quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Lançamentos Abismo Humano

Aproveitamos o fim do ano para destacar alguns dos lançamentos Abismo Humano ao longo de 2013. Optando pela brevidade, apontam-se os traços fortes de cada projecto e convida-se a visita ao respectivo link para uma merecida e atenta audição.


 

Advent Mechanism "Umbra" 

Na sequência de "Shadows of Nothing", este é o novo álbum dos Advent Mechanism entre a sonoridade electrónica, gótica e industrial.

abismohumano.bandcamp.com/album/umbra





Cotard Delusion "I"



Cotard Delusion "Fallen Soldiers"

"I", primeiro álbum de Cotard Delusion, e o seu sucessor, "Fallen Soldiers", lançado a curto espaço do anterior, sugerem-nos uma ambiência dark ambiental, neo folk e industrial.

abismohumano.bandcamp.com/album/i

abismohumano.bandcamp.com/album/fallen-soldiers





The Dream Collision "The World Ends, The World Begins"

Projecto a solo de Pedro Code com facetas de alternativo, ambiente, dark wave, ou ethereal. Último lançamento discográfico Abismo Humano do ano com festa marcada para 4 de Janeiro na Taberna da Malu, em Lisboa.

abismohumano.bandcamp.com/album/the-world-ends-the-world-begins







"O Suor das Feras e o Silêncio"

Por último, mas definitivamente "not least", esta proposta incomum que envolve a narrativa poética "O Suor das Feras e o Silêncio", de Luiza Nilo Nunes, na esfera ambiental de Babalith. O resultado desta "ilustração musical" é muito bem conseguido. As vozes interpretativas, queixosas, gritantes, ecoantes, rodeadas de efeitos sonoros adequadamente pesados, dão um inesperado corpo à poesia da narrativa que possivelmente não se obteria da mera leitura das palavras sozinhas, como as conhecemos, letras no papel.

abismohumano.bandcamp.com/album/o-suor-das-feras




segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobrenatural ("Supernatural")



Quando comecei a ver a série “Sobrenatural” (original “Supernatural”), há mais anos de que me lembro e ainda na RTP2 (que aparentemente já não tem dinheiro para comprar o resto), os primeiros episódios levaram-me a crer que ia ser uma série dramática. Dois irmãos são atormentados por uma tragédia de infância, quando perdem a mãe, queimada viva, no tecto, por um demónio. Filhos de um caçador de monstros, dos dois irmãos apenas Dean (Jensen Ackles) aceita continuar a tradição de família. O irmão mais novo, Sam (Jared Padalecki), rejeita-a, e tenta escapar-lhe, sem sucesso, pois também a sua namorada encontra o mesmo destino que vitimara a sua mãe, às mãos do mesmo demónio, que os persegue. Os dois irmãos reúnem-se no esforço de o derrotar.
Dean idolatra o pai. Sam ressente-se da vida de caçador que nunca lhe permitiu uma infância normal. O conflito acerca do pai, já desaparecido, confirmava a interacção dramática entre os dois irmãos.
Devo ter sido das pessoas mais desgostadas ao perceber que rapidamente a série seguiu o caminho mais fácil: dois energúmenos a caçar monstros. Até com os personagens fiquei decepcionada. A princípio, Sam era o inteligente, o rapaz universitário, e Dean era o bronco. Com o desenvolver das temporadas, Sam torna-se quase tão bronco como o irmão… e Dean continua bronco. Em suma, ficam iguais. As companhias também não são melhores, a um ponto que gera inverosimilhança: os caçadores que aparecem em “Sobrenatural” não têm uma educação formal (o único que frequenta a universidade até é Sam), mas um homem vulgar como Bobby (Jim Beaver), dono de um ferro velho e recrutado para a profissão já em idade adulta, mostra-se subitamente versado em latim e outras linguagens e códigos obscuros! Possui mesmo uma biblioteca de fazer inveja a qualquer mestre do oculto. Como se diz na série, “seriously?”…
Continuei sempre a ver, pela vertente do entretenimento acéfalo, e pelos monstros. Duas ou três temporadas disto. Só pela quarta temporada é que as coisas começam a aquecer. Não sei se finalmente deram rédea solta aos autores, ou se a série se encontrava em sério risco de ser cancelada por se encontrar esgotada a fórmula e não havia alternativa senão arriscar por caminhos mais ousados.


Temporada cinco: supremo apocalipse

Ainda bem que o fizeram, porque é aqui que o enredo se adensa. Esta é a insuperável quinta temporada, alucinante, vertiginosa, escatológica, que abre literalmente as portas do Inferno! Os dois irmãos, durante este tempo todo, nem desconfiavam da sua importância. Sam, em pequeno, bebeu sangue do demónio Azazel, porque Sam está “marcado”. Sam e Dean estão destinados a desempenhar um papel cósmico: são eles que, querendo ou não, vão despoletar o Apocalipse.
Se os irmãos Winchester estão habituados a lidar com demónios, que são maus, agora começam também a lidar também com anjos, que não são melhores e querem cumprir as profecias bíblicas ao pormenor. Lúcifer e Miguel (o arcanjo) vão literalmente defrontar-se no Armagedão, usando por receptáculos os corpos de Sam e Dean, para o que estes têm de dar o seu consentimento. (Lúcifer, em "Sobrenatural", ao contrário da crença geral, sendo um anjo, não pode possuir um corpo sem consentimento do ocupante.) Sam e Dean têm de consentir (nem que seja à força) e os anjos têm as suas sinistras maneiras de os “convencer”. Serafins, querubins, assediam-nos. Lúcifer, liberto do Inferno, assedia-os. Não existe alternativa senão travar o Apocalipse e mandar Lúcifer de volta para o Inferno.
Os irmãos têm a ajuda do confuso anjo Castiel (Misha Collins)… Que merece mais algumas palavras. Não me recordo exactamente de quando Castiel entra na série mas julgo que terá sido ainda na temporada anterior (a quarta), tentando convencer Sam e Dean a impedirem os eventos conducentes à libertação de Lúcifer. O que acaba por acontecer, involuntariamente, pois a informação que os irmãos detêm está errada e são manipulados a quebrar o último selo antes do Apocalipse. Castiel é apenas um anjo, fervoroso, fiel, que desconhece o livre arbítrio mas sofre de dilemas existenciais. Acontece que Deus se ausentou do Céu, ninguém sabe onde Ele pára, e ninguém sabe o que fazer excepto continuar com o plano bíblico. Castiel começa a agir pela sua própria cabeça, pela primeira vez, e ao ajudar os dois irmãos torna-se alvo da ira dos seus superiores, serafins e querubins. Castiel, apenas “um anjo do senhor” não passa de um zé-ninguém na hierarquia celestial. Podia ter sido imediatamente fulminado, se lhe prestassem atenção, mas subestimam-no, como subestimam aos irmãos Winchester. Grande erro! E se trabalham em equipa, erro colossal! Não é por nada que na temporada seguinte o demónio Crowley pergunta retoricamente “mas serei o único que não subestima aqueles dois pesadelos vestidos de ganga?!” Crowley sabe bem do que a casa gasta.


Crowley, o detestável/adorável demónio



É exactamente o demónio Crowley (uma impagável interpretação de Mark Sheppard) quem se torna um inesperado aliado dos irmãos Winchester na sua tentativa de derrotar Lúcifer. O demónio Crowley, igualmente um zé-ninguém da hierarquia infernal, um diabeco cuja ocupação é estabelecer pactos em encruzilhadas, com um beijo na boca (homem ou mulher, o beijo é o mesmo, aliás, um dos atractivos da série é perceber qual é exactamente a inclinação sexual de Crowley, nada fácil de detectar!), descobre que a intenção do big boss (Lúcifer), ao ser libertado, é destruir todos os demónios criados desde o seu aprisionamento, que este abomina visceralmente. (Lúcifer, em “Sobrenatural”, não é um diabo de pés de cabra, mas o anjo, caído e condenado ao Inferno; condenado ao inferno,  mas um anjo ainda assim). Crowley, sem nunca fazer parte da “equipa”, não deixa de ser um elemento essencial, porque nada mais lhe importa do que meter Lúcifer de volta no buraco. Neste momento de tudo por tudo, os irmãos Winchester, anjos e demónios são aliados.
É desta forma que Sam e Dean, antes limitados ao obscuro conhecimento enciclopédico e buscas online e ao armamento improvisado de balas de ferro e de sal, começam a receber informação e ajuda sobrenatural do Céu e do Inferno. Com tais personagens, a série tinha de se tornar transcendente.
É nesta temporada que acontece o único episódio que causa arrepios. Lúcifer, liberto do Inferno, precisa de um receptáculo. Encontra-o num homem amargurado que tinha perdido a mulher e o filho bebé num assalto. Sitiando a sua presa, com visões fantasmagóricas e sonhos (o que consiste, na concepção medieval, na obsessão que precede a possessão) Lúcifer alimenta-lhe a raiva e o desespero até obter o seu consentimento para lhe possuir o corpo, prometendo vingança. Um grande papel de Mark Pellegrino (que já tinha sido o Jacob de “Lost”) e momentos dignos de um filme de terror. Seriously!
A partir daqui, Lúcifer começa a perseguir o seu verdadeiro receptáculo, Sam, que vai defrontar Dean, possuído pelo arcanjo Miguel, na batalha do Armagedão. Nenhum dos irmãos quer ouvir falar em tal coisa! Descobrem que o feitiço para reabrir a jaula de Lúcifer (que involuntariamente tinham aberto), passa por recolher os quatro anéis dos quatro cavaleiros do Apocalipse: a Guerra, a Pestilência, a Fome, e a Morte. Vivem-se os tempos do fim e os quatro cavaleiros já andam no mundo. Sam e Dean procuram-nos e acabam por encontrá-los. Todas as prestações dos actores convidados que interpretam os Cavaleiros são formidáveis, mas é impossível não salientar uma.
Um dos melhores episódios de “Sobrenatural”, senão um dos melhores episódios de todas as séries de sempre, a lembrar o “filme sério”, é aquele em que Dean se encontra com a Morte numa pizzaria.


Dean encontra a Morte numa pizzaria


A Morte, um tipo alto, de sobretudo preto, de aspecto sinistro mas indistinto entre um agente funerário, um chefe da Máfia ou um caixeiro viajante, mas um fulano civilizado e inteligente, tem com Dean uma soberba conversa filosófica, enquanto come pizza, em que afirma: “Tudo começa e tudo acaba, menos eu. Um dia, Deus, também, será ceifado”. Ora, porque é que isto (e muitas outras blasfémias que aparecem na temporada cinco) não ocasionou uma verdadeira onda de fanatismo dos “jesus lovers” a exigir que "Sobrenatural" fosse tirado do ar? Muito simples. Porque "Sobrenatural" tem dois tipos de fãs: os que não percebem, e os que não se interessam.
Da mesma forma, Deus também aparece na quinta temporada, como personagem, muito disfarçadamente, mas não vou dizer mais do que isto. Deixo apenas a mesma pista oferecida pelo jardineiro do Céu a Sam e Dean, quando Dean e Sam morrem e vão para o Céu (mas voltam), de que Deus está na Terra. Ele está lá, é uma questão de o procurar.
(Este é também um dos melhores episódios da série, numa sequência de muitos. Sam e Dean, no Céu, a fugir, a pé, de anjos! E conseguem! Com a ajuda do jardineiro, o único que ainda está em contacto com o Patrão. Existe aqui também uma leitura política, para além da leitura religiosa ortodoxa: Deus já não fala com a arrogante hierarquia do Céu, mas fala com o mais pequenino, o jardineiro; da mesma forma, Deus intervém ao ajudar os pobres de espírito, Sam e Dean. Deus abandona os grandes mas protege os fracos. Nada disto é acéfalo e a mensagem está lá, quer se queira acreditar que é religiosa ou apenas política, para quem a quiser entender.)
“Sobrenatural” é por isso uma série com muitos níveis de interpretação: uma série de acção com monstros, uma série de acção com humor, uma série de acção com humor muito inteligente, político e actual (mas já não atingido pela maioria), uma série de acção com humor e questões filosóficas (ainda menos atingida apesar da simplicidade da abordagem).
Não sem sacrifício, Sam e Dean derrotam Lúcifer, os anjos todos, serafins e querubins e arcanjos, anulam as profecias bíblicas, e impedem o Apocalipse!


Temporada seis: a desbunda continua

Quando terminou a temporada cinco, fiquei perfeitamente convencida de que era o fim da série. Foi de facto uma grande surpresa quando descobri uma temporada seis. E tive medo. Tive muito medo que após uma temporada tão espectacular não fosse possível fazer melhor e que talvez não fosse boa ideia continuar. Comecei a ver na expectativa de que ia ficar desiludida.
Não fiquei desiludida. Antes pelo contrário! Ainda estou de boca aberta pelo nível de qualidade que foi mantido! Depois da temporada cinco (soberba) os autores sabiam que já podiam fazer tudo o que lhes apetecesse. Já não havia nada a provar. A temporada seis continua a abordagem da guerra no Céu, o anjo Castiel toma algumas más decisões, o demónio Crowley é mais engraçado do que nunca (uma das personagens mais marcantes da série que perderia muito se ele desaparecesse), e o resto é uma grande desbunda que me fez rir algumas vezes.


Castiel, promovido a manda-chuva do Céu, estabelece um acordo com o novo rei do Inferno, Crowley. Não acaba bem.


Saliento o episódio 15, em que Sam e Dean são transportados para uma realidade alternativa… que é a nossa, em que a vida deles é uma série de televisão. Hilariante! Confesso que adoro todo este tipo de interacção surreal entre personagens reais e fictícias. Para não variar, os fãs da série dividiram-se. Muitos adoraram, muitos detestaram. (Como eu dizia acima, não é para todos.) A vertente filosófica gira agora em torno das almas. Diz um anjo, inimigo de Castiel (não esquecer a guerra pós-apocalíptica no Céu) que os persegue até esta realidade, a um aterrorizado Misha Collins a fazer o papel de si próprio: “Como é que suportam viver aqui, sem Deus, sem alma, sem nada superior a vós? Matar-te é um favor que te faço!”, e mata mesmo. E não deixa de ter razão.

Misha Collins interpreta o actor Misha Collins nos bastidores da série "Sobrenatural" de uma realidade alternativa em que Misha Collins interpreta o anjo Castiel


Sam regressa do inferno mas regressa sem alma. É curiosa a interpretação filosófica com que é definida a alma, porque não o torna falho de consciência, antes o transforma em algo mais semelhante a um robot para quem os fins justificam os meios, não para seu proveito pessoal mas porque está “programado” para caçar monstros nem que tenha de matar os inocentes que se metam à frente… Falta-lhe a compaixão, mas não é por motivos egoístas que age (como um sociopata); é o “exterminador implacável” que tem uma missão a executar sem sentimentos a inibi-lo. Interessante definição de alma, à parte as controvérsias.
“Sobrenatural” tornou-se uma das minhas séries preferidas. Sei sempre que vou passar um bom bocado, cheio de humor inteligente que me diverte e de questões filosóficas que me fazem pensar. Lamento que a genialidade de “Sobrenatural” não seja reconhecida e que a série seja encarada apenas pela vertente do entretenimento pouco sério: fazer uma série aparentemente tão simples, tão fácil de absorver, e ao mesmo tempo tão profunda, não é trabalho fácil nem para todos.
Manter a qualidade, após a suprema temporada cinco, ainda menos. Posso apenas desejar que a série, que vai já na temporada oito, saiba não esgotar as ideias e terminar no momento certo, nem antes nem depois. Enquanto isso, vou ser fã. Seriously!




domingo, 24 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Conclusão

Quando comecei a fazer esta série de comentários não contava escrever uma conclusão. Mas o “O Livro dos Espíritos” é uma obra religiosa e merece alguns reparos finais.

Se alguma coisa do que aqui disse ofendeu ou melindrou ou desgostou qualquer espírita praticante (que tenha aqui chegado, por exemplo, através de uma busca qualquer), nunca foi essa a intenção. Os meus comentários inscrevem-se no estilo do blog, sempre crítico e sempre sarcástico e sem papas na língua, mas respeito todas as religiões que pugnem pelo Bem, independentemente das minhas opiniões pessoais.
Simpatizo com o Espiritismo, e penso mesmo ler mais obras da doutrina, mas não é caminho para mim. Se por agora ou para sempre, não sei.

Se alguma coisa do que disse ofendeu algum Espírito (ainda desencarnado ou já reincarnado), bem, vamos ter muito tempo de resolver essas diferenças, um dia mais tarde, certo?

Se alguma coisa do que disse ofendeu Deus... Então ninguém tem nada a ver com isso. É entre mim e Ele.


Gostei, confesso, destas conversas com Espíritos que as ditaram algures antes de 1857, e das discrepâncias e das semelhanças de ideias entre nós apesar de mais de um século nos separar. Toda esta serie de posts foi previamente agendada, pelo que não sei, no momento em que escrevo, se mais pessoas se juntaram às conversas. Por acaso teria apreciado que a série de posts tivesse suscitado comentários. Quando chegarmos a este momento, no futuro, se verá.
Algo está muito mal quando as conversas mias interessantes que alguém consegue ter é consigo mesmo. Era bom que mais alguém as apreciasse.

É tudo.
Que a leitura de “O Livro dos Espíritos” faça os seus leitores pensarem, e meditarem, e concluírem.





quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Morte

O tema é a morte. Vou deixar falar os mortos.

Capítulo “Lei da destruição”


Uma vez que a morte deve nos conduzir a uma vida melhor, que nos livra dos males desta, e, por isso, mais deveria ser desejada do que temida, porque o homem tem um horror instintivo que o faz temê-la? [pergunta]
– Já dissemos, o homem deve procurar prolongar a vida para cumprir sua tarefa; eis porque Deus lhe deu o instinto de conservação, que o sustenta nas provas; sem isso, muitas vezes se deixaria levar pelo desencorajamento. A voz secreta que o faz temer a morte lhe diz que ainda pode fazer alguma coisa para o seu adiantamento. Quando um perigo o ameaça, é uma advertência para que aproveite o tempo e a morada que Deus lhe concede. Mas, ingrato! Rende mais vezes graças à sua estrela do que ao seu Criador.

Nunca tinha pensado nisto assim: prolongar a vida para cumprir a tarefa.


Capítulo “Fatalidade”


Haverá fatalidade nos acontecimentos da vida, conforme o sentido que se dá a essa apalavra, ou seja, todos os acontecimentos são predeterminados? Nesse caso, como fica o livre-arbítrio? [pergunta]
– A fatalidade existe apenas na escolha que o Espírito fez ao encarnar e suportar esta ou aquela prova. E da escolha resulta uma espécie de destino, que é a própria consequência da posição que ele próprio escolheu e em que se acha. Falo das provas de natureza física, porque, quanto às de natureza moral e às tentações, o Espírito, ao conservar o seu livre-arbítrio quanto ao bem e ao mal, é sempre senhor para ceder ou resistir. (…)

Há pessoas que parecem ser perseguidas por uma fatalidade, independentemente do seu modo de agir; a infelicidade não é um destino? [pergunta]
– São, talvez, provas que devem suportar e que escolheram. Mas definitivamente não deveis acusar o destino pelo que, frequentemente, é apenas a consequência de vossas próprias faltas. Nos males que vos afligem, esforçai-vos para que vossa consciência seja pura, e já vos sentireis bastante consolados.

O Espírito sabe por antecipação como desencarnará? [pergunta]
– Sabe que o género de vida escolhido o expõe a desencarnar mais de uma maneira do que de outra. Sabe igualmente quais as lutas que terá de enfrentar para evitá-la e, se Deus o permitir, não fracassará.

Há homens que enfrentam os perigos dos combates com a convicção de que a sua hora não chegou; há algum fundamento nessa confiança? [pergunta]
– Frequentemente, o homem tem o pressentimento do seu fim, como pode ter o de que não morrerá ainda. Esse pressentimento vem por meio dos seus protectores*, que querem adverti-lo para estar pronto para partir, ou estimulam sua coragem nos momentos em que é mais necessária. Pode vir ainda pela intuição que tem da existência escolhida, ou da missão que aceitou e sabe que deve cumprir.

* Espíritos protectores que acompanham a existência de cada um de nós. Semelhante à noção de “anjo da guarda”. [Nota minha]


Porque os que pressentem a morte a temem menos que os outros? [pergunta]
– É o homem que teme a morte e não o Espírito; aquele que a pressente pensa mais como Espírito do que como homem: ela a compreende como sua libertação e a espera.

   

Capítulo “Medo da morte”


O medo da morte é para muitas pessoas um motivo de perplexidade; de onde vem esse medo, se têm o futuro diante de si? [pergunta]
– É um erro terem esse medo. Mas o que quereis! Procura-se convencê-las desde crianças de que existe um inferno e um paraíso, e que é mais certo irem para o inferno, porque lhe dizem que ao agirem de acordo com a natureza cometem um pecado mortal para a alma: então, quando se tornam adultas, se têm algum discernimento, não podem admitir isso, e tornam-se ateus ou materialistas. É assim que se conduzem as pessoas a crer que além da vida presente não há mais nada, e as que persistiram nas suas crenças de infância temem esse fogo eterno que deve queimá-las sem destruí-las.
A morte, entretanto, não inspira ao justo nenhum temor, porque, com a fé, tem a certeza do futuro; a esperança lhe faz esperar uma vida melhor, e a caridade que praticou dá-lhe a certeza de que não encontrará no mundo para onde vai nenhum ser do qual deva temer o olhar.




Capítulo “Intuição das penalidades e prazeres futuros”


No momento da morte, qual é o sentimento que domina a maioria dos homens? A dúvida, o medo ou a esperança? [pergunta]
– A dúvida para os descrentes endurecidos, o medo para os culpados, a esperança para os homens de bem.

Quanto a mim, a curiosidade. Uma curiosidade que não será satisfeita se não houver nada para ver. Se houver algo para ver, dúvidas, medos, esperanças (ou desapontamentos), tudo isso é para depois da curiosidade. Prefiro assim. Sem expectativas.


Porque existem descrentes, uma vez que a alma traz ao homem o sentimento das coisas espirituais? [pergunta]
– Existem menos do que se acredita; muitos se fazem espíritos fortes durante a vida por orgulho, mas no momento da morte não são tão fanfarrões.

Muito boa pergunta.

Excelente resposta.


Capítulo “Natureza das penalidades e prazeres futuros”


O laço de simpatia que une os Espíritos da mesma ordem é para eles uma fonte de felicidade? [pergunta]
– A união dos Espíritos que simpatizam com o bem é, para eles, um dos maiores prazeres, porque não temem ver essa união perturbada pelo egoísmo. Eles formam, no mundo espiritual, famílias com o mesmo sentimento, e nisso consiste a felicidade espiritual, assim como na Terra vos agrupais por categorias e sentis um certo prazer quando estais reunidos. A afeição pura e sincera que sentem e da qual são os agentes é uma fonte de felicidade, porque lá não há falsos amigos nem hipócritas.

A minha permanência na Terra já deve ir muito longa porque não há maneira para mim de acreditar nisto.
A não ser que estejamos a falar de Espíritos que já não são seres humanos, em que o homem se transforme noutra coisa superior ao humano, e aí o caso é outro. Se melhor ou pior... É o mesmo que conjecturar sobre extraterrestres. Talvez. Mas já não são humanos, pois não?


Existe para a condição futura do Espírito uma diferença entre aquele que durante a vida temia a morte e outro que a encarava com indiferença e até mesmo alegria? [pergunta]
– A diferença pode ser muito grande; entretanto, acaba frequentemente diante das causas que geram esse medo ou esse desejo. Tanto quem a teme quanto quem a deseja pode estar movido por sentimentos muito diferentes e são esses sentimentos que influem na condição do Espírito. É evidente, por exemplo, naquele que deseja a morte unicamente porque vê nela o fim de suas aflições, revelar-se uma espécie de revolta contra a Providência e contra as provas que deve suportar.

Esta foi a resposta mais próxima à pergunta que ninguém n'"O Livros dos Espíritos" se atreveu a fazer. E a pergunta é esta: o que acontece se alguém quiser sair do jogo? Se alguém olhar para trás do pano, e conhecer as regras, e se fartar das provas ou discordar da perfeição e pedir o fim? O verdadeiro fim. Segundo a resposta (à pergunta que não se fez, quer porque ninguém estava interessado no fim, quer por medo de a fazer), é a "revolta contra a Providência". Compreende-se que haja medo em fazer a pergunta. Pode ser a última pergunta que se faz.






domingo, 17 de novembro de 2013

Conclusões existenciais (sobre a pobreza)

As pessoas que dizem que gostam do frio devem ter ricas casinhas aquecidas para onde voltar. Ou pior, devem ter daqueles casarões com lareira e tudo. Não devem saber o que é estar a escrever a um teclado com os dedos gelados. Não devem saber que até dói pensar em tomar banho porque é preciso tirar a roupa numa casa de banho gelada. Não devem saber que até dói pensar em despir a roupa e vestir o pijama pela mesma razão. E outras coisas que me levam a concluir que não sabem mesmo o que é passar frio.
Gostar do frio deve ser assim, tipo, um passeio na neve, muito divertido. Como ir à praia.

Se eu tivesse percebido isto aos 15 anos, e não aos 40, teria mudado alguma coisa?...
Ou, o que interessa mais: teria mudado alguma coisa para melhor?
Talvez não. Talvez a minha ignorância [ou subconsciente ignorância] tenha sido um mecanismo de sobrevivência. De que já não necessito. Tudo é tão mais simples quando o mundo já não tem importância.

... / ...

Este post era para ficar por aqui e chamar-se apenas "conclusão existencial" mas parece que hoje estou numa de dizer umas verdades.
Aqui há uns tempos, no último ano, a propósito da crise, vejo na televisão um marmanjo da minha idade a queixar-se, muito indignado, ao presidente da república, que agora já não tinha casa e era obrigado a morar no local de trabalho (empresa dele próprio, isto é).
Na verdade, esta crise fez-me perceber como a maioria das pessoas estão mal habituadas, muito mal habituadas. No reverso da medalha, fez-me perceber como eu sou miserável, como eu sempre fui tão miserável. E como eu não percebi o miserável que era na idiotice de me julgar igual aos outros.
Pois eu nasci e cresci num escritório. O meu pai tinha uma oficina e a nossa casa era o escritório. Isto, para mim, era a realidade. Às vezes perguntava-me para onde iam os outros meninos quando as lojas fechavam. (Este post já está a tomar-me tempo a mais para o que quero dispor nele, mas cá vai.) Os outros meninos, quando não estavam na escola, iam para as lojas da rua onde os pais trabalhavam. Não havia cá creches para ninguém e amas eram só para os ricos. Estes meninos de que falo não eram ricos, eram a maioria. Durante o dia andavam na rua, comigo, ou andávamos pelas lojas dos pais deles. Devo-me ter perguntado, embora não me lembre, mas devo-me ter perguntado, para onde é que eles iam quando fechava a mercearia, quando fechava a drogaria, quando fechava a papelaria. Eu, no escritório e na oficina, estava sempre em casa. Até atendia os clientes ao telefone! Mas não pensava no assunto. Se calhar nem me passava pela cabeça que eles tinham uma casa, da maneira que as pessoas entendem ter uma casa, para onde se vai, depois do trabalho ou da escola. As minhas ambições eram muito mais limitadas. Ter uma Tucha (para quem não sabe, era uma imitação mal-amanhada da Barbie) já me fazia as delícias. Desde que eu tivesse uma Tucha, como elas, e uma colecção de carrinhos, como eles, estava toda feliz. Casa para ir depois do trabalho? Nem me passava pela cabeça!
Depois ouço este gajo queixar-se que tem de viver na empresa... Enfim, ri-me. Tive de me rir. E se tivesse de tomar banho numa oficina malcheirosa, cheia de aranhas e centopeias (para não falar dos ratos, de que nunca desgostei), o que não se queixaria?... Sei lá, deu-me para rir.
Ainda nesta onda de reflexões, tive o meu primeiro quarto, um quarto só para mim, já depois dos vinte anos. Nesse dia, ao telefone com o meu namorado, disse-lhe: "Nem imaginas como me sinto feliz por ter um quarto! É que me sinto muito melhor!", e ele respondeu-me: "Que parvoíce! Ninguém se sente melhor por ter um quarto!"
Eu calei-me, e senti-me estúpida, e não percebi porque me senti estúpida. Envergonhada. Envergonhada, mesmo, por me estar a sentir feliz por ter um quarto.
É claro que este menino sempre teve um quarto, onde cabiam duas ou três famílias, cama de casal e grande roupeiro, aparelhagem, tudo.
E depois pergunto-me, como é que eu não percebi que não era possível, que não ia dar?! Que não posso imaginar sequer que as pessoas percebam, porque sempre tiveram tudo?...

Mas não sabiam que tinham tudo. Da mesma maneira que eu não sabia que não tinha nada. Isto é que é assombroso! Verdadeiramente assombroso!

Como as pessoas sempre viveram noutro mundo, até as pessoas da minha própria família, como por exemplo a minha tia quando me ofereceu sais de banho tendo a obrigação de saber que eu não tenho banheira! E eu perguntei-lhe: "e faço o quê, com isto?..." Está bem, a mulher tem desculpa, não bate muito bem da cabeça. Mas a sério, sais de banho? Para um escalda-pés na bacia, quiçá?...
Também houve aqueles imigrantes em França, amigos dos meus pais, era eu miúda, que resolveram trazer-me um disco com um êxito infantil qualquer. É difícil não associar estas duas memórias, porque eu não tinha gira discos! A cara com que eles ficaram! (Não interessa também, porque a minha avó tinha gira discos e eu pude ouvir aquilo uma ou duas vezes antes de decidir que era uma porcaria. Ainda se fossem os Abba!) Mas a cara daquela gente, quando lhes disse: "Não tenho onde ouvir."! Impagável! Verdadeiramente impagável!

Mas a melhor de todas foi a da torneira. Acreditem ou não, durante alguns anos da minha adolescência tive de viver sem uma torneira. Era uma casa completamente degradada, não tinha casa de banho, só uma pia redonda (daquelas de buraco no mármore). Onde tomava banho? Na oficina, pois claro! Mas seguindo em frente. Não havia torneira. Abria-se directamente o cano, enchia-se o jarro de água (um daqueles jarros plásticos verdes com a boca em forma de jarro vegetal, muito populares na altura) e depois lavava-se a cara na bacia. Só se abria o cano uma vez por dia. Ah, sim, e a água era sempre fria. De inverno, gelada!
Finalmente, lá se arranjou uma torneira. Estranho que pareça, eu sempre tive muitos amigos. Que iam a minha casa, esta casa. Esta amiga em particular era mais do que uma amiga, mas não interessa nada agora, e eu mostrei-lhe a torneira. Ela gozou, por eu estar feliz por finalmente ter uma torneira e poder abri-la várias vezes ao dia e não precisar do jarro, e eu ri-me também. Porque me ri? Porque achei ridículo. Estava-me a rir como se não fosse eu naquela situação. Como se eu fosse como ela, com torneiras de água quente e fria, e banheira e tudo. A ponto de gozar com a minha torneira! Mas no fundo, no fundo, acho que também me ria para ela não perceber que eu estava envergonhada. Acho que me ria para eu não perceber que eu estava envergonhada.
Aquilo era muito giro, para ela. Devia ser também como um passeio à neve, uma ida à praia. E eu a fingir que era divertido para mim também. Original. Excêntrico. Não ter uma torneira, não é giro?

É assombroso, perfeitamente assombroso, como eles não viam a diferença. Como eu não via a diferença. Mas foi melhor assim. Que eu me risse. Enquanto houve paciência para me rir. Acho que se gastou, e a paciência não é coisa que se compre com dinheiro.

E agora já gastei muito tempo com isto.





sábado, 16 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Infelicidade

Capítulo “Os deficientes mentais e a loucura”


Qual pode ser o mérito da existência para seres que, como os loucos e os deficientes mentais, não podendo fazer o bem nem o mal, não podem progredir? [pergunta]
– É uma expiação obrigatória pelo abuso que fizeram de certas faculdades; é um tempo de prisão.

A superioridade moral nem sempre está em razão da superioridade intelectual, e os maiores génios podem ter muito para expiar. Daí resulta frequentemente para eles uma existência inferior à que tiveram e causa de sofrimentos. [Allan Kardec]


Porque a loucura leva algumas vezes ao suicídio? [pergunta]
– O Espírito sofre com o constrangimento e a impossibilidade de se manifestar livremente, por isso procura na morte um meio de romper seus laços.
  
Capítulo “Felicidade e infelicidade relativas”


Porque, na sociedade, as classes sofredoras são mais numerosas do que as felizes? [pergunta]
– Nenhuma é perfeitamente feliz, e o que se acredita ser felicidade esconde frequentemente grandes aflições. O sofrimento está por toda a parte. Entretanto, para responder ao vosso pensamento, direi que as classes que chamais de sofredoras são mais numerosas porque a Terra é um lugar de expiação. Quando o homem fizer dela morada do bem e dos bons Espíritos, não será mais infeliz e viverá no paraíso terrestre.

A Terra é um lugar de expiação. Para uns mais do que para outros. Mas volto ao que disse no princípio destes comentários: isto, aqui, não é bom. As próprias lei da natureza o tornam um lugar de crueldade, de dor, de sofrimento, de doença e de morte. Há quem consiga fechar os olhos a isto. Há quem não consiga. Não são loucos os que não fecham os olhos. Do que se fala aqui é o mesmo do que se fala em "Memnoch" de Anne Rice, que lhe chama o "jardim selvagem". Eu chamo-lhe outra coisa.

  
Capítulo “Decepção. Ingratidão. Afeições destruídas”

  
As decepções causadas pela ingratidão e a fragilidade da amizade também não são para o homem de coração uma fonte de amargura? [pergunta]
– Sim, mas já vos ensinámos a lastimar os ingratos e amigos infiéis: eles serão mais infelizes que vós. A ingratidão é filha do egoísmo, e o egoísmo encontrará mais tarde corações insensíveis, como ele mesmo foi. Pensai em todos que fizeram mais o bem do que vós, que valeram muito mais do que vós, e que foram pagos com ingratidão. (…)

Esse pensamento não impede o seu coração de ser magoado; portanto, isso não poderia originar a ideia de que seria mais feliz se fosse menos sensível? [pergunta]
– Sim, se preferir a felicidade do egoísta, que é muito triste! Que ele saiba que os amigos ingratos que o abandonam não são dignos da sua amizade e que se enganou sobre eles; portanto, não deve lamentar sua perda. Mais tarde, encontrará outros que o compreenderão melhor. Lamentai aqueles que têm para convosco um comportamento ingrato que não merecestes, porque terão amarga recompensa, um triste retorno; e também não vos aflijais com isso: é o meio de vos colocar acima deles.

Nunca foi para mim consolação esta espécie de vingança cósmica ("vais pagar o que me fizeste") ou de orgulho encapotado ("sou superior"). Antes me pergunto, como o participante, se não seria melhor ser insensível.
Por outro lado, também não me dou à bondade de lastimar a sorte de quem fez a sua própria cama. Não lastimo nem odeio, esqueço ou faço por esquecer.
A propósito:

 
Capítulo “Natureza das penalidades e prazeres futuros”


Os Espíritos, não podendo esconder os pensamentos uns dos outros e sendo todos os actos da vida conhecidos, significa que o culpado esteja na presença perpétua da sua vítima? [pergunta]
– Isso não pode ser de outro modo, o bom senso o diz.

Essa divulgação de todos os nossos actos condenáveis e a presença constante das vítimas são um castigo para o culpado? [pergunta]
– Maior do que se pensa; mas apenas até que tenha reparado suas faltas, como Espírito ou como homem em novas existências corporais.

Não sei se percebi esta parte. Significa que a vítima permanece junto do culpado (para o castigar com a sua presença) ou que a exposição dos actos não permite que o culpado esqueça a vítima?...
Não me entra na cabeça que a vítima permaneça junto do culpado, neste mundo ou no outro. Concebo que algumas vítimas gostariam de se encarregar da punição do culpado com as suas próprias mãos mas isso não é para mim. Que o culpado vá pagar bem longe e a outras mãos, e de preferência apagado da minha memória.

  
Capítulo “Decepção. Ingratidão. Afeições destruídas”


A falta de simpatia entre os seres que têm de viver juntos não é igualmente uma fonte de desgostos amarga e que envenena toda a existência? [pergunta]
– Muito amarga, de facto; mas é uma dessas infelicidades de que, frequentemente, sois os principais responsáveis. Primeiro, são vossas leis que estão erradas. Porque acreditais que Deus obriga a ficar com aqueles que vos desagradam? E depois, nessas uniões, procurais muitas vezes mais a satisfação do orgulho e da ambição do que a felicidade de uma afeição mútua. Então suportais a consequência de vossos preconceitos.

Mas, nesse caso, não existe quase sempre uma vítima inocente? [pergunta]
– Sim, e é para ela uma dura expiação. Mas a responsabilidade da sua infelicidade recairá sobre quem a causou. Se a luz da verdade já penetrou na sua alma, terá consolação na sua fé no futuro; além disso, à medida que os preconceitos forem enfraquecendo, as causas dessas infelicidades íntimas também desaparecerão.

Parece-me que se fala em especial do casamento ("Porque acreditais que Deus obriga a ficar com aqueles que vos desagradam?"). Há muitas outra combinações, familiares e profissionais, em que as pessoas são obrigadas a viver e a conviver com quem não querem e de quem não gostam. Situações de abuso, não por ambição, longe disso, mas por mera sobrevivência.
A Terra é um lugar de expiação e isto aqui não é bom.






terça-feira, 12 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Suicídio

Capítulo “Desgosto da vida. Suicídio.”


De onde vem o desgosto pela vida que se apodera de certos indivíduos sem motivos razoáveis? [pergunta]
– Efeito da ociosidade, da falta de fé e frequentemente da satisfação plena de seus apetites e vontades, do tédio. Para aquele que exerce suas actividades com um objectivo útil e de acordo com suas aptidões naturais, o trabalho não tem nada de árido, e a vida escoa mais rapidamente. Suporta as contingências da vida com mais paciência e resignação quando age tendo em vista uma felicidade mais sólida e mais durável que o espera.

Confesso que me custou a perceber imediatamente que raio de resposta era esta. Faltava-me ponderar o contexto. Século XIX, classes superiores e ociosas, período romântico. Quando as pessoas da alta sociedade se suicidavam por tédio. (É curioso que "O Livro dos Espíritos" tem alguns parágrafos dedicados ao tema do duelo, denunciando-o como suicídio e homicídio. O que vem na mesma linha desta resposta.)

O homem tem o direito de dispor da própria vida? [pergunta]
– Não, apenas Deus tem esse direito. O suicídio voluntário é uma transgressão dessa lei.

O que pensar do suicídio que tem como causa o desgosto da vida? [pergunta]
– Insensatos! Porque não trabalhavam? A existência não lhes teria sido pesada!

Insensatos! Porque não trabalhavam?! (Porque estavam desempregados, talvez?...)
Esta resposta, na sequência da primeira, é tão para gente rica que me lembra a outra "Não têm pão? Que comam brioche!"
Não gostam do que fazem? Que façam o que gostam.
(Uma pessoa tem de se perguntar como seriam as vidas desta gente privilegiada!)

O que pensar do suicida que tem por objectivo escapar das misérias e decepções deste mundo? [pergunta]
– Pobres Espíritos, que não têm coragem de suportar as misérias da existência! Deus ajuda aqueles que sofrem, e não aos que não têm força nem coragem. As aflições da vida são provas ou expiações; felizes aqueles que as suportam sem queixas, porque serão recompensados! Infelizes, ao contrário, os que esperam sua salvação do que, na incredulidade deles, chamam de acaso ou sorte! O acaso ou a sorte, para me servir da vossa linguagem, podem, de facto, favorecê-los transitoriamente, mas é para fazê-los sentir mais tarde e mais cruelmente o vazio dessas palavras.

Nunca mostrem esta resposta a um suicida. "Deus ajuda aqueles que sofrem, e não aos que não têm força nem coragem" reduz a pessoa deprimida a um estado de tal insignificância que nem Deus se interessa por ela. Dizer isto a um suicida poderia até conduzi-lo mais depressa ao suicídio.
Não podemos esperar que gente do século XIX, viva ou morta, compreenda o psiquismo da depressão. É preciso não esquecer que não se conhecia a mente inconsciente e os seus meandros. (A falta que Freud fazia, e a ingratidão de que (ainda) é alvo devido à ignorância e ao preconceito!)
  
Aqueles que conduziram um infeliz a esse acto de desespero sofrerão as consequências disso? [pergunta]
– Como são infelizes! Pois responderão por homicídio.

O homem que na necessidade se deixa morrer de desespero pode ser considerado um suicida? [pergunta]
– É um suicida; mas os que o levaram a isso ou que poderiam impedi-lo são mais culpados que ele, e a indulgência o espera. Entretanto, não acrediteis que seja inteiramente absolvido se lhe faltaram firmeza e perseverança e se não usou sua inteligência para superar as dificuldades. Infeliz dele, principalmente se o seu desespero se originou do orgulho; quero dizer, se é desses homens a quem o orgulho paralisa os recursos da inteligência, que se envergonham por depender do trabalho das suas mãos e que preferem morrer de fome a renunciar ao que eles chamam de posição social! (…)

Vou interromper este Espírito que continua incessantemente a bater na mesma tecla (com certeza devia estar a mandar uma indirecta a alguém).
Para nós, agora, quando é o desemprego uma grande causa de depressão e suicídio, até parece de mau gosto estar a mandar alguém trabalhar para não pensar na morte.
Achei interessante transcrever a insistência no assunto porque denota o espírito de uma classe e de uma época: quando alguém "bem nascido" preferia suicidar-se ou morrer de fome em vez da vergonha de ir trabalhar, com as mãos se fosse preciso. Dá que pensar. Dá muito que pensar.
Mas abandonemos por aqui as curiosidades históricas.
  
Quais são, em geral, as consequências do suicídio sobre o Espírito? [pergunta]
– As consequências do suicídio são muito diversas: não existem penalidades fixas e, em todos os casos, são sempre relativas às causas que o provocaram; mas uma consequência da qual o suicida não pode escapar é o desapontamento. Além disso, a sorte não é a mesma para todos; depende das circunstâncias. Alguns expiam sua falta imediatamente; outros, em nova existência, que será pior do que aquela cujo curso interromperam.

Segundo a doutrina espírita, o suicídio é inútil e contraproducente. A boa notícia (a morte não existe) é também a má notícia (a morte não existe).
Volto à alegoria do jogo de computador. Interromper o jogo a meio, sem passar de nível, significa ter de começar do ponto de partida outra vez. Apesar da reencarnação, não há "fugas para a frente".
Mas cuidado ao tentar "racionalizar" deste modo com uma pessoa deprimida. O que pode parecer até uma ideia positiva e animadora (a inutilidade do suicídio, a continuidade da vida após a morte) pode ser recebido com bastante mais desespero. Não há racionalidade no desespero e nenhuma lógica garante que o suicida não tente, à mesma, a fuga do que considera insuportável, crente ou não crente.
Isto, os espíritos (mortos e vivos) do século XIX não podiam ainda saber, daí o dogmatismo e a condenação explícita, que contraditoriamente descamba até numa certa ligeireza com que abordam o assunto, como se o suicídio fosse um pecadilho e um disparate. Desconheciam os mecanismos da depressão e não sabiam do que falavam.
Aconselho por isso cautela na abordagem deste capítulo d'"O Livro dos Espíritos" junto de pessoas muito deprimidas e principalmente sem se ler a obra na íntegra. O contexto explica o raciocínio. Aqui, limito-me a comentar esta ou outra parte que mais me interessa. Fica feita a ressalva.






sexta-feira, 8 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Ricos e pobres

Para pensar.

Capítulo “Desigualdades sociais”

A desigualdade das condições sociais é uma lei da natureza? [pergunta]
– Não. É obra do homem e não de Deus.

Essa desigualdade desaparecerá um dia? [pergunta]
– Apenas as leis de Deus são eternas. Vós não vedes essa desigualdade se apagar pouco a pouco todos os dias? Desaparecerá juntamente com o predomínio do orgulho e do egoísmo, apenas restará a diferença do merecimento. Chegará o dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não se olharão como de sangue mais ou menos puro, porque apenas o Espírito é mais ou menos puro, e isso não depende da posição social.

O que pensar dos que abusam da superioridade da sua condição social para oprimir o fraco em seu proveito? [pergunta]
– Esses se lamentarão: infelizes dele! Serão por sua vez oprimidos: renascerão numa existência em que suportarão tudo o que fizeram os outros suportar.

Capítulo “Provas de riqueza e de miséria”

Porque Deus deu a uns riquezas e a outros a miséria? [pergunta]
– Para experimentar cada um de maneiras diferentes. Aliás, vós já o sabeis, essas provas foram os próprios Espíritos que escolheram e, muitas vezes, nelas fracassaram.

Qual das provas é a mais terrível para o homem, a miséria ou a riqueza? [pergunta]
– Tanto uma como outra; a miséria provoca a lamentação contra a Providência; a riqueza estimula todos os excessos.


Neste mundo tanto as posições de destaque quanto a autoridade sobre seus semelhantes são provas tão arriscadas e difíceis para o Espírito quanto a miséria. Quanto mais se é rico e poderoso, mais se tem obrigações a cumprir e maiores são as possibilidades de fazer o bem e o mal. Deus experimenta o pobre pela resignação e o rico pelo uso que faz de seus bens e do seu poder. [Allan Kardec]


À luz da doutrina espírita, faz sentido que a riqueza se torne uma prova mais perigosa do que a pobreza. Quanto maior a fortuna (e quero incluir aqui também o poder), maior a responsabilidade. Maior o risco de explorar os outros, de falhar na solidariedade, de se cair no orgulho de se considerar que se é rico porque se tem mérito enquanto o pobre é pobre porque é estúpido ou inepto (nada mais errado, a pobreza é um ciclo, a igualdade de oportunidades não existe; a própria noção de igualdade de oportunidades é uma mentira inventada pelos ricos para justificarem o seu status social pois, ao convencer o mundo de que existe igualdade de oportunidades, só não é bem sucedido quem não tem mérito para o ser...).






segunda-feira, 4 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – O Bem e o Mal

Capítulo “Conhecimento do futuro”


Uma vez que Deus sabe tudo, sabe, igualmente, se um homem deve fracassar ou não numa prova? Nesse caso, qual é a necessidade dessa prova, que nada acrescentará ao que Deus já sabe a respeito desse homem? [pergunta]

Outra das perguntas mais pertinentes d'"O Livro dos Espíritos".

– É o mesmo que perguntar porque Deu não criou o homem perfeito e realizado: porque o homem passa pela infância antes de atingir a idade adulta. A prova não tem a finalidade de esclarecer a Deus sobre o mérito dessa pessoa, visto que sabe perfeitamente para que a prova lhe serve, mas, sim, para a deixar com toda a responsabilidade da sua acção, uma vez que é livre para fazer ou não. Tendo o homem a escolha entre o bem e o mal, a prova tem a finalidade de colocá-lo em luta com a tentação do mal e lhe deixar todo o mérito da resistência. Embora saiba muito bem, antecipadamente, se triunfará ou não, Deus não pode, na sua justiça, puni-lo nem recompensá-lo por um acto que ainda não foi praticado.

Mas a resposta não me convence.

Capítulo “O bem e o mal”


O mal que se comete não é, muitas vezes, o resultado da posição em que nos colocaram outros homens? E, nesse caso, quais são os mais culpados? [pergunta]
– O mal recai sobre aquele que o causou. Porém, o homem que é conduzido ao mal pela posição que exerce é menos culpado do que aqueles que o causaram; contudo, cada um será punido, não somente pelo mal que tiver feito, como também pelo que tiver provocado.

Aquele que não fez o mal, mas que se aproveita do mal feito por um outro, é culpado da mesma forma? [pergunta]
– É como se o cometesse; ao tirar proveito participa dele. Talvez não pratique a acção; mas se, ao encontrar tudo feito, faz uso disso, é porque a aprova, e ele mesmo o faria se pudesse, ou ousasse.

Basta não fazer o mal para ser agradável a Deus e assegurar um futuro melhor? [pergunta]
– Não. É preciso fazer o bem no limite de suas forças, porque cada um responderá por todo o mal que resulte do bem que não tiver feito.

Há pessoas que, pela sua posição, não têm a possibilidade de fazer o bem? [pergunta]
– Não há ninguém que não possa fazer o bem; somente o egoísta nunca encontra ocasião. Bastam as relações sociais com outros homens para encontrar ocasião de fazer o bem, e cada dia de vida dá a oportunidade a quem não esteja cego pelo egoísmo; porque fazer o bem não é somente ser caridoso, é ser útil na medida de vosso poder todas as vezes que vossa ajuda se fizer necessária.


Concebe-se que toda a gente possa estar em posição de fazer o bem. O mais intrigante é que algumas pessoas desejariam fazer mais bem do que fazem e não podem fazê-lo porque a sua posição não lhes permite. Não é um contra-senso? Não falo apenas de mim, mas tenho notado que são os pobres, os muito pobres, aqueles que sentindo na pele as privações, são também das pessoas mais dispostas a ajudar os outros. Da mesma forma que aqueles que passaram por grandes traumas são os primeiros a desejar ajudar outros que também sofreram. E muitos outros exemplos semelhantes que todos nós conhecemos.
Mas na maioria dos casos não conseguem. Pobres não conseguem ajudar outros pobres. (Falo de pobres, não de "remediados".) Ficam à mercê da caridade dos ricos. Da mesma forma, talvez as pessoas psicologicamente magoadas não consigam, embora queiram, relacionar-se com outros semelhantes. Ficam à mercê de profissionais que não fazem a mais pálida ideia do que estão a falar. E por aí fora, um contra-senso em que quem estaria em melhor condição de fazer o bem não o consegue fazer.
Poderá haver uma forma de expiação, de prisão tão absoluta, em que seja também uma punição desejar fazer o bem e não poder? Mas não levará isso à paralisia, ao desespero, à indiferença perante o destino, a um ponto em que a expiação já não adianta rigorosamente nada porque não faz efeito uma vez que o ser desiste de tentar agir? Será esse o tempo de morrer?


 Capítulo “Vida Contemplativa”


Os homens que se entregam à vida contemplativa, não fazendo nenhum mal e pensando apenas em Deus, têm mérito perante Deus? [pergunta]
– Não, porque se não fazem o mal também não fazem o bem, e são inúteis; aliás, não fazer o bem já é um mal. Deus quer que se pense n’Ele, mas não que se pense apenas n’Ele, uma vez que deu ao homem deveres a cumprir na Terra. Aquele que consome o seu tempo na meditação e na contemplação não faz nada de meritório aos olhos de Deus, porque a dedicação da sua vida é toda pessoal e inútil para a humanidade, e Deus lhe pedirá contas do bem que não tiver feito.


Capítulo “Privações voluntárias. Mortificações”


A vida de mortificações ascéticas dos devotos e dos místicos, praticada desde a Antiguidade e entre diferentes povos, é meritória sob algum ponto de vista? [pergunta]
– Perguntai para o quê e a quem ela serve e tereis a resposta. Se serve apenas àquele que a pratica e o impede de fazer o bem, é egoísmo, qualquer que seja o pretexto com o qual se disfarce. Renegar-se a si mesmo e trabalhar para os outros é a verdadeira mortificação, conforme a caridade cristã.

A resposta a estas duas perguntas esquece o mérito que existe em dar o exemplo a outros menos espirituais. Pela vida ascética e contemplativa, que não é para todos, o asceta inspira outros a pensar em Deus, outros que talvez não pensariam em Deus se não vissem tal exemplo de renúncia a que o asceta se submete, e que os impressiona. O asceta cumpre também esse papel.


 Capítulo “Marcha do progresso”


A perversidade do homem é muito grande. Não parece recuar em vez de avançar, pelo menos do ponto de vista moral? [pergunta]
– Engano vosso. Observai bem o conjunto e vereis que o homem avança, uma vez que compreende melhor  o que é o mal e a cada dia corrige abusos. É preciso o mal chegar a extremos para fazer compreender a necessidade do bem e das reformas.

A História demonstra-nos que isto não anda longe da verdade.


Capítulo “Civilização”


A civilização se depurará um dia de modo a fazer desaparecer os males que tenha produzido? [pergunta]
– Sim, quando a moral também estiver tão desenvolvida quanto a inteligência. O fruto não pode vir antes da flor.

Já esta parte, é uma questão de optimismo. Certamente que a humanidade avançou, tendo em conta séculos e milénios, mas não sem inventar a cada passo uma nova forma de barbaridade.
De barbaridade em barbaridade, lá vamos avançando.


Capítulo “Egoísmo”


Entre os vícios, qual se pode considerar o pior? [pergunta]
– Já dissemos várias vezes: é o egoísmo; dele deriva todo o mal. Estudai todos os vícios e vereis que no fundo de todos existe egoísmo. Vós os combatereis inutilmente e não conseguireis arrancá-los enquanto não tiverdes atacado o mal pela raiz, enquanto não tiverdes destruído a causa. Que todos os vossos esforços tendam para esse objectivo, porque aí está a verdadeira chaga da sociedade. Aquele que deseja se aproximar, já nesta vida, da perfeição moral, deve arrancar do seu coração todo o sentimento de egoísmo, por ser incompatível com a justiça, o amor e a caridade: ele neutraliza todas as outras qualidades.

O egoísmo, sendo próprio da espécie humana, não será sempre um obstáculo para que reine o bem absoluto na Terra? [pergunta]
– É certo que o egoísmo é o maior mal, mas ele se prende à inferioridade dos Espíritos encarnados na Terra, e não à humanidade em si mesma; os Espíritos, ao se depurarem nas sucessivas encarnações, perdem o egoísmo como perdem outras impurezas. Não tendes, na Terra nenhum homem desprovido de egoísmo e praticando a caridade? Há mais do que imaginais, porém pouco os conheceis, porque a virtude não se põe em evidência; se há um, porque não haveria dez? Se há dez, porque não haveria mil e assim por diante?

O egoísmo, longe de diminuir, aumenta com a civilização, que parece excitá-lo e mantê-lo; como a causa poderá destruir o efeito? [pergunta]
– Quanto maior o mal, mais se torna horrível. Será preciso que o egoísmo cause muito mal para fazer compreender a necessidade de extingui-lo. Quando os homens tiverem se libertado do egoísmo que os domina, viverão como irmãos, não se fazendo nenhum mal, ajudando-se mutuamente pelo sentimento natural da solidariedade; então o forte será o apoio e não o opressor do fraco, e não se verão mais homens desprovidos do indispensável para viver, porque todos praticarão a lei da justiça. É o reino do bem que os Espíritos estão encarregues de preparar.


Não acredito nisto. Não me vou rir, porque é feio rirmo-nos das utopias religiosas de cada qual, mas não posso deixar de o considerar uma utopia.






sexta-feira, 1 de novembro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Halloween

Capítulo “Comemoração dos mortos. Funerais”

Os Espíritos são sensíveis à saudade daqueles que amaram e que ficaram na Terra? [pergunta]
– Muito mais do que podeis supor; se são felizes, essa lembrança aumenta a sua felicidade; se são infelizes, essa lembrança é para eles um alívio.

O dia da comemoração dos mortos tem algo de solene para os Espíritos? Eles se preparam para visitar os que vão orar nas suas sepulturas? [pergunta]
– Os Espíritos atendem ao chamamento do pensamento tanto nesse dia quanto em qualquer outro.

Esse dia é para eles um encontro junto às suas sepulturas? [pergunta]
– Eles estão aí num maior número nesse dia, porque há mais pessoas que os chamam. Mas cada um deles vem apenas pelos amigos e não pela multidão de indiferentes.

Os Espíritos esquecidos, cujos túmulos ninguém visita, também aí comparecem apesar disso? Lamentam não ver nenhum amigo que se lembre deles? [pergunta]
– Que lhes importa a Terra? Eles somente se prendem a ela pelo coração. Se aí não há amor, não há mais nada que retenha o Espírito: tem todo o universo para si.





segunda-feira, 28 de outubro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Provas, expiação e esquecimento

Capítulo “Espíritos errantes”


A alma reencarna imediatamente após a separação do corpo? [pergunta]
– Algumas vezes pode reencarnar imediatamente, mas normalmente só após intervalos mais ou menos longos. (…)

Em que se torna a alma no intervalo das encarnações? [pergunta]
– Espírito errante que aguarda nova oportunidade e a espera.

Qual a duração desses intervalos? [pergunta]
– De algumas horas a alguns milhares de séculos. Não há, propriamente falando, limite extremo estabelecido para o estado de erraticidade, que se pode prolongar por muito tempo, mas que nunca é perpétuo. O Espírito sempre encontra, cedo ou tarde, a oportunidade de recomeçar uma existência que sirva de purificação às suas existências anteriores.

Essa duração está subordinada à vontade do Espírito ou pode ser imposta como expiação? [pergunta]
– É uma consequência do livre-arbítrio. Os Espíritos têm perfeita consciência do que fazem, mas para alguns é também uma punição que a providência lhes impõe. Outros pedem para que se prolongue, a fim de progridem nos estudos que só podem ser feitos com proveito na condição de Espírito.

A erraticidade é, por si mesma, um sinal de inferioridade dos Espíritos? [pergunta]
– Não, porque existem Espíritos errantes de todos os graus. A encarnação é para o Espírito um estado transitório, como já dissemos, no seu estado normal o Espírito está liberto da matéria.

De que maneira os Espíritos errantes se instruem? É como nós? [pergunta]
– Eles estudam o seu passado e procuram os meios de se elevar, isso lhes inspira ideias que não tinham antes.

Os Espíritos errantes são felizes ou infelizes? [pergunta]
– São felizes ou infelizes de acordo como seu mérito. São infelizes e sofrem por causa das paixões das quais ainda conservaram a essência ou são infelizes segundo estejam mais ou menos desmaterializados. No estado de erraticidade, o Espírito entrevê o que lhe falta para ser mais feliz e procura os meios de alcançá-lo. Porém, nem sempre lhe é permitido reencarnar conforme sua vontade, o que é para ele uma punição.

Pois.


Capítulo “Mundos transitórios”


Existem, como já foi dito, mundos que servem aos Espíritos errantes como estâncias transitórias ou locais de repouso? [pergunta]
– Sim, existem. São particularmente destinados aos seres errantes, que podem neles habitar temporariamente. São como acampamentos, campos para repousar de uma erraticidade bastante longa, condição sempre um tanto angustiante. São posições intermediárias entre os outros mundos, graduados de acordo com a natureza dos Espíritos que podem alcançá-los e onde podem desfrutar de um bem-estar relativamente maior ou menor, conforme o caso.

Os Espíritos progridem durante a sua estada nos mundos transitórios? [pergunta]
– Certamente. Os que neles se reúnem é com o objectivo de se instruir e poder mais facilmente obter a permissão de alcançar lugares melhores e chegar à posição que os eleitos atingem.


Gosto desta ideia de mundos transitórios, destes acampamentos de "auto-ajuda". Espero que tenham muitos drunfos e muita terapia porque há gente que sai daqui feita em farrapos, sem vontade nenhuma de progredir ou sequer de continuar.

   
Capítulo “Prelúdio do retorno”


O Espírito pode antecipar ou retardar o momento da sua reencarnação? [pergunta]
– Pode antecipá-lo, solicitando-o nas suas preces. Pode também retardá-lo, recuar diante da prova, porque entre os Espíritos há também os cobardes e os indiferentes; mas não o fazem impunemente. Ele sofre, como quem recua diante do remédio salutar que pode curá-lo.

Se um Espírito se encontrasse bastante feliz por estar numa condição mediana na espiritualidade e se não tivesse ambição de progredir, poderia prolongar esse estado indefinidamente? [pergunta]
– Não, não indefinidamente. Progredir é uma necessidade que o Espírito sente, cedo ou tarde. Todos devem elevar-se, esse é o propósito do destino dos Espíritos.

A união do Espírito com um determinado corpo pode ser imposta pela Providência Divina? [pergunta]
– Pode ser imposta, bem como as diferentes provas, especialmente quando o Espírito ainda não está apto a fazer uma escolha com conhecimento de causa. Como expiação, o Espírito pode ser obrigado a se unir ao corpo de uma criança que por seu nascimento e pela posição que terá no mundo poderão ser para ele uma punição.


A reencarnação imposta é a minha concepção de Inferno.
Analisemos bem esta ideia: onde é que está o livre arbítrio se "todos devem elevar-se, esse é o propósito do destino dos Espíritos", ou sofrer? Como é que, pelo uso da força, se poderia alguma vez conduzir alguém à perfeição? À falsidade, à loucura, ao subservientismo, isso sim. Durante a vida na Terra, há pelo menos uma maneira de escapar à tirania: a morte. Como escapar da tirania eterna? Haverá por fim, como diz o Apocalipse, um extermínio de todos os iníquos, ou, para os "não alinhados", simplesmente sofrimento perpétuo?
Ideias que não cruzavam o espírito bem intencionado destes participantes nas conversas com os Espíritos antes de 1857, porque não tinham visto o Inferno na Terra. Tudo, para estes ingénuos, eram rosas e cantos angelicais.

   
Capítulo “Escolha das provas”


Na espiritualidade, antes de começar uma nova existência corporal, o Espírito tem consciência e previsão das coisas que acontecerão durante sua vida? [pergunta]
– Ele mesmo escolhe o género de provas que quer passar. Nisso consiste o seu livre arbítrio.

Então não é Deus que impõe os sofrimentos da vida como castigo? [pergunta]
– Nada acontece sem a permissão de Deus, que estabeleceu todas as leis que regem o universo. Perguntareis, então, porque Ele fez esta lei em vez daquela. Ao dar ao Espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade dos seus actos e de suas consequências, nada impede o seu futuro; o caminho do bem está à frente dele, assim como o do mal. Mas, se fracassa, resta-lhe uma consolação: nem tudo está acabado para ele. Deus, na sua bondade, deixa-o livre para recomeçar, reparando o que fez de mal. É preciso, aliás, distinguir o que é obra da vontade de Deus e o que é obra do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que o criastes, foi Deus; mas tendes a liberdade de vos expor a ele, por terdes visto aí um meio de adiantamento, e Deus o permitiu.

Se o Espírito tem a escolha do género de prova que deve passar, todas as dificuldades que experimentamos na vida foram previstas e escolhidas por nós? [pergunta]
– Todas não é a palavra, porque não se pode dizer que escolhestes e previstes tudo o que vos acontece neste mundo até nas menores coisas. Vós escolhestes os géneros das provas; os detalhes são consequência da situação em que viveis e, frequentemente, das vossas próprias acções. Se o Espírito quis nascer entre criminosos, por exemplo, sabia dos riscos a que se exporia, mas não tinha conhecimento dos actos que viria a praticar; esses actos são efeito de sua vontade ou do seu livre-arbítrio. O Espírito sabe que, ao escolher um caminho, terá uma luta a suportar; sabe a natureza e a diversidade das coisas que enfrentará, mas não sabe quais os acontecimentos que o aguardam. Os detalhes dos acontecimentos nascem das circunstâncias e da força das coisas. Somente os grandes acontecimentos que influem na vida estão previstos. Se seguis um caminho cheio de sulcos profundos, sabeis que deveis tomar grandes precauções, porque tendes a probabilidade de cair, mas não sabeis em qual deles caireis; pode ser que a queda não aconteça, se fordes prudente o bastante. Se, ao passar na rua, uma telha cai na vossa cabeça, não acrediteis que estava escrito, como se diz vulgarmente.

O Espírito, nas provas que deve passar para atingir a perfeição, deve experimentar todas as tentações? Deve passar por todas as circunstância que podem incitar o orgulho, a inveja, a avareza, a sensualidade, etc? [pergunta]
– Certamente que não, uma vez que sabeis que há Espíritos que, desde o começo, tomam um caminho que os livra de muitas provas; mas, aquele que se deixa levar pelo mau caminho corre todos os perigos desse caminho. Um Espírito, por exemplo, pode pedir a riqueza e esta ser concedida; então, de acordo com o seu carácter, poderá tornar-se avarento ou pródigo, egoísta ou generoso, ou entregar-se a todos os prazeres da sensualidade; mas isso não quer dizer que tenha que passar forçosamente por todas essas tendências.

Quando o Espírito usa o seu livre-arbítrio, a escolha da existência corporal depende sempre de sua vontade, ou essa existência pode ser imposta pela vontade de Deus como expiação? [pergunta]
– Deus sabe esperar: não apressa a expiação. No entanto, perante a Lei, um Espírito pode ter uma encarnação compulsória quando, pela sua inferioridade, ou má vontade, não está apto a compreender o que lhe poderia ser mais útil e quando essa encarnação pode servir à sua purificação e adiantamento, ao mesmo tempo que lhe sirva de expiação.

Como o Espírito escolhe as provas que quer suportar? [pergunta]
– Ele escolhe as que podem ser para ele uma expiação, pela natureza dos seus erros, e lhe permitam avançar mais rapidamente. Uns podem escolher se impor uma vida de miséria e privações para tentar suportá-la com coragem; outros querem se experimentar nas tentações da riqueza e do poder, muito perigosas, pelo abuso e mau uso que delas se podem fazer e pelas paixões inferiores que desenvolvem; outros, enfim, preferem se experimentar nas lutas que têm que sustentar em contacto com o vício.

O homem na Terra, sob a influência das ideias terrenas, vê nas suas provas apenas o lado doloroso. Por isso lhe pareceria natural escolher as que, no seu ponto de vista, pudessem se conciliar com os prazeres materiais. Porém, na vida espiritual, compara esses prazeres ilusórios e grosseiros com a felicidade inalterável que percebe, e, então, nenhuma importância dá aos sofrimentos passageiros da Terra. O Espírito pode, em vista disso, escolher a prova mais rude e, consequentemente, a mais angustiosa existência, na esperança de atingir mais depressa um estado melhor, como o doente escolhe muitas vezes o remédio mais desagradável para se curar mais depressa. [Allan Kardec]

O Espírito pode se enganar sobre a eficácia da prova que escolheu? [pergunta]
– Ele pode escolher uma que esteja acima de suas forças e, então, fracassar. Pode também escolher alguma que não lhe dê nenhum proveito, que resulte numa vida ociosa e inútil; mas, então, uma vez de volta ao mundo dos Espíritos, percebe que nada ganhou e pede para reparar o tempo perdido, numa outra encarnação.

Um homem que pertença a uma raça* civilizada poderia, por expiação, reencarnar numa raça selvagem? [pergunta]
– Sim mas isso depende do género de expiação; um senhor que tenha sido cruel com os seus escravos poderá tornar-se escravo por sua vez e sofrer os maus tratos que fez os outros suportar. Aquele que um dia comandou poderá, numa nova existência, obedecer até mesmo àqueles que se curvaram à sua vontade. É uma expiação que lhe pode ser imposta, se abusou do seu poder. Um bom Espírito também pode escolher uma existência em que exerça uma acção influente e encarnar dentro de povos atrasados, para fazer com que progridam, o que, neste caso, é para ele uma missão.


* Por “raça”, à linguagem da época, devemos entender “povo” ou “sociedade” ou mesmo “cultura”, sem qualquer conotação racista. [Nota minha]



Esta é a parte mais interessante da doutrina espírita. Não é Deus que impõe os castigos. Deixa ao homem castigar-se a si próprio.
Voltamos a falar do jogo de computador, dos níveis, e do pau e da cenoura. O "pau", aqui, é o sofrimento de sucessivas reencarnações infelizes; a "cenoura", o escapar a elas através de um aperfeiçoamento previamente estabelecido, que o Espírito antevê na sua estadia éterea entre encarnações, e anseia por alcançar. Este aperfeiçoamento abre-lhe as portas para a tal felicidade "pura e eterna" que ele tem que querer para si. Para tal, oferece-se para voltar ao jogo e tentar novamente passar de nível.
Mas vamos considerar que de facto não é possível aqui, neste mundo de expiação e sofrimento, antever qualquer clarão de felicidade "pura e eterna". Vamos considerar que o Espírito se submete às provas de sua verdadeira e livre vontade. O Espírito decide então expiar as suas faltas e/ou aperfeiçoar-se, escolhendo para isso uma existência que lho permita fazer, mas nessa existência não se recorda de que fez essa escolha.

   
Capítulo “Esquecimento do passado”


Como o homem pode ser responsável por actos e reparar faltas das quais não tem consciência? Como pode aproveitar a experiência adquirida em existências caídas no esquecimento? Poderia conceber-se que as adversidades da vida fossem para ele uma lição ao se lembrar do que as originou; mas, a partir do momento que não se lembra, cada existência é para ele como a primeira e está, assim, sempre recomeçando. Como conciliar isso com a justiça de Deus? [pergunta]


Grande pergunta, e uma das mais pertinentes de todo "O Livro dos Espíritos".


– A cada nova existência o homem tem mais inteligência e pode melhor distinguir o bem do mal. Onde estaria o mérito, ao se lembrar de todo o passado? Quando o Espírito volta à sua vida primitiva (a vida espírita) , toda a sua vida passada se desenrola diante dele; vê as faltas que cometeu e que são a causa do seu sofrimento e o que poderia impedi-lo de cometê-las. Compreende que a posição que lhe foi dada foi justa e procura então uma nova existência em que poderia reparar aquela que acabou. Escolhe provas parecidas com as que passou ou as lutas que acredita serem úteis para o seu adiantamento, e pede a Espíritos Superiores para ajudá-lo nessa nova tarefa que empreende, porque sabe que o Espírito que lhe será dado por guia nessa nova existência procurará fazê-lo reparar as suas faltas, dando-lhe um a espécie de intuição das que cometeu. Essa mesma intuição é o pensamento, o desejo maldoso que frequentemente vos aparece e ao qual resistis instintivamente, atribuindo a maior parte das vezes essa resistência aos princípios recebidos de vossos pais, enquanto é a voz da consciência que vos fala. Essa voz é a lembrança do passado, que vos adverte para não recair nas faltas que já cometestes. O Espírito, ao entrar nessa nova existência, se suporta essas provas com coragem e resiste, eleva-se e sobe na hierarquia dos Espíritos, quando volta para o meio deles.


Se não temos, durante a vida corporal, uma lembrança precisa do que fomos e do que fizemos de bem ou mal em existências anteriores, temos a intuição disso, e nossas tendências instintivas são uma lembrança do nosso passado, às quais nossa consciência, que é o desejo de não mais cometer as mesmas faltas, nos adverte para resistir. [Allan Kardec]

Não há no esquecimento das existências passadas, principalmente nas que foram dolorosas, qualquer coisa de providencial, em que se revela a justiça divina? (…)
Concluamos: tudo o que Deus fez é bem feito e não nos cabe criticar as suas obras e dizer como deveria reger o universo.
A lembrança de nossas individualidades anteriores teria inconvenientes muito graves; poderia, em certos casos, nos humilhar muito; noutros, exaltar o nosso orgulho e, por isso mesmo, dificultar nosso livre-arbítrio. Deus deu, para nos melhorarmos, exactamente o que é necessário e basta: a voz da consciência e nossas tendências instintivas, privando-nos do que poderia nos prejudicar. Acrescentemos ainda que, se tivéssemos lembrança de nossos actos pessoais anteriores, teríamos igualmente a dos outros, e esse conhecimento poderia ter os mais desastrosos efeitos sobre as relações sociais. [Allan Kardec]


Novamente Kardec tem toda a razão. Teria efeitos desastrosos sobre as relações sociais. Se descobrir segredinhos da treta via Facebook já tem as consequências que tem! E não, não estou a ironizar. Imaginem agora descobrirem segredos e falsidades de séculos, de milénios, que determinada pessoa escondeu de vocês ou com os quais vos enganou. Imaginem que são próximos dessa pessoa porque têm uma ligação kármica a resolver. Nada seria resolvido. Vejo a lógica.


Pelo estudo de suas tendências instintivas, que são uma recordação do passado, o homem pode conhecer os erros que cometeu? [pergunta]
– Sem dúvida, até certo ponto; mas é preciso se dar conta da melhoria que pôde se operar no espírito e as resoluções que ele tomou na vida espiritual. A existência actual pode ser bem melhor que a precedente.

Os acontecimentos da vida corporal são, ao mesmo tempo, uma expiação pelas faltas passadas e provas que visam ao futuro. Pode-se dizer que da natureza dessas situações se possa deduzir o género da existência anterior? [pergunta]
– Muito frequentemente, uma vez que cada um é punido pelos erros que cometeu; entretanto, não deve ser isso uma regra absoluta. As tendências instintivas são a melhor indicação, visto que as provas pelas quais o Espírito passa se referem tanto ao futuro quanto ao passado.


Certo. Nem todas as provas são uma expiação do passado. No entanto, ao ser humano, que é inteligente, não custa muito somar dois mais dois e perceber que género de faltas cometeu em vidas passadas e que virtudes delas trouxe. As virtudes são instintivas. As faltas são pagas na mesma moeda. Logo, se sou traída, é porque traí. Se sou roubada, é porque roubei. Se sou explorada, é porque explorei. Uma vez ouvi, num filme qualquer: "Quando as coisas se começarem a repetir na tua vida começa a prestar-lhes atenção". E quando as coisas se repetem, é para prestar atenção. Como eu dizia, basta somar dois mais dois.

Houve algo que li n'"O Livro dos Espíritos" que fez para mim especial sentido: é possível que alguns Espíritos queiram redimir-se de demasiadas coisas numa única existência, para "passar de nível" mais depressa, e assim escolham provas extremamente duras que não conseguem suportar... e falham. Diz Kardec, noutra passagem, que se um homem não souber nadar mas escolher como prova atravessar a nado um oceano, certamente se afoga, mas Deus permite. (Haveria Espíritos a desaconselhá-lo de tal loucura, mas se o Espírito for teimoso...)






quinta-feira, 24 de outubro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Música!

Capítulo “Percepções, sensações e sofrimentos dos Espíritos”


Os Espíritos são sensíveis à música? [pergunta]
– Quereis falar da vossa música? O que é ela perante a música celeste cuja harmonia nada na Terra vos pode dar uma ideia? Uma está para a outra como o canto de um selvagem está para uma suave melodia. Entretanto, os Espíritos vulgares podem sentir um certo prazer ao ouvir a vossa música, porque ainda não são capazes de compreender uma mais sublime. A música tem para os Espíritos encantos infinitos, em razão de suas qualidades sensitivas bastantes desenvolvidas. A música celeste é tudo o que a imaginação espiritual pode conceber de mais belo e mais suave.

Um post sobre música é um post sobre música, venha ele dos Espíritos ou de onde vier, e merece todo um destaque à parte.
Vamos lá dissecar as respostas deste Espírito porque tocou em nervos sensíveis.

Quereis falar da vossa música?
Em 1857, ou antes, não podia estar a falar da nossa música, mas avancemos.

O que é ela perante a música celeste cuja harmonia nada na Terra vos pode dar uma ideia?
Ui ui! Palavras de quem nunca ouviu Dead Can Dance. E de quem nunca ouviu uma guitarra eléctrica. Quando se fala de música, as pessoas e os Espíritos (vivos ou mortos) deviam ter o cuidado de respeitar os gostos dos outros. É bonito e fica bem.

Uma está para a outra como o canto de um selvagem está para uma suave melodia.
Muitos "cantos selvagens" e étnicos são melhores que muita treta de música erudita que se fez e faz para aí. Nem me interessa que se fale aqui de coros angélicos, como os imaginamos, e quem sou eu para me pronunciar sobre o que não conheço? É a arrogância da coisa que não suporto.

Entretanto, os Espíritos vulgares podem sentir um certo prazer ao ouvir a vossa música, porque ainda não são capazes de compreender uma mais sublime.
Aposto que vou ser um "Espírito vulgar", se me deixarem, a pairar por aí em tudo o que são festivais góticos deste mundo e dos outros, sempre à procura do sublime (do meu sublime). Se me deixarem, digo eu, porque me parece bom demais para ser verdade.

A música tem para os Espíritos encantos infinitos, em razão de suas qualidades sensitivas bastantes desenvolvidas.
Ah, estás certamente a fazer a distinção das massas que consomem tudo o que lhes põem à frente, ou saberias que entre os vivos já há Espíritos de "qualidades sensitivas bastantes desenvolvidas" em questões de música, tão desenvolvidas que consideram desinteressante o que possivelmente consideravas o mais sublime da música do teu tempo, Espírito do século XIX ou anterior.

A música celeste é tudo o que a imaginação espiritual pode conceber de mais belo e mais suave.
"Belo e suave". Depreende-se que no mundo dos Espíritos não se ouça Rammstein. Por outro lado, ficámos com uma ideia muito clara da tua concepção de "sublime". Que queres, somos vulgares!

(É por estas e outras que o meu interesse em falar com os mortos é completamente igual ao de falar com os vivos. Não é exactamente a mesma coisa?!)






domingo, 20 de outubro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Amizade. Simpatia. Amor.

Capítulo “Separação da alma e do corpo”


O Espírito encontra imediatamente aqueles que conheceu na Terra e que desencarnaram antes dele? [pergunta]
– Sim, e de acordo com a afeição que havia entre eles, muitas vezes vêm recebê-lo na volta ao mundo dos Espíritos e o ajudam a se desprender das faixas da matéria. Assim como reencontra também muitos que havia perdido de vista durante a sua permanência na Terra. Vê os que estão na erraticidade, como também vai visitar os que estão encarnados.


Capítulo “Relações após a morte”


Como os homens que se conheceram na Terra se reconhecem no mundo dos Espíritos? [pergunta]
– Nós vemos a nossa vida passada e a lemos como num livro; ao ver o passado dos nossos amigos e inimigos, vemos a sua existência da vida à morte.

Os nossos parentes e amigos vêm algumas vezes ao nosso encontro quando deixamos a Terra? [pergunta]
– Sim, eles vêm ao encontro da alma que estimam. Felicitam-na como no retorno de uma viagem, se ela escapou dos perigos do caminho, e a ajudam a se despojar dos laços corporais. É a concessão de uma graça para os bons Espíritos quando aqueles que amam vêm ao seu encontro, enquanto o infame, o mau, se sente isolado ou é apenas rodeado por Espíritos semelhantes a ele: é uma punição.

Mais vale só do que mal acompanhado. Aqueles que não me acompanharam aqui, escusam também de me aparecer lá.
Quanto a ficar rodeada de Espíritos semelhantes… não acredito muito neles, maus ou bons. Até agora conheci muito poucos, e muito pouco semelhantes.
(Mas lá está, não me posso esquecer: é uma expiação. Não posso, em bom senso, descartar a hipótese de que tenha havido quem me amou, algures, mas não tenha sido autorizado a acompanhar-me aqui, no cárcere. Posso, mesmo assim, preparar-me para o pior dos cenários. Nem podia ser de outra maneira. Cada um espera o que está habituado.)

Os parentes e amigos sempre se reúnem depois da morte? [pergunta]
– Isso depende da sua elevação e do caminho que seguem para o seu adiantamento. Se um deles é mais avançado e marcha mais rápido do que o outro, não poderão permanecer juntos. Podem-se ver algumas vezes, mas somente estarão para sempre reunidos quando marcharem lado a lado, ou quando atingirem a igualdade na perfeição. Além disso, a impossibilidade de ver os seus parentes e amigos é, algumas vezes, uma punição.

E começa aqui na Terra.
Nem todos os Espíritos (nós, os vivos) andamos por aí carentes agarrados à primeira coisa que se encontra só para mostrar ao mundo que se tem alguém.
Eu acho triste. Tenho até pena.
O pior foi que por vezes alguns destes Espíritos (encarnadíssimos) tentaram agarrar-se a mim, enquanto precisaram, dando a parecer que era verdadeira amizade o que os movia. Apesar das decepções anteriores, acredito que devemos sempre abrir a porta, sem desconfiança, esperando o melhor. Mas uma vez fechada a porta, não se torna a abrir.

A parte que transcrevo a seguir não vai agradar aos românticos que procuram a alma gémea, mas cá vai mesmo assim:


Capítulo “Relações de simpatia e antipatia entre os Espíritos. Metades eternas.”

As almas que devem unir-se estão predestinadas a essa união desde a origem e cada um de nós tem, em alguma parte do universo, sua metade à qual um dia fatalmente se unirá? [pergunta]
– Não, não existe união particular e fatal entre duas almas. A união existe entre todos os Espíritos, mas em diferentes graus, de acordo coma categoria que ocupam, ou seja, de acordo com a perfeição que adquiriram: quanto mais perfeitos, mais unidos. Da discórdia nascem todos os males humanos; da concórdia resulta a felicidade completa.

Dois Espíritos perfeitamente simpáticos*, uma vez reunidos, o serão pela eternidade, ou podem se separar e se unir a outros? [pergunta]
– Todos os Espíritos são unidos entre si. Falo daqueles que atingiram a perfeição. Nas esferas inferiores, quando um Espírito se eleva já não tem a mesma simpatia por aqueles que deixou para trás.

* Na linguagem da época, “simpático” deve ser entendido como “semelhante, mutuamente agradável” [Nota minha]

A identidade necessária para a simpatia perfeita consiste apenas na semelhança de pensamentos ou sentimentos, ou ainda na uniformidade dos conhecimentos adquiridos? [pergunta]
– Na igualdade dos graus de elevação.


Não existe um alma gémea porque alguns Espíritos são mais rápidos a evoluir para graus de elevação superiores. É curioso como o mesmo pode acontecer já aqui na Terra, em menos de meia dúzia de anos.


Capítulo “Simpatias e antipatias terrenas”

Dois seres que se conhecem e se amam podem se encontrar em outra existência corporal e se reconhecer? [pergunta]
– Reconhecer-se, não; mas podem sentir-se atraídos um pelo outro. Frequentemente, as ligações íntimas fundadas numa afeição sincera não têm outra causa. Dois seres aproximam-se um do outro por consequências casuais em aparência, mas que são de facto a atracção de dois Espíritos que se procuram na multidão.

Não seria mais agradável para eles reconhecerem-se? [pergunta]
– Nem sempre; a lembrança das existências passadas teria inconvenientes maiores do que podeis imaginar. Após a morte, se reconhecerão, saberão o tempo que passaram juntos.

A simpatia vem sempre de um conhecimento anterior? [pergunta]
– Não. Dois Espíritos que se compreendem procuram-se naturalmente, sem que necessariamente se tenham conhecido em encarnações passadas.

De onde vem a repulsa instintiva que se tem por certas pessoas, à primeira vista? [pergunta]
– Espíritos antipáticos* que se adivinham e se reconhecem sem se falar.

* Da mesma forma, deve-se entender “antipáticos” como “dissemelhantes, desagradáveis um ao outro”. [Nota minha]

Muitas vezes travamos conhecimento com alguém que nos parece termos conhecido a vida toda. Segundo a doutrina dos Espíritos, pode não ser fruto de uma experiência em comum noutra reencarnação.


Capítulo “Transmissão oculta do pensamento”
Porque duas pessoas perfeitamente acordadas têm muitas vezes, instantaneamente, a mesma ideia? [pergunta]
– São dois Espíritos simpáticos que se comunicam e vêem reciprocamente os seus respectivos pensamentos, até mesmo quando o corpo não dorme.

Existe, entre os Espíritos que se encontram, uma comunicação de pensamentos que faz com que duas pessoas se vejam e se compreendam, sem ter necessidade dos sinais exteriores da linguagem. Pode-se dizer que falam a linguagem dos Espíritos. [Allan Kardec]


"Falam a linguagem dos Espíritos". Afinal, um final romântico.






quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“O Livro dos Espíritos” – Crianças. Missão. Morte. Aborto.

Capítulo “Destino das crianças após a morte”


O Espírito de uma criança que desencarna em tenra idade poderá ser tão avançado como o de um adulto? [pergunta]
– Algumas vezes é mais, porque pode ter vivido muito mais e ter mais experiência, principalmente se progrediu.

O Espírito de uma criança pode, então, ser mais avançado do que o do seu pai? [pergunta]
 – Isso é muito frequente: Vós mesmos não vedes isso muitas vezes na Terra?

De uma criança que morre em tenra idade, e, portanto, não tendo praticado o mal, podemos supor que o seu Espírito pertença aos graus superiores? [pergunta]
– Se não fez o mal, não fez o bem, e Deus não a isenta das provações que deve passar; o seu grau de pureza não ocorre porque tenha animado o corpo de uma criança, mas pelo progresso que já realizou.

Porque a vida é muitas vezes interrompida na infância? [pergunta]
– A duração da vida de uma criança pode ser, para o Espírito que nela está encarnado, o complemento de uma existência anterior interrompida antes do tempo. A sua morte é, muitas vezes, também uma provação ou uma expiação para os pais.

O que acontece com o Espírito de uma criança que morre em tenra idade? [pergunta]
– Ela recomeça uma nova existência.

Se o homem tivesse apenas uma existência e se, depois dela, sua destinação futura fosse fixada perante a eternidade, qual seria mérito de metade da espécie humana que morre em tenra idade, para desfrutar, sem esforços, da felicidade eterna? E com que direito ficaria desobrigada e livre das condições, muitas vezes tão duras, impostas à outras metade? Tal ordem de coisas não estaria de acordo com a justiça de Deus. Pela reencarnação, a igualdade é para todos. O futuro pertence a todos sem excepção e sem favorecer ninguém. [Allan Kardec]


Quis publicar esta parte porque é importante para os pais que tenham perdido um filho.


Capítulo “Semelhanças físicas e morais”

   
O Espírito dos pais tem influência sobre o do filho após o nascimento? [pergunta]
– Há uma influência muito grande. Como já dissemos, os Espíritos devem contribuir para o progresso uns dos outros. Pois bem, os Espíritos dos pais têm como missão desenvolver o dos seus filhos pela educação. É para eles uma tarefa: Se falharem, serão culpados.

Porque pais bons e virtuosos geram, às vezes, filhos de natureza perversa? Melhor dizendo, porque as boas qualidades dos pais nem sempre atraem, por simpatia, um bom Espírito para animar o seu filho? [pergunta]
– Um Espírito mau pode pedir pais bons, na esperança de que os seus conselhos o orientem a um caminho melhor, e muitas vezes, Deus lhe concede isso.

Os pais podem, pelos seus pensamentos e preces, atrair para o corpo de um filho um Espírito bom em preferência a um Espírito inferior? [pergunta]
– Não, mas podem melhorar o Espírito do filho que geraram e que lhes foi confiado: é o seu dever. Filhos maus são uma provação para os pais.


Novamente, nada a acrescentar.


Capítulo “União da alma e do corpo. Aborto”


Em que momento a alma se une ao corpo? [pergunta]
– A união começa na concepção, mas só se completa no instante do nascimento. No momento a concepção o Espírito designado para habitar para habitar determinado corpo liga-se a ele por um laço fluídico e vai aumentando essa ligação cada vez mais, até ao instante do nascimento da criança. O grito que sai da criança anuncia que ela se encontra entre os vivos e servidores de Deus.

A união entre o Espírito e o corpo é definitiva desde o momento da concepção? Durante esse primeiro período o Espírito poderia renunciar ao corpo designado? [pergunta]
– A união é definitiva no sentido de que nenhum outro Espírito poderá substituir o que está designado para aquele corpo. Mas, como os laços que o unem são muito frágeis, fáceis de romper, podem ser rompidos pela vontade do Espírito, se este recuar diante da prova que escolheu, nesse caso a criança não vive.

Que utilidade pode ter para um Espírito a sua encarnação num corpo que morre poucos dias após o seu nascimento? [pergunta]
– O ser não tem a consciência inteiramente desenvolvida da sua existência e a importância da morte é para ele quase nula. É muitas vezes, como já dissemos, uma prova para os pais.

O Espírito, uma vez unido ao corpo de uma criança e quando já não pode voltar atrás, lamenta, algumas vezes, a escolha que fez? [pergunta]
– Quereis dizer se, como homem, lastima a vida que tem? Se gostaria de outra? Sim. Lamenta-se da escolha que fez? Não; ele não sabe que a escolheu. O Espírito, uma vez encarnado, não pode lamentar uma escolha de que não tem consciência, mas pode achar a carga muito pesada e considerá-la acima de suas foças. São esses os casos dos que recorrem ao suicídio.

Como a união do Espírito e do corpo só está completa e definitivamente consumada após o nascimento, pode-se considerar o feto como tendo uma alma? [pergunta]
– O Espírito que deve animá-lo existe, de alguma forma, fora dele; não possui, propriamente falando, uma alma, já que a encarnação está apenas em via de se operar. Mas o feto está ligado à alma que deve possuir.

Quais são, para o Espírito, as consequências do aborto? [pergunta]
– É uma existência nula que terá de recomeçar.

O aborto provocado é crime, qualquer que seja a época da concepção? [pergunta]
– Há sempre crime quando se transgride a Lei de Deus. A mãe, ou qualquer outra pessoa, cometerá sempre um crime ao tirar a vida de uma criança antes do seu nascimento, porque é impedir a alma de suportar as provas das quais o corpo devia ser o instrumento.

No caso em que a vida da mãe esteja em perigo pelo nascimento do filho, existe crime ao sacrificar a criança para salvar a mãe? [pergunta]
– É preferível sacrificar o ser que não existe a sacrificar o que existe.

É racional ter pelo feto a mesma atenção que se tem pelo corpo de uma criança que tenha vivido? [pergunta]
– Em tudo isso deveis ver a vontade de Deus e a Sua obra. Não trateis, portanto, levianamente as coisas que deveis respeitar. Porque não respeitar as obras da Criação, que são incompletas algumas vezes pela vontade do Criador? Isso pertence aos seus desígnios, que ninguém é chamado a julgar.


Idem.