sábado, 26 de março de 2016

Battlestar Galactica (série TV)

Recentemente, fui engodada a ver a mini-série de 2003 e meia dúzia de episódios da primeira temporada da série de 2004 de Battlestar Galactica quando começaram a repetir no SyFy. Acho que esta série já passou entretanto num canal generalista (ou teria sido o Star Trek Nova Geração?) mas não vi nem quis ver. E ai de mim, porque é que eu me pus a ver isto?! Ainda há pouco tempo o disse aqui, até estremeço quando sei que vão fazer um remake de um filme ou série de sucesso. Não é que a série seja má (até porque temos de ter em conta que já é uma série com 12 anos!) mas o que eles fizeram ao original!!! Vi dois episódios e foi o que bastou para começar a torcer pelos Cylons! Sim, eu torço pelos Cylons!

Porque é que sempre que olho para esta imagem tenho a percepção de que se prepara ali uma orgia?...

Battlestar Galactica era simplesmente a minha série preferida em miúda. Refiro-me à série de 1978, que só passou aqui no início dos anos 80. Eu tinha uns 10, 11 anos. Ainda nem tinha uma televisão a cores! Ia a correr para casa da minha avó, depois da escola, aos sábados, porque ela tinha televisão a cores, só para ver a Galactica! Eu era FANÁTICA pela Galactica! Coleccionava todas as imagens que apanhava na TV Guia e nos jornais para o meu livro de recortes! Passava a semana na expectativa de ver a Galactica! Por isso não me venham cá com tretas, se alguém merecia uma Battlestar Galactica para adultos, era eu! Porque, convenhamos, a série original era para crianças. Reparem bem no requinte retro deste poster:

"Battlestar Galactica", 1978

E não me estou a queixar da surpresa de que Starbuck, nesta nova série, é uma mulher. É o que me rala menos. Mas outras pessoas poderão ainda suspirar por estes senhores:

Dirk Benedict "Starbuck" e Richard Hatch "Apollo" em "Battlestar Galactica", 1978

Todas as miúdas da escola tinham uma paixoneta assolapada pelo Starbuck! Mas eu não. Eu era a excepção. Eu gostava do Apollo, que era bonzinho, "certinho e direitinho" e bem comportado. Era a única miúda que gostava do Apollo! Sempre achei o Starbuck um gajo irresponsável, mulherengo, que passava as noites em bares a fumar e beber, um gajo com quem não se podia contar emocionalmente. A minha inclinação era toda para o outro, o responsável, o que casou com a Jane Seymour (a viúva "Serina") e adoptou o puto dela. Era um homem assim que eu queria para a minha vida, o meu ideal, porque eu também queria ser certinha direitinha, e era!, mas depois a vida trocou-me as voltas e transformou-me... num Starbuck! E como para doidivanas irresponsável só basta um, está tudo muito bem como está. As voltas que a vida dá!
De regresso à nova série. Passado o choque, até gostei de ver esta Starbuck no feminino! Possivelmente a melhor personagem desta versão de Batttlestar Galactica.
Porque os outros!... Ó deuses de Kobol, que gentinha mais má! Em todos os episódios que vi, até parece que há uma competição entre eles para ver quem consegue matar mais civis! "Estás com pena de ti própria porque mataste uma mulher e uma criança à frente do marido e do pai numa nave civil para lhes confiscares todos os recursos? Isso não é nada! Ainda ontem tive de explodir uma nave civil com umas 1500 pessoas a bordo só porque se desconfiava, nem se tinha a certeza, de que estava comprometida por Cylons! Por isso toca a levantar e seguir em frente e matar mais civis, muito mais civis!" E é isso que eles fazem. Aqueles militares hão-de conseguir dizimar a população civil mais depressa do que os Cylons! E agora já se percebe porque é que os Cylons se revoltaram! Eu também me revoltava!
Odeio, simplesmente odeio, aquela gente toda! Que os deuses de Kobol façam chover um dilúvio dentro daquela nave e que se afundem no espaço! Que os deuses de Kobol nunca permitam que aquela gente encontre a Terra! Que os deuses de Kobol os façam andar perdidos pelo espaço durante 40 anos e que no fim sejam engolidos por um buraco negro! Porque aquela gente era capaz de explodir a Terra sem provas nem certezas, bastava que alguém lhes dissesse que temos cá Cylons, e bum! Ó deuses de Kobol, protegei-nos desta gente! 

Quando ele é ela
O que me dói mais, porque as paixonetas da puberdade são muito a sério e doem, o que me dói mais, é que aquele impostor que se faz passar por Capitão Apollo não é nada o Apollo que eu conheci! Não é, não é, não é! Ela, a Starbuck, está fiel ao original, mas ele, que decepção! O meu Apollo nunca pediria ao Starbuck que ficasse para trás numa missão e se explodisse a si próprio com uma bomba nuclear! O meu Apollo não faria isso! Mais provável, o meu Starbuck ficava para trás contra a vontade do meu Apollo, e sem este saber, para ser um herói e poupar a vida ao amigo. Porque o meu Starbuck era assim. E este não é, não é, não é, este não é o meu Apollo!
Vou continuar a ver a série por puro e simples hate waching. Para quem não está familiarizado com o termo, significa isso mesmo, ver uma série só para odiar. É quase tão bom quanto ver uma série de que se gosta e foi assim que vi todos os episódios de "Under the Dome", que era tão mau que até me fazia rir de tão mau!
Que mais há a dizer de "Battlestar Galactica" 2.0? Adorava, adorava!, que a Starbuck fosse uma Cylon! Porque de toda aquela gente ela é única que parece minimamente humana, logo, deve ser uma máquina. (Ou todos eles são máquinas e ainda não sabem.) Honra lhes seja feita, é a única personagem imediatamente reconhecível da série original:



Quem diria, tantos anos depois, que um dia ainda ia ter uma paixoneta pelo outro, neste caso, pela outra! Cylon ou não, fofa, vem jogar comigo, e traz o charuto! Sem compromisso.


quinta-feira, 10 de março de 2016

The X-Files, versão 2016: Eu não quero acreditar!

 

Eu não quero acreditar que foram exumar o cadáver dos Ficheiros Secretos ao altar incensado onde repousava em paz e sossego para toda a eternidade dos séculos e séculos... para isto!
Deixem-me dizer-vos: fui uma grande fã da série e nunca perdi um único episódio! E nem sequer me considero uma das maiores fãs da série. Havia fanáticos, na altura, que assobiavam o tema dos X-Files, fanáticos que usavam boné dos X-Files! Nunca fui dessas fanáticas, mas nunca perdi um episódio. Tive pelo menos duas bandas sonoras da série e do filme, em CD!, que ainda ouço hoje em dia. A minha experiência com os Ficheiros Secretos foi sentida e visceral, consumida com avidez cerebral e emocional, e por fim integrada nos arquivos do inconsciente activo onde sempre permanecerá como a memória difusa e vaga de algo que marcou e que passou.
Dentro deste tipo de ficção (sobrenatural, horror, fantástico) esta foi simplesmente a série mais importante dos anos 90, uma série que influenciou tudo o que vimos depois, desde "Lost" a "Sobrenatural", desde "Fringe" ao recente "iZombie", e a toda a miríade de séries e filmes, mais ou menos sérios, que despontaram das raízes de conteúdo, estilo e narrativa que "The X-Files" lançou. Mais ou menos subtil, a influência ramificou-se e nunca mais nada seria mesmo.
O primeiro filme ("The X-Files: Fight the Future", 1998) foi bom e no espírito da série. O segundo filme ("The X Files: I Want to Believe", 2008) estragou tudo. Como muitos outros fãs, senti-me defraudada e ludibriada em tudo o que me tinha sido dado a entender dos universos de Mulder e Scully, e não houve nada que me tenha irritado mais do que a revelação de que Mulder e Scully tiveram um filho, e que o tiveram por meios absolutamente naturais (afinal, tinham uma espécie de caso que "nós" nunca vimos), quando tudo na série nos levou a pensar que aquela gravidez era alienígena, e muito mais interessante que o fosse! O segundo filme, assim, abriu um problema muito maior: por que raio é que Scully deu o miúdo para adopção?! Mesmo que fosse um miúdo meio-alien, que raio de solução era essa?! E o Mulder, afinal, o pai biológico, não tinha nada a dizer sobre o assunto? Na minha opinião, grande asneirada da parte do filme.
Gozei aqui com o filme de 2008, e preferi esquecer que alguma vez tinha visto aquilo. O affair, a gravidez normal, a adopção. Nada daquilo fazia sentido. Melhor recordar a grandiosidade dos X-Files quando eram a vanguarda do género.

(Para quem se preocupa com o puto, esta mini-série continua a telenovela. Agora eles estão arrependidos de terem dado o puto para adopção e sentam-se de mão dada a pensar onde ele está. Como se não fossem o Mulder e a Scully, que até extraterrestres encontram se quiserem!... Vão lá procurar os puto e deixem-se de lamúrias, vocês dois!)

Até tremi quando ouvi rumores de que iam fazer uma mini-série. Esta mini-série, de que tratamos aqui. Sinto sempre estes tremores, este frio na barriga, quando me dizem que vão ressuscitar uma grande série ou fazer um remake de um grande filme. Soa-me sempre a vil metal, e a ideia de Chris Carter estar metido nisto ainda me aborreceu mais. Mas, no reverso da moeda, Chris Carter, metido nisto, foi motivo mais do que suficiente para dar o benefício da dúvida. Assim, dei.
E não quero acreditar no que vi! Sei que não estou a avisar os verdadeiros fãs dos X-Files porque esses, como eu, já viram obsessivamente estes seis novos episódios de 2016. Se tivesse de os avisar previamente, diria apenas: "preparem-se, porque é muito mau!" 
Porque é que é mau? Porque só uma grande história, um grande motivo, um grande enredo, justificaria arrancar esta série mítica do túmulo. É verdade que os zombies estão na moda, mas não era preciso fazer regressar os X-Files em versão zombie: ultrapassada, sem ideias, sem interesse, um cadáver que devia ter ficado em repouso. Só a grandeza justificaria o regresso dos X-Files, não esta paródia (?) sem sentido a que assistimos.
Não vou criticar o trabalho de Duchovny e Anderson, mas nem eles me convenceram. Como se nem eles estivessem grandemente convencidos do que estavam a fazer. Li por aí que ele parecia o mesmo personagem de "Californication" mas não posso comentar porque não vi. O que me parece, sem dúvida, é que Anderson ainda não tinha tirado a pele da Bedelia du Maurier de "Hannibal". Não acredito naquela Scully sofisticada, de saia travada e cheia de maquilhagem. O estilo da Scully era clean. Isto, para quem não sabe, significava, nos anos 90, maquilhagem que mal se notava. Não acredito nesta Scully que de repente tem medo do passar dos anos. Não é a minha Scully.
Mas voltemos ao enredo.
No primeiro episódio, contra tudo o que sabemos, Mulder decide deixar de acreditar numa conspiração alienígena! Depois de tudo o que ele viu, decide fingir que não viu nada?... Não se percebe nem é nada típico de Mulder. O Cigarette Smoking Man (que afinal não morreu) regressa ainda mais malévolo, ainda mais repulsivo, e ainda e sempre viciado. Uma das melhores ideias desta mini-série. Não podiam ser X-Files sem o Cigarette Smoking Man.

Não, isto não é a minha raiva à mini-série. Isto é o Mulder a pisar o poster dos X-Files! Não dá mesmo para acreditar!

No segundo episódio, o FBI reabre os Ficheiros Secretos e Mulder e Scully voltam a trabalhar juntos, também não se percebe muito bem porquê.
No terceiro episódio... Bem, o terceiro episódio foi engraçado. Uma paródia, mas engraçado. Gostei do Lagartomem, uma espécie de réptil que foi mordido por um homem e todas as luas cheias se transformava em ser humano. A experiência é bastante traumatizante para o pobre Lagartomem que só queria voltar a ser lagarto, o que é compreensível.
No quarto episódio... Não sei. Desliguei. Isto é, continuei a ver, mas, como naqueles episódios realmente interessantes dos Ficheiros Secretos como os conhecíamos, aconteceu-me um raro fenómeno de dissociação televisiva em que continuei a ver sem ver nada. Fui abduzida. O corpo ficou na cadeira em frente à televisão mas a mente já não estava lá. Só voltei a mim no último episódio, quando em matéria de 15 minutos acontece uma catástrofe pouco convincente (que não revelarei) e vi cenas de carros parados na auto-estrada e toda a gente a tentar fugir ao mesmo tempo sem conseguir ir a lado nenhum. Acordei, porque de repente julguei que estava a ver "The Walking Dead". E pensei:
Definitivamente, se era para trazer de volta os Ficheiros Secretos tinha de ser em grande, tinha de ser épico, tinha de ser superior a tudo o que existe agora como em tempos foi superior a tudo o que havia na altura! Tinha que ser para tornar os Ficheiros Secretos novamente na série preferida dos fãs, a série pela qual se anseia a semana toda, a série que provoca arrepios de antecipação e medo. Não era para fazer episódios a lembrar o "Sobrenatural", nem o "Fringe", nem o "Lost" (aquelas cenas fora da narrativa, de flashback, ou flashforward, ou sonho, ou fantasia, nem percebi) e muito menos a lembrar "The Walking Dead", e inferior! Tinha de ser superior, imensamente superior, ou mais valia não fazerem nada. Até o episódio do Lagartomem, que foi engraçado, não superou as melhores paródias de "Sobrenatural".
E para quê? Por nostalgia? Não. Por mais um punhado de dólares.

O que dizer mais quando o melhor episódio desta série de seis é uma paródia? É o melhor que podemos esperar dos novos Ficheiros Secretos? Comédia?

Não havia uma ideia suficientemente forte para trazer de volta os Ficheiros Secretos e pela estima que tenho à série original desejo sinceramente que a ressurreição fique por aqui. Entretanto, tenciono esquecer-me de tudo o que vi nestes episódios e não deixar que me poluam a recordação de uma das maiores séries de todos os tempos que foi The X-Files.


domingo, 6 de março de 2016

Dark Matter (série TV)


Seis pessoas acordam numa nave espacial à deriva sem que tenham memória de quem são, de onde estão, de onde vêm e para onde vão. Não sabem se são a tripulação, não sabem sequer os seus nomes.
A premissa é suficientemente interessante mas, mal impressionada pela falta de qualidade do canal em geral (SyFy), não comecei a acompanhar imediatamente. Só apanhei a série na repetição, e fiquei agradavelmente surpreendida. Já aqui disse muitas vezes que não sou grande apreciadora de ficção científica, mas sei que a ficção científica tem servido, ao longo da existência do género e nos seus melhores exemplos, para criar obras de grande profundidade filosófica. Não estou a dizer que "Dark Matter" seja uma grande série do género, ou que a premissa seja original (na verdade não sei se é original ou não, não acompanho a produção de ficção científica o suficiente para poder afirmá-lo), mas fiquei agarradíssima desde o primeiro episódio! Parte por opção, parte devido ao baixo orçamento, é uma história que dá primazia às questões filosóficas e psicológicas em detrimento do aparato científico (que não existe, o que poderá desagradar aos fãs mais exigentes que querem ver efeitos especiais e criaturas de outros mundos, mas a mim não me incomoda nada).
A série vive do mistério e do suspense, principalmente do mistério, e para escrever esta crítica terei de fornecer mais elementos além da sinopse, mas acredito que não serão os suficientes para constituírem um spoiler significativo.
Voltemos, então, ao princípio. Seis pessoas (quatro homens, uma mulher e uma adolescente), acordam à deriva numa nave espacial sem saberem quem são e que fazem ali. Mal começam a perceber a sua situação quando um deles reanima uma andróide que encontra na nave, desconhecendo que esta está programada para matá-los. Conseguem travar e reprogramar a Andróide, mas esta reprogramação também lhe apaga a memória, colocando-a na mesma situação dos passageiros humanos. As únicas pistas que encontram são em vestígios de ficheiros apagados e corrompidos no computador central, que lhes confirmam que eles são de facto a tripulação da nave em que se encontram. Mais ainda, alguém, muito provavelmente um deles, utilizou um programa/vírus que apagou a memória a todos os outros e, talvez por erro, a sua própria.
Só este enredo bastava para um thriller de suspeita e tensão, em que todos os membros da tripulação se podiam acabar a matar uns aos outros. A série não foi por aí. Tudo isto aconteceu no primeiro episódio, quando de repente são atacados por um inimigo desconhecido, antes ainda de saberem quem são. O que os põe, imediatamente, e literalmente, no mesmo barco (nave). Os nossos passageiros amnésicos só têm tempo de respirar um pouco depois, quando entretanto a Andróide já tinha conseguido recuperar mais ficheiros apagados sobre as suas identidades. É o grande choque: quase todos são criminosos perigosos e procurados. Tirando a adolescente, todos eles são assassinos, ou assim dizem os ficheiros.
Tem sido uma das perguntas mais intrigantes da história da filosofia e da psicologia: a tábua rasa. Hoje sabemos que o ser humano não nasce uma "tábua rasa". No mínimo dos mínimos, o ser humano traz consigo uma herança genética. Ainda há muita controvérsia, no entanto, acerca de se o ser humano já nasce com uma personalidade ou se esta personalidade é moldada pela influência do meio. Da minha observação e experiência pessoais, sim, penso que o ser humano já nasce com uma "tendência de personalidade", por vezes até antagónica ao meio, mas há quem não acredite nisto, e, não sendo ético fazer experiências em seres humanos (desde bebés) de modo a prová-lo, o debate persiste.
O que esta série pergunta, neste momento crucial, é igualmente intrigante. Temos aqui cinco espécimes a quem é dito que são criminosos. Sem a memória de experiências passadas, sem a memória dos constrangimentos de infância e influências da adolescência, sem memórias da educação e dos princípios incutidos ao longo da vida, confrontados com a oportunidade de começar do zero, fazer tábua rasa, e mudar de vida, o que decidem fazer?
O que nos leva à pergunta mais intrigante, se não a mais importante de todas: o ser humano nasce inerentemente bom, ou inerentemente mau, ou as suas tendências morais dependem inteiramente da influência do meio?
A série parece defender a tese de que o ser humano nasce inerentemente bom, porque ao verem os ficheiros os nossos personagens reagem com perplexidade e choque, como se não pudessem ter ficado mais surpreendidos, se não mesmo ofendidos. Nenhum deles parece reconhecer-se nas acusações que lhes são imputadas. (Ou alguém ali finge muito bem!)


Mais tarde, têm a oportunidade de ajudar uns completos estranhos numa situação desesperada. É o primeiro teste. Virão à superfície as criaturas egoístas que alguém diz que são, ou reagirão com o altruísmo desinteressado que contradiz as acusações por que são procurados?
Certas escolas de pensamento defendem que ninguém nasce "mau", que é o meio que empurra o indivíduo para acções condenáveis. Um indivíduo neste momento de libertação, de "renascimento", um indivíduo que não se lembra do meio nem das experiências passadas, voltará ao seu estado inicial "bom", ou nada fará senão manifestar as mesmas más tendências que o conduziram onde terminou antes da perda de memória? Isto é muito interessante, e é a questão fulcral em "Dark Matter".
Um dos personagens destaca-se pelo seu egoísmo. Vou chamar-lhe o Egoísta (embora os personagens tenham sido "baptizados" pela ordem em que acordaram do hipersono: Um, Dois, Três, Quatro, Cinco, Seis, e a Andróide). Este é o Três, mas eu não gosto de chamar números às pessoas e Egoísta diz muito mais dele. Pois, a tripulação punha a hipótese de vender a nave e dividir o dinheiro por todos, mas a maioria opôs-se. O homem ficou irritado porque queria pôr-se dali para fora e depressa, e diz algo assim: "Mas temos de ficar juntos porquê?! Somos seis estranhos e um robô!" Era exactamente o que eu pensaria. Só a ideia de ficar fechada em qualquer lugar com cinco estranhos provoca-me um ataque de nervos. O Egoísta vai falar com o Samurai (Quatro), tão ou mais egoísta do que o Egoísta, na tentativa de obter apoio para a ideia de vender a nave, quando o Samurai lhe explica que também não tem interesse nenhum em ficar ali, com cinco estranhos e um robô, mas "ainda é muito cedo". O Samurai pretende ficar até conseguir descobrir mais sobre a sua identidade, e não vai deixar os outros enquanto acreditar que juntos têm mais hipóteses de perceber o que se passou. O que é razoável, e até o Egoísta concorda, mas pôs-me a pensar noutra dimensão existencial deste problema. Aquele instante, inicial, de liberdade do indivíduo, terminou no momento em que os personagens se confrontaram com o mundo. Independentemente de serem criminosos ou não, independentemente do que pensam das acusações que lhe são feitas, é aquilo que o mundo, aparentemente, pensa deles, que introduz consequências que imediatamente limitam a liberdade individual, e não durou muito o instante de libertação em que o indivíduo podia ser tudo o que desejava. O indivíduo, em contacto com a sociedade, apenas é livre interiormente. Não é livre da maneira como a sociedade o vê, justa ou injustamente, e a sociedade fatalmente cerceia a liberdade individual.
Então, porque é que as pessoas se juntam? Porque é que aturam a família, os colegas de escola, os colegas de trabalho, até alguns amigos de conveniência? Não, não é porque o ser humano é um animal gregário e gosta muito de companhia. Ficamos juntos porque precisamos uns dos outros. Para sobreviver. O ser humano é um animal gregário porque há força nos números, porque desde tempos primitivos era necessário uma tribo para caçar um mamute e proteger o território de outras tribos, e da mesma maneira ainda hoje nos submetemos a viver debaixo do mesmo tecto com famílias que detestamos, e frequentar escolas e cursos que abominamos, e ir trabalhar porque precisamos de um meio de sobrevivência. A liberdade total só existe em estado selvagem, na selva, que é possível mas dá muito trabalho.
Os nossos personagens continuam amnésicos e indefinidos, tendo ainda a liberdade individual de escolherem o futuro, mas o momento inicial de liberdade absoluta já tinha passado e agora forçosamente têm de resolver primeiro o passado, assim que o descobrirem.
É interessantíssimo assistir a como aquele grupo de estranhos começa imediatamente com os joguinhos que tornam a insuportável a coexistência humana: os segredinhos, os golpes de poder, a manipulação. Fantástico, e ainda antes de se conhecerem a si próprios muito menos uns aos outros! Só por isto já vale bem a pena ver e eu diverti-me imenso!
"Dark Matter" pode não ser uma série de excepcional qualidade (nem tem os meios para isso) mas está muito acima de outras séries medíocres que têm saído de origens mais respeitáveis: "Under the Dome", "Sleepy Hollow", "The Strain"...
Por falar em "The Strain", não podia ter tomado melhor decisão o actor Roger Cross ao deixar-se decapitar por Setrakian, porque o personagem dele não ia a lado nenhum (nem a série, convenhamos) quando o aguardava um melhor papel como Six em "Dark Matter". Até Natalie Brown, actriz que interpreta uma personagem principal em "The Strain" (é a mamã vampira), arranjou tempo para figurar como convidada especial num episódio de "Dark Matter", o que nos diz muito sobre o ritmo -a falta de ritmo- que "The Strain" impõe tanto aos actores como aos pobres espectadores. E quando comparamos o que em princípio nem devia ter comparação, "Dark Matter", pelo menos, consegue manter o suspense de um episódio para o seguinte. É daquelas séries que apetece ver toda de uma vez. Assistir a "The Strain", pelo contrário, já se tornou um castigo masoquista.

Não é mau, mas podia ser melhor, mas não é mau
A série acabou com um choque! Um choque tão mal explicado e imprevisto que foi um alívio saber que renovaram para uma nova temporada. Podia ter acabado assim, e os espectadores podiam ter ficado para sempre a tecer explicações e conjecturas, mas quem é que quer isso? Por outro lado, eu talvez preferisse que a série tivesse resolvido a história nos 13 episódios, e terminasse ali. Notou-se, nesta primeira temporada, que houve muito "encher de chouriços", embora efectivamente bem justificados e disfarçados nos episódios em que foi necessário desenvolver os personagens de quem não sabíamos nada (nem eles deles próprios!). Receio, por isso, que a segunda temporada se torne ainda mais arrastada, que tem sido um mal generalizado a certas séries que começam com uma boa ideia e que depois se põem a fazer render o peixe enquanto houver audiência, o que transforma a boa ideia numa seca insuportável.
Terminada, então, esta primeira temporada, posso dizer que ficou abaixo das minhas expectativas. Tudo aqui indicava um drama psicológico e filosófico (e podia tê-lo sido, ao nível das melhores obras do género), mas demasiadas vezes a série enveredou por cenas de acção "rambóides" (até zombies isto meteu!) que só serviram para baixar o nível. Pode ser uma opinião, mas é a minha. Já não me queixo, todavia, do sentido de humor desta série. Muitas das piadas são subtis ou acontecem quando menos se espera. Uma das minhas preferidas, por exemplo, quando um dos personagens diz a outro: "A raiva não adianta". E o outro pergunta: "Estás a falar comigo?" E o primeiro responde: "Não. Estou a falar com o banco passivo-agressivo vazio a teu lado." Não é toda a gente que percebe estas piadas, e eu gosto disso. Existe inteligência por trás desta série, por muito que mascarada pelas necessidade de acção que entretenha a audiência menos... intelectual.
Por fim, o  que não será exactamente um spoiler porque nunca passou de uma conjectura minha, sempre pensei que o título "Dark Matter" significava que eles teriam perdido a memória ao passarem inadvertidamente por um qualquer campo "magnético" (ou afins) ainda desconhecido da ciência que tivesse esse efeito no cérebro humano. Afinal não era nada disso, e parece que o próprio título "Dark Matter" é simbólico e se refere à obscuridade em que ainda não sabemos muito sobre o cérebro, nem sobre o que nele guarda a memória ou a identidade, aquilo a que se chama alma. Como diz um dos personagens: "Compreendo que alguns de nós foram conduzidos a isto devido às circunstâncias, mas há pessoas que já nascem más e nunca mudarão." E como diz outro personagem: "No fim, acabamos sempre por ser quem somos". Quem discordar que argumente.
"Dark Matter" tenta demonstrar isso mesmo, como da amnésia cada um dos personagens regressa à sua essência, seja ela qual for, boa ou má ou nem uma nem outra. Não é uma série excepcional, mas consegue prender-nos de episódio para episódio e eu estou em pulgas pela segunda temporada. Em termos de narrativa baseada no mistério e no suspense, é o mínimo que se pode pedir e recomendo.
Um último destaque, muito especial, para a cena inicial do primeiro episódio da série. Se ainda não viram, reparem. Se já viram e não repararam, observem outra vez. A nave à deriva no espaço, completamente apagada, sem qualquer sinal de vida, transmite vibrações de Nostromo, numa homenagem a "Aliens". Homenagem que não é única, a "Aliens" e a outras obras míticas da ficção científica, mas esta primeira cena em especial promete-nos que não vamos assistir a uma série qualquer. Podia ser melhor? Podia ser muito melhor, mas funciona.