domingo, 12 de janeiro de 2014

Horror de uma noite de Metro

Um dos últimos metros da noite. As carruagens iam quase vazias. Saí numa das paragens, aparentemente a minha paragem. Irreconhecível. Vagamente parecida com o Marquês mas a plataforma era mais estreita. Saí, andei uns passos, quando atrás de mim ouço gritos. Um homem, sozinho, com uma metralhadora, disparava contra todas as pessoas que saíam das carruagens. Os gritos eram de pânico, as pessoas eram atingidas e caíam, mortas e ensanguentadas. Aproveitando o meu avanço escondi-me atrás de uma parede decorativa, à altura da minha cintura, e baixei-me. Ataque terrorista? Louco? Será que me viu? Um homem, fugindo, passou por mim e enfiou-se por um buraco rente ao chão. Não tinha reparado naquele buraco, onde faltava a grade. Um respiradouro? Pensei segui-lo mas ao aproximar-me o buraco parecia mais estreito. Seria possível que o homem tivesse escapado por ali? Talvez, mas era muito apertado. Mais do que claustrofóbico: um adulto não conseguiria mover-se ali dentro. Não percebi onde o homem se meteu.
Preferi continuar escondida atrás da parede. Ainda via o louco, com a metralhadora. Tinha um kispo azul claro, muito xunga, usava boné, era de raça branca. “Caucasian, male, 25 to 40 years old”. Eu esperava, a todo o momento, que a segurança ou a polícia aparecesse. As carruagens estavam vazias. Os passageiros mortos, na plataforma ou ainda nos bancos do metro. Tudo imóvel.
Como se nada se tivesse passado, o metro fechou as portas e foi-se embora. Não viu nada, o maquinista?! Ou viu, e arrancou dali para fora para salvar a própria vida? Mas com certeza alguém estava a ver as câmaras de segurança. E o próprio maquinista ia comunicar o sucedido à central. Não tardariam a aparecer. Eu continuava atrás da parede, à espera. Não me atrevia a levantar a cabeça mas ouvia o homem, a andar na plataforma, de um lado para o outro como se andasse à procura de alguém ainda vivo.
Passou-se algum tempo, minutos que pareceram horas. Ouvi os passos dele, na plataforma, afastarem-se. Mas ainda na plataforma, algures. De onde eu estava, podia ver a única escada de acesso, a demasiada distância para tentar chegar lá sem que ele me visse. Ele também não tinha saído. Continuava na plataforma. Espreitei por cima da parede. Já não o via. Não o ouvia. Não fazia ideia de onde estava.
O som do placard anunciou a aproximação de outro metro. O comboio chegou, completamente vazio, e abriu as portas. Passou-me pela cabeça, por instantes, correr para dentro da carruagem. Mas pensei melhor. O homem continuava na plataforma e podia ver-me e seguir-me. Deixei-me ficar onde estava. O metro fechou as portas e foi-se embora. Onde estava a polícia?! Porque não aparecia a polícia?! Ninguém tinha ainda reparado, nos tiros, nos mortos, no sangue? Aquele último maquinista, não tinha visto nada? Se tinha visto, porque tinha aberto as portas?! E as câmaras de segurança, não estava ninguém a olhar?!
O metro foi-se embora vazio como chegou. O homem da metralhadora continuava na plataforma. Não sabia onde estava. Nunca mais o tinha ouvido. Desconfiaria que eu ainda estava ali, ter-me-ia visto, antes de me esconder, e estava à espera de me ouvir?... Andava a caçar-me?
A voz da “senhora do metro”, metálica, anuncia que a estação vai fechar: “Esta estação está encerrada”. No placard aparecem letras, uma sequência sem sentido: SDGRGN UF HSGHI. Pergunto-me o que aquilo significa. Fecharam a estação porque vem a polícia?! Apagam-se as luzes, todas. Menos uma. Uma luz branca, avariada e dessincronizada das outras, ou uma luz de presença? Bem no meio da plataforma. Percebo que ninguém viu nada. Ninguém faz nada. Vão fechar a estação e eu tenho de fugir. Correr para a escada, e talvez o gajo não me apanhe.
Quando me viro para o acesso de saída, a grade fecha-se, automaticamente como as luzes se tinham apagado. Não havia como sair. Ninguém ia aparecer. Ninguém estava a prestar atenção. As palavras sem nexo, no placard, talvez um código interno de fecho da estação, apagam-se também. Ninguém viu. Já foram todos para casa.
Afasto-me da luz, recuo para trás da parede. Não vejo o gajo. Está demasiado escuro. Não sei se ele sabe que estou ali. Estou fechada na estação com um louco homicida!



Esta “história” não é uma história. Foi um sonho que tive há poucos dias. Acordei aterrorizada no preciso momento em que o relato termina. ATERRORIZADA!
Tenho muitos pesadelos, complicados e horríveis, mas só raramente desprovidos daquele ambiente bizarro e desconexo que é típico dos sonhos, em que aspectos da nossa vida quotidiana se cruzam com acontecimentos irreais de uma forma que só faz sentido para nós. Este saiu “limpinho”. Um autêntico filme de terror em sequência lógica. Muito, muito raro. De outra forma não penso que seria capaz de o lembrar tão bem.




quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Spartacus

 "Spartacus", protagonizado por Liam McIntyre


Este não seria, em princípio, o género de série que eu julgaria que me interessasse. Evitei ver, durante muito tempo, devido a este preconceito que veio no “embrulho” de apresentação. Mais tarde, lendo críticas de outros fãs em fóruns da série, constatei que esperavam o mesmo que eu: só que o que eles queriam, eu abominaria! “Spartacus” assenta, pelo menos inicialmente, numa tradição de séries de acção (porrada, guerra, karaté…) de enredo muito básico. Alguns fãs, levados em erro, queixavam-se porque achavam o enredo muito complicado.

[Um pequeno aparte para que se compreenda porque foram levados em erro. Tornou-se quase um cliché dos filmes de acção um certo tipo de enredo: um gajo duro, veterano de guerra ou praticante de artes marciais, mas decente e leal e boa pessoa, retira-se do combate para viver uma existência pacífica em família. Bom marido, pai extremoso, disposto a viver em paz e sossego. Até que um malvado qualquer, inimigo, criminoso, agência governamental, etc, lhe mata a mulher e a prole. Isto são os primeiros 10 minutos do filme e a justificação para a carnificina que se segue. O resto é o gajo a vingar-se, a partir aquela merda toda, enfim, o “kill them all”. E este é, em linhas gerais, o primeiro episódio de “Spartacus”. Incluindo o “kill them all”.]

O enredo nunca é complicado, mas as séries de acção também já não são o que eram. Muita coisa mudou desde os tempos de “Kung Fu”, e o público feminino saiu nitidamente beneficiado (actores mais jeitosos, introdução de cenas românticas, maior profundidade psicológica das personagens).  Recentemente, por motivos de audiência, esta abordagem “musculada” estendeu-se também às séries históricas (ou baseadas em factos históricos em que nem sempre a veracidade histórica é respeitada). Tenho lido opiniões que identificam este “Spartacus” como descendente directo de “Roma”, e não discordo, embora seja conveniente recordar que a tradição de séries históricas de reconstrução muito realista e chocante data de mais atrás, por exemplo com “Eu, Cláudio” (de 1976). Em “Roma”, novos limites foram ultrapassados, a câmara deixou de ter medo de mostrar sangue (e sexo quase explícito), e resultou extraordinariamente.  Seguiram-se outras séries que aproveitam o filão da crueldade e barbarismo de outros tempos, como os “Os Tudors”, e a partir daí parece que existe uma competição para ver quem consegue fazer a série mais sangrenta, mais sádica, mais chocante. “Spartacus” inclui-se nesta linha, com requintes de crueldade dignos de filme de terror. 

Não há outra maneira de o dizer, a série perturbou-me. Todas as três temporadas (mais a série intercalar, possivelmente a mais sádica de todas). Não pelo sangue, pelas tripas, pelos miolos. Sendo uma história de gladiadores, e de guerra, não é aconselhável a quem se incomoda com estas coisas. Devo mesmo dizer que os realizadores trataram com elegância as cenas mais desagradáveis (aproveitando a imagética BD de “300”, o filme, em que o sangue é apresentado, por exemplo, a encher todo o écran como encheria uma “vinheta” de banda desenhada), ao contrário de uns “Tudors” em que os pormenores mais perturbadores das execuções são mostrados com um sádico realismo.
O que me perturba, em Spartacus, é a desumanidade com que os escravos são tratados. Revira o estômago aos espectadores modernos, e os realizadores sabem que sim. Pior ainda: quando os romanos começam a crucificar pessoas os cristãos começam a sentir-se incomodados, muito incomodados. Os realizadores também sabem.
Não é por acaso que o velhinho filme “Spartacus”, com Kirk Douglas, costumava ser exibido na Páscoa. A derradeira cena, na Via Ápia, fala por si. E acaba mal, muito mal. Existe, na revolta de Spartacus, uma primeira centelha de valores muito caros aos cristãos. Num mundo de barbarismo, a bondade. Num mundo de escravidão, a libertação.
Mas quem foi o verdadeiro Spartacus? É possível que nunca venhamos a saber, apenas podemos especular. Só sabemos dele o que os romanos contam. É preciso não esquecer que a História, como tentativa de registo científico de relatos de várias fontes, é uma modernidade do século XIX. Em tempos romanos os “historiadores” faziam de propósito por exagerar a ameaça do adversário porque quanto mais temível este fosse maior era a glória da vitória de Roma. Assim tão simples. Aníbal, tudo indica, foi exagerado. Spartacus poderá ter sido também. (Curiosamente, de Jesus, o que provocou a maior de todas as revoluções, existe apenas, que se saiba, uma pequena menção histórica. Jesus, mero pregador judeu sem importância, não era percebido pelos romanos como uma ameaça.) Poderia ser Spartacus, o verdadeiro, minimamente idealista como o Spartacus do filme e da série?... Sempre existiram iluminados, génios à frente do seu tempo, algumas vezes admirados outras vezes esmagados. Não discuto isto. Seria o verdadeiro Spartacus um deles? Ou um rebelde, sem outra causa excepto resistir aos romanos dentro do império como os bárbaros resistiam fora (e ganharam, no fim), atacando e roubando e fazendo-lhes a vida negra? Em suma, um terrorista? Menos nobre ainda, algo entre o ladrão e um cacique de guerrilha em busca de glória e poder? Não sabemos. A série apresenta uma explicação plausível para muitas das  movimentações do verdadeiro Spartacus, mas haveria outras.
A minha visão desiludida do mundo não me ajuda muito a acreditar em heróis. E menos consigo acreditar que o verdadeiro Spartacus, como o da série, conceba já, naqueles tempos, valores de liberdade, fraternidade, igualdade. É muito cedo, demasiado cedo. Para que a humanidade lá chegasse foi preciso cortar muitas cabeças. Noutras arenas.

E mesmo assim, neste século XXI do 3º milénio, liberdade temos menos do que já tivemos. Fraternidade (porque “fraternidade” é pedir demais) chama-se agora solidariedade e caminha a passos largos para a caridadezinha. Quanto à igualdade, ui!, isso nunca existiu excepto na utopia da palavra. Nunca existiu, não existe, e nunca existirá.

Não acredito, pois, como dizia, que o verdadeiro Spartacus tivesse a noção dos valores que encarna na série. Contudo, posso estar enganada, porque nem um século depois um outro Fulano, o que dizia “quem vive pela espada morre pela espada”, inventou a civilização ocidental como a conhecemos hoje. Não foi preciso derrotar Roma, foi Roma que, em desespero de causa, se agarrou com unhas e dentes à religião dos escravos, a verdadeira revolta civilizacional. Spartacus, qualquer um deles, não ia gostar disto, mas Roma haveria de mandar no mundo durante mais dezanove séculos! Não a mesma Roma, mas Roma à mesma.
O corpo de Spartacus nunca foi encontrado. O corpo de Cristo, se calhar até menos procurado por ser julgado de menor importância, também não. Terá esta coincidência, em pleno século do cristianismo, alimentado a lenda de Spartacus?


Heróis e zombies
“Spartacus” foi um êxito de audiência. Como “The Walking Dead”. É interessante  reflectir na altura em que estas coisas são feitas, como se alimentadas pelo espírito do tempo que paira no ar. Zombies e escravos. Escravos zombificados e zombies escravizados. Sem um Spartacus que nos livre disto. Mas merecemos? Diz a lenda que quando os rebeldes foram capturados pelos romanos todos eles se acusaram: “Eu sou Spartacus!”, de modo a poupar o verdadeiro à morte ou a um castigo exemplar. Estes, diz a lenda, não eram zombies. Lutavam, e sacrificavam-se, não deambulavam pelo centro comercial a encher a barriga. Cada povo tem o Spartacus que merece, ou a falta dele.
Spartacus morreu, mas o espírito de Spartacus não morreu. Renasceu, em toda a sua valentia, durante a Resistência. E pode renascer ainda, quando os escravos perceberem que são mais do que os dominus e dominas do mundo. Era de crer que por esta altura já tivessem percebido. Como não percebem, conclui-se que são zombies. Mexem, mas naquele cérebro já está tudo apagado.




...



 Andy Whitfield, primeiro protagonista de "Spartacus"


R.I.P.
Lamento a morte de Andy Whitman (protagonista da primeira temporada), aos 37 anos. Esta morte, precoce, carregou de luto uma ficção já de si carregada de morte. A Fox está a re-exibir a primeira temporada.