domingo, 27 de janeiro de 2019

The Twilight Saga: Eclipse (2010)


Terceiro episódio de Edward o-vampiro-que-brilha e Bella a-rapariga-que-só-quer-ser-vampira. E agora também temos Jacob o-lobisomem-que-quer-comer-a-Bella-no-melhor-dos-sentidos.
Fiquei um pouco confusa logo a começar. Nunca me passou pela cabeça que a situação com a vampira Victoria (a ruiva que aprendeu a correr por entre as árvores num ângulo de 90º como na Matrix) não estivesse já resolvida. Isto é que é tenacidade. Victoria quer mesmo muito vingar-se por causa de coisas que aconteceram no primeiro livro/filme e de que eu já não me lembro. Mas recordo que foi o bando da Victoria que se meteu com os Cullen por isso ela não tem razão nenhuma. As pessoas têm mesmo de aprender a desprender-se e partir para outra. Victoria precisa de ler um livrinho de auto-ajuda.
Victoria continua obcecada em matar Bella para que Edward sinta a dor de perder um amor, como ela sentiu. E também dá muito jeito ao enredo principal, porque obriga os vampiros e os lobisomens a fazer uma aliança para se revezarem a proteger Bella.
Entretanto, e depois sabemos que foi Victoria também, alguém cria um exército de vampiros recém-transformados (a quem chamam recém-nascidos) para atacar os Cullen em grande escala. Na mitologia de Twilight os vampiros são fisicamente mais fortes quando são transformados há pouco tempo. Geralmente é o oposto, o que faz com que os vampiros muito antigos sejam praticamente invencíveis. Esta ideia de maior fragilidade física mas de aquisição de outras capacidades é interessante e foge aos lugares comuns do mito do vampiro.
Por falar em mitologia, neste filme temos um flashback que nos explica como começou a animosidade entre os lobisomens e os vampiros. Mas temos também a resposta à questão que coloquei na crítica ao filme anterior, New Moon: os lobisomens têm consciência do que fazem enquanto lobos? Sim, têm. E conseguem, efectivamente, transformar-se quando querem, sem qualquer influência lunar. Até há uma cena em que os lobisomens vão a um encontro com os vampiros em forma de lobos porque se sentem mais seguros assim. (É uma cena algo ridícula, se não mesmo infantil, em que de repente temos os vampiros a combinar estratégia com os lobos silenciosos -- também era melhor se falassem! -- enquanto Bella faz festinhas ao lobo Jacob. Por falar nisso, o CGI dos lobos não é nada realista. Parece um desenho animado para crianças.)

 Eu também gosto muito de animais.

Ora, como dizia na crítica anterior, isto é problemático. Se os lobisomens têm consciência do que fazem como lobos são tão maus como os vampiros e não têm autoridade moral para se sentirem superiores. Duvido que esta questão existencial alguma vez seja abordada no universo Twilight mas fica a minha nota.
Também disse que estava a torcer pelo Jacob, mas neste filme o jovem lobisomem está a passar pela fase “parva” e não podia estar a sair-se pior com a Bella. Mas que outra coisa esperar? O rapazinho tem 16 ou 17 anos, ainda tem muito que aprender sobre como encantar o sexo oposto. O Edward tem 90 anos de lábia e anda atrás de uma miúda do liceu. Desculpem, fãs, factos são factos. Pobre Jacob, não tem a mínima hipótese.
O envolvimento dos Vulturi é, como sempre, o que mais gosto na saga. Porque me lembram os vampiros Riceanos, claro está. Armand ficaria orgulhoso destes Vulturi.
Não percebi, no filme, de que matéria são feitos os vampiros. Pedra, gelo, é por isso que brilham? É o que parece no filme, ou é culpa dos efeitos especiais. (Akasha foi durante séculos uma vampira “petrificada” mas isso era porque não se alimentava. Quando voltou à “vida” parecia completamente de carne e osso.) Quando os vampiros de Twilight são decapitados não há sangue a jorrar e carne à mostra. Parecem objectos partidos, o que lhes retira a humanidade. Como é que podemos ter pena de uma boneca partida? É isto que Bella quer ser?
Por último, nunca é explicado o título do filme. Qual eclipse? Penso que se referem ao exército que era liderado por um testa-de-ferro aparentemente criado por Victoria. Desta forma, ela estava “eclipsada” atrás dele. Será? Eu acho rebuscadíssimo mas não encontro outra explicação. Talvez o livro tenha explicado melhor.

12 em 20

domingo, 20 de janeiro de 2019

The 9th Life of Louis Drax / O Misterioso Louis Drax (2016)


[contém spoilers]

Louis Drax parece ser o miúdo mais azarado do mundo. Quando desta vez cai de um precipício, a equipa médica pronuncia-o morto. Algumas horas depois, na morgue, quase a ser colocado numa arca frigorífica, Louis acorda por momentos e de seguida mergulha num coma profundo. Para investigar o fenómeno, é chamado o dr. Allan Pascal, especialista em coma infantil.
A acreditar na mãe do miúdo, a bela e frágil Natalie, tudo indica que foi o pai de Louis quem o empurrou do precipício durante um piquenique em que celebravam o aniversário do filho. O casal estava separado e após o acidente o pai do miúdo desaparece, o que convence toda a gente da sua culpa.
Entretanto, um romance desenvolve-se entre Natalie e o médico, cujo casamento também já não andava bem. É então que coisas estranhas começam a acontecer.
“The 9th Life of Louis Drax” apresenta-nos um mistério que merece ser desvendado, mas não é o que promete. Na verdade, o filme é uma salada russa de realismo mágico (muito devendo a “Pan’s Labyrinth” e ao mais recente “A Vida de Pi”), investigação policial e promessas de sobrenatural. Infelizmente, nada disto se interliga de forma satisfatória e o filme falha redondamente. Saliento aquela cena em que o médico segue um monstro marinho pelos corredores do hospital. Isto é tenso e digno de um filme de terror. Mas nunca percebemos qual é o objectivo desta cena porque afinal o médico acorda e não passa de um pesadelo. Era só para nos assustar gratuitamente. Estas coisas repetem-se constantemente no filme. É para acreditarmos que o miúdo em coma possuiu o médico enquanto este dormia, e que o fez escrever mensagens? Porque neste caso a coisa ainda é mais sinistra.
Gostei da revelação de quem é o “monstro marinho” (Aaron Paul, conhecido como Jesse Pinkman em “Breaking Bad”), a projecção psicológica em que Louis encontra a verdade.
A verdade, infelizmente, não podia ser mais prosaica. Não me importo de a dizer aqui uma vez que a meio do filme já toda a gente percebeu menos o médico. Até é bastante interessante observar como ele é manipulado. Nem o intelecto o salva. Enfeitiçado pelo charme da femme fatale Natalie, é o último a acreditar que foi ela quem causou os “acidentes” ao filho. Isto chama-se Munchausen by proxy. [Há tradução em português?] Munchausen by proxy é também uma patologia praticamente desconhecida entre nós, o que torna este filme acima de tudo educativo e recomendo a toda a gente.
Afinal o miúdo não era misterioso. Todo o ambiente surrealista que o rodeia (alucinação, técnica cinematográfica, sonho?) acaba por não ter relevância narrativa. Sim, é verdade, no fim o monstro marinho explica tudo em termos mais simples para o miúdo perceber. Mas nada que não tenhamos percebido já.
Esta foi uma tentativa ambiciosa e alternativa de abordar uma patologia ainda pouco conhecida. É de louvar, mas não funcionou tão bem como devia.

13 em 20

domingo, 13 de janeiro de 2019

Os três valentões e a velha (Histórias da minha avó)

Ao contrário de “O Touro Azul”, versões desta história já não são tão difíceis de encontrar. Mas aqui vou contá-la como me foi contada na infância, como a reconheço e como gosto dela.
“Os três valentões e a velha”, título que lhe dei, é uma história divertida com um elemento de sobrenatural de meter medo a criancinhas de outros tempos. Hoje em dia já nem as criancinhas têm medo de tão pouco.

-§-


Era uma vez o João Valentão. Antes de ganhar esta alcunha, o João era um menino como os outros. Como a mãe não tinha leite, em pequenino teve de mamar nas tetas de uma burra. Chamavam-lhe o Mama-na-Burra, mas talvez por isso tenha adquirido uma força tão sobre-humana que ao chegar à idade adulta não havia quem a igualasse. Para mostrar como era forte, João Valentão Mama-na-Burra mandou fazer um cacheiro de ferro que erguia no ar como se nada pesasse.
Mas João Mama-na-Burra sentia-se só, o único com essa força que o separava dos seus semelhantes. Na esperança de conhecer alguém igual a ele, decidiu correr mundo.
Depois de muito andar, encontrou um homem igualmente forte, que com uma única cavadela arrasava uma montanha. Chamavam-lhe o Arrasa-Montanhas.
– Tu és forte como eu. – disse-lhe o João Valentão. – Porque não vens correr mundo também e talvez encontremos outros como nós?
O Arrasa-Montanhas concordou e acompanhou o Mama-na-Burra.
Correram e correram mundo até encontrarem outro como eles. Era um homem tão forte que arrancava um pinheiro do solo só com uma mão. Chamavam-lhe o Arranca-Pinheiros. Igualmente interessado em conhecer o mundo, o Arranca-Pinheiros seguiu viagem com eles.
Chegando a uma aldeia, precisaram de um sítio onde pernoitar e perguntaram às gentes da terra onde podiam passar a noite. Falaram-lhes de uma casa abandonada onde podiam ficar à vontade, se tivessem coragem. Porque a casa estava assombrada por uma velha que lá aparecia à noite e ninguém se atrevia a chegar perto. Os três valentões riram-se dos aldeões e instalaram-se na casa abandonada.
Enquanto os outros dois iam à caça, o Arranca-Pinheiros ficou ao fogão a preparar a ceia. Estava ele a fazer sopa no caldeirão quando a velha lhe bateu à porta.
– Ai que frio! Ai que frio! – disse a velha, e aproximou-se do fogão. Mas quando chegou perto do lume, pegou numa mão cheia de cinza e atirou-a para dentro do caldeirão, estragando a comida.
– Ah velha duma figa! – exclamou o Arranca-Pinheiros, e atirou-se a ela para lhe bater.
Mas a velha deu-lhe uma coça tão grande que quando os seus dois amigos chegaram a casa o encontraram todo aleijado, deitado na cama sem se poder mexer. Muito envergonhado, contou-lhes que tinha sido a velha a pô-lo naquele estado.
– E onde está essa velha? – perguntaram os outros. Mas o Arranca-Pinheiros não sabia. Era como se ela se tivesse evaporado no ar.
A noite passou-se, e no dia seguinte ficou o Arrasa-Montanhas ao fogão. Novamente apareceu a velha.
– Ai que frio! Ai que frio!
O Arrasa-Montanhas já estava avisado, mas mesmo assim a velha se chegou ao fogão, pegou numa mão cheia de cinzas e atirou-a para dentro do caldeirão. Também o Arrasa-Montanhas não teve melhor sorte do que o amigo na véspera. Levou uma tareia tão grande que ficou de cama.
– Amanhã fico cá eu. – disse o João Valentão.
E ficou, com o cacheiro de ferro a seu lado enquanto aquecia o caldeirão. Só que desta vez a velha não bateu à porta. Apareceu-lhe já dentro de casa, pendurada da chaminé.
– Ai que eu caio! Ai que eu caio! – disse velha, e caiu-lhe uma perna. – Ai que eu caio! Ai que eu caio! – e caiu-lhe um braço.
O João Mama-na-Burra já estava à espera dos truques da velha e não se deixou intimidar.
– Ó velha, não caias aos bocados! Cai lá toda de uma vez!
A velha assim fez. Caiu da chaminé e pegou na cinza para atirar ao caldeirão. Já lhe conhecendo a manha, o Mama-na-Burra deu-lhe com o cacheiro de tal feição que lhe arrancou uma orelha.
A velha gritou, porque afinal não era assim tão fantasmagórica que nada a aleijasse, e desapareceu tão de repente que o João Valentão não viu para onde ela se escapuliu. Mas como a velha foi deixando pingas de sangue por onde passou, conseguiu seguir-lhe o rasto até um buraco no chão.
Quando chegaram os seus dois amigos, decidiram descer todos pelo buraco a ver onde ia dar. O primeiro foi o Arranca-Pinheiros. O Mama-na-Burra e o Arrasa-Montanhas ficaram a descê-lo com uma corda, só com a força dos braços porque não precisavam de outros apetrechos. Mas quando ia a meio do buraco, o Arranca-Pinheiros foi atacado por numa nuvem de mosquitos. Picavam tanto e tão ferozmente que o Arranca-Pinheiros teve de gritar para o tirarem dali. Assim eles fizeram, e de seguida desceu o Arrasa-Montanhas. Não se deu melhor e também não suportou os mosquitos.
Mas o Mama-na-Burra estava tão furioso com a velha que nada o faria desistir. Por muito que sofresse, não pediria ajuda. E como pensou melhor fez. Padeceu os mosquitos e chegou ao fundo do poço.
No subterrâneo encontrou toda uma série de aposentos, como se alguém ali morasse. Já muito espantado, ainda mais espantado ficou quando lhe apareceram três meninas.
– Viveis aqui? – perguntou-lhes.
– Sim, vivemos. Mas estamos à guarda de uma velha que não nos deixa sair.
Percebendo que as meninas estavam encantadas, o Mama-na-Burra resolveu logo ajudá-las. Uma a uma, mandou-as subir pela corda.
Lá em cima, o Arranca-Pinheiros e o Arrasa-Montanhas ficaram tão embasbacados ao ver surgir as três bonitas meninas que se esqueceram do amigo e foram-se embora com elas.
O Mama-na-Burra esperou e esperou, mas ninguém descia a corda. Ficou por ali, a pensar no que fazer, e começou a explorar o subterrâneo à procura de saída. Mas passou-se tanto tempo que a certa altura teve fome e não encontrava que comer. Lembrou-se então da orelha da velha, que tinha enfiado no bolso. Cheio de repugnância, acabou por decidir que sempre era melhor comer a orelha do que morrer de fome.
Assim que lhe deu uma dentada, apareceu-lhe a velha à frente, implorando:
– Ai não me comas! Faço tudo o que quiseres, mas não me comas!
– Ah é assim, velha d’um raio? Então leva-me já daqui para fora!
A velha tomou-o às cavalitas e subiu com ele pelo buraco acima até à superfície. (Porque a velha, é bem de ver, era o Diabo.)
– Agora leva-me aos meus amigos! – exigiu João Mama-na-Burra.
– Ai, mas não posso, não posso! – desculpou-se a velha.
– Olha que eu como-te a orelha! – ameaçou de novo o Mama-na-Burra.
Num esfregar de olho, a velha amansou e levou-o até aos amigos e às meninas. O Mama-na-Burra estava zangado com eles, mas o tempo tudo fez perdoar.
E assim se acabou o encantamento. Conta-se que cada um dos amigos se casou com uma dessas meninas e viveram felizes para sempre.
Não se sabe onde pára a orelha da velha.

FIM


Análise
Como eu gostaria de saber a origem deste conto. Cheira-me que tal como n’“O Touro Azul” há aqui qualquer coisa de “As Mil e Uma Noites”. A explicação do Diabo foi inserida depois para explicar o elemento de maravilhoso aos ouvintes cristãos. Outras versões que vi ainda carregam mais neste tom de sermão, transformando as meninas em tentadoras que insistem em seduzir os três amigos com maçãzinhas de ouro. (Como Eva.) A mulher é representada como a encarnação do Mal, e quanto mais velha mais sabida e ardilosa. A velha, então, só pode mesmo ser o Diabo.
Gosto mais da "nossa" versão, em que se contava que “a velha era o Diabo” como um piscar de olho, como quem diz “vamos fingir que sim para isto fazer sentido mas não é para levar a sério”.

domingo, 6 de janeiro de 2019

O Touro Azul (Histórias da minha avó)



"O Touro Azul" era uma das minhas histórias preferidas de infância. Em parte porque combina elementos de duas outras histórias infantis, A Branca de Neve (o arquétipo da madrasta má) e A Gata Borralheira (o arquétipo da jovem pobre e/ou que perde tudo e acaba a casar com um príncipe). Mas o que mais gosto nesta história é a parte triste. A parte que me fazia vir lágrimas aos olhos. O sacrifício. Nunca achei que este sacrifício tivesse valido a pena e sempre pensei, ainda antes de saber que pensava, que este é um conto sombrio e cruel.
Aqui há uns anos andei à procura deste conto na internet e não o consegui encontrar. Decidi um dia escrevê-lo eu e publicar aqui. São contos da oralidade, passados de avós para mães para netas, que facilmente se perdem se ninguém os registar e divulgar. Desta vez, quando tive tempo, procurei e encontrei. O blog Contos da Minha Terra teve a iniciativa de o publicar. É de lá que o transcrevo, acrescentando outros pormenores da versão da história como eu a ouvi e conheço. E já se sabe como é. Quando ouvimos uma história em crianças só há uma versão possível e é a nossa. É a versão sagrada da nossa infância e não admitimos que se altere uma linha. Esta versão, no geral, está muito perto daquela que eu conheço.
Vou fazendo os apontamentos e a análise ao longo do conto.

Era uma vez  um rei e uma rainha, os quais tinham cada um, uma filha. Como ambos eram viúvos, resolveram casar-se, e assim fizeram.
A filha do rei era muito formosa, muito bonita e boa para toda a gente do reino. Ao contrário, a filha da madrasta era muito feia, muito desajeitada e muito malcriada para com toda a gente do palácio. Ninguém gostava  dela. Entregava-se o rei muito ao exercício da caça, e enquanto por lá andava, era a sua filha que o representava, sendo por isso o ídolo dos habitantes do reino.
A madrasta ardia de ciúmes por esta preferência e jurou por sua alma vingar-se da filha do marido. Nesse intento, numa ocasião em que o marido teve de se ausentar , ordenou a madrasta à enteada que fosse guardar um touro azul, que o pai desta comprara e que era muito bravo.


Na nossa versão da história não havia reis nem rainhas. Eram gente do povo, mas gente abastada, porque não compraram só um boi mas uma boiada toda, onde vinha o Touro Azul. 


A boa menina, toda transida de medo, cumpria as ordens da madrasta, recebendo desta uma pequena merenda para comer todo o dia.


A nossa versão é mais perversa. A madrasta entregava à enteada um pão inteiro mas exigia-lhe que o trouxesse para casa intacto. O objectivo era mesmo matar a enteada à fome. Com a ponta do corno, o Touro Azul fazia um buraquinho na côdea por onde a menina podia comer o miolo. Assim, a menina comia e o pão regressava exteriormente intacto. E lá iam resistindo à madrasta.
Para a proteger dos outros touros, o Touro Azul (que obviamente não é um animal mas alguém sob encantamento) deixava que ela o montasse quando estavam no campo.

Contra a sua expectativa o touro não só não a maltratou, mas até a olhava serenamente. No dia seguinte, voltou a menina, e quando se dirigiu para o touro, este ajoelhou-se diante dela e disse-lhe:
-“ Tira o guardanapo , que tenho por detrás da orelha, e estende-o no chão que logo te aparecerá comida e bebida consoante a tua condição.” A princesa fez o que o touro lhe ordenou, e logo viu na sua presença os melhores manjares. Satisfeito o apetite, tornou a colocar o guardanapo atrás da orelha do touro, que em seguida, se retirou, cortejando-a.

Esta parte também me parece estranha. Não me lembro de o Touro Azul cortejar a menina. Lembro-me de ele a ajudar porque tinha pena dela e porque se tinham tornado amigos.

E assim, se passaram alguns dias. A rainha admirada que o touro não atentasse contra a enteada e de que esta parecesse viver satisfeita, ordenou a um pagem que espreitasse a enteada. Em breve, este se certificou de toda a verdade e a comunicou à rainha.
Entretanto, voltou o rei da caça, e a rainha fingiu-se doente, de cama. Ficou o rei muito aflito e mandou chamar os médicos, que declararam achar-se a rainha muito enferma. A rainha fingiu grande fastio, mas como instassem com ela para que comesse, resolveu pedir um caldo da carne do touro azul. Ficou a filha do rei muito magoada com aquela exigência, e antes que o pai mandasse matar o touro azul, foi ela preveni-lo. Pela calada da noite, dirigiu-se à tapada onde logo viu o touro azul.
-“Já sei a que vens aqui: a rainha quer matar-me. Vem comigo, senão ela dá cabo de ti.” – disse o touro azul
E ambos fugiram. Depois de terem andado toda a noite e todo o dia seguinte, disse o touro:
- “Agora vamos entrar nesse jardim, onde há muitas flores de cobre. È guardado por um gigante com quem brigarei, e como ele é muito forte, talvez me mate. Tu repara se cai alguma flor.”

Outra diferença. Na nossa versão da história o Touro lutava contra um feiticeiro (não que altere o efeito ou o resultado). E entravam em pomares, não em jardins. Mas o Touro prevenia a menina para não tocar em nada e não fazer cair uma única folhinha. Dava-se a entender que haveria graves consequências se isso acontecesse.
Sem querer, a menina fazia sempre cair uma folha, e depois de o mal estar feito o Touro Azul dizia-lhe que a recolhesse no avental: "Avisei-te que tivesses cuidado. Mas já que aconteceu, guarda a folha no avental." Esta sequência de acidentes ou descuidos aparentam ser um "quebrar de regras" por culpa da personagem que faz adivinhar um desfecho trágico.


Apesar das súplicas da princesa, o touro encaminhou-se para o jardim. Logo aos primeiros passos viu a menina cair uma flor.
-“ Guarda-a no teu avental:” – disse-lhe o touro.
E a princesa assim fez. Quase ao mesmo tempo, apareceu o gigante e começou a lutar com o touro. Este ficou vencedor, mas muito ferido.
-“ Tira um frasquinho, que o gigante aí morto tem à cintura, e deita-me sobre as feridas o óleo nele contido.”- disse o touro
A menina cumpriu a ordem, e o touro ficou completamente sarado.
Mais adiante, chegaram a outro jardim em que as pétalas das flores eram de prata. Nele também havia um gigante, que foi morto pelo touro, sendo as feridas que ele recebera, curadas com o licor contido no frasquinho que pendia da cinta do gigante. Aqui, também caiu uma pétala de prata que a menina recolheu no seu avental..
Mais adiante, apareceu outro jardim em que as pétalas eram de ouro. De guarda estava um formidável gigante que trazia à cinta um frasco e uma faca de mato. Lutou o gigante com o touro e este matou o gigante.
Então disse o touro à princesa: -“ Deita-me nas feridas o líquido do frasco e guarda a faca de mato.”
A menina assim fez. Mais adiante pararam, e disse-lhe o touro: - “ Que vês acolá?”
-“ Vejo uma ribeira e lá no cimo do monte uma casa” – respondeu a menina
O touro azul disse-lhe: - “A casa que vês é um palácio; aí vive uma rainha com o seu filho. Agora farás o seguinte: com a faca que trazes tira-me a pele, guarda nela as três pétalas que apanhaste, e vai meter tudo debaixo daquela lage ali ( aponta-lha), a qual às três pancadas, se levantará. Depois suja-te na ribeira e vai-te oferecer como criada àquele palácio. Quando ouvires dizer que há aqui perto alguma festa, faze-te parva e pede que te deixem lá ir. Debaixo da lage encontrarás o que desejares para te vestires.”
Bem contra a sua vontade, a menina fez o que o touro lhe ordenou.

Esta é a parte mais dramática do conto e aqui é apresentada quase sem relevância nenhuma. Na nossa versão, não é a menina que mata o touro. O Touro Azul venceu a batalha com o último feiticeiro mas desta vez ficou tão ferido que já não consegue recuperar. Sabendo-se a morrer, dá indicações à menina de onde se dirigir. A menina não o quer deixar, mas ele convence-a. Porque é que o Touro Azul morre? Porque enfrentou feiticeiros a mais? Porque demasiadas regras foram quebradas? Porque já não é possível reverter o encantamento? O que o levou a ir enfrentar estes adversários? Tanto na versão aqui transcrita como na que conheço, a história nunca dá resposta. E a que dá não me convence, como explicarei no fim. Mas a verdade é que por amizade ou amor o Touro Azul desiste de si próprio e sacrifica a sua vida pelo futuro da menina.

Foi enfim a princesa suja e com os cabelo em desalinho, oferecer-se por criada ao palácio, dando-se o nome de Maria.
Foi recebida por criada. Daí a dias, pediu o príncipe um pente. Foi a criada levar-lho. Ele atirou fora o pente dizendo:
-“Já não tinham por quem mandar o pente, senão pela Maria Suja!...”

A nossa versão da história era mais bruta. O príncipe não atirava só o pente como atirava também a Maria Suja pela escada abaixo.
Mas temos também outro pormenor mais bizarro. Ao despedir-se, o Touro Azul dá à menina um fato todo de pau, bem como sapatos de pau. (Debaixo da lage encontrarás o que desejares para te vestires.) Quando o príncipe a atira pelas escadas abaixo ela não se aleija devido a este fato protector, mas a queda faz um grande barulho.
De onde terá vindo este pormenor? Não foi de certeza invenção da minha avó. A contaminação (de outro conto?) terá sido anterior. Será que este fato de pau estapafúrdio e todo o episódio de rolar pelas escadas abaixo, e a barulheira, servia como comic relief para distrair e divertir as crianças depois da morte do Touro Azul? Actualmente não acho graça nenhuma. Pelo contrário. Isto do fato e da violência lembra-me algo entre o BDSM consentido e o abuso explícito.

Passado tempo, realizou-se naqueles arredores uma festa. À custa de muitos pedidos, deixaram ir a criada à festa. A criada dirigiu-se à lage e logo, diante dela, surgiu uma carruagem de cobre e juntamente uma vestimenta completa do mesmo metal. Maria dirigiu-se na carruagem às festas, onde deu nas vistas de todos, sem excepção do príncipe, seu amo, que lhe perguntou de onde era.
-“ Da terra dos pentes!” – respondeu-lhe a Maria
De outra vez, mandaram pela mesma criada ao príncipe uma toalha que ele pedira para se limpar. O príncipe recusou a toalha dizendo:
-“ Não quero toalhas da Maria Suja!”
Daí a poucos dias, houve outras festas às quais a criada Maria, seguindo os processos indicados, se apresentou em carruagem de prata e vestida do mesmo metal.
- “ De onde é? – perguntou o príncipe
-“ Da terra das toalhas.” – respondeu a Maria
Numa outra ocasião, o príncipe pediu um copo e foi a Maria levar-lho. Este , muito enojado por ver que quem lhe trazia o copo era a Maria Suja, disse que não o queria.
Dias depois, houve outra festa a que Maria assistiu vestida de ouro, em carruagem do mesmo metal e toda coberta de jóias de grande valor.
O príncipe, com os seus ares mais namorados e respeitosos, perguntou-lhe de onde era.
“Sou da Terra dos copos “– respondeu a Maria e começou a fugir da festa
Desta vez o príncipe não ficou calado nem pasmado. Correu atrás dela e conseguiu apanhar-lhe o sapato que ela tinha deixado cair, levou-o para o palácio, como uma relíquia preciosa.

Da mesma forma, a nossa versão da história não termina com o sapatinho da Gata Borralheira. Esta é uma contaminação mais óbvia. Na nossa versão o príncipe acaba por perceber sozinho que a menina dos copos e das toalhas é a criada do palácio e casa com ela. E acaba assim.

Convocou todas as princesas daqueles arredores, resolvendo casar com aquela a quem o sapato servisse. Entre as diversas princesas apareceu a filha da madrasta de Maria Suja . Ela calçou o sapato e disse que lhe ficava bem, embora a magoasse a ponto de lhe rasgar a pele do pé, deixando-o todo ensanguentado.
Como o sapato lhe servia, foi logo ali marcado o casamento. Sucedeu porém, haver no palácio uma pega, que foi a razão de se descobrir o engano. Com efeito, quando os dois noivos estavam já dentro da igreja, entrou a pega na igreja dizendo: “ – Olha como ela vai toda inchada com o sapato que pertence à Maria Suja!”
Parou imediatamente a cerimónia e o príncipe tratou de se certificar se o que a pega dissera, era verdade. Todos verificaram que o sapato não servia àquela princesa, que agora o calçava. Chamaram a Maria Suja e verificaram que ela o calçava muito bem, pois era dela o sapato. Em visto de tudo isto, o príncipe casou com a Maria Suja, pois que o príncipe era nem mais nem menos que o touro azul.

FIM

Revista A Tradição Setembro 1901(texto adaptado)

Aqui está a parte que não me convence. Como é que este príncipe besta, fútil e arrogante pode ser o Touro Azul que sacrificou a vida por amor e amizade?
Nem vamos tão longe. Como é que um pode ser o outro se nunca nos é dito que o príncipe esteve desaparecido ou ausente do palácio enquanto estava encantado como Touro Azul? Enorme plot hole.
É claro que por artes mágicas tudo é possível. O príncipe pode ter sido "desdobrado" num duplo Touro Azul. E aqui teríamos duas hipóteses:
1, ou o príncipe se lembra da experiência quando o encantamento é quebrado, o que não parece ser o caso porque não reconhece a Maria Suja;
ou,
2, o príncipe não se lembra de nada e foi como se não tivesse acontecido com ele. O que nos leva à estaca zero: de uma forma ou de outra, o príncipe e o Touro Azul não são a mesma pessoa. Este fim foi ali metido à martelada para justificar a morte injustificável do Touro Azul.
Sempre me perguntei se não haveria mais pormenores nesta história que de geração em geração se foram perdendo. O conto lembra-me muito "As Mil e Uma Noites". A origem do Touro Azul (quem é, de onde veio, quem o encantou e porquê, porque tem de morrer) parece um desses contos que continuam de outros anteriores. A minha teoria, baseando-me só no que a história apresenta, é que o Touro Azul era ele próprio um feiticeiro que foi castigado/derrotado pelos outros três. Afinal, ele sabe muito bem onde ir e como se vingar. Mas isto é apenas uma conjectura.

O conto é infeliz. No fim, todos perdem. A madrasta ganha (livra-se da enteada). O Touro Azul morre. E até a menina acaba casada com uma besta de um rapazinho fútil que só repara nela quando está coberta de ouro. Que ela melhora a sua condição social? Talvez melhore. Mas que aceitação tão cínica pressupõe este conto. Os bons não vão longe. O dinheiro, a posição social e as aparências são o que mais conta. O sacrifício altruísta não tem qualquer recompensa. Aposto que no futuro, com aquele marido, a menina foi muito infeliz apesar de coberta de ouro.
Não posso considerar um final feliz nem nada que se pareça. "O Touro Azul" é uma história triste, desencantada, cínica e deprimente. E é se calhar por isso que era uma das minhas histórias preferidas na infância.