segunda-feira, 3 de junho de 2019

The Terror


[spoilers mínimos; não revela o final]


Esta é a melhor série de terror que eu vi nos últimos tempos, se calhar mesmo na vida toda, e está a passar "abaixo do radar" sem ninguém lhe ligar nenhuma. Antes de mais, é preciso divulgá-la: passa na AMC. Se a virem, agarrem-na, gravem-na, devorem-na. Se não a virem, vão atrás dela. Esta série de extraordinária qualidade é imperdível.

"Em 1845, dois navios da Marinha Real zarparam de Inglaterra numa tentativa de encontrarem uma passagem navegável no Árctico. Eram os navios tecnologicamente mais avançados da sua era. Os últimos a vê-los foram baleeiros europeus na Baía de Baffin, aguardando o bom tempo para entrarem no labirinto do Árctico. Ambos os navios desapareceram."


    [preâmbulo de abertura de “The Terror”]

Por estranho que nos possa parecer agora, HMS Terror era mesmo o nome de um navio. O nome explica-se por ter sido um navio de guerra antes de ser remodelado para a exploração polar. O seu outro companheiro de viagem, o HMS Erebus, também foi baptizado a partir de uma das zonas do inferno clássico, o Hades. Com nomes agourentos como estes, quase nos perguntamos quem é que no seu perfeito juízo levaria estes navios para uma expedição perigosíssima de onde podiam muito bem não regressar?
Estes nomes são reais, tal como são reais os nomes dos tripulantes da expedição que tinha por objectivo descobrir uma passagem para a Ásia através Círculo Polar Árctico, a norte do Canadá: a passagem Noroeste, que seria muito rápida e prática em termos comerciais. Houve várias expedições anteriores para a encontrar, sem êxito, até à vez de Sir John Franklin (esta conhecida como "a expedição perdida de Franklin") com resultados desastrosos. Todos os 129 tripulantes foram dados como perdidos.
 "The Terror" faz excelente uso destes nomes verídicos, bons demais para desperdiçar, excepto esta ou aquela mudança de ocupação. Além dos próprios barcos, temos um Tenente Gore ("Gore" é o título apropriado do episódio em que este tenente tem um fim... que não conto), um Mr. Morfin (que, coitado, morre com tantas dores que implora que lhe dêem um tiro, mas não há morfina para Mr. Morfin), e um Mr. Goodsir (cirurgião assistente na série e na vida real), que os escritores aproveitaram logo para ser o homem mais decente naqueles dois navios.
A série é baseada no romance homónimo de Dan Simmons, publicado em 2007, antes de ambos os navios naufragados terem sido descobertos, o Erebus em 2014 e o Terror em 2016, muito longe do local onde se julgava terem sido abandonados. Novamente, bom demais para desperdiçar. Foram feitas algumas alterações à história para acomodar as novas informações que a descoberta trouxe à luz. E que informações! A história nem precisa de sobrenatural para ser um dos relatos mais horríficos das aventuras navais da época vitoriana, ou de todos os tempos.
Esta série não é para todos. É extremamente deprimente, e os últimos episódios, principalmente, têm cenas de um canibalismo tão realista que algumas pessoas talvez não consigam suportar. Não digo isto como spoiler mas como aviso: pode ser demais!


Um acto de húbris
No verão de 1846, os dois navios aventuram-se em águas do Árctico. O líder da expedição, Sir John Franklin, comanda o Erebus, mas é ao Terror que devemos prestar toda a atenção. O Capitão Francis Crozier, comandante do Terror e navegador com experiência em zonas polares, não gosta dos sinais preocupantes que vê no gelo. Imediatamente avisa Sir Franklin para não continuarem em frente, que fazê-lo será “um acto de húbris” de terríveis consequências. Franklin simplesmente o ignora. Em Setembro, do dia para noite, ambos os navios ficam encarcerados no gelo. Não um dia ou dois, ou sequer meses, mas por dois anos. Os navios eram tidos por capazes de suportar essas condições. Levavam provisões bastantes para durar três anos, enlatados e sumo de limão (contra o escorbuto), e tinham aquecimento central. Tal como o Titanic era “insubmersível”, também estes navios tinham tudo o que era preciso para resistir aos invernos polares. O que não tinham era um plano B. Em vão esperaram o degelo da primavera, mas uma série de anos mais frios do que o normal não derreteu o gelo.
O Capitão Francis Crozier volta a advertir Sir Franklin que deve enviar imediatamente uma equipa para pedir socorro, o que este volta a negar. Desta vez Franklin vai mais longe, acusando Crozier de ser um homem sem fé em Deus, um pessimista, um homem de vícios (Crozier, de facto, é alcoólico). Enviar tal equipa serviria apenas para desmoralizar a tripulação e admitir o fracasso, e Franklin nem quer ouvir falar disso.
Crozier leva uma rebocada tal que noutras circunstâncias era capaz de pedir a demissão e virar-lhe as costas, mas estes são oficiais da Royal Navy e estão isolados no Pólo Norte. O que Crozier faz é ignorar as ordens de Franklin e preparar a equipa em segredo, tencionando liderá-la ele próprio para que os homens que o acompanham possam dizer que apenas obedeceram às suas ordens e não sejam acusados de insubordinação. Caso tenham sucesso, isto é. Crozier já sabe que a expedição está perdida. Agora só importa salvar a tripulação. Antes que Crozier consiga realizar os seus planos, contudo, Sir Franklin morre. O capitão Crozier, segundo em comando, torna-se assim no líder da expedição e pode enviar a equipa sem incorrer em motim. O que não lhes vai servir de muito.
Crozier resume o tema da série na sua frase acima: um acto de húbris. É a arrogância que condena esta expedição. A arrogância de Sir Franklin, espelho da soberba do Império Britânico, que recusa admitir derrota quando já são as vidas dos tripulantes que estão em jogo. É a arrogância britânica que nem considera aprender com o povo Inuit como melhor sobreviver naquelas condições, encarando-os, pelo contrário, como selvagens que nada têm a oferecer ao poderio naval de Sua Majestade. É a arrogância civilizacional do Império Britânico que envia homens para condições extremas com equipamentos inadequados e uniformes impróprios para o clima, a quem falta o discernimento em assegurar o socorro caso algo corra mal. Nada pode correr mal nos planos científicos e metódicos do império. O único resultado só pode ser o sucesso. Outra coisa não se admite nem sequer se pondera.
O que acontece de seguida é uma lenta descida aos infernos. Os enlatados eram de má qualidade. Deficientemente soldados, os que não apodreceram continham níveis de chumbo que, segundo os cientistas que há décadas estudam a expedição, terão lentamente intoxicado os tripulantes. O que terá também explicado a loucura e os comportamentos irracionais que mais tarde foram depreendidos dos acampamentos abandonados. Esgotadas as outras provisões, os enlatados tornaram-se o único veneno que os homens tinham para comer. O frio, a fome, o escorbuto e a tuberculose também colheram o seu número de vítimas.
Isolados num deserto de gelo impiedoso e de terra pedregosa, não havia para onde fugir nem tinham meios adequados para tal. Os longos invernos de noite permanente, a crescente escassez de provisões, a continuada falta do degelo, levam os homens a cair no desespero e na loucura. Por fim abandonam os barcos e tentam escapar por terra, mas também não têm melhor sorte. É uma derradeira luta pela sobrevivência, mas a doença e a fome já os tinham enfraquecido ao ponto de não retorno. Segue-se o motim e a carnificina.
Como se tudo isto não bastasse, logo de início, ainda Sir John Franklin é vivo, um estranho animal, que julgam um urso polar mas de tamanho enorme e características estranhas, é avistado pelos homens. Tentam abatê-lo, mas, desgraçadamente, atingem acidentalmente um shaman Inuit (que, vimos a saber mais tarde, é quem mantém o monstro sob controlo). O shaman morre, e apesar das súplicas da sua filha, que o acompanha, os britânicos não cumprem os ritos fúnebres que ela exige. Em vez disso, o shaman é atirado sem cerimónia por um buraco de água no gelo. E aqui, na série, fizeram-na bonita. Este “urso” é um Espírito Guardião do Árctico e do povo Inuit, o Tuunbaq, um espírito em forma animal. Agora que profanaram o corpo do shaman, estão todos marcados. O Tuunbaq não distingue entre bons e maus. Mas diga-se de passagem, os “bons”, aqui, são muito poucos, como se verá no decorrer da história.


Personagens inesquecíveis
Poder-se-á pensar, erradamente, que a história perde o interesse logo nos primeiros minutos, quando se sabe que não sobrevive ninguém. Nada mais enganador. As tripulações do Erebus e do Terror tiveram várias hipóteses de escapar. Mesmo quando tudo já parecia negro, ainda havia esperança. Não para todos, os que já estavam demasiado doentes, mas para alguns houve sempre esperança até ao fim. O mais fascinante, a certa altura, não é perceber o como e o porquê de se terem perdido mas, pelo contrário, de não se terem salvo.
As personagens são excepcionais e é impossível não torcer por algumas. Um dos melhores trunfos desta série é como se pega nestes nomes de um manifesto e se criam personagens de carne e osso com quem conseguimos empatizar.
Vou começar pelo líder da expedição, Sir John Franklin (Ciarán Hinds, que os leitores mais novos conhecem de “Guerra dos Tronos” mas que eu lembro melhor ainda como Júlio César em “Rome”). Franklin parece um homem ambicioso, arrogante, até não muito competente (principalmente quando, em flashbacks, percebemos que é Lady Jane Franklin, sua mulher, quem o manipula), mas na duração de um ou dois episódios compreendemos que é afinal um homem sincero, profundamente religioso, que não é hipócrita e acredita no que diz. Um homem optimista, mais do que devia, que se preocupa acima de tudo com a moral da tripulação. Apesar da sua falta de discernimento, o objectivo nunca foi sacrificar homens por ambição, mas sim conduzi-los ao triunfo último da expedição. Franklin nada mais admite senão o triunfo, e acaba por ser essa a sua falha trágica. Até seria digno de pena se a sua cegueira não tivesse consequências tão horríveis. E Franklin não é o único culpado desta cegueira. Homem do seu tempo e do apogeu do Império Britânico, nele reflecte-se toda uma cultura que o criou. A mesma cultura que, ultimamente, também o vitimou.
Depois temos o Capitão James Fitzjames (Tobias Menzies, igualmente no elenco de “Guerra dos Tronos” e igualmente em “Rome” no papel de Brutus), que a princípio parece um daqueles homens balofos de vaidade que são “só garganta” e cobardia. Pois este foi uma surpresa! Em circunstâncias em que a maioria fugiria ou sujaria as calças, mostra uma coragem extraordinária a enfrentar o Tuunbaq. Prova de que nem tudo é o que parece à primeira vista, e Fitzjames não é de todo um cobarde.
Quem nunca me enganou foi o Capitão Crozier (Jared Harris, mais conhecido pelo seu papel em “Mad Men”), cínico, melancólico e pessimista, mesmo quando os longos meses no Árctico o mergulham no extremo do alcoolismo. Daqui eu sempre esperei grandes coisas, e elas vieram.
E depois temos o “talentoso” Mr. Hickey (Adam Nagaitis), sem dúvida a maior manipulação a que fomos submetidos em termos de personagens. Mr. Hickey é um tripulante simpático com quem empatizamos imediatamente, um homem do povo e um homossexual que é perseguido por sê-lo. Como não torcer por ele, a parte mais fraca? Jamais acreditaríamos, nos primeiros episódios, no que ele se vai tornar já a seguir. E eu também não vou contar, mas foram feitas comparações ao Coronel Kurt de “Apocalipse Now” e eu concordo que anda por aí. No fim, também a Mr. Hickey foi a arrogância que o perdeu. Ou melhor, que se perdeu a si próprio. Fantástico desempenho! Espero ver este actor muito mais vezes.
Chegamos então ao melhor personagem da história. Se não o grande herói (mas não parece que esta história tenha heróis), o coração de “The Terror”, Mr. Goodsir (Paul Ready). Ao contrário de Mr. Hickey, eu embirrei logo com este personagem. Muito bonzinho, demasiado bonzinho. E depois veio o golpe fatal que me fez mesmo detestá-lo. Ao desconfiar que os enlatados estão a envenenar os homens com chumbo, Mr. Goodsir começa a dá-los a comer ao macaquinho do falecido Sir Franklin. (Sim, havia um macaquinho de estimação a bordo, para se perceber até que ponto este comandante achava que a expedição era um passeio pelo gelo.) O macaco enlouquece e morre, e é aí que Mr. Goodsir percebe que não podem continuar a comer das latas. Episódio após episódio, este personagem conquistou-me, e da embirração e da antipatia tornou-se aquele pelo qual torci mais. (Porque, na verdade, mais tarde ou mais cedo o macaco tinha de começar a comer das latas também, tal como os homens, mesmo depois de saberem que estavam contaminadas. Dessa forma, não foi apenas uma experiência científica. Era só uma questão de tempo. Pelo menos o pobre macaco morreu de morte "natural", ao contrário do cão...) Mr. Goodsir, mais tarde tratado como Dr. Goodsir, tem um nome que lhe assenta como uma luva. A bondade não é falsa e acabou por comover o meu coração empedernido que me faz desconfiar deste tipo de pessoa.


Goodsir é bom autenticamente, porque sim, porque não pode ser de outra forma. A certa altura torna-se amigo da filha do shaman, a quem chamam apenas Lady Silence (não vou explicar porquê), e numa última escolha Goodsir tem a oportunidade de deixar tudo para trás e ir com ela. A mim só me apetecia gritar-lhe: Vai! Foge! Nem penses duas vezes! Foi tudo muito rápido e Mr. Goodsir talvez precisasse de mais tempo para tomar essa decisão, que o afastaria do dever para com os camaradas, da Inglaterra, da carreira científica. É muito a pesar a um homem que vive para a ciência encarar a ideia de viver como os Inuit, no gelo primitivo. Mas torcei por ele até ao fim, mesmo até ao fim, para que visse a luz.
Não me lembro de uma série que me tenha conseguido fazer mudar de ideias sobre os personagens sem que haja grandes revelações ou reviravoltas pelo meio. Não foram eles que mudaram. O que mudou foi a minha percepção deles, porque os observei desde o ponto de partida, porque aprendi a conhecê-los, porque “senti” com eles a longa e imparável descida ao desespero.


O Tuunbaq
É consenso geral entre a crítica que o Tuunbaq foi o aspecto menos bem conseguido desta série. Mas dizer isto é dizer que o Tuunbaq destoa porque é “apenas” bom no que é de resto uma obra-prima. (Mas verdade seja dita, o CGI do monstro não é muito bom. Li algures que é muito difícil reproduzir um mamífero em computador. Por exemplo, os tigres de “The Walking Dead” e de “A Vida de Pi”, em que até nos momentos mais realistas se nota que não são animais a sério. O Tuunbaq sofre do mesmo problema. Conscientes desta limitação, os realizadores da série evitam mostrá-lo muito perto e muitas vezes, o que foi mesmo a melhor opção.)
Não era necessário acrescentar o Tuunbaq a uma tragédia verídica, e muita gente não gostou da ideia, mas confesso que não vi o Tuunbaq como somente um monstro e se calhar por isso apreciei a sua inclusão. Muito cedo se percebe que não é um urso polar. Uma das primeiras coisas em que reparei na sua fisionomia, muita perturbadora, é que este “urso-espírito” tem cara de pessoa. Isso mesmo. Cara de pessoa. O Tuunbaq não foi completamente explicado e existem muitas interpretações, mas aqui vai a minha: o Tuunbaq é o espelho do mal da humanidade que é seu dever aniquilar. O verdadeiro Mal que rodeia os sobreviventes da expedição não está fora, está dentro, e o Tuunbaq tem a cara humana do Mal. Outra interpretação defende que o Tuunbaq consome a alma das suas vítimas, e que o Mal consumido nessas almas foi a sua perdição. Não desgosto desta teoria porque bate certo com o tema geral de “The Terror”. Até ao próprio Tuunbaq, é a arrogância que o perde. Mais olhos do que barriga e isso tudo. Talvez tenha levado a vingança longe demais sem dar ouvidos aos shamans. Talvez tenha comido arrogância a mais, a arrogância dos intrusos, e como eles, e pelo mesmo motivo, condenou-se a si próprio.


Para ver e rever
“The Terror” mistura o drama naval com o terror. Se alguém duvida que pode ser feito, é só assistir. Não tenho senão elogios a dizer, desde a magnífica cinematografia (tão depressa o gelo branco e o céu escuro como o solo de pedra solta e os horizontes cinzentos de um sol implacável, já para não falar do detalhe e realismo do interior dos barcos) às excelentes performances dos actores que conseguem diálogos de dez minutos sem que se note o passar do tempo.
Uma nota especial para o som, que adquire tal importância, como, por exemplo, no ruído incessante do gelo a esmagar lentamente os barcos, que aconselho que se ouça com auscultadores (na falta de surround). É uma experiência única por si só. Até o genérico é uma obra de arte. Não bastando a perícia dos efeitos sonoros, saliento ainda a música sombria e sinistra do compositor Marcus Fjellström (falecido em 2017 com a idade de 38 anos).
Se há apenas uma coisa de confuso na série é a grande semelhança entre todos os personagens. Todos homens, da mesma idade, todos de uniforme, todos Mr. Isto ou Mr. Aquilo, todos com cortes de barba e cabelo idênticos, como é de esperar neste ambiente naval. Demora um bocado a conseguir distingui-los. Pelo fim da série, à medida que o elenco diminui, começamos a ter uma melhor percepção de quem é quem. Vai ser uma satisfação ver de novo e associar, desde o princípio, as caras e os nomes dos que chegaram ao fim e captar todos os pormenores de personalidade que me escaparam quando a tripulação ainda estava mais ou menos intacta.
É uma série difícil de se ver, sem dúvida, deprimente e pessimista, mas com momentos de uma beleza tão imensa que quase compensa o horror quando ele acontece. É mesmo caso para recordar uma das características do gótico: a beleza do horrível.


Adenda
Depois de escrever este artigo já tive oportunidade de ver de novo o primeiro episódio. Confirmo: ainda é mais interessante à segunda vez. Quem diria, de uma ficção baseada em acontecimentos reais de que já sabemos o resultado? Fantástica série.


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