domingo, 31 de outubro de 2021

Bates Motel (2013–2017)

[contém alguns spoilers]

Quando vemos as duas primeiras temporadas de ”Bates Motel” podemos ter a sensação errada de que servem para encher chouriços. Afinal, toda a gente conhece a história e sabe como vai acabar. Só resta saber como é que se vai chegar lá. Como é que aquele rapazinho amoroso se vai transformar no louco assassino Norman Bates.
No entanto, ao rever estas mesmas temporadas compreendemos a sua importância, e que nos mostram como era a vida “normal” da família Bates antes de tudo descambar numa espiral trágica de destruição. E até percebemos outra coisa, que o jovem actor Freddie Highmore já mostra em Norman um distanciamento dos outros, um pouco à-vontade, uma série de tiques que pareciam normais num rapaz de 17 anos mas que prenunciavam algo de muito mais grave.
Quem diria que seria Dylan, o meio-irmão de Norman e igualmente filho de Norma, que nem sequer existe no filme, a resolver tudo no fim?
Estas primeiras temporadas, com os seus enredos de traficantes de droga (e não só) mostram-nos que por muito disfuncional que seja o submundo do crime, não existe nada mais disfuncional em White Pine Bay do que o que se passa em casa dos Bates. É entre aquelas quatro paredes da casa icónica sobranceira ao motel que o drama ferve, todos os episódios.
Chegamos à terceira temporada e a família disfuncional começa a desagregar-se de maneiras que nunca poderíamos ter adivinhado. De “apagão” em ”apagão”, Norman transforma-se num assassino. Continuamos a empatizar com ele porque Norman também não sabe quem é quando perde a consciência. Foi arrepiante observar como Freddie Highmore se transforma de Norman em Norma em frente ao psiquiatra. Foi arrepiante descobrir que alguns destes encontros com o psiquiatra só aconteceram na cabeça de Norman. Foi arrepiante sabermos que a certa altura Norman saía de casa e comportava-se como Norma, sem que de tal tivesse consciência.
Chegamos à quarta temporada e é altura de a série nos partir o coração. Longe da influência de Norman (que está institucionalizado), Norma e Romero apaixonam-se, e por uma vez na vida Norma experimenta uma relação normal. Se isto não fosse uma tragédia, até poderíamos sonhar com um final feliz. Norma e Romero estão felizes. Romero está tão apaixonado e empenhado na relação que casa com Norma de um dia para o outro, para ela ter seguro para poder internar Norman numa instituição de luxo. Mas é claro que Norman não fica nada feliz quando descobre que a mãe casou com “outro” homem. Como ele próprio diz à mãe: “Nada disto é normal. Éramos só nós dois, lembras-te? O cordão que nos unia para sempre? E agora pões-me de parte como se eu não fosse importante para ti?” Ele tem razão. Muita da culpa da relação disfuncional mãe/filho é efectivamente de Norma. Quando ela se quis afastar, Norman não abriu mão dela. Há muito tempo que aquela relação era tudo menos normal. Por exemplo, foi tudo tão rápido que Norma não quer contar a Norman que se casou, e que se casou principalmente por causa dele, para ter direito ao seguro de Romero, e manda o marido embora por umas noites até ter tempo de explicar o casamento ao filho. Logo nessa noite, Norman está a dormir na cama dela.
Nunca há incesto, de forma alguma. A possessividade de Norman em relação à mãe é de outra natureza, uma natureza que um rapaz mentalmente equilibrado conseguiria ultrapassar, mas Norman não é um rapaz equilibrado. Pela primeira vez, vira a sua fúria contra a mãe. Norma foi avisada, tanto pelo filho Dylan como pelo marido Romero, e chegam a encontrar-se os dois para decidirem um plano de acção. Mas, como eles dizem, Norma é cega em relação a Norman e prefere rejeitá-los a aceitar ajuda contra o filho. O único resultado é a tragédia.
Na quinta temporada, Romero quer vingança. Por sorte de Norman, Romero não a consegue de imediato, deixando o novo assassino em série liberto para continuar o seu reino de terror durante mais algum tempo. Este sim, é o Norman Bates que nós já conhecemos do filme “Psycho” (embora mais novo), com a cena do chuveiro e tudo.
Mas não se pense que Norma (Vera Farmiga) sai de cena. Norma está sempre presente, um alter ego de Norman que “toma controlo da situação” quando Norman se sente assoberbado. Norma, personalidade secreta de Norman, mata para o proteger. Por esta altura, Norman está completamente descontrolado, vivendo num mundo de fantasia na sua cabeça em que Norma está viva, em que até põe comida, todos os dias, à sua cadela que ele próprio empalhou depois de atropelada. É a personalidade completamente desagregada.
Valeu a pena ver as primeiras temporadas, como eu dizia, para percebermos como é que se chegou aqui. Não de um momento para o outro mas passo a passo, observando o miúdo adorável de 17 anos transformar-se num serial killer confuso e desorganizado que mal consegue esconder o que está a fazer.
E depois temos Vera Farmiga, uma força da natureza, tão boa no papel de morta como o era no papel de viva. Porque às vezes o que nos perturba mais são os pormenores: a cozinha de pantanas, a tigela de cão a transbordar, os jantares em que Norman insiste em pôr dois pratos, as conversas em que Norma é incluída embora lá não esteja. Verdadeiramente arrepiante. Conseguimos sentir e partilhar o terror ou desconforto, conforme, de quem se apercebe da situação em que caiu.
Quem diria que o que começou tão normalmente, mãe e filho a chegarem a uma casa nova para gerir o negócio do hotel, ia acabar em tal insanidade? Uma insanidade que nós vamos acompanhando e compreendendo, como se Norman, ele próprio, fosse um edifício que vai ruindo aos poucos até já nem restarem alicerces onde se apoiar.
Recomendo esta grande série e direi mesmo que as três últimas temporadas são imperdíveis para os amantes do género. Se já antes conhecíamos Norman Bates, nunca o olharemos da mesma maneira.



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