Muitos críticos deste filme apontam a premissa da Purga como ridícula e inconcebível. Eu discordo cada vez mais. Tal como disse aqui na crítica ao primeiro filme da série, “A Purga”, não acredito que uma noite de violência por ano em que todos os crimes são admissíveis, até o homicídio, resultasse na diminuição do crime. Mas, como acabámos de ver pelo exemplo do ano que passou, não é por uma medida não resultar que não se implementa. E uma população aterrorizada, neste caso uma população aterrorizada pelo crime, desde que bem regada de propaganda, aceita tudo o que percepcione como medida de protecção para si e para os seus.
Os Novos Pais Fundadores, como chamam a si próprios, não são ditadores de um regime totalitário. Tal como o partido Nazi foi eleito por uma população desesperada e iludida, estes líderes foram eleitos por uma população amedrontada que acreditou na propaganda. Uma vez engolida a propaganda, as piores atrocidades podem acontecer sob o aval da sociedade que concordou com elas, implícita ou explicitamente. E depois há sempre aquela tendência do ser humano de entrar em negação: “Eles dizem isso assim e assim, mas não são tão maus como parecem. É só conversa, não vão pôr em prática.” E lá vai o voto de protesto para os radicais que defendem as medidas. Aconteceu com o partido Nazi, não vejo razão por que não possa vir a acontecer. É claro que aqui também entra a negação: “Não, não vai nada acontecer outra vez. Que ideia ridícula e inconcebível.” Não é ridícula nem inconcebível e já esteve mais longe.
Raramente me vão ouvir dizer isto, mas este segundo filme é melhor do que o primeiro. Se “A Purga” era o típico filme de terror em que uma casa é assaltada por estranhos que querem matar os seus habitantes, esta sequela desenvolve-lhe as pistas políticas e sociológicas. Sem deixar de ser um filme de grande terror, que o é, é também um comentário à desigualdade social, à lavagem cerebral e ao poder.
Se em “A Purga” vimos os acontecimentos pela perspectiva de uma família privilegiada da classe média-alta, aqui andamos nas ruas, na anarquia da noite da Purga em que aqueles que não se conseguem proteger por detrás de muros e bunkers, os pobres, são os mais vitimados. Muitas coisas são chocantes por serem já consideradas tão normais pela sociedade.
Por exemplo, começa por aquele avô que precisa de remédios muito caros e sabe que a filha faz grandes sacrifícios para lhos comprar, e decide vender-se para ir ser assassinado por uma família abastada que mata em conjunto no conforto e segurança do seu lar. “Sobrevivam a esta noite e usem o dinheiro que vai aparecer na vossa conta”, escreve à filha e à neta antes de sair para ir morrer.
Já na casa deste avô, esta filha, empregada de mesa, e a sua filha adolescente, tentam trancar-se como podem, mas uma milícia armada invade o prédio e arrasta-as para fora de casa, onde uma metralhadora as espera. É que o governo acha que as pessoas “não estão a matar-se o suficiente” e começou a intervir com assassinatos militarizados em bairros pobres para diminuir a despesa com as classes mais desfavorecidas. Esta milícia mata a mando do governo.
Mãe e filha são salvas no último instante por um polícia que andava na rua na noite da Purga com a sua própria vingança em mente: matar o condutor alcoolizado que vitimou o seu filho num acidente de automóvel. Este é daqueles que concordam com a Purga como método de fazer justiça pelas próprias mãos, e que se calhar até votou nos Novos Pais Fundadores, mas tem muitas horas para mudar de ideias até ao fim da noite.
Os outros protagonistas da história são um jovem casal em crise que apenas teve o azar de estar no sítio errado à hora errada. Ainda antes de começar a Purga, são perseguidos por um gangue com máscaras medonhas e facas. Pensamos que este gangue os quer matar, mas não. Este gangue anda à procura de vítimas para vender a um leilão da classe alta em que estas vítimas vão ser caçadas, como animais num safari, pelos licitantes que pagarem mais. A mensagem do filme não podia ser mais clara. A Purga serve os interesses dos mais ricos, que “purgam e purificam” completamente convencidos de que estão a participar na melhoria da sociedade. Porque nunca lhes calha a eles. Assim é fácil defender a Purga.
Mas se os mais ricos se conseguem proteger, isso não significa que alguns das classes mais desfavorecidas não gostem também da Purga. É uma noite para deitar cá para fora o “animal dentro de si” como dizem as notícias, e grupos de “purgadores” munidos das suas armas preferidas saem às ruas para fazer isso mesmo: matar tudo o que lhes aparecer à frente. Chegam até a procurar os locais onde dormem os sem-abrigo porque são os mais fáceis de matar e estão completamente indefesos.
Nem tudo é horrível. Já começa a formar-se uma resistência política e armada que anda pela noite da Purga a matar os ricos nos seus bunkers. Sim, também parece horrível, mas pelo menos estes matam por convicções ideológicas, se não mesmo em auto-defesa, não matam para satisfazer instintos sádicos. É a diferença entre a guerra e a barbárie, por muito más que sejam ambas.
Como se deve ter notado, gostei do filme e recomendo. Para se ver de olhos bem abertos sem as vendas da negação. Já aconteceu semelhante e pode muito bem vir a acontecer igual ou semelhante outra vez.
17 em 20
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