segunda-feira, 29 de julho de 2019

Game of Thrones / A Guerra dos Tronos (final)


[crítica ao FIM; spoilers do último episódio]


Então, quem é que se sentou no Trono de Ferro? Ninguém.
A maioria das críticas são unânimes e eu concordo: durante as duas últimas temporadas foi tudo a correr, de plot point em plot point, sem tempo para aprofundar personagens. A maior vítima desta pressa foi a pobre Daenerys, transformada num monstro em 30 segundos para andar com o enredo para a frente. Nem a actriz nem a personagem mereciam isto. A ideia que tentou ser vendida é que Daenerys enlouqueceu, mas o que passou não foi convincente, nem como loucura nem como evolução natural da personagem. Daenerys não pareceu louca, pareceu monstruosa. Conseguiram transformar a Daenerys no Hitler, basta olhar para este cenário:


Só falta a suástica de 5 metros de altura. Heil!
Outro personagem desnecessariamente atropelado na pressa de chegar ao fim foi Jaime. O desgraçado ia a caminho da redenção, e até compreendo que tenha regredido a meio do caminho. Mas não em meia hora, por amor de Deus! E qual foi a necessidade daquilo com a Brienne (tirando fan service, isto é?) Se queria voltar para a irmã, que voltasse. Mas o que se passou foi que o personagem não sabia o que queria, não sabia quem queria, não sabia o que estava a fazer nem para onde se virar. Coitado, transformado em barata tonta. Merecia um fim mais consistente, quer se redimisse ou não. Mas os criadores da série estavam cheios de pressa para ir fazer outra coisa qualquer (que algo me diz que não vou ver).


O que mais não fez sentido
Perdi qualquer esperança de que o fim da série fizesse sentido quando acabaram com o Night King daquela maneira (o rei dos zombies, para quem não sabe). Este é um desgosto pessoal, admito, porque eu estava realmente a torcer pelos zombies. Talvez não esperasse que vencessem, mas nunca pensei que dessem tão pouca luta. Uma batalha, um episódio, uma ninja adolescente. E assim acabou a maior ameaça de Westeros em milhares de anos, a razão da existência da Muralha, a primeiríssima cena da série. Enfim, nem tenho palavras. Foi mesmo uma desilusão. Nem cheguei a perceber afinal o que é que os zombies queriam. Houve um episódio que explica que a criação deles foi uma espécie de feitiço contra o feiticeiro, mas isso não explica qual era a ambição que os movia. Os zombies não paravam de aumentar as fileiras do seu exército dos mortos. Para quê? O objectivo era invadir o Sul. Porquê? Num dos episódios raptaram um bebé e transformaram-no num deles. Com que objectivo? Por que raio precisavam de um bebé? Só “porque sim” não é resposta. Agora nunca vou perceber para que é que queriam o bebé.
Não pretendo ler a saga de George R. R. Martin, mas, quando e se o homem a escrever a história dos zombies, seria um livro que me interessaria. E talvez possa vir daí a minha conclusão consistente. Mas para isso é preciso que Martin escreva e é melhor não esperar de pé.
Depois desta correria desenfreada, chegámos finalmente ao último episódio. E deste, confesso, gostei da primeira parte (que tem a duração de um episódio inteiro). Especialmente a cena dramática entre a Daenerys e o Jon Snow. Até gostei do dragão! Foi das raras vezes em toda a série que de facto me importei com os personagens. Admito que me surpreendi por ter gostado tanto, porque quase tudo o que aconteceu em “A Guerra dos Tronos” teve principalmente um efeito de choque (o Red Wedding, a morte da princesa Shireen, o sadismo de Joffrey e de Ramsay, as fogueiras de Melisandre, as execuções-por-dragão de Daenerys, tudo porno-tortura) mas a isto eu senti. Finalmente, Jon Snow conseguiu pôr a funcionar o Tico e o Teco e agiu com a cabeça. Teria tido mais pena da Daenerys, mas depois de a transformarem no Hitler em 30 segundos já não deu para empatizar grande coisa.
Já a segunda parte do último episódio foi um festival de disparate. Bran? Eu já me tinha esquecido de que Bran era um personagem. E aquela reunião de nobres(?) e outras pessoas com o Torgo Nudho? Quem era aquela gente que ali apareceu do nada? Custava alguma coisa apresentarem-nas? Alguns descobri quem eram a ler críticas. Outros ficarão para sempre no mistério do meu desinteresse. Afinal, isto era a Guerra dos Tronos. O mínimo que se pode esperar é que o espectador reconheça os sobreviventes.
O fim foi completamente incoerente. Torgo Nudho não ia esperar sei lá quanto tempo por um julgamento com gente que não lhe diz nada. Assim que Torgo Nudho virasse costas, Jon Snow não ia para a Muralha. E qual Muralha? O próprio Jon Snow pergunta “ainda há uma Muralha?”, e com ele nós todos. Já não há Night King, nem sequer cavalos zombies e dragões de gelo. O que é que alguém vai fazer para a Muralha?
Bran e Sansa só acabaram como acabaram, os donos do pedaço, porque o verdadeiro Rei devia ter sido o irmão/primo deles. Essa é que é a verdade e devia ter sido a conclusão lógica da história.

Os vencedores
Apesar de tudo isto, algumas personagens conseguiram conquistar-me. Tyrion, não é novidade, sempre foi o meu preferido. Embora no fim tenha tido momentos de burrice que não fazem justiça ao personagem (e Varys, idem) quando decidiu agir com honra e coragem em vez de ser inteligente. Só se safou graças ao Jon Snow, que foi mais esperto. Não deixa de ser irónico.


Sansa nunca foi preferida do público desde o início mas eu sempre vi nela o potencial daquilo em que se tornou. Se se pode dizer que alguém ganhou a Guerra dos Tronos, esse alguém é Sansa, não apenas sobrevivente mas vencedora, não apenas uma Lady mas uma Rainha. Gostei.


Também gostei da última tirada de Samwell Tarly, sugerindo dar voz ao povo para escolher os seus governantes. Momento brilhante de alguém à frente do seu tempo. Infelizmente, ninguém lhe ligou nenhuma.


Arya, a miúda ninja, não sei o que lhe aconteceu mas perdi completamente o interesse por ela. Lembra-me aquela cena d’“Os Diários do Vampiro” em que eles desligam a humanidade. Foi o que me pareceu, que ela desligou a humanidade e se tornou uma espécie de super-Arya. Super-heróis não são o meu género e nunca serão.
Mas, no meio disto tudo, uma personagem cresceu no meu coração. Brienne de Tarth, que a princípio era bidimensional e irrelevante, nas últimas temporadas tornou-se uma mulher de carne-e-osso, não apenas uma mulher “que queria ser homem” mas alguém que amou (um homem que não a merecia), que sofreu, e que se elevou ao abandono com a maior das dignidades. Não sou daquelas que só fica satisfeita quando as personagens têm um final romântico mas, se Brienne quiser pensar no assunto, há sempre o Tormund. Depois de amestrado, e com maneiras à mesa, quem sabe, ainda se encontram para tomar um copo?


Tormund, o “gigante” (gigante entre aspas, porque nesta série há gigantes a sério) voltou para o norte, para lá da Muralha, de coração partido. Mas estar longe não é estar morto.
Para minha felicidade, Ghost (o lobo ou direwolf) também foi com ele. Esteve difícil, mas o bicho safou-se. Ainda bem, nesta série que se fartou de matar animais. Quem é que, não sendo um serial killer com nostalgia pela infância, quer ver isso?


Em suma, uma boa cena dramática (Tyrion, Daenerys, Jon Snow, Drogon) não basta para compensar a enorme frustração que foi assistir ao final desta série. Eu até não sou uma daquelas fãs “die hard”, não estou desiludida e em lágrimas, mas não é por isso que não tenho direito a um final que faça sentido. Desde que os criadores da série ficaram sem os livros para os guiar o enredo foi por água abaixo e nunca mais se elevou ao nível das primeiras temporadas.  Resta-nos esperar pelo Martin, se entretanto ele não perdeu o interesse em escrever o resto.



Primeira parte da crítica à série até à quinta temporada AQUI

Segunda parte da crítica à série até à quinta temporada AQUI


segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Feiticeira, de Ana de Castro Osório

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Esta é uma história de aldeia com personagens a condizer. Num cenário muito rural, existe um rapagão considerado o melhor partido da terra, o Manel da Clara, que “tem alguma coisa de seu, e no fundo não é mau rapaz”.
Este tal Manel está dividido entre duas pretendentes, a pálida e frágil Teresinha, que “era afilhada da fidalga e lá pelo palácio se tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubescia como romã bem madura quando ele a fitava de frente, bem de frente, como fazia às mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em jucundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegância exótica ao seu corpo delgado de anémica, flor tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a única que na terra sabia ler, eram também os seus os únicos olhos que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja à procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da raparigada”, e a robusta Maria do Próspero, que “era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fora brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A boca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delícia no pão de milho, sua única escova. As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma touca de veludo negro. Quando punha o cachené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o xale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar admiradores. Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos sadios, vividos em plena natureza.”
Esta tal Maria, mais extrovertida, está a conseguir avanços no coração do Manel que a tímida Teresinha não alcança. A tia da Teresinha, que faz muito gosto no casamento, queixa-se à Gertrudes Zarolha que o Manel não se decide a declarar-se à Teresinha. A Gertrudes Zarolha oferece ajuda através de umas mezinhas de bruxa de aldeia:
“— Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hão-de voltar o Manel, oh se hão-de!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a oração... É coisa certa.”
O Manel, em noite que vinha da feira, depara-se então com um Sabat onde nem faltava “o Diabo passeando altivo, vestido de encarnado e de chapéu guizalhante, poisando os pés de forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente”. Entre as feiticeiras, Manel vê a Maria do Próspero, e “E quando a viu chegar ao pé do homem vermelho, estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardor, não pôde reter um surdo grito de raiva.” Horrorizado, nunca mais lhe fala e casa antes com a Teresinha.
Mas aqui é que está a parte mais difícil de perceber. Parece que ele não viu a Maria do Próspero. Esta nega tudo quando é confrontada. Mas, caída em desgraça, perde o gosto pela vida e torna-se um fantasma de si própria, questionando-se mesmo se afinal é de facto a bruxa que a acusam de ser.
Este conto peca pela falta de desenvolvimento. Havia aqui o suficiente para um romance, com personagens bem desenvolvidas, maior imersão no pano de fundo da vida na aldeia, maior aprofundamento psicológico dos protagonistas, pistas que nos levassem a perceber que se passa mesmo algo de sobrenatural. Afinal, esta Gertrudes Zarolha tem pacto com o demo, ou, no mínimo, tem poderes suficientes para invocar a imagem de um Sabat na mente do Manel, e até de o fazer ver a Maria no Sabat, e isto é tratado como se nada fosse?... Assim parece um conto escrito a correr, sem ter o desenvolvimento que merece. No pior dos casos, soa-me a coisa escrita por senhora da alta sociedade a gozar com as superstições (e a linguagem, e o modo de pensar, e a “vidinha”) do povo ignorante, porque é “himalaias de giro” observar a gentinha. E isto irrita-me muito. Se calhar não era a intenção da autora (raramente é) mas foi o que chegou até mim.
O conto tem uma temática gótica o bastante mas falha na execução.


-§-

Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.




segunda-feira, 15 de julho de 2019

O Corvo, de Fialho de Almeida

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Na sequência de um naufrágio, bóia no mar o cadáver de um escravo. Um corvo tenta alimentar-se do cadáver. E é só isto. Apesar da temática mórbida, este é um conto que eu identifico muito mais com o realismo do que com alguma sensibilidade a que se possa chamar gótica. O autor observa a cena e comenta-a, “O negro lá continua de bruços sobre as ondas, hirtas as pernas, o cavername do tronco abroquelado em glaciais musculaturas, os ombros sempre unidos, a cabeça debaixo do peito, como em vivo fizera, quando o chicote do amo lhe arava as carnes, delas fazendo suar martírio e sangue”, no que é uma posição política implícita contra a escravatura, e atira invectivas ao corvo como se o pássaro tivesse alguma culpa por se alimentar.
É claro que existe aqui uma metáfora no corvo, “Só o corvo prossegue na sua tarefa exaustinada, e imagem do ódio, ei-lo armando em força a cobardia, requintando a vingança, tripudiando sobre a impunidade — como esses vencidos que se desforram da humilhação sofrida, indo aos cemitérios esbofetear os cadáveres dos vencedores”, mas como no caso do conto “O Mistério da Árvore”, de Raul Brandão, faltam-me as referências para identificar a quem se destina a crítica virulenta sem ter de ir procurar fora do conto. É assim que as obras panfletárias ficam datadas e perdem relevância.
Posso estar a ser infinitamente injusta, mas também não gostei da escrita rebuscada do início , versão “o homem que engoliu um dicionário”: “Aos primeiros clarões da manhã, o casco do galeão tinha-se afundado inteiramente. Para qualquer lado que se olhava, o mar não tinha termo; o céu ia coberto duma bostela de nuvens cor de chumbo, mosqueada de fulvo, que se fora erguendo duma banda, erguendo té descobrir sobre a linha do mar uma fímbria d’alva muito pálida, por onde a luz começou a esclarecer de manso o plaino líquido. E esse plaino amainava e começara a perder os vagalhões… Sobre as águas se erguia, à maneira de torre, um grande ilhéu bronco e tisnado. Era uma massa de fortins dentada toda em roda, por cima de cuja plataforma outras moles gigantes se aprumavam. E havia pórticos, recantos, pátios, levadiças: a ressaca bramia nos recôncavos da rocha babugenta; por cima as nuvens galopavam, embebendo os goelanos e os corvos marinhos do seu chorume glácido e mortal.” Felizmente este estilo é abandonado assim que entramos na história propriamente dita.
O gótico baseia-se muitas vezes no mórbido, mas nem tudo o que é mórbido é gótico. Na minha opinião, este é precisamente o caso. Não reconheço neste conto o “belo do horrível”, apenas o horrível e panfletário.


-§-


Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.



segunda-feira, 8 de julho de 2019

O Mistério da Árvore, de Raul Brandão

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

De Raúl Brandão li “Húmus” (1917). Já não me lembro porque li. Se calhar por ser considerado o primeiro romance existencialista português. Mas perguntem-me de que trata o livro. Não me lembro. Não ficou nada. Foi daqueles que li por curiosidade e cultura geral. Já deste “O Mistério da Árvore” vou-me lembrar. Não por causa da história propriamente dita, porque quase não a tem. Um Rei que odeia a vida e, principalmente, o amor, manda enforcar dois amantes que entram no seu reino. Na árvore em que eles são enforcados, uma árvore negra e seca, que “não bebia água, nem sugava húmus”, nasce um galho florido. E é isto. Mais do que contar uma história, Raul Brandão pinta um retrato deste Rei e desta árvore em prosa poética. “Só o Rei no Palácio trágico vivia braço a braço com a Dor. A vida, a luz, as árvores lembravam-lhe a sua miséria e enojavam-no. Queria que todo o país fosse negro e viúvo; e o Amor que ele sentia correr na terra, a Morte até, que tudo transformava e enchia de vida, lhe parecia uma abominação.” Do que li de Brandão, sobressai imediatamente a obsessão/fascínio com a terra. A terra como lugar de germinação e a terra como lugar de decomposição. Ventre e sepultura, semente e húmus. Há algo de hippie antes do tempo neste fascínio em que Brandão faz equivaler a natureza à vida, ao amor, à alegria.
Mas confesso que não percebo exactamente onde é que Brandão quer chegar com este conto. Quem é o Rei Trágico? Será psicológico, alguém em particular? Sociológico, a sociedade do seu tempo como Brandão a via? Religioso, a igreja? Político, um louvor ao povo pobre mas “feliz”? Existe aqui uma crítica contundente algures, mas o conto já não basta para a identificar sem termos de ir estudar o autor e a época.


-§-


Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.



segunda-feira, 1 de julho de 2019

Colony (2016-2018)


[crítica às três temporadas; contém spoilers]

É um erro pensar nesta série como mais uma invasão extraterrestre. “Colony” é a história de uma família que tenta sobreviver a uma colonização repressora e brutal onde a vida humana perdeu o valor. Nada do que acontece aqui não aconteceu já em várias ditaduras do século XX. Desde a Ocupação nazi e à Resistência francesa (onde a série se inspira predominantemente), às outras ditaduras fascistas e comunistas, das europeias às soviéticas, às asiáticas, às latino-americanas. A invasão extraterrestre é uma desculpa para revisitar episódios da História tão monstruosos que é mais fácil imaginá-los cometidos por criaturas de outro planeta.
Will Bowman (Josh Holloway, o Sawyer de “Lost”) era um agente do FBI antes de chegar a Ocupação, mas agora o mundo está muito diferente. Quando a série começa, a invasão já aconteceu. Em flashback, vemos como os alienígenas dividem a área de Los Angeles em várias colónias através de umas titânicas muralhas de metal que caem directamente do céu nocturno e destroem tudo onde aterram (mais uma boca política a um certo muro…). Ao mesmo tempo, todos as forças de segurança, policiais e militares, são estrategicamente eliminadas (assassinadas) como medida para prevenir uma rebelião inicial. Não que tal rebelião fosse muito longe, porque os meios militares dos invasores são de tal modo avançados que neutralizam qualquer tecnologia terrestre. Os seres humanos não têm capacidade para se defender e têm de se submeter por uma questão de sobrevivência. Will consegue escapar a esta onda de assassinatos assumindo o nome de um vizinho que estava fora de Los Angeles e começando a trabalhar como mecânico. Kate Bowman, esposa de Will, (Sarah Wayne Callies, a Lori de “The Walking dead” e a Sara Tancredi de “Prison Break”) tem um bar que é fechado pela Ocupação. Existe um recolher obrigatório e qualquer incauto apanhado na rua depois de soar a sirene tanto pode ser morto imediatamente pelos drones extraterrestres que vigiam as ruas como, pior, ser preso e enviado para um lugar sinistro chamado a Fábrica, de onde nunca ninguém volta.
O drama dos Bowman é que um dos seus três filhos (o miúdo do meio, Charlie) ficou preso noutra colónia e não o conseguem ir buscar. As deslocações são proibidas. A colónia é uma grande prisão. Automóveis, telemóveis, todos os meios de comunicação avançados, foram neutralizados ou proibidos pela Ocupação. Os residentes recorrem a chamadas em cabines telefónicas anónimas onde, como nos tempos das ditaduras do século XX, transmitem mensagens em código. Tudo está a ser vigiado pelas câmaras da Ocupação, todas as comunicações são ouvidas. Noutras das alusões à Segunda Guerra Mundial, é através de frequências secretas de rádio que a Resistência transmite informação codificada.
A comida é racionada. Algumas pessoas, como os diabéticos, que é o caso do sobrinho de Kate, não têm acesso a medicamentos porque os Anfitriões (nome dado aos extraterrestres pelos representantes humanos da Ocupação) não consideram as suas vidas relevantes. Para os Anfitriões, os seres humanos são apenas um recurso: mão-de-obra em campos de trabalho, de onde se mantém toda a logística da Ocupação. A alusão aos campos de concentração nazis é arrepiante quando vemos um grupo de pessoas chegar à tal Fábrica, onde homens e mulheres (todos juntos) são mandados despir completamente e submeter-se a um “banho” químico de descontaminação. Nunca nos é explicado, mas pressupõe-se que quaisquer bactérias que transportem poderão ser nocivas à tecnologia extraterrestre. Esta tecnologia, descobrimos mais tarde, também é radioactiva, o que faz adoecer os trabalhadores que entram em contacto com ela. Vemos um deles começar a tossir sangue e a ser prontamente levado para parte incerta. Já não sendo produtivo, adivinha-se-lhe o que lhe acontece. Outros trabalhadores (vítimas) o substituirão.
Mas isto é na Fábrica, um verdadeiro campo de extermínio de todos os que lá vão parar. Cá em baixo na Terra (a Fábrica não fica na Terra) os ocupados tentam por tudo sobreviver e evitar ir lá parar.


Nem eram precisas listagens
Porventura o mais chocante desta série (chocante para quem não conhece os perversos mecanismos dos sistemas ditatoriais como eles sempre se desenvolveram) é a quantidade de pessoas que colaboram voluntariamente com a Ocupação, que fazem do lema do inimigo o seu lema, que por instinto de sobrevivência ou sadismo nada se importam com a vida dos seus semelhantes desde que mantenham o seu poder dentro da Autoridade Global, a face humana da Ocupação. A série até aproveita para fazer um comentário à actualidade, explicando que estes colaboradores de topo foram seleccionados um a um antes de chegar a Ocupação através dos seus dados online. Alguém diz mesmo que as nossas vidas estavam todas na internet para eles escolherem. Existe verdade nisto. Actualmente a nossa vida está toda online. E nem me refiro apenas às redes sociais, onde só partilhamos o que queremos. Refiro-me mesmo aos serviços do Estado, especialmente dados médicos e financeiros, onde qualquer hacker pode descobrir que lojas frequentamos, que medicamentos tomamos, que produtos consumimos. Tanta informação nas mãos erradas é uma receita para nos desenharem o perfil: pobre, abastado, casado, solteiro, desportista, sedentário, feliz, infeliz. Nas mãos de um regime ditatorial, o perfil seria diferente: saudável (mão-de-obra capaz), doente (dispensável, a eliminar), pai ou mãe (mais susceptível a intimidação), e por aí fora. Na série, com a ajuda dos colaboradores humanos, os Anfitriões tiveram acesso a listas de possíveis colaboracionistas e de elementos indesejáveis a abater. Assustador, não é?
Mas na vida real nunca foram precisas estas listagens. Basta que qualquer grande facínora chegue ao poder que imediatamente se encontra rodeado de batalhões de pequenos facínoras à cata do seu quinhão de poder que numa sociedade democrática e regida pela ética dificilmente conseguiriam alcançar. (E mesmo assim conseguem, que os pequenos facínoras também sabem jogar pelas regras.) O que “Colony” mostra aqui é a realidade nua e crua que o vizinho do lado ou o amigo de longa data pode ser o primeiro a mandar-nos para a Fábrica, especialmente se for uma questão de “nós ou ele”.


Colaboras ou resistes?
“Colony” começa quando Will consegue esconder-se, clandestino, num camião de carga destinado à colónia onde se encontra o seu filho Charlie, na esperança de o encontrar. Para seu azar, a Resistência faz explodir o camião quando este cruzava a passagem entre as duas colónias, debaixo da muralha alienígena, para potenciar o número de vítimas entre os colaboradores. Will é preso, o seu verdadeiro nome é revelado, e é-lhe feita uma proposta que ele não pode recusar: trabalhar para a Autoridade Transicional e ajudar a capturar os terroristas responsáveis pela  explosão (na perspectiva da Ocupação, a Resistência é uma organização terrorista) ou… ganhar um “bilhete de ida” para a Fábrica, ele e toda a família. Por outro lado, se colaborar, prometem-lhe a possibilidade de lhe ser devolvido o seu filho.
O poster da série pergunta: Colaboras ou resistes? É fácil responder quando não se tem família, pais e filhos sujeitos a represálias, e até, neste caso de uma ditadura brutal, a correrem risco de vida. De repente, a resposta não é assim tão simples. Will aceita, por falta de opção.
Kate começa a envolver-se em actividades clandestinas para arranjar insulina para o sobrinho no mercado negro. Ao saber que o marido está a colaborar com a Ocupação, Kate decide, por sua vez, entrar em contacto com Eric Broussard, ex-militar e implacável membro da Resistência, para o ajudar na luta contra os ocupantes. Agora que Will tem acesso aos bastidores da Autoridade Transicional, Kate torna-se um elemento muito útil para a Resistência, obtendo informação privilegiada através do marido, que de nada suspeita.
“Colony” é, acima de tudo, e principalmente nas duas primeiras temporadas, um drama familiar e inteligente que coloca o casal um contra o outro, pelo menos até Will perceber que Kate trabalha com a Resistência e tem de tomar uma atitude. Adorei a cena, muito realista, em que finalmente se confrontam. Will nunca lhe pergunta ou diz “sei o que andas a fazer”. (E isso Kate também já tinha percebido.) O que ele lhe diz é “há semanas que ando a encobrir o que andas a fazer”.
Como colaborador, Will tem acesso a regalias que a restante população não tem, como sempre acontece nestes regimes. Mas uma das regalias é um presente envenenado. Tendo como desculpa as possíveis represálias que a família pode sofrer devido à colaboração de Will, os miúdos deixam de ir à escola e é-lhes atribuída uma tutora ao domicílio. Esta tutora é uma fanática da religião promovida pelos Anfitriões, a Igreja do Maior dos Dias, que promete vida eterna a todos os que forem fiéis ao novo regime. (Isto lembra-me os khmer rouge, no Cambodja, que endoutrinavam as criancinhas para denunciarem todos os que se opusessem ao regime.) Uma das melhores cenas da série é quando Kate se apercebe disto e mostra à filha, Grace, uma série de livros de várias religiões em que todas prometem o mesmo. Mas a miúda é muito jovem e susceptível (deve andar pelos 8/10 anos) e já lhe fizeram uma autêntica lavagem cerebral. De onde podemos tirar uma lição prática. Foi tão fácil endoutrinar Grace porque esta foi a primeira religião com que teve contacto. Se Grace tivesse tido alguma espécie de educação religiosa talvez tivesse resistido mais ao fanatismo da tutora, digo eu.
Agora que Will e Kate estão tão envolvidos na Ocupação e na Resistência, a sobrevivência torna-se cada vez mais periclitante para toda a família.


Era bom mas descambou
As duas primeiras temporadas de “Colony” são tão boas, mas mesmo tão boas, que quase cheguei a dizer aqui que é a melhor série que vi desde “Breaking Bad” e “Black Sails”. Só que:
1, entretanto vi “The Terror
2, a segunda parte da terceira (e última) temporada de “Colony” foi por água abaixo.
Perguntei-me muito, quando soube que a série tinha sido cancelada, porque é que tinham acabado com uma série tão boa, tão bem escrita, focada em personagens bem construídos e desempenhados (a princípio, confesso, só conseguia ver o Sawyer e a Lori, e preferia ter visto nela a outra Kate, a de “Lost”, a única Kate que conseguia imaginar ao lado de Sawyer. Mas Sarah Wayne Callies impôs-se e a química entre os dois actores é excelente). As duas primeiras temporadas são espectaculares (em todos os sentidos, até na grandiosidade dos cenários exteriores com as grandes muralhas extraterrestres, os lançamentos de naves para o espaço, as cenas na Fábrica). A terceira temporada começa bem, mudando a família para um esconderijo nas montanhas onde se introduzem num campo da Resistência liderado por um survivalista ditatorial que gere a comuna com mão de ferro, em que não é por acaso que um dos episódios se chama “Sierra Maestra” e quase são fuzilados como traidores. Mais uma referência a outros movimentos insurgentes de guerrilha.
Infelizmente, na segunda parte da terceira temporada, quando eles vão para Seattle, foi o descalabro. Nem sequer vou dizer que o pior foi terem de facto mostrado extraterrestres (como tantos fãs exigiam) o que tornou a série numa dessas coisas que começam por Stargate e Babylon que eu não vejo. O pior nem foi isso, mas o grande plot hole no enredo.
Parece que os extraterrestres invasores até não eram tão maus de todo (apesar dos milhões que mataram indiscriminadamente e mandaram para a Fábrica e outros campos de trabalho forçado), e que andavam a fugir de uns extraterrestres ainda piores (e copiados do Predador, o que não foi nada brilhante), e que afinal até precisavam de um super-exército para combater estes últimos. Onde a bota não bate com a perdigota foi o que mencionei logo no início desta crítica: todas as forças de segurança, policiais e militares, são estrategicamente eliminadas (assassinadas) como medida para prevenir uma rebelião inicial. Há até uma cena em que Broussard e outros militares de elite são convocados a um único ponto de encontro, logo no início da invasão, para serem massacrados de uma só vez. Broussard consegue escapar porque tem um mau pressentimento à última da hora. Na terceira temporada, de repente, tanto Broussard como Will aparecem numa lista de operacionais a NÃO-abater por serem importantes para o tal exército ao serviço dos Anfitriões. Então em que é que ficamos? Os militares de elite são valiosos para os extraterrestres ou são alvos a abater? Quem escreveu a terceira temporada, será que viu a primeira?
E se fosse só isto! De repente há um colaborador, que nunca tínhamos visto na vida, que anda a esconder estes militares dos Anfitriões no intuito de estabelecer uma aliança com os inimigos deles e assim recuperar o planeta. Mas se estamos a falar de espécies tão avançadas (os Anfitriões conseguiram dominar a Terra em questão de horas) alguém acredita que vai ser um exército de humanos a fazer a diferença? E já agora, quem é que disse aos Anfitriões que este inimigo ia simplesmente “aceitar” lutar contra o exército de humanos na Terra quando o que estes outros extraterrestres querem mesmo são os Anfitriões e podem atacá-los no espaço? “Exmo.s Inimigos, sabemos que vêm aí e tomámos a liberdade de preparar para V.Exas estes soldadinhos aqui neste lindo planeta para vosso entretenimento e lazer. Façam favor de aproveitar, matar os humanos e visitar as belas paisagens terrestres, enquanto nós assistimos do conforto da nossa nave. Felizes em servir V.Exas. Voltem sempre.”
Eu explico: nas primeiras temporadas viram-se pessoas serem transportadas em cápsulas de animação artificial para as naves extraterrestres sem que soubéssemos porquê. Era um mistério que tinha de ser explicado. A série meteu os pés pelas mãos e explicou-o assim, com estes enormes plot holes. Os escritores começaram a inventar, pura e simplesmente, com o único objectivo de fazer render o peixe e sem grande vontade de começar a dar respostas ou de conduzir a narrativa a um fim coerente (a lembrar "Lost", onde o showrunner Carlton Cuse também andou...).
Se calhar até tinham conseguido vender melhor esta intrujice se tivessem sido os protagonistas a descobri-la. Mas em vez disso começámos a acompanhar a história pela perspectiva de um personagem novo, de quem nem me vou dar ao trabalho de saber o nome, enquanto Will e Kate e Broussard quase tropeçam no enredo principal por acaso.
E só mais uma: quem é que disse aos Anfitriões que estes soldados humanos mantidos em cápsulas de vida suspensa quereriam ou aceitariam lutar pelos invasores e opressores, quando subitamente têm como aliado natural uma espécie que também quer destruir os Anfitriões? O inimigo do meu inimigo meu amigo é, e claro que toda a gente estaria a pensar numa aliança com este inimigo comum dos Anfitriões. Até parece que quem escreveu as duas primeiras temporadas da série se foi embora a meio da terceira, de tal modo a qualidade e a coerência foi por água abaixo.
Mas a verdade é que as audiências de “Colony” nunca foram boas. Na minha opinião, muito da culpa se deve a ter sido dirigida a um público-alvo errado, os apreciadores de ficção científica com extraterrestres (Stargate, Babylon, etc) sem grande profundidade, em vez de se salientar o drama humano. A série é extremamente brutal e pessimista, às vezes é bastante deprimente, e raramente temos um qualquer motivo de esperança. Direi mesmo que foi isso que faltou à Resistência durante toda a série: uma vantagem secreta que pudesse efectivamente ser usada para derrotar os Anfitriões. Episódio após episódio, tivemos de assistir enquanto inocentes eram massacrados e a Resistência se desfazia aos pedaços em vez de se tornar mais forte. Esta falta de esperança que permeia toda a série pode ter afastado muitos espectadores que apreciam uma ficção científica mais levezinha em que os Bons ganham e os Maus perdem e tudo acaba bem.
Marketing errado, enredo pesado e deprimente, brutalidade e violência (embora nunca gratuita) podem ter ajudado ao cancelamento da série, mas nada tão grave como o final da terceira temporada. Eu, sinceramente, fiquei contente quando acabou porque não queria ver a série afundar-se mais.
Mas aconselho vivamente as duas primeiras temporadas e o princípio da terceira. São excelentes. Faz de conta que acabou na temporada 3 episódio 5, bem intitulado “The End of the Road”.