domingo, 4 de dezembro de 2022

The Handmaid’s Tale (2017-?)


[crítica à primeira e segunda temporadas]

Uma das séries mais chocantes dos últimos tempos, esta é a adaptação do livro homónimo de Margaret Atwood.
Antes de entrarmos na crítica propriamente dita, tenho duas coisas a dizer.
A primeira, é que fiquei chocada por haver mulheres que ficaram chocadas por esta série mostrar o quanto as mulheres podem ser más umas para as outras. Não percebo, sinceramente. Que existências resguardadas devem estas “chocadas” ter experimentado a vida toda ou, pelo contrário, o “choque” é fingido. Custa-me a acreditar que uma mulher não conheça a perfídia (e o fingimento) de que outra mulher é capaz.
Segundo, embora não seja grande apologista de leituras obrigatórias, penso que este livro (e/ou a série), tal como outros clássicos distópicos como “1984” de George Orwell e “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, deviam fazer parte de um kit de leitura de sobrevivência e prevenção contra todos os totalitarismos.
Acho muito curioso que o livro tenha sido publicado em “1985” (embora todos os livros sejam escritos muito antes), como se uma sequência natural de “1984”. Terá sido apenas uma coincidência, mas não deixa de ser interessante.
Uma vez que não estou a escrever um livro, posso dar-me ao luxo de um pequeno info dump para situar a história. A Terra está tão poluída que isso se reflectiu nas taxas de fertilidade e natalidade. Muito poucas mulheres conseguem engravidar e levar a gravidez a termo, ou mesmo dar à luz bebés saudáveis. (Isto recorda outro clássico distópico, “Children of Men” de P. D. James, mas muito mais chocante.) Na América, uma facção de fanáticos religiosos chamados Sons of Jacob tomam o poder pela propaganda e pela força, entrando em guerra com o governo americano (que perde) e estabelecendo o regime do novo país Gilead. Mulheres férteis são escravizadas como Handmaidens (Servas) para darem à luz os filhos dos governantes de Gilead.
Pauso novamente para explicar de onde os Sons of Jacob tiraram a ideia. É possível que os Sons of Jacob tenham sido uma seita evangélica antes do regime, mas os pressupostos bíblicos em que se baseiam e a nova religião que inventam não têm nada a ver com qualquer cristianismo que conheçamos hoje. A ideia das Servas vem do episódio bíblico em que Raquel, sendo estéril, “oferece” a sua serva (escrava) Bila a Jacó (a Bíblia está cheia destes exemplos edificantes) para que este tivesse relações sexuais com ela e Bila “parisse sobre os joelhos” de Raquel, como se o filho fosse desta. (Génesis 30, 1-5) Basicamente, Bila é uma barriga de aluguer à força, tal como o são estas novas Servas de Gilead.
A nova religião leva este “sobre os joelhos” completamente à letra e inventa um ritual em que a Serva é violada no meio das pernas da esposa enquanto o marido a penetra sem lhe tocar. Isto não é só doentio e repugnante e criminoso, acho-o mesmo escabroso e até um pouco badalhoco (em todos os sentidos). Mas segundo a doutrina do ritual em que marido e mulher participam, a Serva é apenas o receptáculo entre eles.
Da mesma forma, quando a Serva dá à luz, a esposa finge que também está a dar à luz, fazendo a respiração e tudo. Dito assim, até parece cómico. Foi mesmo por achar cómico que uma das futuras Servas, ainda em “formação”, perdeu um olho.
Quando as Servas têm filhos, as crianças são-lhes tiradas e as Servas são enviadas para um novo “destacamento”. Uma vida de inferno.

Offred / June
Offred é a Serva do Comandante Fred Waterford (daí o nome OfFred) e da sua esposa Serena Joy. Na “outra vida” Offred chamava-se June, casada com Luke e mãe de Hannah. Quando o regime de Gilead começou a exercer poder, como a própria June explica, estavam “adormecidos”, incapazes de acreditar que as coisas chegassem tão longe. Mas então começa a guerra e o totalitarismo impõe-se de forma brutal e sangrenta. June e Luke ainda tentam fugir para o Canadá, mas são apanhados. Luke consegue escapar, com ajuda de estranhos. Hannah é retirada à mãe e entregue a um casal de dirigentes do novo regime. June, por ser fértil, é “recondicionada” para ser Serva, o que implica tortura, lavagem cerebral, mutilação e até morte para as mais rebeldes.
Demorei um bocado a perceber que nem todas as mulheres férteis iam para Servas. June não escapou porque é considerada adúltera. Descobrimos depois que June e Luke começaram por ter um caso enquanto ele ainda era casado com outra mulher, de quem se divorciou para casar com June. Basta isto para ser pecado, ou desculpa, para arrebanharem mais uma Serva. Mães solteiras, lésbicas, “pecadoras” várias, desde que férteis, vão para Servas. Outras mulheres vão para Marthas (criadas domésticas). Em Gilead tudo está previsto, até as cores com que todas se vestem: as Esposas vestem verde, as Servas vermelho, as Marthas cinzento. Assim não há confusões quanto ao lugar de cada qual na sociedade. Para além da violação ritualizada uma vez por mês, chamada a Cerimónia, as Servas também podem ir às compras, duas a duas, por ruas cheias de enforcados: homossexuais, médicos que fazem abortos, até padres. Gilead não gosta da religião antiga porque tem a sua.
As mulheres são proibidas de ler, até mesmo a Bíblia. A pena por ler é o corte de um dedo ou da mão toda. (Pergunto-me como é que eles pensam continuar a fazer isto no futuro. Para uma sociedade que passa o tempo a declamar salmos e outras passagens bíblicas memorizadas, vai tornar-se difícil que as mulheres memorizem o que não conseguem ler… Mas se calhar bastará um ”ámen”, como na Idade Média em que o povo também não lia.)
Como desculpa para todos estes horrores, os dirigentes de Gilead proclamam que estão a criar um mundo sem poluição (à excepção dos carros e aviões deles). Isto justifica também regressar a hábitos “tradicionais”, como andar 300 anos para trás.
Não há nada em “The Handmaid’s Tale” que não se tenha passado algures na História, como diz a própria autora, mas admito que aquela violação escabrosa e institucional a dois possa ser um elemento realmente original.
Nesta sociedade santarrona, apesar de tudo, o vício tem lugar nos bastidores. Quando uma mulher é considerada “irredimível” é enviada para bordéis secretos onde é chamada Jezebel. A Jezebel é igualmente uma escrava, mas não institucional. As mulheres, até mesmo as Esposas, perderam todo e qualquer poder. Se sabem, fecham os olhos.
Finalmente, quando a mulher já não tem qualquer valor reprodutivo ou sexual, ou é demasiado rebelde, é enviada para as sinistras Colónias (ainda não percebi onde são) encher sacos de lixo radioactivo até à morte. Estas são chamadas Unwomen, o que lembra a “non-person” de Orwell (quem era morto pelo regime). Aliás, o que não falta aqui é “new-speak”, como em qualquer totalitarismo. “Bendito Seja o Fruto”, “Que o Senhor Abra”, é a saudação entre Servas. Cada classe tem a sua.
Offred tem momentos de grande desespero, mas não pode desistir porque não perde a esperança de salvar a filha Hannah. Isto é um grande motivador. Outras mulheres perdem a cabeça (como Janine) ou recorrem à violência em desespero de causa (como Emily, que já não julga escapar com vida). Offred tem dois grandes trunfos para além da motivação de encontrar a filha: é uma manipuladora nata, e está (sempre esteve) muito à vontade com a sua sexualidade. Isto permite-lhe, por exemplo, seduzir o Comandante Fred e fingir-se sua amante (chega a fazer sexo com ele fora da obrigação da Cerimónia) de modo a obter mais margem de manobra e protecção. Não imagino uma Emily a conseguir fingir isto, mesmo que quisesse. Numa forma de reclamar o seu corpo e a sua sexualidade, June envolve-se numa relação romântica (e consensual) com o guarda/motorista dos Waterford, Nick, o que se vai revelar fulcral para o desenvolvimento do enredo.
June tem a perfeita consciência de que pisa demasiado o risco. É necessário resistir, mas não ser estúpida a ponto de ser enforcada: morta, não conseguirá ajudar a filha. Mas June não é a personagem perfeita, longe disso. Tal como alguém lhe diz, já na terceira temporada, muitas vezes é egoísta e age apenas no seu interesse, não importando quem tenha de sacrificar. E é verdade, por exemplo, quando quase obriga um casal a ajudá-la a fugir, o que estes fazem por decência, com resultados funestos. (Curiosamente, esta é uma família muçulmana que esconde o Corão debaixo da cama, o que leva June a meditar que podia ter sido a família dela, se tivessem sabido jogar o jogo, se soubessem que o estavam a jogar, e se tivessem frequentado “a igreja certa”. As famílias medianas em Gilead não têm Servas e Marthas ao dispor, são apenas gente normal a tentar sobreviver mesmo que tenham de esconder a sua religião, o que nos leva imediatamente para um paralelo com o Nazismo.)
Noutra situação, Offred incita as outras Servas à revolta, sabendo que por estar grávida se tornou “intocável”, mas as outras são barbaramente castigadas e June tem de viver com essa culpa. Mas eu gosto de personagens realistas, complexas e atormentadas. O que nos leva aos verdadeiros vilões.

Fred e Serena Joy Waterford
“The Handmaid’s Tale” recorre bastante aos flashbacks para nos mostrar como as coisas evoluíram até Gilead. Fred e Serena eram dois fanáticos fundamentalistas que já na altura acreditavam que a humanidade estava à beira da extinção e que era preciso tomar todas as medidas necessárias para o evitar, drásticas que fossem. Serena foi mesmo uma das arquitectas do regime ao escrever o livro “O lugar de uma mulher” onde expôs o seu conceito de “feminismo doméstico” , remetendo a mulher ao seu papel de esposa e mãe. Sim, ironicamente, foi ideia dela. Isto ainda era no tempo em que Fred e Serena se olhavam como iguais e Serena escrevia livros e dava palestras. Depois de Gilead, tudo mudou. Agora Serena não pode sequer ler o seu próprio livro, e aceitou tudo isto voluntariamente por acreditar na “causa maior”. Mas quando Offred chega a casa dos Waterfords, o casamento deles já está de pantanas. Já não dormem juntos, já quase nem se falam. Serena Joy é a personagem mais complexa nisto tudo. Apesar de ter tido parte bastante activa no estado de coisas, tenta afogar todas as frustrações no objectivo (ou obsessão) de ter um filho através de uma Serva, mas cá para mim não há nada que sacie Serena Joy porque todo o seu intelecto e brilhantismo foram apagados na sociedade que ela própria criou. Não admira que tenha dores de consciência ocasionais, e ataques de raiva que descarrega na Serva e nos criados. Serena Joy poderá nunca ser absolvida perante a sociedade pelos crimes que cometeu, mas também não encontrará paz de espírito enquanto não aceitar os seus erros.
Fred é o personagem menos explicado. Nos flashbacks de “antes” vemos claramente que não era o monstro em que Gilead o tornou, nem Serena Joy teria casado com ele se o fosse, mas não percebemos exactamente como é que ocorreu a transformação de homem que apoia e admira a mulher que escreve livros e discursa em público para marido capaz de a castigar com tareias de cinto. É uma grande diferença e só posso concluir, sem outros motivos, que o poder lhe subiu à cabeça. Mas o estatuto de pai de família é importante e não lhe corre bem alienar ainda mais Serena Joy. Não conseguimos empatizar com estes monstros, mas salta à vista que ninguém é feliz em Gilead, nem os mais poderosos do regime.

Uma série mais actual do que a própria Margaret Atwood poderá ter julgado em 1985
Haverá mais a dizer com as temporadas seguintes, mas para já decidi ficar por aqui. “The Handmaid’s Tale” é uma história cada vez mais actual. Basta recordar que em alguns estados americanos, muito recentemente, o aborto foi proibido. Tal como nos diz a própria série, “não aconteceu da noite para o dia”. Foi progressivo, de perda de liberdade em perda de liberdade até à submissão total.
Destaco ainda a belíssima cinematografia que contrasta propositadamente com as atrocidades a que temos de assistir. Neste aspecto, e pelo tema, “The Handmaid’s Tale” lembra-me “The Man in the High Castle”, mas muito mais realista e acutilante.
Esta é uma série difícil de ver pela tortura e pela barbaridade, mas que aconselho a toda a gente, especialmente àqueles que preferem enterrar a cabeça na areia até ser demasiado tarde (como June e Luke) e não gostam de ver estas coisas. Dois olhinhos bem abertos evitam muitos males. Há que pará-los antes de começarem.

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