com ou sem influência dos Fair Folk. Não era isto que eu queria ver. E acaba por funcionar como outro deus ex machina, fazendo três, e somando dois na mesma cena.
São estas coisas que me fazem não gostar tanto do livro como podia ter gostado. A todo o momento queria acreditar que não iam aparecer mais coisas destas, que eram só um percalço, mas os “percalços”, mesmo os de menor importância, foram-se avolumando uns em cima dos outros e acabaram a criar uma montanha de percalços. Uma montanha, passe a poesia, cuja sombra obscureceu os momentos brilhantes que o livro efectivamente tem. E é pena. Quando é preciso, a autora tem um tipo de escrita vívida e sensível, às vezes poética, de que gostei muito. Também gostei dos momentos perturbadores e jamais esquecerei Finbar e a sua família de cisnes.
Se é um livro que vou ler duas vezes? Não. Não gostei o suficiente. Mas gostaria de dar outra oportunidade a esta escritora (parece que este é o livro de estreia) e perceber se as inconsistências desaparecem noutras histórias ou se se tornam norma.
Desaconselho este livro a toda a gente que detestar Fantasia e Fadas e encantamentos e enredos românticos em geral. Aconselho vivamente a quem gostou de “As Brumas de Avalon”. Não é tão bom, nem por sombras, mas às vezes parece umas Brumas de Avalon menos pesadas.