sábado, 21 de dezembro de 2019

"Solstício" com envio grátis

Para todos os interessados em adquirir Solstício em papel: a Bubok está a oferecer os portes de envio até 6 de Janeiro.

www.bubok.pt/livros/12040/Solsticio

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

“Nepenthos”, novo livro de D. D. Maio

Sinopse
Num gesto de encoberta bondade, o jovem imperador salva uma rapariga da ignomínia na taberna da vila. Devia ter sido inconsequente, mas o encontro muda para sempre as suas vidas.


Acaso, escolha ou destino?

Reena deseja morrer. Serva órfã, presa de abuso em menina e forçada à prostituição desde jovem, há muito que o desespero lhe sussurra ao ouvido. A súbita oferta de uma vida melhor no castelo do imperador não é o trabalho digno que teria almejado, mas dá-lhe esperança de vir a conquistar uma humilde posição de criada. No castelo, Reena experimenta uma liberdade que nunca lhe tinha sido permitida e recorda sonhos de rapariguinha, de um amor e de uma família. Mas sucessivos envolvimentos românticos, fracassados, tornam a lançá-la na escuridão da derradeira escolha. Por muito que tudo ainda melhore, conseguirá alguma vez resgatar-se a si mesma desse inimigo oculto no âmago da sua alma?
Eric, o imperador, já desceu demasiado baixo. Enraivecido por uma infância de abandono, endurecido por um passado de guerra, envereda voluntariamente pelos nefastos caminhos de que talvez não haja regresso. Um último passo na direcção errada desmorona o homem de pedra que já não o quer continuar a ser. Mas não será demasiado tarde para mudar?
Tão afastados nos extremos do destino, Eric e Reena partilham difíceis veredas na busca da longínqua felicidade que não lhes parece reservada. Para ambos, nenhuma felicidade poderá ser vulgar.


“Nepenthos” é um drama em Low Fantasy, pesado e realista, por vezes desconfortável, mas com bastantes tons de romântico.


Disponível brevemente. 


Mais informações e excertos:
https://ddmaio.blogspot.com



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

NOS4A2 / Nosferatu


Ao contrário do que o título indica, não é uma série de vampiros. Também não é um anúncio à NOS [eheh, não resisti]. O título é um trocadilho como se usa nas matrículas americanas. Lendo as letras em inglês temos algo como NOS-four-A-two, que soa quase a “nosferatu”. Não é um trocadilho muito bom e na minha opinião é um daqueles títulos que parecem giros em teoria mas que na prática nos levam a pensar em tudo menos no tema da história. Eu pensei, sinceramente, das primeiras vezes que vi o título, que ia ser uma série de espionagem e que NOS4A2 era um código qualquer. ("NOS4A2" é um livro original de Joe Hill.) Felizmente tive curiosidade em perceber que raio significava aquilo porque a série é interessante. Mas na minha opinião é um título francamente mau, e daqui não saio.
Também é um título mau pela razão óbvia que já referi: não é uma história de vampiros, pelo menos no sentido tradicional. É uma história sobre pessoas com poderes psíquicos (a que a série chama “criativos fortes” e que eu também acho uma designação péssima, por isso aqui vou só chamar-lhes “criativos”) que podem ser usados para o bem ou para o mal. Charlie Manx, o vilão, usa os seus dons para fazer muito mal. Este “criativo” descobriu uma maneira de usar os seus poderes para viver para sempre: alimentando-se de almas de crianças, que, uma vez “sugadas”, se tornam uns monstros pálidos de longos dentes. Mas não vampiros, porque comem a carne das suas vítimas. Manx é que chama nosferatu a si próprio (a petulância!) ao usar o tal NOS4A2 na matrícula do carro. Manx é velho, muito velho. Nunca é dito ao certo mas dá a entender que tem pelo menos 100 anos, se não mais. E é um “criativo” mais poderoso do que todos os outros que já o tentaram travar até ao momento. Para começar, Manx criou um espaço ficcional, mas real (é preciso ver para compreender), chamado Natalândia (Christmas Land), que usa para atrair as crianças. Esta Natalândia, baseada em temas natalícios e fofinhos, é um local sinistro a lembrar o filme “Nightmare Before Christmas”. Ora, eu odeio o Natal e deu-me gozo. Aconselho vivamente a toda a gente que também odeia o Natal.
Charlie Manx tem outra ajuda sobrenatural, um carro com vida própria, tipo “Christine”, que aprisiona pessoas no banco de trás e se conduz sozinho. Este carro deve ser o elemento mais sinistro de toda a série. Penso mesmo que o “nosferatu” é o carro porque é dentro e através do carro que as almas são sugadas e o espírito vital é transferido para Manx. Por motivos que não são explicados, a vida de Manx está “ligada” ao carro e quando o carro é atingido Manx fica às portas da morte. Chatices de viver para sempre a qualquer custo.


Este vilão anda a raptar crianças há quase um século (isto é, tendo em conta a data de lançamento do carro, mas ninguém nos diz que ele não começou antes) quando desta vez leva uma miúda ligada a outra “criativa”, Vic McQueen, que decide fazer-lhe frente.
Por vezes esta série toca perigosamente na treta dos super-heróis, Super-Fulano que tem o poder de fazer X, Super-Fulana que tem o poder de fazer Y, mas felizmente não cai completamente nisto. A série mantém sempre um bom nível de cenas perturbadoras, algumas bastante inesperadas como aquelas que incluem Bing, o ajudante de Manx, e que me surpreenderam pela perversidade sexual digna de um “Pshyco” numa série que é praticamente Young Adult de terror e em que a maioria dos protagonistas é adolescente.
Para além do terror e do sobrenatural, a história segue o drama bem mais prosaico da jovem Vic McQueen, que por si só valia uma série de outro tipo. Vic é filha de pais pobres e separados, ele mecânico de motas, a mãe empregada de limpeza. O género de pais que casaram muito jovens por causa da gravidez acidental e que nunca ultrapassaram esse ressentimento de abdicarem dos seus sonhos. Vic quer ir para a faculdade mas é difícil libertar-se desse ciclo de pobreza. Por exemplo, quer pedir um empréstimo para estudar mas nem sequer tem declarações de rendimentos dos pais porque ambos são pagos em dinheiro para se esquivarem aos impostos. Desta forma, Vic não consegue provar a sua necessidade de apoio. Para se candidatar ao empréstimo tem de falsificar documentos. Identifiquei-me com os problemas dela e o final deixou-me com um sabor amargo. Afinal, Vic não teve de desistir dos seus sonhos por causa do sinistro Charlie Manx ou devido a motivos sobrenaturais, mas por sua própria culpa. E tive pena. Queria mesmo vê-la entrar na faculdade e quebrar o ciclo, mas no meio disto tudo ela perdeu de vista os objectivos.
“NOS4A2” nunca é uma série tão arrepiante como podia ter sido e nunca me conseguiu arrebatar, mas vê-se com prazer (ou inquietação, neste caso). O terror nunca nos assusta mas a história vale mais pela dimensão humana do que por qualquer pseudo-nosferatu.
Deixo uma última nota à maquilhagem e aos efeitos especiais, esses sim verdadeiramente excepcionais, que conseguem convencer-nos de que Zachary Quinto é mesmo um velho centenário. Também gostei do truque em que a rapariga enfia o braço no saco das peças de scrabble e o braço parece mesmo desaparecer lá dentro. Até chega a fazer alguma impressão. E gostei de todas as cenas em que Vic atravessa a ponte, de mota, com os morcegos a esvoaçar e a imagem a inverter-se no écran. O tipo de cena que nunca mais se esquece. Nem que seja só por estes pormenores, é uma série que merece ser vista. Mas sem demasiadas expectativas.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Millennium 1 - Os homens que odeiam as mulheres (2010)


Mikael Blomkvist é um jornalista de investigação contratado por um milionário para descobrir o que aconteceu à sobrinha deste, a adolescente Harriet, que desapareceu misteriosamente nos anos 60. Com a ajuda da jovem hacker Lisbeth Salander, Mikael começa a aperceber-se de que o desaparecimento de Harriet se relaciona com uma série de homicídios cujo padrão esta descobriu. Mas a verdade é que o serial killer está mais perto do que a distância de quarenta anos levaria a crer.
Esta é uma mini-série sueca com uma sensibilidade própria e europeia e cenas de violência (especialmente sexual) que não se vêem neste tipo de thrillers nos filmes de Hollywood (excepto em raros casos, conhecidos exactamente por essa violência). Lisbeth é uma personagem carismática e misteriosa que merecia ser mais desenvolvida. De salientar que Lisbeth é interpretada por Noomi Rapace, a mesma arqueóloga de "Prometheus”, aqui analisado há pouco tempo, e como ela está diferente e mais bonita com mais alguns quilos em cima. Porque em “Millennium 1” a rapariga estava tão magra que eu não percebi logo se era um homem ou uma mulher. Às vezes as pessoas melhoram com o tempo, como o vinho.
Recomendo esta mini-série, diferente das de Hollywood, mas muito bem feita.


segunda-feira, 25 de novembro de 2019

The Passage


Admito que é cada vez mais difícil escrever sobre vampiros de maneira original. É que já se fez tudo, tudinho, de uma forma ou de outra. “The Passage”, valor lhe seja reconhecido, consegue ser original durante todos os episódios… excepto o último.
Cientistas à procura da cura para a gripe das aves ouvem falar de um homem de 200 anos nas florestas da Bolívia a quem os nativos chamam “jararaca” (vampiro). Os cientistas não acreditam em nada de sobrenatural e vão visitar este homem na tentativa de compreender a sua longevidade. Só que este homem é um vampiro, e como os cientistas não dão ouvidos aos avisos, o vampiro acaba mesmo por morder um deles. Como toda a gente sabe, quem é mordido por um vampiro torna-se um vampiro.
Os cientistas não desistem. Recusam-se a acreditar em vampiros e começam a fazer experiências em condenados à morte com o ADN do cientista infectado, sempre em busca de criar o elixir da imortalidade sem os efeitos secundários do vampirismo. Manipulando geneticamente o ADN dos sujeitos, a quem eles chamam “virais” porque se recusam chamá-los vampiros mesmo quando alguns elementos da experiência já lhes chamam o que eles são, os cientistas descobrem que quanto mais jovem for o “sujeito” menos “efeitos secundários” manifesta. Estes efeitos secundários são mais que óbvios 100% vampiro: aspecto de nosferatu, intolerância ao sol, força sobre-humana, poderes psíquicos, e, claro está, os “virais” alimentam-se de sangue e matam sem pensar duas vezes. Para os controlar, os cientistas têm-nos detidos sob grandes medidas de segurança, inclusive a opção de os irradiar com luz do dia, e até têm uma carga de explosivos suficiente para detonar todo o laboratório se for preciso. Mas as experiências com pessoas cada vez mais novas estão a funcionar, e os cientistas têm a “grande ideia” de testar com uma criança. Entra em cena a nossa protagonista, Amy, a miúda órfã de uma mãe toxicodependente, a quem ninguém sentiria a falta se “desaparecesse”. A miúda é esperta e tenta fugir, e consegue mesmo que o agente que a rapta tome o seu lado e a ajude, mas nem mesmo assim têm hipótese. Todo o governo apoia esta experiência clandestina e a miúda é caçada como se fosse uma foragida e é mesmo levada para o laboratório onde é inoculada com o ADN do vampirismo.
Aqui começa a minha grande crítica à série (baseada no livro homónimo de Justin Cronin, mas não conheço o livro e não sei se a série o segue à letra). Os cientistas justificam o que estão a fazer com uma “ameaçadora” pandemia de gripe das aves, mas a série nunca nos mostra nada que nos convença da necessidade do sacrifício de uma miudinha. Pelo contrário, fora do laboratório está tudo normal, ninguém está doente, ninguém está a morrer. O que torna os cientistas nuns monstros maiores do que os vampiros por muito que digam que é para o Bem Maior, blá blá blá.
Estranhamente, apesar de a miúda acabar mesmo por se transformar em vampira, isto nunca tem a gravidade que devia ter. Os cientistas sempre tinham razão, o ADN funciona de forma mais “benéfica” numa criança e Amy é uma vampira diferente, mas nunca percebemos ao certo que tipo de vampira ela é e quais são os seus poderes e vulnerabilidades. Ou até mesmo se precisa de sangue para sobreviver/manter-se forte. E digo que é estranho porque a miúda é a personagem principal, contudo a série chega ao fim e não sabemos exactamente em que é que ela se tornou.
Gostei da parte da série que se passa no laboratório. Gostei principalmente da maneira que os vampiros usam para escapar, não recorrendo à força bruta, como costuma acontecer nestas coisas, mas usando em seu benefício a relutância dos seus captores em acreditar em vampiros. Foi muito original e inteligente. Até a mim me apanhou de surpresa. Sem dúvida o melhor momento da história.
E foi assim, a série prometia, até chegarmos ao último episódio. Nunca me passou pela cabeça que isto se transformasse em mais uma versão de The Walking Dead, com flechas e tudo. Vou fingir que a série acabou um episódio antes, quando ainda era interessante e original. Em resumo, uma série “que se vê bem” sem esperar grande coisa.


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

“Solstício”, conto de D. D. Maio, disponível em papel



Para os leitores à antiga, que gostam de tomar um livro nas mãos e afagar-lhe as páginas, “Solstício” já está disponível também em papel, na Bubok:
www.bubok.pt/livros/12040/Solsticio

O site Bubok permite o preview da capa e das páginas iniciais.

Para os amantes do e-reader, “Solstício” continua disponível para download gratuito em formato epub, aqui:
www.bubok.pt/livros/11942/Solsticio

“Solstício” é um drama romântico no género Low Fantasy. A acção centra-se em torno das celebrações do solstício de inverno em terras pagãs.

Sinopse
A noite mais longa do ano. Eric, o imperador, visita a sua prima Hildegaard nas Terras Verdes em busca da família que nunca teve e da esposa que quer vir a ter. Em terra de bruxas, sem acreditar nelas, espera-o confrontar-se com as suas próprias raízes num mundo isolado e proscrito que nunca conheceu, que nunca será o seu, e de que sempre fará parte.

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Operador de Call Center, de H.M.S. Pereira

 

Encontrei este livro por acaso, na editora Bubok, já há alguns anos. Na altura estava disponível para fazer download gratuito. Fiz. Olhei para as primeiras páginas, achei a escrita decente, e guardei até ter oportunidade de ler. Actualmente parece-me que o livro só está disponível para venda em papel, mas posso estar enganada.
Admito que o que me atraiu imediatamente foi o título, operadora de hell center que sou também, mas o livro acabou por ser mais interessante do que esperava dele.
Esta é a história das peripécias de Henrique Pissada, jovem que desistiu dos estudos por desilusão com os cursos e que acabou a trabalhar na “LusoCabo” porque foi o que encontrou primeiro. Asseguro que todos os horrores descritos são verdade: os contratos renovados mensalmente pelas empresas de trabalho temporário, os subsídios de férias e Natal incluídos no “ordenado” para parecer às pessoas que ganham mais, o supervisor (único que não é sub-contratado) que passa lá o dia de manhã à noite, a mudança de instalações mês sim mês não, o trabalho em part time porque falar como um robô durante oito horas por dia é de uma violência que só quem já teve a experiência consegue compreender. Óptimo livro para quem nunca trabalhou num call center ficar a conhecer o que se passa com os desgraçados que atendem o telefone.
Mas não se pense que este é um livro “triste”. Pelo contrário, é uma sátira divertida a uma geração entre a minha e a seguinte, a geração dos que tiraram um curso e nunca tiveram oportunidade de trabalhar no que estudaram, dos que moram com os pais ou amigos ou desconhecidos, em quartos alugados, porque trabalham mas não têm independência financeira, dos sonhos acalentados mas inúteis, das noites no Bairro Alto à toa pelas ruas. Toda uma geração completamente à toa.
Henrique Pissada é um protagonista que nos faz rir. Directo, cínico, vai relatando as suas peripécias com uma linguagem autêntica, exactamente como se fala, até mesmo um pouco como se escreve num call center (Existe uma linguagem própria de call center. É como entrar numa realidade paralela.) Henrique Pissada é preguiçoso, indiferente, egoísta, algo desonesto, anti-social, e porco. Daqueles que só toma banho e muda de roupa porque tem de aparecer minimamente apresentável no trabalho. Só mesmo minimamente. Este gajo é tudo o que uma mulher detesta num homem e ainda se pergunta porque é que não tem vida sexual. Mas não é que lhe importe muito, porque acha que tê-la não compensa o trabalho que dá.
Também Henrique Pissada anda à toa, vivendo de dia para dia sem se preocupar com um futuro mais longínquo. E com razão, porque não há futuro longínquo no horizonte. O futuro acaba ao fim do mês, com a renovação ou não do contrato. Depois, não se sabe. Continua-se à toa.
Não julgava que ia gostar tanto deste livro, especialmente considerando o protagonista. Mas admito que também gostei do livro por causa do protagonista. Henrique Pissada despe-se, na primeira pessoa, e mostra-nos quem é, e diz as coisas que se calhar até todos pensamos às vezes sem nunca admitir. Eu admito que Henrique Pissada me fez rir para dentro muitas vezes, e uma ou outra vez até para fora.
Recomendo vivamente a toda a gente que gosta de sátira e não se importa de ler umas verdades.
Não sei se o autor escreveu mais livros, ou até mesmo a continuação das aventuras de Henrique Pissada, mas em caso afirmativo gostava de conhecer mais obras de H. M. S. Pereira.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Alien: Covenant (2017) / Prometheus (2012)


Alien: Covenant (2017)

Como faço muitas vezes, comecei a ver este filme sem saber quase nada sobre ele. Nem que era de Ridley Scott, nem que era um filme da série Aliens, nem que era a sequela de “Prometheus”. (Da sinopse e título pensei que era a história de colonos espaciais que encontram uma civilização alienígena hostil.) Não saber nada de um filme (ou livro) permite-me absorver a obra sem expectativas ou ideias preconcebidas. E admito que fiquei agradavelmente surpreendida quando percebi que ia ser um filme da série Aliens. Até cerca de metade do filme gostei bastante. E de repente o filme tornou-se confuso. Comecei a ter a sensação de que tinha perdido um episódio. Efectivamente, perdi, porque ainda não tinha visto “Prometheus”.
Então a história é esta. A nave espacial Covenant dirige-se a um sistema solar distante na intenção de o colonizar. Mas, durante o caminho, recebe uma transmissão humana, vinda de um planeta tão propício à vida que é completamente compreensível que a missão decida investigar e, talvez, estabelecer-se mesmo ali.
Mas a transmissão é uma armadilha. E de quem? Ora, é esta a parte em que seria preciso conhecer o que aconteceu em “Prometheus” e em que comecei a ficar confusa.
“Alien: Covenant” começa muito ao estilo de “Odisseia no Espaço” (ou filmes semelhantes da altura, até nas roupas que parecem ter saído dos anos 70) com o criador de um andróide muito evoluído, e este próprio andróide, David, a terem uma discussão altamente filosófica sobre quem devia servir quem uma vez que o andróide é eterno e o criador é mortal.
Muda a cena, estamos na nave Covenant. Esta nave tem um andróide, que eu julguei que era o tal David (são iguais) mas afinal não era. Instala-se a confusão na minha cabeça.
A tripulação da nave desce ao tal planeta, onde começam a ser infectados pelo nosso alien do costume (afinal não fui assim tão enganada pela sinopse, simplesmente o alienígena hostil não é um desconhecido) através de esporos que entram pelo nariz, boca, ouvidos e outras reentrâncias do corpo humano. Mas a maneira como sai é a mesma: buraco entre as costelas e lá vai ele.
Entretanto, já andam pelo menos dois aliens adultos à solta ainda antes que a pobre tripulação perceba muito bem o que lhe está a acontecer. Quando estão a ser atacados, eis que entra em cena o primeiro andróide, David, o tal da primeira cena, com armamento que afugenta os aliens.
E aqui parece que o filme deixou o universo Aliens e entrou no universo O Senhor dos Anéis. David vem coberto com uma manta encapuzada à elfo, de longos cabelos loiros, no papel do estranho misterioso e cheio de poderes sobre-humanos que oferece ajuda.
Só percebi que era um andróide quando ele se volta para o andróide da nave e lhe chama “irmão”, e só aí percebi que o andróide da nave não era o mesmo do princípio.
Ok, avançamos. A tripulação é levada para as ruínas de uma cidadela completamente rodeada de cadáveres carbonizados (a lembrar Pompeia) e ninguém se lembrou de perguntar ao tal David o que raio se tinha passado ali. Entretanto, este explicava que era o único sobrevivente da nave Prometheus, dada como perdida, e a fonte da transmissão que leva ali a tripulação da Covenant.
O filme continua dividido em dois a partir daqui: por um lado, os recém-chegados da Covenant protagonizam um filme Aliens como estamos habituados, eles a fugir, os aliens a comê-los, enquanto que os dois andróides se retiram para mais uma conversa filosófica como se nada se passasse lá fora.
E aconteceu-me outro momento de grande confusão. O novo andróide, o tal David, subitamente aparece de cabelo preto e cortado, e quase igual ao outro, e durante toda a cena eu não percebi que era o mesmo actor a contracenar consigo próprio! Aqui tenho de dar os parabéns ao actor Michael Fassbender que me convenceu completamente de que era duas personagens diferentes a ponto de enganar os meus olhos. (Mas deixem-me explicar o motivo principal da minha confusão, que foi o cabelo loiro. Isto é explicado no filme anterior, “Prometheus”. Quem conhece os andróides de Aliens não lhes nota qualquer vestígio de vaidade ou vontade de ser diferente. Mas David, aparentemente, foi o primeiro andróide a ser criado e é muito mais humanizado do que os outros, o que se revela um problema. Sim, David decidiu mudar de visual. E isto baralhou-me tanto que passei o filme a tentar perceber quem era quem. Mas lá consegui apanhar o fio à meada e até adivinhei a reviravolta final.)
Fazendo justiça a Ridley Scott, se eu tivesse visto “Prometheus” primeiro esta confusão não se punha porque David é completamente inesquecível. O que só vem reforçar a ideia de que os filmes são episódios e precisam um do outro, e não aconselho ninguém a ver “Alien: Covenant” antes de “Prometheus”. A sensação de “episódio perdido” persiste até ao fim do filme. Comecei a ficar com a impressão de que “Alien: Covenant” se tinha passado antes mesmo do primeiro Alien, que este tal David é que tinha manipulado geneticamente a raça de aliens até estes se transformarem nos aliens que viemos a conhecer nas aventuras da Ripley, mas tudo isto apenas como hipótese e sem lhe conhecermos as motivações. Este David, neste filme, aparece como um Dr. Frankenstein apaixonado pelo seu monstro, um filme dentro de outro filme. Mas um filme que termina no Aliens “habitual”, com todas as reviravoltas que esperamos desta saga. Se alguém tem o direito de inovar é mesmo Ridley Scott, realizador do “Alien” original, mas parece-me que ele tentou fazer a sua “Odisseia no Espaço” ao mesmo tempo que dava à audiência a dose de aliens de que esta estava à espera. Se resultou? Bem, é uma boa dose de aliens com todos os condimentos habituais, mas “Alien: Covenant” continua a parecer dois filmes que só por coincidência se interceptam e no meu caso com um “episódio perdido” pelo meio. Por este motivo, culpa minha que não vi “Prometheus” antes, abstenho-me de dar nota por agora.



Prometheus (2012)

“Prometheus” não é a dose habitual de Aliens. É um filme filosófico e ambicioso sobre a origem da vida, especialmente sobre os motivos do criador e a sua relação com as criaturas que concebeu.
O filme começa quando uns arqueólogos, na Terra, descobrem gravuras rupestres que apontam para uma raça estelar semelhante à humana e para um sistema solar longínquo que, segundo estes acreditam, é o lar dos nossos Criadores, a quem chamam os Engenheiros. Esta descoberta leva-os a uma viagem ao tal planeta dos Engenheiros, na esperança de conhecerem a espécie que deu origem à raça humana.
Enquanto a tripulação dorme na nave que a transporta até lá, voltamos a encontrar o andróide David (o mesmo de “Alien: Covenant”) e percebemos porque é que ele pinta o cabelo. David pinta o cabelo de louro depois de ver “Lawrence da Arábia”, o seu herói. E um andróide com um herói é um andróide com personalidade. David é, indubitavelmente, o personagem principal, um andróide com um complexo de superioridade em relação aos seres humanos que o criaram e que o tratam como a um robô sem sentimentos nem intelectualidade. David está chateado e tem motivos para estar chateado.
Ao chegarem ao planeta dos supostos Engenheiros, hominídeos gigantes que nos teriam criado à sua imagem, mas agora aparentemente extintos, David encontra, primeiro que todos, uma outra criação dos Engenheiros, uns estranhos micróbios cuja finalidade desconhece. Mas começa imediatamente a testá-los nos humanos, especialmente nos humanos que o tratam pior.
Há muitas cenas arrepiantes neste filme, mas na minha opinião a pior de todas é a operação à barriga. Não faltam outras, igualmente de arrepiar os cabelos. Ninguém vai sair deste filme insatisfeito nesse departamento. Os efeitos especiais são particularmente convincentes.
Mas como este não é um filme de aliens qualquer, a nossa curiosidade é conduzida para esta raça de gigantes que supostamente nos criou. Após pesquisarem as instalações que os Engenheiros deixaram no planeta, a tripulação da Prometheus percebe que este não é um lar mas uma base militar, e carregadinha de armas de destruição maciça (o micróbio alien). Visualizando gravações de imagens, percebem que os Engenheiros se preparavam para voltar à Terra com o objectivo de destruir a humanidade que eles próprios criaram.
Mas se dúvidas houvesse, David o andróide descobre que um dos Engenheiros ainda está no complexo, vivo, numa câmara de hipersono. A tripulação acorda-o e tenta estabelecer comunicação com ele, mas o gigante não quer conversas e desata a matar toda a gente que apanha. Não bastando fugir dos aliens, agora têm de fugir dele também.
Voltemos ao princípio. Filme filosófico e ambicioso em que a humanidade se confronta com o seu criador. Este criador, aparentemente, mudou de ideias e resolveu destruir a sua criação. Que moral, ensinamento, conclusão tiramos daqui?
“Porque é que queres saber porque é que eles mudaram de ideias? É irrelevante. Não compreendo.”, pergunta David à arqueóloga.
“Não compreendes porque tu és um robô e eu sou um ser humano”, responde ela.
Ainda bem que eu também sou um ser humano porque eu também queria muito saber porque é que os Engenheiros se deram ao trabalho de criar a humanidade para depois a destruir. Isto é, posso tecer milhentas conjecturas sozinha, mas o filme não oferece nenhuma. Temos de ficar com esta ideia “interessa-nos porque somos seres humanos”. Fraquinho, muito fraquinho. Eu esperava, no mínimo, uma teoria. Um motivo. Afinal ficamos na mesma.
De igual forma, não percebi o Engenheiro suicida que se mata com uma dose de micróbios alien no princípio do filme enquanto vê a nave do seu povo afastar-se. Dá ideia de que foi o único que ficou no planeta, mas afinal não, porque havia outro em hipersono. A única pista sobre este suicida é uma menção no genérico final como aquele que se “sacrifica”, o que ainda é mais confuso. Do que vimos nas tais imagens deixadas por eles, tiveram de fugir à pressa porque as experiências com aliens não correram bem. (A única parte que se percebe perfeitamente, conhecendo nós os aliens como os conhecemos.) Então quando é que isto (o suicídio/sacrifício) aconteceu? Terá sido neste planeta, como parece dar a entender, ou no deles, ou na Terra, ou noutro lado qualquer? Mais uma vez podia pôr-me aqui a tecer conjecturas, mas o filme não dá respostas. “Alien: Covenant”, a sequela, também não nos explica mais sobre esta raça de gigantes excepto o massacre que se vê na tal cidadela de que falei acima. E que mais uma vez nos deixa sem saber nada.
As únicas respostas que temos, tanto em “Prometheus” como em “Alien: Covenant”, são sobre a origem dos aliens. Afinal começaram como micróbios (ou esporos, não percebi bem) e foram sendo geneticamente manipulados (e evoluindo por eles próprios, igualmente, com a ajuda dessa manipulação), primeiro pelos Engenheiros e depois pelo próprio David, antes de serem o alien que conhecemos da nave Nostromo. Uma coisa é certa, no entanto: até como micróbios os aliens eram extremamente mortíferos, se não mais, porque não se viam a olho nu e mesmo assim entravam no corpo do hospedeiro e faziam aquilo que se sabe.

Gostei mais de “Prometheus” do que de “Alien: Covenant”, e gostei mais ao segundo visionamento. A primeira vez que vi fiquei confusa, a perguntar-me o que me tinha escapado. Afinal não me escapou nada, mas estes dois filmes têm ar de trilogia incompleta. As intenções são claras, fazer um paralelo entre a nossa criação, ou mitologia dessa criação, com a criação dos aliens, e de como acabamos todos por ser espécies a competir pela vida num universo indiferente, abandonados por um Criador que não se importa. Muito existencialista. Mas parece-me que Ridley Scott queria dizer mais e ainda não foi desta que conseguiu. A existência e motivação dos Engenheiros é interessante e misteriosa e merecia um filme só para eles. Até sem aliens.
Também gostei muito de toda a imagética criada em “Prometheus”, a começar pela primeira cena. Só é pena deixar tantas perguntas a que a sequela também não responde.
Fiquei interessada e fui investigar. Parece que Scott prevê realizar outro filme ainda só denominado “Untitled Alien Prequel". Por mim, que venham mais. Que venham todos.


Alien: Covenant
14 em 20

Prometheus
15 em 20


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Noah / Noé (2014)

 

Esta é a história bíblica de Noé e do dilúvio, versão Senhor dos Anéis com preocupações ecológicas.
Qualquer filme sobre acontecimentos bíblicos é um filme altamente escrutinado. Quem os faz também sabe disto. Depois é uma questão de perceber se o realizador quer seguir tudo à letra (“A Paixão de Cristo”) ou ser “criativo”. Aqui foram um bocadinho mais criativos, na minha modestíssima opinião, do que um filme bíblico devia ser. Não é que não compreenda as preocupações ecológicas para tornar o filme actual e relevante, mas não era preciso pôr esta gente antediluviana a disparar armas de fogo.
Há mais. Por exemplo, os anjos caídos (sim, os tais que seguiram Lúcifer) transformaram-se em pedregulhos animados a lembrar os Entes de Tolkien (porquê, oh, porquê?) e ajudaram Noé a proteger a Arca dos maus. (Se Jeová soubesse que Noé estava a ser ajudado por demónios nem Noé se safava.) Matusalém (Anthony Hopkins, com a sua cara sinistra de Anthony Hopkins), na Bíblia o homem que viveu mais anos em toda a humanidade (969 anos, não é brincadeira) e avô de Noé, tem poderes mágicos que fariam inveja a um Gandalf. Se calhar aprendeu-os dos demónios? Ai se Jeová soubesse disto tudo, Deus os livrasse! É só ler o Velho Testamento para perceber que Jeová Deus dos Exércitos não gostava nada de magias nem de feiticeiros. Mas quem fez o filme não se ralou nada com isso.
Quando se vê um filme sobre Noé, é natural esperar grandes efeitos especiais em duas vertentes principais: os animais e o dilúvio propriamente dito. E com isto falo de efeitos especiais de grande envergadura, daqueles tão caros que obrigam a que só se faça um filme sobre Noé de 50 em 50 anos. Nos animais, fiquei decepcionada. Muito pouco, poucochinho. Poucos animais, pouco detalhados, vistos ao longe. Eu queria ver os bigodes dos leões e os pêlos nas trombas dos elefantes. Fiquei desapontada. Já o dilúvio, a princípio não se distingue de uma chuvada normal. Fica um bocadinho melhor com os geisers (as águas da terra) e as vagas que finalmente cobrem o horizonte. A imagem da Terra vista do espaço, completamente envolta em furacões, como se fosse uma fotografia de satélite, também foi algo de inesperado e original num filme inspirado em temas bíblicos.
Porque convenhamos, um filme destes, quando não segue a história à letra, fica reduzido aos efeitos especiais. Todo aquele drama que acontece dentro da Arca, com Noé a querer matar as netas recém-nascidas (Jesus, que homem tão mau), armado em mais jeovista do que Jeová, completamente fanático e tarado, tipo líder de culto que decide matar todos os seguidores, isso nunca acontece na Bíblia nem nada que se pareça. Aquilo foi tudo para dar que fazer à miúda do Harry Potter. Só para repor a verdade, todos os filhos de Noé já tinham esposas antes de entrarem na Arca. E não entrou nenhum “homem mau” na Arca a matar os animais. Se isso acontecesse, na Bíblia, aparecia-lhe logo um daqueles anjos exterminadores de Sodoma e Gomorra e da Páscoa do Egipto que lhe ensinaria o significado da expressão “o temor de Deus”. Melhor gente foi fulminada por muito menos. A mulher de Ló, transformada numa estátua de sal só porque olhou para trás. Nunca, mas nunca, o Criador permitiria que se destruísse parte da sua criação que ele já tinha deliberado salvar. (Na altura Deus intervinha. Agora é que não.)
A única coisa em que o filme conseguiu acertar foi em convencer-nos da maldade dos contemporâneos de Noé. Existe uma cena bastante perturbadora que parece mesmo uma visão do inferno em todo o seu esplendor medieval, com fogo e tudo. Mais apropriada num cenário pós-apocalíptico mas completamente eficaz.
Onde o filme errou completamente foi na caracterização de uma das “personagens” principais desta história, o Deus do Velho Testamento, aquele que mandou o dilúvio. De forma alguma aqueles demónios seriam perdoados e admitidos de volta ao Céu. Basta ler o Génesis, o Êxodo, e quem não gosta do Velho Testamento que leia os Evangelhos e atente no que Jesus diz de Lúcifer e afins, culminando no Apocalipse/Revelação (o lago de fogo). Que história é que estavam mesmo a contar, afinal?
“Noé” não seguiu o relato bíblico e o fim soou mais vazio do que era claramente a intenção. A grande história de Noé e do dilúvio é a explicação da relação de Deus com os homens. De como Deus perdeu a cabeça com a humanidade e decidiu destruir quase tudo para começar de novo, e no fim arrependeu-se. É este o significado do arco-íris. Mas, ao arrepender-se, foi o momento em que Deus começou a decidir parar de intervir, e, consequentemente, a começar a afastar-se. Foi dado livre-arbítrio à humanidade, mas que faz a humanidade com esse livre-arbítrio quando Deus se afasta? Este é que é o grande tema filosófico do dilúvio, mais filosófico até do que religioso porque não é preciso ser-se crente para o compreender.
“Noé”, o filme, deixou Deus de lado e reduziu tudo isto a um duelo entre maus e menos maus. Ainda por cima a armar-se ao Senhor dos Anéis.
Sinceramente, não gostei.

12 em 20 (os pontos são para os efeitos especiais)

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

The Death of Bunny Munro (2009), de Nick Cave



Saber que Nick Cave tinha escrito um romance deixou-me naturalmente curiosa, interessada e empolgada. Não é o seu primeiro: “And the Ass Saw the Angel” (publicado em 1989), que eu não li, já está na minha lista para colmatar essa falha.
Comecemos pelo princípio, Nick Cave é um poeta e um letrista extraordinário. Disto, ninguém que conheça o seu trabalho tem qualquer dúvida. Quando deram o Nobel a Bob Dylan, mais do que pensar em Leonard Cohen, eu pensei logo em Nick Cave. Isto só para expressar em que pedestal ponho o homem como poeta que é.
Mas escrever um romance não é a mesma coisa que escrever poesia. E um poeta não é necessariamente um romancista. Tive receio, ao pegar em “The Death of Bunny Munro” que Nick Cave não fosse tão completamente sublime, na prosa, quanto o é na poesia. Não é que as duas coisas se possam comparar linearmente, mas fiquei completamente rendida à escrita de Cave como romancista também. Com algumas críticas, ligeiras, que tenho a fazer ao livro.
Mas antes de ir às críticas, o que mais gostei foi sem dúvida a grande riqueza de imagens, inspiradas e inesperadas, que nos fazem relacionar coisas que aparentemente não teriam qualquer relação. Como, aliás, Nick Cave já nos habituou nas suas letras, pelo que não foi novidade nenhuma. Este romance podia ser uma longa canção, ao estilo de “Jangling Jack”, todo escrito no presente do indicativo, alternando os pontos de vista entre Bunny e o seu filho Bunny Junior, com alguma presença de um narrador quase invisível excepto a um olho treinado. E fico-me por aqui a nível de características técnicas. Vamos então à história e às personagens.
Bunny Munro é um tarado sexual e esta é a sua história. E não exagero a parte da taradice. A princípio nem percebi se Nick Cave estava a querer ser sério ou cómico (ou um misto dos dois) ao caracterizar Bunny, que até lembra as piadas de tarados sexuais que se contavam no liceu. Este é um homem que não pensa noutra coisa senão sexo. Desde o momento em que acorda de manhã ao último pensamento antes de adormecer: vaginas, vaginas, vaginas. Olha para uma mancha na parede e vê nela um par de mamas. Olha para outra mancha e vê um traseiro. (Juro que havia uma piada assim, e até me lembro dela, mas não vou contar.) Bunny não precisa de ver pornografia porque todos os seus pensamentos são pornografia. Actualmente chama-se a isto uma adicção ao sexo e é tratada como qualquer outra adicção. Bunny, inclusive, trabalha em venda de produtos de beleza, o que o leva a casa das clientes para demonstrações personalizadas. O perfeito terreno de caça. Na verdade, até o emprego é um meio para atingir o fim, satisfazer a adicção, de manhã à noite. E Bunny, curiosamente, tem uma carinha laroca e tem sucesso nas suas aventuras. Tirando esta ou outra excepção (a intelectual cinturão negro em Taekwondo que lhe partiu o nariz), fiquei surpreendida com o seu nível de êxito. Mas Bunny é um tipo desprezível. Até podemos achar-lhe alguma graça até sabermos que já recorreu a roofies para se aproveitar de mulheres inconscientes, até o vermos aproveitar-se de uma junkie à beira de uma overdose, até nos enojar como ele rouba algumas jóias a uma cliente velhota e cega. Isto é um sociopata a quem só interessa a sua satisfação pessoal e imediata, sexual ou outra. E nem sequer falei da sua (não-)relação com o pobre do filho, a quem Bunny liga exactamente zero.
Mas isto leva-nos à sua relação com a mulher dele, Libby, cujo suicídio é o acontecimento que dá início à história. Não gostei da personagem Libby porque não me pareceu realista. A história passa-se nos anos 90. Sabemos isto porque o puto de nove anos anda sempre com uma enciclopédia e ninguém tem computadores ou smart phones e os telemóveis ainda são de concha, mas Kylie Minogue e April Lavigne já são estrelas mediáticas. [Rectificação: segundo a Wikipedia a acção passa-se em 2003, mas tudo o que eu acabei de dizer ainda se aplica nesta data.] Libby é uma dona de casa com depressão, casada há 10 anos com Bunny, farta de saber que ele a trai a toda a hora e a torto e a direito com conhecidas e desconhecidas. Pior que tudo, ele apalpou o traseiro à melhor amiga de Libby no dia em que Libby chegou da maternidade com o recém-nascido, quando a amiga estava na casa deles para ajudar com as tarefas domésticas. Pior que isto é difícil. Taradice e ingratidão. E Libby sabe porque a amiga lhe contou o que ele fez. Libby sabe e durante dez anos atura esta situação. Logo no princípio do casamento, Libby ainda vai para casa dos pais, mas volta para o marido. Entretanto Bunny Junior tem nove anos, Libby não procura emprego nem ajuda psiquiátrica, e continua casada com um homem que não a respeita a ela nem a ninguém. Saliento que apesar de todos os seus defeitos Bunny não é daqueles que isola e maltrata a esposa e a impede de sair de casa. Não, isso ele não é. Pelo contrário, ele quase não pára em casa e só não a ignora quando quer sexo com ela também. Deprimida ou não, Libby tem opções. Tem família e amigos que a podem receber, pode tentar arranjar emprego, pode pedir ajuda psiquiátrica. Não faz nada disto. E eu não acredito que uma mulher jovem, nos anos 90, aturasse placidamente um casamento que mulheres de outras décadas --ou por vergonha, ou por estigma social, ou por dependência económica do marido, ou por demasiada idade para arranjar emprego, ou por falta de apoio de família e amigos-- suportariam por falta de opções. Nos anos 60, até mesmo nos anos 70, talvez. Nos anos 80, em Inglaterra, onde se passa a história, já tenho dúvidas. Nos anos 90, nem pensar. Libby não é daquelas esposas sem alternativa que se vêem amarradas a um casamento abusivo. Se Libby não é uma personagem pouco credível, é pior, é burra quem nem uma porta. (A depressão é uma coisa, a burrice é outra). Mas, na verdade, Libby não me merece muito respeito porque eu não acredito nesta personagem. Não acredito que uma mulher jovem, bonita, com o apoio da família, com um filho a crescer naquele ambiente com aquele pai que não lhe liga nenhuma, não se pusesse depressa dali para fora. Acreditaria, sim, se a lassidão de Libby se explicasse por um mal bem mais conhecido do autor desta história: uma dependência de substâncias.
Digo mesmo mais, a obsessão de Bunny por sexo, desde que acorda até que adormece, parece-me muito a vida de um viciado em que tudo se resume a obter a próxima dose. Libby, apaticamente sentada no sofá, parece-me outra "drogada" como ele. Reconheço que a depressão é uma doença incapacitante (estou completamente à vontade para falar de experiência própria), mas custa-me acreditar que uma mãe não tenha feito nada para tentar melhorar a sua vida, tendo um filho de nove anos com um pai com que não se pode contar. Em vez disso, suicida-se.
Os amigos de Bunny também não são melhores. Classe média-baixa xunga, de uma espécie como só existe por aquelas bandas. Piadas xungas, quecas xungas, penteados e roupas xungas, tudo é xunga naquele ambiente.
Salva-se o miúdo, o pobre órfão Bunny Junior, que nos parte o coração porque está convencido de que tem o melhor pai do mundo. Para ele, Bunny é um campeão. É mesmo de ter pena do miúdo quando este fica sozinho com aquele tipo egoísta depois do suicídio da mãe. O miúdo é esperto, e naquela interacção alucinante em que Bunny Junior viaja com o pai enquanto este finge andar a vender cosméticos quando na verdade só pensa onde arranjar a próxima queca, começa a aperceber-se de que o seu pai não é o herói que tinha imaginado. A interacção entre pai e filho, afinal, é o cerne da história e o que nos prende à leitura. A torcer pelo filho, bem entendido, e a desejar de todo o coração que alguém o tire àquele pai.
Não vou contar mais porque já me aproximo do fim, e o fim é uma reviravolta com uma surpresa (ou talvez não, se estivermos com atenção), mas poderei dizer que chegando à última página cada um de nós vai ter de tirar conclusões e, se calhar, pensar na vida.
“The Death of Bunny Munro” é como aquelas viagens em que o mais importante é a jornada e não o destino. Apesar de ter detestado o protagonista, apesar da xungaria da maioria das personagens, incultas e grosseiras, apesar de só ter sentido empatia pelo pobre do puto que não tem culpa de nada, gostei do que li. Gostei principalmente da escrita, das imagens inesperadas, de uma longa “canção” de Nick Cave em forma de romance.
Estou convencida. Quero ler mais de  Nick Cave e espero que ele escreva mais. Só não mais tarados sexuais, por favor. Já chega.
Agora vou mesma à cata de “And the Ass Saw the Angel”.



segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Victor Frankenstein (2015)

 

Como adorei o livro original “Frankenstein” de Mary Shelly (o que me surpreendeu tendo em conta o que conhecia da história através das versões de Hollywood), raramente deixo passar uma adaptação.
Esta é mais uma, e aposta na espectacularidade gótica e vitoriana dos cenários e guarda-roupa. A personagem principal não é Victor Frankenstein mas sim o seu assistente, Igor (não é o seu nome verdadeiro mas não vou dizer como é que ele adoptou esse nome), um palhaço corcunda com amor pela medicina que Victor resgata de um circo onde este é maltratado. Ora acontece que este desgraçado é corcunda porque tem um abcesso nas costas e Victor consegue tratá-lo e oferecer-lhe uma vida normal. Mais tarde, Victor dirá que Igor foi a sua melhor criação. Considerando o enredo do filme, até tem razão.
Para quem leu o livro, a breve aparição e destino da criatura criada por Frankenstein é insultuosa. Este filme nunca foi sobre a criatura mas sobre a relação de amizade de Victor e Igor, e mesmo assim é um filme vazio, fútil, muito espectáculo e pouco conteúdo. As próprias personagens raramente se conseguem mostrar tridimensionais. Victor é o génio louco. Igor é o assistente agradecido. Lorelei é a cara bonita que é necessária num filme onde todos os personagens são homens. O monstro/criatura é o colosso abrutalhado e quase invulnerável que volta à vida com uma tendência para atacar toda a gente que vê à frente.
Qualquer semelhança com o livro original é quase coincidência. Este é um filme para ver quando não se tem mais que fazer, e vê-se muito depressa porque não há nada aqui para pensar. Recomendo antes a leitura do livro original de Mary Shelly, esse sim, genial.

13 em 20 (pelos cenários e efeitos especiais)


segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro

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Para quem está a ler a antologia “Dentro da Noute”, chegar a este conto (que encerra a colectânea de contos portugueses) é chegar à modernidade.
“É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido."
Tirando algumas expressões muito datadas, especialmente de inspiração francesa, “Lúcio” continua a fazer sentido hoje (ou, neste caso, a não fazer sentido). Na primeira pessoa, o personagem Lúcio confessa, ou melhor, não confessa, um crime que não cometeu mas que o manteve na prisão durante dez anos. Uma verdade inverosímil, como o próprio diz, uma sequência de acontecimentos impossíveis, inacreditáveis.
A história passa-se mesmo no final do século XIX, início do XX, numa alta sociedade de artistas portugueses apaixonados por Paris, a cidade venerada de todo o vanguardismo à época. Lúcio, dramaturgo, convive com outros artistas e escritores, todos eles atingidos dessa doença dos ricos chamada “ennui” que se contrai por não se fazer nada na vida senão passear pelos boulevards, viver em hotéis e jantar em restaurantes chiques. Lúcio conhece o poeta Ricardo de Loureiro, com quem estabelece uma íntima amizade. Muitas coisas são ditas entre os dois (o poeta tem ideias muito “estrambóticas”, como diz o conto), mas talvez a mais importante seja a maneira como o poeta declara só ser capaz de amar se “possuir”, logo, como é que pode amar um amigo se não consegue possuir alguém do mesmo sexo? Isto vai causar uma materialização da alma de Ricardo numa figura feminina que se torna amante de Lúcio. Ou seja, pelo menos é esta a “verdade” de que o narrador nos tenta convencer, sabendo ao mesmo tempo que qualquer plausibilidade é impossível.
“Mas ponhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E para a clareza, vou-me lançando em mau caminho — parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: Durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer duma grande soma de factos. E são apenas factos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não me importa que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é inverosímil.”
O próprio narrador nos avisa, pelo excesso, de que não é de confiança. Até que ponto é que o autor não nos quer revelar o tema que o conto trata (a homossexualidade), ou até que ponto o autor não admite que trata este tema, deixo a outro tipo de análise. Um século depois, esta temática “chocante” perdeu-se e o leitor moderno sente-se atraído pelo mistério que Lúcio nos vai relatando, duvidando aqui e ali dos tais pormenores que o narrador prometeu descrever fielmente, questionando a sua sanidade mental (tal como ele nos advertiu), questionando a relevância deste ou daquele acontecimento no total da narrativa. Tive muitas vezes a sensação (e a desconfiança) de estar a ler o relato de um sonho. O que de certa forma me recorda de Kafka, pese embora a diferença de temáticas. Se tantas vezes as histórias pecam por incoerência e falta de sentido, quando é bem feito e apoiado num todo surrealista resulta muito bem. Este é um desses casos e uma leitura que recomendo a toda a gente que ama a literatura.




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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Sede de Sangue, de Manuel Teixeira Gomes

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Este conto devia ser daqueles que mais me empolgam. Um vampiro. Um vampiro a sério! Mas infelizmente o conto não me cumpriu as expectativas.
Esta é mais a história de um mirone, o narrador, que do seu escritório, onde escreve para um jornal da terra, tem uma vista privilegiada para a “taberna” de um Sr. Trovas e sua esposa Balbina Catada, “antiga marafona que ele desposara em Lisboa”. Sim, a “taberna” é um bordel, e “marafona”, presumo, era sinónimo de prostituta. (Actualmente, “marafona” significa “mulher feia”. É curioso como as palavras evoluem.)
O narrador passa a maior parte do conto a descrever as “marafonas” (nos dois significados) que trabalham na taberna, até que lá aparece uma bela mulher de raça cigana: “Era uma rapariga de aparência franzina que, airosa, de perna cruzada, arcando divinamente o braço nu, fumava cigarros e falava espanhol. Ao expelir o fumo do cigarro em ténues baforadas toda se encostava para trás e o seio entumecia-se-lhe prodigiosamente debaixo do leve casabeque solto; de entre as fartíssimas madeixas do cabelo, que lhe caía sobre os ombros em lustrosas ondas negras, o rosto emergia oval, puro, mate, iluminado por dois olhos babilónicos, imensos olhos ardentes que fascinavam…”
Ora, esta nova trabalhadora da taberna começa a dizer, repetidamente: “a minha vida está por um fio: não tarda muito que não venha alguém beber-me o sangue”. Por estranho que pareça, ninguém lhe pergunta o que é que ela quer dizer com isto. Não é uma coisa normal de se dizer. Mas um dia, de facto, o nosso narrador/mirone observa a chegada de um estranho homem: “No momento em que o tive quase ao meu lado examinei-o bem: era enorme; era monstruoso! O arcabouço mociço, redondo, com proporções de mó de moinho; os braços grossíssimos, como troncos d’árvore articulados, encurvavam-se a miúdo e ligavam as mãos com um jeito de formidável turquês que se fecha para esmagar qualquer coisa; e as esgalgadas pernas de uma tão maravilhosa elasticidade que só as feras assim as têm. Mas o rosto, então, apavorava: lívido, golpeado pelo farto bigode preto, que lhe caía em compridas, agudas pontas dos dois lados do queixo, e sob as hirsutas sobrancelhas, na profundeza das órbitas cavernosas, ardiam-lhe os olhos desvairadamente…”
O narrador espreita como a cigana e este “gigante” se encontram, como se afastam até uma praia, e como ele efectivamente lhe bebe o sangue. E depois o conto acaba, sem qualquer explicação. “Os médicos que lhe fizeram autópsia, ao dia seguinte, não lhe encontraram pinga de sangue nas veias, mas ninguém suspeitou que um vampiro lho houvesse sugado, pois durante a noite a maré lavajara por muitas horas o cadáver e o sítio onde ele ficara, presumindo-se que assim desaparecera o sangue derramado.”
Há casos em que a falta de explicação valoriza a história, mas este não é desses casos. Afinal, o que foi aquilo tudo? Este homem “monstruoso” era mesmo um vampiro (sobrenatural) ou um assassino qualquer? E se a vítima tinha conhecimento do vampiro (sobrenatural ou não) porque é que aceitava tão placidamente que este lhe viesse beber o sangue? Não saber as respostas a estas perguntas deixou-me frustrada e sem perceber o que é que o conto queria, de facto, contar. A mim parece-me que o autor estava mais interessado em falar das marafonas e da Balbina Catada. Como grande fã de literatura de vampiros, não gostei.




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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

O Cadáver, de Beldemónio

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Este é um conto cómico que conseguiu fazer-me rir. Trata da história de um homem que vinha de um baile, “Fernando de Morais, um valsista infatigável de todos os bailes do campo”, pelas bandas do Campo Grande, que nessa altura era mesmo campo e arredores de Lisboa. (Primeira gargalhada.) “De repente, distraído, tropeçando em qualquer coisa de mole, caiu de bruços para a frente, com as mãos estendidas. As suas mãos bateram numa superfície fria e molhada; e quando ele rapidamente se quis firmar para se pôr em pé, encontrou cabelos; o seu olhar já habituado ao escuro reconheceu um cadáver ali estatelado, de ventre para o ar, com a cabeça um pouco de lado, lívida e horrorosa sob o luar alvacento.” Era um homem que tinha sido assassinado. Mas este Fernando, e justificadamente, tem medo de ser acusado do crime se for encontrado junto ao cadáver e desata a fugir espavorido. É muito interessante como ele toma medidas forenses para eliminar todos os vestígios do cadáver, queimando a roupa manchada de sangue, fingindo um semblante calmo e sereno enquanto, intimamente, a paranóia de ser acusado do crime vai aumentando a níveis insuportáveis. Bem diz o conto:
«Se se lembrarem de propalar que furtei sub-repticiamente o zimbório da Estrela, a primeira coisa que tenho a fazer é fugir para o estrangeiro, e justificar-me de lá...»
Segunda gargalhada. E não é que ainda é verdade nos nossos dias? Especialmente para o desgraçado do pobre, que não tem uma firma de advogados que o defendam se for injustamente acusado. Mas se é rico e corrupto, não só não o conseguem prender como ainda se “arrisca” a ser reeleito Presidente de Câmara…
Não vou contar o que acontece a Fernando porque ia estragar a piada. Na verdade, esta história nada mais é do que uma piada desenvolvida em forma de conto. O mais surpreendente é que ainda nos faz rir hoje em dia, duzentos anos depois.
Beldemónio é o pseudónimo de Eduardo Lobo Correia de Barros, cronista, contista, jornalista e tradutor.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Uma Récita do Roberto do Diabo, de Júlio César Machado

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Durante uma exibição da ópera “Roberto do Diabo”, um folhetinista (título que dá a si próprio) é abordado por um companheiro de camarim que lhe relata uma ignominiosa história de parricídio, caso este a queira escrever. O folhetinista interessa-se e o companheiro conta-lhe a história de Ricardo, que mata o pai no único intuito de lhe roubar a herança. Pior do que isso, consegue acusar um inocente do homicídio, inocente este que é enforcado por um crime que não cometeu. Ricardo é o Mal em pessoa. Mas sobrepujado pelos remorsos, acaba por se arrepender.
No drama em palco, temos a história inversa. Roberto é filho de Bertran, que se intitula diabo (“um diabo subalterno, um diabo inferior, um diabo de segunda qualidade, um pobre diabo! A licença com que veio à Terra expira nesse dia; dentro em poucas horas tem de abandonar o filho e voltar às trevas e às chamas, ao fogo e à escuridão, à alegria infernal e à dor maldita!”), e que gosta tanto do seu filho que quer levá-lo para o inferno para não se separar dele.
Este é um conto que promete mais do que oferece. Entretanto, o companheiro do folhetinista confessa que o tal “Ricardo” é ele próprio (o que já todos tínhamos percebido) e promete dar mais pormenores. Contudo, no dia seguinte, o folhetinista descobre que este estranho homem é um louco do manicómio. Ficamos sem saber se a história era verdadeira, se foi uma invenção do louco, se foi o parricídio que o fez enlouquecer. Não aprecio este tipo de fim que não nos dá nada em forma de conclusão. Justifica-se, em certos casos, mas aqui não percebo mesmo porque é que o fim fica “à interpretação do freguês”.
Salvam-se algumas considerações sobre o Bem e o Mal que vão sendo feitas a meio da narrativa. Não há muito mais a dizer sobre este conto e não quero fazê-lo parecer mais interessante do que é.



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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mars / Marte


[crítica à primeira temporada]

“Marte” é uma série/documentário do canal National Geographic que se distingue pelo formato original. A parte “documentário” é normal, mas a parte “série” não é a dramatização com figurantes silenciosos que estamos habituados a ver nestas coisas. É mesmo uma série, com personagens a sério, com motivações e flashbacks e histórias pessoais. Pode ter sido uma grande aposta da parte do National Geographic, porque se não fosse esta parte “série” eu não estaria de certeza a ver um documentário sobre uma possível colonização de Marte.
A história é esta: no futuro próximo, a primeira missão tripulada dirige-se a Marte na intenção de estabelecer a base de uma colonização humana. Os personagens são mais genéricos do que tridimensionais mas têm os seus momentos de profundidade. Nas partes boas, isto é, quando o perigo espreita, é que a série muda para documentário, o que é tão irritante como eficaz. Enquanto cientistas entrevistados debitam factos e opiniões, o espectador fica ali agarrado ao écran no suspense de saber se a nave explodiu ou não. Não sei se será este o futuro do documentário em geral, e até mesmo se será o formato mais credível, mas a verdade é que a mim apanharam-me de entre um público que geralmente não vê estas coisas. Logo, aposta ganha em termos de audiências.
O que não quer dizer que fiquei deslumbrada com o formato. Passei o primeiro episódio a tentar perceber se ia haver história ou se era só documentário, e se aquilo não era tudo publicidade à SpaceX. A interrupção da dramatização ficcional para aparecer um senhor ou uma senhora a dizer coisas com que não concordo também não ajuda nada.
Porque, com toda a franqueza, faz-me muita confusão como é que alguém pode estar a pensar em gastar milhões com Marte quando existe tanta miséria aqui mesmo, no planeta Terra, quando tanta gente ignorada em países subdesenvolvidos luta pela subsistência mais básica, onde não há comida nem água potável, quando migrantes morrem no Mediterrâneo a tentar fugir da pobreza. Não me entra no miolo.
A ideia desta gente é colonizar Marte como mais um trampolim para a expansão da espécie humana pelo universo afora, não vá acontecer uma extinção em massa por cá (como já aconteceram várias) que nos acabe com a raça. Não passa pela cabeça destes senhores a simples pergunta: e nós somos uma espécie que vale a pena salvar da extinção? Eles acham que sim, mas quanto apostam que esta “salvação” está restrita a quem tiver dinheiro para a pagar? E vale a pena salvar uma espécie que alegremente anda por aí a explorar o espaço enquanto a maior parte dos seus exemplares passa mal no planeta natal? Uma espécie que já deu cabo do planeta natal, que todos os dias extingue um número assustador de outras espécies, que não se importa nada com isso, que vai dar cabo de todos os planetas onde puser as patas?
Há muito tempo que a filosofia e a ficção científica colocam estas questões, mas agora já não é ficção científica. Estão mesmo a pensar pôr uma base na Lua, e de seguida em Marte. Não contentes com a lixarada que já fizeram na Terra, e que não conseguem (ou não querem) resolver, toca de ir fazer lixarada para o espaço e cavar aterros sanitários na Lua. E a mim faz-me confusão, a sério. Antes de pensar em salvar a espécie da extinção, o ser humano devia estar fazer por merecer ser salvo. Por enquanto não merece destino diferente dos dinossauros. Se se extinguir, não se perde nada e o universo agradece.
Voltando à primeira temporada da série, “Marte” são apenas seis episódios em que os pioneiros da colonização do planeta vermelho passam por bastantes maus bocados. Aprendi muita coisa, apesar dos pedaços “série” estarem constantemente a ser interrompidos e os pedaços “documentário” me alienarem um pouco. Por exemplo, não sabia que uma viagem até Marte são apenas 7 meses. Julguei que era muito mais. Também gostei de ver a parte em que o astronauta desmaia colado ao tecto. Só não sei até que ponto é que é tudo credível. Será mesmo assim que qualquer pessoa pode abrir uma porta (escotilha?) de uma base num planeta sem atmosfera, sem que haja protocolos de segurança confirmados por pelo menos dois responsáveis? Cheira-me que não, ou é optimismo a mais. Ou talvez a parte “documentário” quisesse que a parte “série” mostrasse o que acontece sem esses protocolos de segurança? Talvez. Mas eu continuo a achar que os dois formatos deviam permanecer separados. Preferia que não houvesse documentário nenhum e que fosse só série, para que os personagens evoluíssem e se tornassem de carne e osso em vez de ficarem nesta coisa que não é carne nem peixe.
Seja como for, o melhor momento do programa é a canção de Nick Cave e Warren Ellis, “Mars Theme”, uma pequena maravilha a descobrir. Fãs de Nick Cave, atenção.



segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Os Canibais, de Álvaro do Carvalhal

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Na forma de conto fantástico, “Os Canibais” é na verdade uma feroz crítica social. Quer-me parecer que a crítica não é apenas ao óbvio: a importância das aparências e a ganância, mas mais do que isto talvez já me escape nos dias de hoje.
A acção passa-se entre a alta sociedade portuguesa do século XIX. “Suponha o baile — se lhe apraz, mesmo por comodidade ou propriedade — suponha-o em Lisboa”, diz o narrador,  que já tinha começado o conto com uma crítica irónica ao pensamento literário da época: “Disse a crítica pela boca de Boileau: Rien n’est beau que le vrai”, isto é, só o verdadeiro é belo. [E esta já é uma tradição de séculos entre nós --só o realismo interessa-- o que é um dos factores que explica a falta de literatura gótica e fantástica em Portugal. Ainda hoje, note-se, na cabeça de muitos intelectuais, só o realismo é sério. Veja-se até o prémio Nobel, sempre atribuído a autores que retratam sociedade e política. A Fantasia, a Ficção Científica, o Fantástico em geral, são considerados devaneios inferiores. Salva-se o Realismo Mágico quando bem embrulhado em ditaduras. E isto explica porque é que Tolkien nunca ganhou o Nobel. E está tudo dito.]
Álvaro do Carvalhal vai citar a ideia de que “só o verdadeiro é belo” para se lançar num conto que é completamente Fantástico, se bem que nem sempre coerente. Eu fiquei com algumas dúvidas quanto ao que de facto aconteceu.
A jovem Margarida, bela e senhora do seu nariz, apaixona-se pelo misterioso visconde de Aveleda. Margarida é muito cortejada (“Ela era o ídolo acatado de todos os crentes”) mas não corresponde ninguém. Álvaro do Carvalhal bem sublinha que não quer dar a moral da história, mas eu vejo aqui algo do ditado “quem muito escolhe pouco acerta”. O visconde, desde o momento em que aparece, denuncia logo que não é um homem vulgar. Melancólico e desencantado, não diz duas frases seguidas que não sejam góticas: “O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder contemplá-las. Eu sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada.” O visconde adverte Margarida de que não o ame, deixando adivinhar qualquer tragédia que nunca revela, mas por fim até ele cede à sedução de Margarida e acabam por casar.
Entra aqui em cena um outro personagem, D. João, que diz amar Margarida, embora tudo nos leve a perceber que é desejo de conquista e orgulho ferido que o move. D. João queria cortejá-la mas Margarida desdenha-lhe os avanços. D. João é um Don Juan (seja o nome propositado ou não), habituado a ter as mulheres que quer. É através deste personagem que Álvaro do Carvalhal faz a crítica mais severa, descrevendo-o como um produto da sociedade, julgando que são os seus talentos pessoais, em vez da grande fortuna, que lhe abrem todas as portas. “O prostíbulo, voragem que a lei sanciona, foi a arena borrifada com o vinho de suas primeiras proezas. Cansado enfim de se estorcer na crápula, no húmido chão do lupanar, volveu os despertados apetites para a recatada burguesia. Se lhe resistia a inocência, a palavra dinheiro, pronunciada com voz anelante por lábios torpes, abandonava o pudor aos soltos caprichos do mancebo. E muitas foram as envergonhadas pequenas, que lhe venderam a virgindade em beijos frios, em dilúvios de sentidas lágrimas.”
Mas tirando a crítica social, não percebi que papel D. João realmente teve nos acontecimentos. O orgulho ferido leva-o a intentar o assassinato do visconde, nomeadamente no dia do casamento, mas antes de o chegar a fazer já a tragédia se tinha desenrolado.
Eu cheguei a pensar, até devido ao título do conto, que o visconde seria um vampiro ou algo do género. O que o visconde realmente é, prefiro que o autor o descreva: “Fez um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme, monstruoso. Pernas, braços, os próprios dentes do visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos tapetes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre, que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros. O infeliz era um fenómeno, um aborto estupendo, que em nossos dias valeria muito dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta de mais para isso. A tudo porém dera remédio a civilização de seu tempo. Afortunados tempos!”
Isto acima descrito aconteceu na noite de núpcias, em frente da horrorizada Margarida. Antes, ele tinha-a lembrado da sua promessa: “prometeste seguir-me ao cemitério, se lá fosse minha morada…” Margarida lança-se da janela e morre, de cabeça esmagada num banco do jardim. O visconde, de coração partido, atira-se à fogueira para morrer queimado.
D. João, que entra no quarto neste preciso momento na intenção de matar o visconde (ou o casal?) foge também. Mas, ao descobrir que Margarida tinha morrido, dá um tiro no “coração”, numa intenção de morrer que eu não percebi muito bem. Achei demais para um homem movido pelo orgulho ferido que de facto não amava Margarida mas a ideia de a possuir como a todas as outras. Mas as motivações das personagens não são o aspecto mais trabalhado deste conto. Diria mesmo mais, este é um conto satírico disfarçado de conto de horror, em que as acções das personagens se destinam a realçar a sátira. Nem sei se devíamos mesmo sentir simpatia pelo pobre visconde e pelo seu atrevimento e ingenuidade de julgar que Margarida o podia aceitar como era, ou se o autor estava a gozar connosco também.
Não vou revelar a parte que dá nome ao conto mas asseguro que não é publicidade enganosa. A seguir, acontece aqui uma espécie de piada que de forma nada subtil nos informa de que o dinheiro compra tudo, até a consciência.
Mas fiquei a perguntar-me: seria só isto que o autor queria dizer, que me parece tão óbvio e batido, até para a altura? O problema da escrita satírica, e neste caso o autor chega mesmo a gozar com o próprio conto, é que só faz rir quem está por dentro da piada. Era preciso dizer ou mostrar muito mais para que se entendesse plenamente a piada mais de dois séculos depois. Nunca esperei canibalismo literal deste conto, mas o título fez-me pensar num “canibalismo” simbólico em que os personagens se destroem mutuamente. Afinal, porque é que os pais e irmãos de Margarida são “canibais” a nível simbólico? Porque são iguais aos outros e também teriam prostituído a filha ao D. João ou ao visconde ou a outro qualquer, não fosse ela tão senhora do seu nariz? Era só isto? Já que o objectivo é a sátira, eu esperava mais de um título tão forte. E não gostei mesmo nada da ligeireza do fim, quase uma anedota. O autor é demasiado gozão para o meu gosto. Mas justiça lhe seja feita, o conto consegue cenas verdadeiramente tenebrosas (rebuscadas que sejam). Tudo o resto sou eu que estou mal habituada a um terror mais moderno e consistente.

* * * * *

Já depois de escrever este artigo, tive curiosidade de ir pesquisar o conto e o autor. Descobri que Álvaro do Carvalhal morreu com apenas 24 anos, em 1868. Isto explica tudo o que apontei acima. Não bastando o talento, a escrita é uma arte que se aperfeiçoa durante toda a vida, mas algumas coisas só se adquirem com a maturidade, nomeadamente a construção de personagens tridimensionais e com as devidas motivações. Não posso deixar de lamentar o potencial perdido com o desaparecimento deste jovem autor.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Event Horizon / O Enigma do Horizonte (1997)


Este é daqueles que se vi não me lembro. Personagens genéricas e uma ameaça que fica sempre inexplicada parecem ser os ingredientes perfeitos para causar amnésia cinematográfica.
Até o enredo é mais ou menos igual a tantos outros do género: uma equipa de socorro é enviada em busca da nave de exploração espacial Event Horizon, seguindo um sinal que esta envia de algures em órbita de Saturno. Assim que vemos o aspecto da nave Event Horizon percebemos logo que isto vai ser um filme de terror inspirado no “Alien”. Meu dito meu feito, o filme não é exactamente subtil. Até a equipa de socorro nos recorda as tripulações dos vários “Aliens”, o tipo de pessoas que está ali porque é um emprego como outro qualquer e no fundo o que queriam era uma reforma antecipada. Gostei das cenas em que quase todos os membros da equipa fumam uma cigarrada antes de entrarem nos tanques de stasis (?). É datado, mas é giro. Também gostei de terem explicado o conceito de FTL (velocidade Faster Than Light) que implica causar uma “dobra” no contínuo espaço-tempo. Tudo ficção científica, bem entendido, mas como era 1997 ainda se deram ao trabalho de explicar. Actualmente a ficção científica usa o termo FTL a torto e a direito e pessoas como eu, que não conhecem estes termos nem sabem o que significam, ficam ali à nora a tentar perceber a acção, ou desistem. O que me leva a esta reflexão: uma ficção científica que não se dirija a um nicho muito específico de conhecedores devia ter em conta uma audiência mais interessada na história e personagens e menos nos aspectos científicos. Quanto mais a ficção científica se dirige a um nicho, mais aliena o público leigo.
Mas voltando ao filme. As coisas começam a acontecer como é previsível neste género horror sci-fi. A Event Horizon é uma nave fantasma, toda a sua tripulação está morta, alguns corpos andam mesmo ali a vogar nos corredores devido à ausência de gravidade. Enquanto exploram a nave, os membros da equipa da socorro começam a ter alucinações estranhas com pessoas que lhe são caras, algumas já falecidas. Resolvendo que se passa algo de anormal e perigoso, decidem ir-se embora, mas aqui entra em cena o cientista louco/malvado (Sam Neill). Acontece que foi ele quem desenhou a nave, dotando-a de um mecanismo capaz de criar o seu próprio buraco negro de modo a viajar no espaço mais depressa. Mas aparentemente a Event Horizon visitou outra dimensão e não regressou sozinha. Trouxe consigo forças maléficas que querem apossar-se dos recém-chegados. Que forças maléficas são estas e para onde querem levar a nave de volta? Para o inferno. Não, não é uma forma de dizer. O filme quer-nos convencer de que a nave foi ao inferno e voltou. (É tranquilizador saber que algures na infinitude do espaço, até do outro lado de um buraco negro, ainda se aplicam as regras da nossa civilização judaico-cristã.)
As tais forças maléficas apoderam-se da mente do cientista (ou será que ele já era assim?) e a partir daqui este faz o papel de sabotar a fuga dos outros. O resto do filme é a tripulação da nave de socorro a lutar pela vida.
“Event Horizon” não prima pela originalidade mas enche o olho em termos de efeitos especiais e cenários. É o tipo de filme que se via no grande écran (quando ainda havia grande écran, mas já em extinção) a comer pipocas. Uma crítica que li chamou-lhe uma espécie de “Shining via Aliens”, e é de facto uma descrição muito apta. Durante quase todo o filme me recordei de “The Shining”, especialmente na cena em que um dos tanques de stasis se enche de sangue, explode, e jorra sangue por todo o lado, como o célebre elevador do hotel Overlook. Fiquei foi sem perceber se o tanque aconteceu mesmo ou se foi outra alucinação. Na verdade, fiquei sem perceber grande coisa excepto que o inferno é muito mau e pode estar do outro lado de um buraco negro, e que o Génesis bíblico tinha razão: o homem não deve querer saber tanto como Deus ou será castigado. Mas acho que até já estou a tirar conclusões a mais por mim própria e a tornar o filme mais interessante do que é. “Event Horizon” aposta principalmente no espectáculo, com muitos cenários, muitas explosões, muito sangue e afins, mas na verdade é um filme vazio que não deixa lembranças.


14 em 20


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

A Morta, de Florbela Espanca

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Ou não fosse Florbela Espanca, este é um conto em prosa poética. Os temas são os do costume nesta poetisa, o amor e a morte, e mais uma dose de morte.
Tal como em toda a prosa poética, apenas se pode interpretar o significado, e do que eu conheço da autora interpreto assim: a Morta morreu nova; durante uns tempos, o noivo foi visitá-la ao jazigo; por fim, o noivo deixou de visitá-la. Sentindo-se esquecida, a Morta levanta-se e vai-se “afogar”/”diluir” no rio, onde acabam todas as memórias. (Florbela conheceria o rio Lethes?... Na sua obra poética, Florbela menciona várias vezes a transmigração das almas/metempsicose/reencarnação, pelo que não é descabido interpretar este conto como mais uma referência a essa “morte” do eu antigo/renascimento pós-morte).
Florbela Espanca foi a autora mais gótica do nosso país antes de haver o movimento gótico. Lamento muito por ela não ter encontrado a sua gente. Talvez o suicídio tivesse sido evitado. Trágico destino de nascer antes do seu tempo. Como é que se conseguia ser gótico e viver naquele tempo de Avé-Marias e procissões, e de gente normal a martelar-lhe aos ouvidos que o problema estava nela? A solidão intelectual devia ser absoluta.
Isto é suspeito da minha parte porque eu adoro a autora, mas este foi um dos meus contos preferidos desta colectânea.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.




segunda-feira, 29 de julho de 2019

Game of Thrones / A Guerra dos Tronos (final)


[crítica ao FIM; spoilers do último episódio]


Então, quem é que se sentou no Trono de Ferro? Ninguém.
A maioria das críticas são unânimes e eu concordo: durante as duas últimas temporadas foi tudo a correr, de plot point em plot point, sem tempo para aprofundar personagens. A maior vítima desta pressa foi a pobre Daenerys, transformada num monstro em 30 segundos para andar com o enredo para a frente. Nem a actriz nem a personagem mereciam isto. A ideia que tentou ser vendida é que Daenerys enlouqueceu, mas o que passou não foi convincente, nem como loucura nem como evolução natural da personagem. Daenerys não pareceu louca, pareceu monstruosa. Conseguiram transformar a Daenerys no Hitler, basta olhar para este cenário:


Só falta a suástica de 5 metros de altura. Heil!
Outro personagem desnecessariamente atropelado na pressa de chegar ao fim foi Jaime. O desgraçado ia a caminho da redenção, e até compreendo que tenha regredido a meio do caminho. Mas não em meia hora, por amor de Deus! E qual foi a necessidade daquilo com a Brienne (tirando fan service, isto é?) Se queria voltar para a irmã, que voltasse. Mas o que se passou foi que o personagem não sabia o que queria, não sabia quem queria, não sabia o que estava a fazer nem para onde se virar. Coitado, transformado em barata tonta. Merecia um fim mais consistente, quer se redimisse ou não. Mas os criadores da série estavam cheios de pressa para ir fazer outra coisa qualquer (que algo me diz que não vou ver).


O que mais não fez sentido
Perdi qualquer esperança de que o fim da série fizesse sentido quando acabaram com o Night King daquela maneira (o rei dos zombies, para quem não sabe). Este é um desgosto pessoal, admito, porque eu estava realmente a torcer pelos zombies. Talvez não esperasse que vencessem, mas nunca pensei que dessem tão pouca luta. Uma batalha, um episódio, uma ninja adolescente. E assim acabou a maior ameaça de Westeros em milhares de anos, a razão da existência da Muralha, a primeiríssima cena da série. Enfim, nem tenho palavras. Foi mesmo uma desilusão. Nem cheguei a perceber afinal o que é que os zombies queriam. Houve um episódio que explica que a criação deles foi uma espécie de feitiço contra o feiticeiro, mas isso não explica qual era a ambição que os movia. Os zombies não paravam de aumentar as fileiras do seu exército dos mortos. Para quê? O objectivo era invadir o Sul. Porquê? Num dos episódios raptaram um bebé e transformaram-no num deles. Com que objectivo? Por que raio precisavam de um bebé? Só “porque sim” não é resposta. Agora nunca vou perceber para que é que queriam o bebé.
Não pretendo ler a saga de George R. R. Martin, mas, quando e se o homem a escrever a história dos zombies, seria um livro que me interessaria. E talvez possa vir daí a minha conclusão consistente. Mas para isso é preciso que Martin escreva e é melhor não esperar de pé.
Depois desta correria desenfreada, chegámos finalmente ao último episódio. E deste, confesso, gostei da primeira parte (que tem a duração de um episódio inteiro). Especialmente a cena dramática entre a Daenerys e o Jon Snow. Até gostei do dragão! Foi das raras vezes em toda a série que de facto me importei com os personagens. Admito que me surpreendi por ter gostado tanto, porque quase tudo o que aconteceu em “A Guerra dos Tronos” teve principalmente um efeito de choque (o Red Wedding, a morte da princesa Shireen, o sadismo de Joffrey e de Ramsay, as fogueiras de Melisandre, as execuções-por-dragão de Daenerys, tudo porno-tortura) mas a isto eu senti. Finalmente, Jon Snow conseguiu pôr a funcionar o Tico e o Teco e agiu com a cabeça. Teria tido mais pena da Daenerys, mas depois de a transformarem no Hitler em 30 segundos já não deu para empatizar grande coisa.
Já a segunda parte do último episódio foi um festival de disparate. Bran? Eu já me tinha esquecido de que Bran era um personagem. E aquela reunião de nobres(?) e outras pessoas com o Torgo Nudho? Quem era aquela gente que ali apareceu do nada? Custava alguma coisa apresentarem-nas? Alguns descobri quem eram a ler críticas. Outros ficarão para sempre no mistério do meu desinteresse. Afinal, isto era a Guerra dos Tronos. O mínimo que se pode esperar é que o espectador reconheça os sobreviventes.
O fim foi completamente incoerente. Torgo Nudho não ia esperar sei lá quanto tempo por um julgamento com gente que não lhe diz nada. Assim que Torgo Nudho virasse costas, Jon Snow não ia para a Muralha. E qual Muralha? O próprio Jon Snow pergunta “ainda há uma Muralha?”, e com ele nós todos. Já não há Night King, nem sequer cavalos zombies e dragões de gelo. O que é que alguém vai fazer para a Muralha?
Bran e Sansa só acabaram como acabaram, os donos do pedaço, porque o verdadeiro Rei devia ter sido o irmão/primo deles. Essa é que é a verdade e devia ter sido a conclusão lógica da história.

Os vencedores
Apesar de tudo isto, algumas personagens conseguiram conquistar-me. Tyrion, não é novidade, sempre foi o meu preferido. Embora no fim tenha tido momentos de burrice que não fazem justiça ao personagem (e Varys, idem) quando decidiu agir com honra e coragem em vez de ser inteligente. Só se safou graças ao Jon Snow, que foi mais esperto. Não deixa de ser irónico.


Sansa nunca foi preferida do público desde o início mas eu sempre vi nela o potencial daquilo em que se tornou. Se se pode dizer que alguém ganhou a Guerra dos Tronos, esse alguém é Sansa, não apenas sobrevivente mas vencedora, não apenas uma Lady mas uma Rainha. Gostei.


Também gostei da última tirada de Samwell Tarly, sugerindo dar voz ao povo para escolher os seus governantes. Momento brilhante de alguém à frente do seu tempo. Infelizmente, ninguém lhe ligou nenhuma.


Arya, a miúda ninja, não sei o que lhe aconteceu mas perdi completamente o interesse por ela. Lembra-me aquela cena d’“Os Diários do Vampiro” em que eles desligam a humanidade. Foi o que me pareceu, que ela desligou a humanidade e se tornou uma espécie de super-Arya. Super-heróis não são o meu género e nunca serão.
Mas, no meio disto tudo, uma personagem cresceu no meu coração. Brienne de Tarth, que a princípio era bidimensional e irrelevante, nas últimas temporadas tornou-se uma mulher de carne-e-osso, não apenas uma mulher “que queria ser homem” mas alguém que amou (um homem que não a merecia), que sofreu, e que se elevou ao abandono com a maior das dignidades. Não sou daquelas que só fica satisfeita quando as personagens têm um final romântico mas, se Brienne quiser pensar no assunto, há sempre o Tormund. Depois de amestrado, e com maneiras à mesa, quem sabe, ainda se encontram para tomar um copo?


Tormund, o “gigante” (gigante entre aspas, porque nesta série há gigantes a sério) voltou para o norte, para lá da Muralha, de coração partido. Mas estar longe não é estar morto.
Para minha felicidade, Ghost (o lobo ou direwolf) também foi com ele. Esteve difícil, mas o bicho safou-se. Ainda bem, nesta série que se fartou de matar animais. Quem é que, não sendo um serial killer com nostalgia pela infância, quer ver isso?


Em suma, uma boa cena dramática (Tyrion, Daenerys, Jon Snow, Drogon) não basta para compensar a enorme frustração que foi assistir ao final desta série. Eu até não sou uma daquelas fãs “die hard”, não estou desiludida e em lágrimas, mas não é por isso que não tenho direito a um final que faça sentido. Desde que os criadores da série ficaram sem os livros para os guiar o enredo foi por água abaixo e nunca mais se elevou ao nível das primeiras temporadas.  Resta-nos esperar pelo Martin, se entretanto ele não perdeu o interesse em escrever o resto.



Primeira parte da crítica à série até à quinta temporada AQUI

Segunda parte da crítica à série até à quinta temporada AQUI