Há muito tempo que não falava de política/sociedade. Ora cá vai um apontamento da actualidade.
Eu devo ser mais lenta do que pensava. Finalmente consegui perceber o que é afinal a Puta da Crise Crónica - Crise, Qual Crise?, sobre a qual ando aqui a escrever há anos.
Tenho ficado muito perplexa com a "crise da habitação". Mas qual crise? As casas estão caras, não se consegue arrendar? E onde é que está a novidade? Qual é a diferença agora? Nos anos 60 e 70 a minha tia arrendava um apartamento de várias assoalhadas em Lisboa com os quartos todos "alugados". Um estivador aqui vizinho "arrendava" uma despensa de pátio onde só cabia uma cama de molas e um fogão de campismo. Outro vizinho vivia num armazém de refugo de madeira (antigo palheiro para animais de manjedoura), exíguo, de uma fábrica quando havia fábricas em Lisboa. Vivia-se assim, sempre foi normal. E havia barracas, sim havia, nos arredores. O palheiro sempre era mais perto do local de trabalho.
De repente, fez-se um clique, um momento EUREKA. Só se chama crise quando afecta a classe média. Quando (ainda só) afecta os pobres não faz mal, é normal, "não estudaram/não querem trabalhar". Mas quando toca nos filhos daqueles que conseguem arrendar e pagar empréstimos, aí já é crise. Percebi.
Isto já aconteceu com a crise do emprego precário, nos últimos 20 anos, quando os filhos da classe média saíram das faculdades e não conseguiam arranjar nada sem ser a recibos verdes (hoje recebem o ordenado mínimo). Pensei que, sei lá, as pessoas tivessem aberto a pestana. Afinal não.
Não é crise quando só afecta os filhos dos pobres. Está esclarecido.
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Crise, qual crise - habitação
domingo, 4 de abril de 2021
The Purge: Anarchy / A Purga: Anarquia (2014)
Muitos críticos deste filme apontam a premissa da Purga como ridícula e inconcebível. Eu discordo cada vez mais. Tal como disse aqui na crítica ao primeiro filme da série, “A Purga”, não acredito que uma noite de violência por ano em que todos os crimes são admissíveis, até o homicídio, resultasse na diminuição do crime. Mas, como acabámos de ver pelo exemplo do ano que passou, não é por uma medida não resultar que não se implementa. E uma população aterrorizada, neste caso uma população aterrorizada pelo crime, desde que bem regada de propaganda, aceita tudo o que percepcione como medida de protecção para si e para os seus.
Os Novos Pais Fundadores, como chamam a si próprios, não são ditadores de um regime totalitário. Tal como o partido Nazi foi eleito por uma população desesperada e iludida, estes líderes foram eleitos por uma população amedrontada que acreditou na propaganda. Uma vez engolida a propaganda, as piores atrocidades podem acontecer sob o aval da sociedade que concordou com elas, implícita ou explicitamente. E depois há sempre aquela tendência do ser humano de entrar em negação: “Eles dizem isso assim e assim, mas não são tão maus como parecem. É só conversa, não vão pôr em prática.” E lá vai o voto de protesto para os radicais que defendem as medidas. Aconteceu com o partido Nazi, não vejo razão por que não possa vir a acontecer. É claro que aqui também entra a negação: “Não, não vai nada acontecer outra vez. Que ideia ridícula e inconcebível.” Não é ridícula nem inconcebível e já esteve mais longe.
Raramente me vão ouvir dizer isto, mas este segundo filme é melhor do que o primeiro. Se “A Purga” era o típico filme de terror em que uma casa é assaltada por estranhos que querem matar os seus habitantes, esta sequela desenvolve-lhe as pistas políticas e sociológicas. Sem deixar de ser um filme de grande terror, que o é, é também um comentário à desigualdade social, à lavagem cerebral e ao poder.
Se em “A Purga” vimos os acontecimentos pela perspectiva de uma família privilegiada da classe média-alta, aqui andamos nas ruas, na anarquia da noite da Purga em que aqueles que não se conseguem proteger por detrás de muros e bunkers, os pobres, são os mais vitimados. Muitas coisas são chocantes por serem já consideradas tão normais pela sociedade.
Por exemplo, começa por aquele avô que precisa de remédios muito caros e sabe que a filha faz grandes sacrifícios para lhos comprar, e decide vender-se para ir ser assassinado por uma família abastada que mata em conjunto no conforto e segurança do seu lar. “Sobrevivam a esta noite e usem o dinheiro que vai aparecer na vossa conta”, escreve à filha e à neta antes de sair para ir morrer.
Já na casa deste avô, esta filha, empregada de mesa, e a sua filha adolescente, tentam trancar-se como podem, mas uma milícia armada invade o prédio e arrasta-as para fora de casa, onde uma metralhadora as espera. É que o governo acha que as pessoas “não estão a matar-se o suficiente” e começou a intervir com assassinatos militarizados em bairros pobres para diminuir a despesa com as classes mais desfavorecidas. Esta milícia mata a mando do governo.
Mãe e filha são salvas no último instante por um polícia que andava na rua na noite da Purga com a sua própria vingança em mente: matar o condutor alcoolizado que vitimou o seu filho num acidente de automóvel. Este é daqueles que concordam com a Purga como método de fazer justiça pelas próprias mãos, e que se calhar até votou nos Novos Pais Fundadores, mas tem muitas horas para mudar de ideias até ao fim da noite.
Os outros protagonistas da história são um jovem casal em crise que apenas teve o azar de estar no sítio errado à hora errada. Ainda antes de começar a Purga, são perseguidos por um gangue com máscaras medonhas e facas. Pensamos que este gangue os quer matar, mas não. Este gangue anda à procura de vítimas para vender a um leilão da classe alta em que estas vítimas vão ser caçadas, como animais num safari, pelos licitantes que pagarem mais. A mensagem do filme não podia ser mais clara. A Purga serve os interesses dos mais ricos, que “purgam e purificam” completamente convencidos de que estão a participar na melhoria da sociedade. Porque nunca lhes calha a eles. Assim é fácil defender a Purga.
Mas se os mais ricos se conseguem proteger, isso não significa que alguns das classes mais desfavorecidas não gostem também da Purga. É uma noite para deitar cá para fora o “animal dentro de si” como dizem as notícias, e grupos de “purgadores” munidos das suas armas preferidas saem às ruas para fazer isso mesmo: matar tudo o que lhes aparecer à frente. Chegam até a procurar os locais onde dormem os sem-abrigo porque são os mais fáceis de matar e estão completamente indefesos.
Nem tudo é horrível. Já começa a formar-se uma resistência política e armada que anda pela noite da Purga a matar os ricos nos seus bunkers. Sim, também parece horrível, mas pelo menos estes matam por convicções ideológicas, se não mesmo em auto-defesa, não matam para satisfazer instintos sádicos. É a diferença entre a guerra e a barbárie, por muito más que sejam ambas.
Como se deve ter notado, gostei do filme e recomendo. Para se ver de olhos bem abertos sem as vendas da negação. Já aconteceu semelhante e pode muito bem vir a acontecer igual ou semelhante outra vez.
17 em 20
sábado, 31 de outubro de 2020
O grande abanão
E porque logo é Halloween, aqui vai um post do diário pessoal do terror quotidiano, 100% Gotika™.
Transcrevo de seguida parte do artigo de opinião de Pedro Gomes Sanches, “Portugal: crónica de uma morte anunciada?”, publicado no Observador online a 25 de Outubro.
É sempre tão saboroso quando encontro quem diz tudo o que eu já ando aqui a dizer há 17 anos! Só é pena os mesmos não terem aberto os olhos mais cedo, e agora já é tarde para mim. Se calhar bateu lá à porta dele? Desculpem lá o cinismo, é o que tenho observado nestes 17 anos de blogosfera, desde o tempo em que eu dizia coisas destas e me mandavam para o psiquiatra porque estava “deprimida” (nunca lhes tinha batido à porta deles):
Até aqui concordo com tudo. Excepto com a parte de jovens qualificados “sem expectativa de ganhar mais que mil euros”. Quais mil euros, ó pázinho? Onde é que se ganha mil euros, até já com experiência profissional de 20 anos? No meu tempo os jovens qualificados iam trabalhar para as empresas de borla, como estagiários, durante anos! Com os paizinhos a financiar.
Mas depois o autor estraga tudo, e revela a sua agenda política, quando diz: “Neste país manda o Governo mais incompetente de que há memória, pelo menos, desde o PREC.”
A memória do autor do artigo não pode andar muito bem, porque eu lembro-me de muito mais incompetência e, acima de tudo, de corrupção endémica e sistémica. Este é o governo mais incompetente desde o PREC? Não me façam rir. Isto não começou aqui nem ali, isto vem “de longe, de muito longe”, como diz a canção, e todos têm sido incompetentes e, acima de tudo, corruptos.
Este também foi o governo que se deparou com as maiores tragédias que tenho em memória no pós-25 de Abril (corrijam-me se falhar alguma), os incêndios de 2017 e a pandemia. Já nem falo da pedreira de Borba porque já é normal que de vez em quando caia uma ponte (Entre-os-Rios, 2001, 59 mortos), devido à inépcia e incúria na sua conservação (em Portugal o dinheiro tem sempre para onde ir menos para onde é importante, não se sabe já?).
Mas se pensam que estou aqui a defender o Costa, nem lá perto. O Costa anda numa deriva autoritária, não porque goste, coitado, mas porque o obrigam, porque se as pessoas fizessem o que ele quer o Costa não precisava de ser autoritário. (Não fui à procura do link para isto nem acho que precise. Toda a gente ouviu.)
O Costa precisa de um “abanão”, como ele próprio diz, assim tipo a polícia a mandá-lo parar na rua e a pedir-lhe os documentos que provem que é Primeiro-Ministro, porque é sempre muito agradável ser parado na rua, como um criminoso, para provar que vamos trabalhar, como se o simples facto de ir trabalhar não fosse já suficientemente desagradável. E já agora, ao Presidente da República também: “Mostre lá os documentos de Presidente, faxavor.”
Aliás, todos os partidos do “arco” estavam a precisar de um abanão, e tiveram-no quando lhes entraram pela porta dentro quatro novos partidos, algo impensável, por exemplo, quando comecei este blog. Eleger o Bloco de Esquerda lá para dentro já custou o que custou, digo eu que ajudei.
Aqui não me interessam as doutrinas, ideologias e filosofias dos novos partidos na Assembleia, mas apenas que foram eleitos. Interessa-me que houve um número significativo de portugueses que se fartou de votar com a carneirada e começou a votar nas alternativas que se lhe apresentaram. Portugueses que quiseram “ser a ovelha negra” (os leitores mais antigos lembrar-se-ão deste slogan do PSR). Portugueses que realmente deram um “abanão” aos partidos comodamente instalados a distribuir tachos pelos amigos, família, e negociatas ainda mais sórdidas.
Ainda se deve ter esperança, afinal, no povo português?
Quando é que são mesmo as próximas eleições?
domingo, 20 de setembro de 2020
The Hunger Games / Os Jogos da Fome (2012)
É difícil não gostar desta história. Algures numa sociedade autoritária, uma revolta dos oprimidos foi esmagada pela elite opressora. Como castigo e “lembrança”, esta elite organiza jogos de morte escolhendo à sorte dois jovens de cada distrito insurgente. Este ano, a lotaria fatal calhou à irmã mais nova de Katniss, que parece não ter mais de 13 anos. Katniss, a irmã mais velha, voluntaria-se para ir aos jogos em seu lugar. Logo aqui temos de empatizar com a protagonista, uma irmã mais velha que se oferece em lugar da irmã mais nova sabendo que muito possivelmente irá morrer em vez dela. Katniss é corajosa mas não acredita nas suas hipóteses de derrotar os outros adversários. Começa um jogo mortal, transmitido na televisão para a elite organizadora, em que só um dos adversários pode ser vencedor. Todos os outros terão de morrer.
Digo que é difícil não gostar desta história porque é difícil não torcer pelos fracos e oprimidos. Mas depois de ouvir falar tanto de “The Hunger Games”, esperava muito mais daqui. Esperava algo que me chocasse, talvez. Mas se calhar depois de ver “Spartacus”, amargo e sangrento, já pouco me consiga chocar.
Ou se calhar os livros são melhores do que o filme, ou se calhar os filmes seguintes são melhores do que o primeiro e ajudam-nos a criar um laço mais forte com os protagonistas? Confesso que não queria ver a miúda morrer, mas tirando o facto de ser uma miúda a lutar pela sobrevivência não consegui senti-la como personagem tridimensional. Quem é Katniss quando não está a ser perseguida pelos campos? Não sei. Talvez os filmes seguintes me esclareçam.
“The Hunger Games” faz parte de uma série de Young Adult distópico que tem tido muito êxito recentemente. (Outro exemplo é “Divergente”, um filme que eu já vi e não gostei, de que nem me apetece fazer a crítica. Tenho o livro e perdi qualquer vontade de o ler.) Não me espanta que as gerações mais novas estejam fascinadas com distopias. Eu sempre estive, desde os clássicos “Farenheit 451” de Ray Bradbury e “1984” de George Orwell (que ainda não li mas está na lista), só para citar os que me ocorrem mais à memória. Durante uns tempos o gosto pela distopia parece ter-se esbatido, mas voltou em força. Não me admira nada porque estas são as primeiras gerações (a começar pela minha) que vão ter um nível de vida abaixo do que os seus pais tiveram. À medida que as desigualdades se aprofundam, regressa o interesse no modelo máximo da sociedade de elites e oprimidos, a sociedade distópica.
Isto para mim não é novidade nenhuma. A desigualdade é o estado normal do mundo segundo o conheço. Sempre cresci tão rodeada de pobreza, crueldade, indiferença, insensibilidade, hipocrisia (como a daquelas pessoas que ganham 5000 euros por mês e “sentem-se bem” a comprar comida para os pobrezinhos no supermercado duas vezes por ano, mas se calhar já não se “sentiam bem” se lhes pedissem para abdicar de quatro quintos do salário para o distribuir pelos trabalhadores explorados de forma mais justa para que estes já não fossem pobres, porque aí os pobres já são pobres porque são estúpidos, coitadinhos, e quem ganha 5000 euros por mês é porque os merece) para me comover com uma Katniss ficcional. Katnisses conheço eu muitas, de carne e osso, todos os dias a lutar pela sobrevivência e a engolir exploração e humilhações (quando não são coisas piores) porque precisam do ordenado mínimo para subsistir. Os verdadeiros Jogos da Fome.
14 em 20
segunda-feira, 26 de agosto de 2019
Mars / Marte
[crítica à primeira temporada]
“Marte” é uma série/documentário do canal National Geographic que se distingue pelo formato original. A parte “documentário” é normal, mas a parte “série” não é a dramatização com figurantes silenciosos que estamos habituados a ver nestas coisas. É mesmo uma série, com personagens a sério, com motivações e flashbacks e histórias pessoais. Pode ter sido uma grande aposta da parte do National Geographic, porque se não fosse esta parte “série” eu não estaria de certeza a ver um documentário sobre uma possível colonização de Marte.
A história é esta: no futuro próximo, a primeira missão tripulada dirige-se a Marte na intenção de estabelecer a base de uma colonização humana. Os personagens são mais genéricos do que tridimensionais mas têm os seus momentos de profundidade. Nas partes boas, isto é, quando o perigo espreita, é que a série muda para documentário, o que é tão irritante como eficaz. Enquanto cientistas entrevistados debitam factos e opiniões, o espectador fica ali agarrado ao écran no suspense de saber se a nave explodiu ou não. Não sei se será este o futuro do documentário em geral, e até mesmo se será o formato mais credível, mas a verdade é que a mim apanharam-me de entre um público que geralmente não vê estas coisas. Logo, aposta ganha em termos de audiências.
O que não quer dizer que fiquei deslumbrada com o formato. Passei o primeiro episódio a tentar perceber se ia haver história ou se era só documentário, e se aquilo não era tudo publicidade à SpaceX. A interrupção da dramatização ficcional para aparecer um senhor ou uma senhora a dizer coisas com que não concordo também não ajuda nada.
Porque, com toda a franqueza, faz-me muita confusão como é que alguém pode estar a pensar em gastar milhões com Marte quando existe tanta miséria aqui mesmo, no planeta Terra, quando tanta gente ignorada em países subdesenvolvidos luta pela subsistência mais básica, onde não há comida nem água potável, quando migrantes morrem no Mediterrâneo a tentar fugir da pobreza. Não me entra no miolo.
A ideia desta gente é colonizar Marte como mais um trampolim para a expansão da espécie humana pelo universo afora, não vá acontecer uma extinção em massa por cá (como já aconteceram várias) que nos acabe com a raça. Não passa pela cabeça destes senhores a simples pergunta: e nós somos uma espécie que vale a pena salvar da extinção? Eles acham que sim, mas quanto apostam que esta “salvação” está restrita a quem tiver dinheiro para a pagar? E vale a pena salvar uma espécie que alegremente anda por aí a explorar o espaço enquanto a maior parte dos seus exemplares passa mal no planeta natal? Uma espécie que já deu cabo do planeta natal, que todos os dias extingue um número assustador de outras espécies, que não se importa nada com isso, que vai dar cabo de todos os planetas onde puser as patas?
Há muito tempo que a filosofia e a ficção científica colocam estas questões, mas agora já não é ficção científica. Estão mesmo a pensar pôr uma base na Lua, e de seguida em Marte. Não contentes com a lixarada que já fizeram na Terra, e que não conseguem (ou não querem) resolver, toca de ir fazer lixarada para o espaço e cavar aterros sanitários na Lua. E a mim faz-me confusão, a sério. Antes de pensar em salvar a espécie da extinção, o ser humano devia estar fazer por merecer ser salvo. Por enquanto não merece destino diferente dos dinossauros. Se se extinguir, não se perde nada e o universo agradece.
Voltando à primeira temporada da série, “Marte” são apenas seis episódios em que os pioneiros da colonização do planeta vermelho passam por bastantes maus bocados. Aprendi muita coisa, apesar dos pedaços “série” estarem constantemente a ser interrompidos e os pedaços “documentário” me alienarem um pouco. Por exemplo, não sabia que uma viagem até Marte são apenas 7 meses. Julguei que era muito mais. Também gostei de ver a parte em que o astronauta desmaia colado ao tecto. Só não sei até que ponto é que é tudo credível. Será mesmo assim que qualquer pessoa pode abrir uma porta (escotilha?) de uma base num planeta sem atmosfera, sem que haja protocolos de segurança confirmados por pelo menos dois responsáveis? Cheira-me que não, ou é optimismo a mais. Ou talvez a parte “documentário” quisesse que a parte “série” mostrasse o que acontece sem esses protocolos de segurança? Talvez. Mas eu continuo a achar que os dois formatos deviam permanecer separados. Preferia que não houvesse documentário nenhum e que fosse só série, para que os personagens evoluíssem e se tornassem de carne e osso em vez de ficarem nesta coisa que não é carne nem peixe.
Seja como for, o melhor momento do programa é a canção de Nick Cave e Warren Ellis, “Mars Theme”, uma pequena maravilha a descobrir. Fãs de Nick Cave, atenção.
quinta-feira, 13 de junho de 2019
"Será que a igualdade de oportunidades existe?"
O sonho de amanhã ser-se mais do que se é hoje vai-se desvanecendo, porque cada família, cada pai, cada adolescente, convence-se de que o jogo está viciado. Que não é pelo talento e pelo trabalho que se ascende na vida. Que o mérito não chega. Que é preciso conhecer as pessoas certas. Que é preciso ter os amigos certos. Que é preciso nascer na família certa.
Os miúdos que não nasceram nesse tipo de “família certa” têm direito aos mesmos sonhos que os filhos das elites portuguesas – todos nós concordamos com isto. Mas será que estamos a fazer alguma coisa para que aquilo com que concordamos se torne realidade? Será que podemos garantir que o talento conta mais do que a família em que cada um nasceu? Será que a igualdade de oportunidades existe?
Gostei muito, mas este teve sorte:
Os pais lutavam por isso – lutavam menos por eles, do que pelas suas crianças, para que elas tivessem uma vida melhor, estudassem, fossem “alguém”. Os seus filhos chegariam às universidades. Estudariam dezasseis, dezassete, vinte anos, se fosse preciso. Viajariam mais. As suas férias não estariam limitadas aos 15 dias em Albufeira.
15 dias em Albufeira, ahahah! Ganda rico!
Que é preciso nascer na família certa? E ainda se pergunta? Eu ainda quero os meus 15 dias em Albufeira só para saber como é.
quarta-feira, 29 de maio de 2019
Parabéns PAN
Há muito tempo que não escrevo aqui sobre política. Muito tempo mesmo.
Durante anos, em artigos “abre-olhos” como alguém lhes chamou, tentei explicar a realidade de pessoas licenciadas a quem não era dada a mais pequena hipótese a não ser que fossem filhos de alguém (fidalgos, é a palavra). Estar à frente do tempo é uma chatice, porque ninguém acreditava. A austeridade veio mudar tudo. Finalmente os abrilistas indignados, que não tinham o menor pejo em explorar os filhos dos outros (como eu, meus amigos, como eu) indignaram-se deveras quando tocou aos filhos deles e os viram emigrar por falta de oportunidades por cá. As pessoas são assim. Só acreditam quando lhes toca a elas. Então indignaram-se. E eu fartei-me de rir. E achei que não valia a pena continuar a escrever porque agora já todos viam. Afinal não era um filme de terror, nem era eu que era maluca, era mesmo a sério. Mas quem é que lhes metia isso na cabeça, a todos os palermas que foram votar no Passos como se não houvesse alternativa ao Sócrates fora do Centrão?
Foi a classe média quem pagou as favas, é claro. Abaixo da média, pouco me tocou. Fui daquelas a quem não podiam roubar mais. (Directamente, isto é, através dos impostos do trabalho, porque a nível de IVA levei por conta como toda a gente, já para não falar dos feriados “abolidos” que trabalhei sem receber como tal.)
Se não querem votar, não votem
Nem queiram imaginar o meu choque quando, ao fim de quatro anos de austeridade, os energúmenos, boçais, iletrados, atrasados mentais deste país ainda foram votar no Passos outra vez. Fiquei assim boquiaberta em frente à televisão, a abanar a cabeça, muda de todo. A malta rica, banqueiros, gente com bons empregos que não sabe o que fazer ao dinheiro, clientelas, esses eu percebo. Mas o povão sacrificado, só mesmo por masoquismo.
A geringonça foi a única coisa boa que saiu disto tudo, quando finalmente se iluminou em suficientes cabeças que o governo não tem de estar só entre “este” ou “aquele”, mas entre mais. Foi o fim dessa instituição putrefacta chamada “voto útil”, que sempre foi o voto mais inútil de todos.
Vamos a ver, nas próximas legislativas, até que ponto esta gente de inteligência rastejante vai conseguir associar dois mais dois e chegar a esta conclusão. Não estou optimista.
Vou mesmo ser do mais politicamente incorrecto que há, e que se lixe: até é melhor que esta gente que nem sabe em quem vota, nem para quê nem porquê, fique antes em casa a ver os programas da manhã em que se telefona para lhes sair 2000 euros. Melhor do que irem votar, se só lá vão fazer merda. Havia uma desculpa para isto noutros tempos, tempos já longínquos, em que as pessoas não iam à escola nem aprendiam a ler porque começavam a trabalhar aos 5 anos. Mas isto já lá vai há tanto tempo. E tantos podiam já ter feito por si próprios e aprendido a ler nos anos de reforma antecipada –que os pôs em casa com 60 anos enquanto a nossa desgraçada geração vai ter de trabalhar até morrer– que não há desculpa para a preguiça. Que se abstenham, sim, em vez de fazerem porcaria. (Justiça lhes seja feita, eles já começaram a perceber que só fazem porcaria. A solução para isto era ler um jornal de vez em quando, mas pensar faz doer o cérebro.)
Eu costumo dizer, menos a brincar do que é democrático, que as pessoas deviam fazer um teste de literacia antes de serem autorizadas a votar. Isto parece mau e fascista e o que lhe queiram chamar, mas da minha perspectiva são estes energúmenos, que por ignorância votam até contra si próprios, que votam também em coisas que decidem a minha vida. Tenho todo o direito de lutar para que a minha vida não seja fodida.
Evolução civilizacional
Mas o que me faz mesmo sair do meu recolhimento político, nestes dias pós-eleitorais, é o crescimento do PAN. Engana-se quem pensa que é um voto de protesto. Aliás, engana-se muita gente que não percebe mesmo porque é que as pessoas estão tão fartas de ver animais abandonados, maltratados, abatidos em condições desumanas. Engana-se quem não percebe que torturar animais por diversão não é tradição, é sadismo. Que a tourada, por exemplo, já devia ter sido abolida há séculos. Que só um sádico pode assistir, impávido e sereno a um horror desses.
Não foi falta de protestos a que os partidos tradicionais fizeram orelhas moucas. Agora admiram-se, mas agora é tarde.
Congratulo-me com o crescimento do PAN, tendo a consciência de que ainda é pouco, muito pouco, para se conseguir mudar as coisas. Mas é um passo mais à frente do que noutros tempos, em que se afogavam ninhadas num balde de plástico em plena rua de Lisboa (como eu vi, impotente). Ainda há muito trabalho, se não para mudar estas mentalidades embrutecidas, pelo menos para as fazer perceber que este comportamento já não é aceitável. Sejamos francos, pessoas destas nunca se vão preocupar com os animais, mas talvez se preocupem com que pensa deles o vizinho do lado.
Esta maior consciencialização de ver o animal como ser senciente e sofredor também tem uma explicação. É um avanço civilizacional da parte de pessoas que têm os meios financeiros para esterilizar animais (em vez de afogar ninhadas). Que têm outros meios de diversão que não torturar animais. Que têm cultura geral suficiente para saberem que torturar animais é coisa de serial killers quando são pequeninos.
As pessoas queixaram-se, queixaram-se, queixaram-se. Aos partidos, aos meios de comunicação, à polícia. Nada foi feito: “Isso não tem importância nenhuma, ninguém quer saber”, “não podemos intervir”, “isso não dá audiências”. E depois alguns intelectuais irritadíssimos porque não conseguem eleger um único deputado nas facções que arrancaram aos partidos de onde vêm, quando um pequeno partido, em apenas dois ciclos eleitorais, já tem um deputado no Parlamento e na Europa, já para não falar na presença nas autarquias.
São casos como este que me fazem pensar que o mundo pode não estar completamente perdido.
Parabéns ao PAN! Parabéns a todos os que votaram no PAN mesmo com pouca esperança de conseguir ir longe. Parabéns ao PAN por tê-los convencido a votar. Que seja o início, que mais vale tarde do que nunca.
Não dou parabéns ao Bloco de Esquerda, que só muito recentemente abriu a pestana e começou a andar por aí no transporte de animais vivos. Vieram atrasados, muito atrasados. Agora, meus amigos, vão ter de correr muito atrás do prejuízo.
Não é um voto de protesto. É um voto de identidade. Os animais, para quem os tem, são família. Quem não percebe isto não percebe nada do que está a acontecer.
Deu-me tanto gozo escrever este post, tanto gozo!
segunda-feira, 27 de maio de 2019
A Caveira, de Camilo Castelo Branco
Ou não fosse Camilo, esta é a história de um amor de perdição.
Mas antes do conto existe um prefácio, muito irónico e muito político, cheio de piadas às ideias da época, que hoje teria antes lugar num blog como este. Mas não havia internet e estes textos satíricos e críticos só tinham lugar na literatura. Aqui, Camilo goza com aqueles que julgavam o caminho-de-ferro o progresso que de imediato elevaria o desenvolvimento do país. “O cavador, na hora da sesta, lerá, na vinha, de barriga ao ar, o Times, e Benjamin Constant.” Muitas destas piadas estão datadas e perderam-se para sempre. Mas achei curioso como é que quase dois séculos depois ainda se aponta o TGV e a alta velocidade como imprescindíveis para o desenvolvimento do país. Como diria o outro, quanto mais as coisas mudam mais ficam na mesma. Pelo menos hoje temos algo que não havia no tempo de Camilo, uma educação que chega efectivamente a todos, mas que ainda não basta para desfazer esse grande cancro que sempre afligiu o país e não dá sinais de diminuir, antes pelo contrário: a desigualdade. E uma desigualdade ainda maior no interior, para lá do Marão, onde se passa esta história. De certa forma, apesar da sátira datada, o prefácio continua actual.
Mas vamos lá ao conto. A história é curta e não há muito a dizer. Um homem já avançado em idade conta a um amigo o motivo de ter uma caveira em sua casa, dentro de uma redoma. E tudo começa num amor de perdição. Neste caso, em vários. Quando era novo, este homem amou loucamente uma mulher que o “atraiçoou”. Marta, de seu nome, amou loucamente a outro, Pedro de Mesquita. Mas um filho segundo de uma família nobre, Heitor Correia, queria cortejá-la também. Os dois, Pedro de Mesquita e Heitor Correia, acabam mesmo por pegar-se em duelo numa Quinta-Feira Santa, à saída da igreja, onde Pedro de Mesquita mata o rival com a sua espada de forma limpa e nobre (segundo as regras destas coisas). Mas o irmão do nobre derrotado procura Pedro de Mesquita logo de seguida e mata-o cobardemente a tiro de bacamarte. Marta morre de desgosto em questão de dias. (No Romantismo, as heroínas morriam assim, de desgosto.) Mas o homem que a amava sem ser correspondido nunca deixou de a amar. Quando chegou a altura de levantar-lhe as ossadas, subornou o coveiro para o deixar ficar com a caveira. Até à velhice, continuou a sentar-se a adorar a caveira da mulher que amava, ora imaginando que esta o perdoava ou que lhe tinha rancor.
É a presença desta caveira que pode qualificar o conto como gótico, mas na minha opinião apenas marginalmente. Temos aqui um homem desconsolado, incapaz de superar uma paixão de juventude, com uma fixação mórbida. Não há elementos sobrenaturais e o próprio admite que os seus delírios não passam de imaginação. Não existe uma consequência trágica desta fixação, como, por exemplo, em Edgar Allan Poe. Apesar da excentricidade, o homem segue com a sua vida, pacatamente, até ser velhinho. Não me parece o bastante para ser um conto gótico. Um conto ultra-romântico sobre alguém que não consegue ultrapassar uma paixão não correspondida, isso sim. Mas eu espero mais qualquer coisinha do “rótulo” gótico.
O ponto alto do conto é o duelo e a vingança cobarde do irmão do nobre derrotado. Este outro nobre nunca é punido, pelo contrário, recebe um perdão real por ser fidalgo. Se calhar era disto que Camilo queria falar.
sexta-feira, 10 de agosto de 2018
Land of the Dead / A Terra dos Mortos, de George A. Romero (2005)
O título deste filme podia ser “A Fúria do Herói Zombie”. Um dos heróis do filme é mesmo um zombie revoltado com a maneira indigna com que os vivos tratam os da sua espécie. O que por si só já nos diz que este não vai ser um filme de zombies igual aos outros.
Os novos zombies
É praticamente um facto sociológico: o imaginário do zombie, como o conhecemos, surgiu numa época de inquietação existencial perante a alienação das massas cada vez mais passivas. Os anos 60 e 70 foram as décadas em que a geração dos Baby Boomers chegou à idade adulta. Os Baby Boomers nasceram nos anos após a segunda guerra mundial (em que houve um verdadeiro baby boom, daí o nome). Em relação à geração anterior, que teve de suportar a Grande Recessão, o rescaldo da Primeira Guerra Mundial e a Segunda, e as várias misérias decorrentes da situação internacional, os Baby Boomers foram uns privilegiados. A vida era simples e o caminho bem definido: escola, emprego, casa e filhos. Os salários eram razoáveis, havia emprego para toda a vida. Toda a gente tinha carro e dinheiro para gastar no passeio semanal ao supermercado. Instalou-se o consumismo. A vida era estável. Melhor do que na geração anterior, melhor do que na geração seguinte (nós, os Generation X, e nem falo dos Millenials, nem sabemos o significado de estabilidade). Era a geração que se podia “dar ao luxo”. A vários luxos, na verdade, como a alienação voluntária do flower power e do make love not war. Mas até os hippies assentavam, mais tarde ou mais cedo, para engrossar as massas consumistas e alienadas de uma rotina sempre igual.
Contudo, o medo existia, latente, cinematograficamente espelhado nos filmes de terror: o Twilight Zone, as invasões alienígenas, os insectos gigantes resultantes de experiências nucleares, e os zombies. As próprias massas mortas vivas a devorarem-se/consumirem-se a elas próprias.
Comparemos estes zombies iniciais com o que temos agora. Em The Walking Dead, feito para gerações em que a palavra “estabilidade” já nem existe, o importante é sobreviver. Subsistir mais um dia, à precariedade, às contas a pagar, a tentar viver debaixo de um tecto sem acabar na rua. Sobreviver aos energúmenos que nos acusam de viver “acima das nossas possibilidades” quando na verdade vivemos abaixo das nossas potencialidades. Talvez sejamos zombies também, meio vivos e meio mortos de cansaço, a geração no future que já sabia que nunca o ia ter, mas somos uns zombies diferentes. Os nossos heróis anti-zombie já não se limitam a fugir e a esconder-se e a esperar pelas autoridades. Os nossos heróis anti-zombie só contam consigo próprios.
Land of the Dead, de 2005, é algo na transição entre os filmes de zombies invasivos e os filmes de sobrevivência feroz em que da sociedade como a conhecemos já só sobram resquícios. No apocalipse zombie as ameaças vêm de todos os lados. Os vivos são muito mais perigosos do que os mortos. Land of the Dead vai nesse caminho, mas ainda não chega lá.
Os zombies também se revoltam
Comecei a ver este filme com zero expectativas. O filme que iniciou o universo zombie de George A. Romero, “Night of the Living Dead”, de 1968, foi um dos mais assustadores que já vi na vida. Apesar de ser a preto e branco, ou mesmo por causa disso (a televisão da altura era a preto e branco, o que quase lhe atribuía uma aura de “documentário”); apesar da pouca caracterização dos mortos-vivos, dando-lhes um aspecto mais realista de “cadáveres frescos”; apesar da explicação de que a “ressurreição dos mortos” era causada por uma contaminação radioactiva no cemitério (lá está, o medo latente da Guerra Fria). Os restantes filmes de Romero, lamento dizê-lo, aqueles a cores e com muito ketch up, começaram a tender para o exagero e a palhaçada. Interessantes para ver sem pensar muito. Maus efeitos especiais, zombies a invadir supermercados e a conduzir carros. Com estas memórias, também não esperava muito de “Land of the Dead”. Tendo em conta estas expectativas fiquei agradavelmente surpreendida.
Em Land of the Dead, já estamos em pleno apocalipse zombie, com todas as regras que conhecemos. Mas ainda não é a sociedade esfarrapada de The Walking Dead. Os vivos vivem em cidades bem vedadas e defendidas. Equipas bem preparadas vasculham os arredores abandonados em busca de provisões. Numa dessas excursões de busca, o nosso herói “vivo” (Simon Baker do “Mentalista”) repara que um dos zombies manifesta inteligência acima da média zombiesca. Este nosso herói zombie, a que o filme chama Big Daddy, está cada vez mais indignado com os massacres que os vivos infligem aos zombies. Esquecendo, é claro, que os vivos matam os zombies porque os zombies comem os vivos. Mas este zombie está muito revoltado, se calhar com as indignidades com que os vivos chacinam zombies sem distinção: velhos, mulheres e crianças. Os outros zombies não são tão espertos, mas Big Daddy consegue liderar uns quantos numa marcha de indignados para se vingarem dos vivos “maus”.
Isto parece palhaçada mas o filme consegue fazer-nos empatizar com estes zombies maltratados. Até temos pena deles.
Do lado dos vivos também há grandes injustiças. Uma elite de poderosos, ricos e privilegiados, vive num arranha-céus com tudo do bom e do melhor enquanto uma maioria de pobres e excluídos subsiste das sobras nos “subúrbios” da torre. Também alguns destes excluídos se encontram indignados e a planear uma revolta. Estas intenções valem-lhes repressão brutal por parte do chefão das elites.
Este é um mundo onde o dinheiro ainda existe e vale bastante. Um dos membros da equipa consegue juntar o suficiente para comprar um lugar no arranha-céus mas é rejeitado com desculpas. Mas ele sabe, e nós sabemos, que está a ser rejeitado porque é hispânico. Não faz parte da elite, não tem qualquer possibilidade de ascender na vida. Revoltado, também este jura vingança. Já o nosso herói do lado dos vivos só deseja comprar um carro que o leve para bem longe, para onde não haja zombies nem pessoas. (Amigo, como te compreendo! Era exactamente o que eu fazia!)
Todo este ambiente de tensão resulta na destruição da cidade. O zombie Big Daddy aprende por acaso a disparar uma metralhadora e consegue ensinar os outros a fazer o mesmo. [Zombie Rambo] Também os ensina a atravessar um rio, simplesmente caminhando debaixo de água já que não precisam de respirar. [Zombie ninja] Não se vê claramente, mas é ele e o seu exército zombie que consegue fazer explodir as defesas da cidade. É a fúria do herói zombie.
O final é estranho. O nosso herói vivo, relutante mas bonzinho, decide poupar estes zombies espertos. Porque o faz é um mistério. Se calhar porque compreende neles uma consciência de si próprios? Se calhar porque os considera também excluídos, como a grande massa de gente viva nas mesmas condições?
Claramente, a preocupação social do filme já não deriva do consumismo e da apatia, como os originais, mas de uma preocupação com a desigualdade que em 2005 já deve ser gritante. A América já não era a terra das oportunidades. Até os zombies se revoltam, e com razão.
É um filme diferente dos zombies de até então, com algumas cenas perturbadoras que me surpreenderam. Já não julgava que depois de tantos filmes do género ainda alguma coisa me impressionasse, mas aquela cena do umbigo faz mesmo impressão.
The Walking Dead criou outro patamar de qualidade que filmes anteriores não conseguem alcançar (tirando o original “Night of the Living Dead”, de 1968, que é realmente arrepiante), mas este Land of the Dead é um filme cheio de acção que merece ser visto. Gostei de encontrar motivações em todos os personagens, até nos zombies. As diferentes perspectivas conseguem criar-nos empatia e dividir-nos entre a ameaça colocada pelos mortos-vivos e as dúvidas que Big Daddy nos suscita.
Não é uma obra prima, mas vê-se bem.
Curiosidade: neste filme os mortos-vivos já são chamados de “walkers” e “stenchers”. Julguei que “walkers” era originalidade de The Walking Dead, mas enganei-me. É do mestre Romero.
14 em 20
terça-feira, 19 de junho de 2018
São precisas cinco gerações para uma família sair da pobreza em Portugal
OCDE. São precisas cinco gerações para uma família sair da pobreza
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico publicou esta sexta-feira um relatório sobre a mobilidade social. De acordo com o estudo, Portugal está entre os países com quadros mais negativos.
A baixa mobilidade social significa que uma família portuguesa com rendimentos mais baixos precisa de 125 anos – cerca de cinco gerações – até que descendentes atinjam um salário médio.
"Tendo em conta a mobilidade de rendimentos de uma geração para a seguinte, bem como o nível de desigualdade salarial em Portugal, pode demorar cinco gerações para que as crianças de uma família na base da distribuição de rendimentos consigam um salário médio", lê-se no estudo.
A análise desenvolvida pela OCDE compara a mobilidade social com uma escada ou elevador. Afirma-se no documento que uma criança que nasce numa família desvantajosa tem mais dificuldades em “subir a escada”. “Ter crescido com familiares com pouca ou mesmo nenhuma riqueza e ter pais com pouca riqueza são os dois fatores principais para a própria pobreza".
"Riscos que contam"
Em Portugal, os números dizem que 24 por cento dos filhos de pais com baixos rendimentos têm mais dificuldades em atingir salários mais elevados e acabam também por ter baixos rendimentos.
Já 39 por cento das crianças provenientes de uma família com rendimentos elevados conseguem subir mais rapidamente a escada e também elas passam a ter rendimentos mais altos.
O rendimento que os filhos virão a receber é uma das maiores preocupações por parte dos pais. Segundo a agência Lusa, a OCDE realizou ainda este ano um outro relatório, denominado "Riscos que contam”, onde se comprova que 58 por cento dos pais portugueses colocam entre as três principais preocupações o risco de os filhos não alcançarem o nível económico e de conforto que eles já têm.
O estudo revela ainda que 33 por cento das pessoas consideram que a educação dos pais está relacionada com a capacidade para se ser bem-sucedido.
Em declarações à Antena 1, o sociólogo Manuel Carlos Silva, da Universidade do Minho, defende que a ascenção social é muitas vezes mal compreendida.
Para a OCDE, a baixa mobilidade social em Portugal pode estar relacionada com os elevados níveis de desemprego e a segmentação do mercado laboral. A organização conclui que a falta de mobilidade social não é um aspeto irreversível e podem ser tomadas medidas com o objetivo de aumentar a mobilidade entre gerações. Entre os principais objetivos, a OCDE destaca o apoio a crianças de meios desfavorecidos, o combate ao desemprego e o aumento do nível de qualificações através da educação para adultos.
É o que eu ando a dizer há estes anos todos.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Spartacus
domingo, 17 de novembro de 2013
Conclusões existenciais (sobre a pobreza)
Gostar do frio deve ser assim, tipo, um passeio na neve, muito divertido. Como ir à praia.
Se eu tivesse percebido isto aos 15 anos, e não aos 40, teria mudado alguma coisa?...
Ou, o que interessa mais: teria mudado alguma coisa para melhor?
Talvez não. Talvez a minha ignorância [ou subconsciente ignorância] tenha sido um mecanismo de sobrevivência. De que já não necessito. Tudo é tão mais simples quando o mundo já não tem importância.
... / ...
Este post era para ficar por aqui e chamar-se apenas "conclusão existencial" mas parece que hoje estou numa de dizer umas verdades.
Aqui há uns tempos, no último ano, a propósito da crise, vejo na televisão um marmanjo da minha idade a queixar-se, muito indignado, ao presidente da república, que agora já não tinha casa e era obrigado a morar no local de trabalho (empresa dele próprio, isto é).
Na verdade, esta crise fez-me perceber como a maioria das pessoas estão mal habituadas, muito mal habituadas. No reverso da medalha, fez-me perceber como eu sou miserável, como eu sempre fui tão miserável. E como eu não percebi o miserável que era na idiotice de me julgar igual aos outros.
Pois eu nasci e cresci num escritório. O meu pai tinha uma oficina e a nossa casa era o escritório. Isto, para mim, era a realidade. Às vezes perguntava-me para onde iam os outros meninos quando as lojas fechavam. (Este post já está a tomar-me tempo a mais para o que quero dispor nele, mas cá vai.) Os outros meninos, quando não estavam na escola, iam para as lojas da rua onde os pais trabalhavam. Não havia cá creches para ninguém e amas eram só para os ricos. Estes meninos de que falo não eram ricos, eram a maioria. Durante o dia andavam na rua, comigo, ou andávamos pelas lojas dos pais deles. Devo-me ter perguntado, embora não me lembre, mas devo-me ter perguntado, para onde é que eles iam quando fechava a mercearia, quando fechava a drogaria, quando fechava a papelaria. Eu, no escritório e na oficina, estava sempre em casa. Até atendia os clientes ao telefone! Mas não pensava no assunto. Se calhar nem me passava pela cabeça que eles tinham uma casa, da maneira que as pessoas entendem ter uma casa, para onde se vai, depois do trabalho ou da escola. As minhas ambições eram muito mais limitadas. Ter uma Tucha (para quem não sabe, era uma imitação mal-amanhada da Barbie) já me fazia as delícias. Desde que eu tivesse uma Tucha, como elas, e uma colecção de carrinhos, como eles, estava toda feliz. Casa para ir depois do trabalho? Nem me passava pela cabeça!
Depois ouço este gajo queixar-se que tem de viver na empresa... Enfim, ri-me. Tive de me rir. E se tivesse de tomar banho numa oficina malcheirosa, cheia de aranhas e centopeias (para não falar dos ratos, de que nunca desgostei), o que não se queixaria?... Sei lá, deu-me para rir.
Ainda nesta onda de reflexões, tive o meu primeiro quarto, um quarto só para mim, já depois dos vinte anos. Nesse dia, ao telefone com o meu namorado, disse-lhe: "Nem imaginas como me sinto feliz por ter um quarto! É que me sinto muito melhor!", e ele respondeu-me: "Que parvoíce! Ninguém se sente melhor por ter um quarto!"
Eu calei-me, e senti-me estúpida, e não percebi porque me senti estúpida. Envergonhada. Envergonhada, mesmo, por me estar a sentir feliz por ter um quarto.
É claro que este menino sempre teve um quarto, onde cabiam duas ou três famílias, cama de casal e grande roupeiro, aparelhagem, tudo.
E depois pergunto-me, como é que eu não percebi que não era possível, que não ia dar?! Que não posso imaginar sequer que as pessoas percebam, porque sempre tiveram tudo?...
Mas não sabiam que tinham tudo. Da mesma maneira que eu não sabia que não tinha nada. Isto é que é assombroso! Verdadeiramente assombroso!
Como as pessoas sempre viveram noutro mundo, até as pessoas da minha própria família, como por exemplo a minha tia quando me ofereceu sais de banho tendo a obrigação de saber que eu não tenho banheira! E eu perguntei-lhe: "e faço o quê, com isto?..." Está bem, a mulher tem desculpa, não bate muito bem da cabeça. Mas a sério, sais de banho? Para um escalda-pés na bacia, quiçá?...
Também houve aqueles imigrantes em França, amigos dos meus pais, era eu miúda, que resolveram trazer-me um disco com um êxito infantil qualquer. É difícil não associar estas duas memórias, porque eu não tinha gira discos! A cara com que eles ficaram! (Não interessa também, porque a minha avó tinha gira discos e eu pude ouvir aquilo uma ou duas vezes antes de decidir que era uma porcaria. Ainda se fossem os Abba!) Mas a cara daquela gente, quando lhes disse: "Não tenho onde ouvir."! Impagável! Verdadeiramente impagável!
Mas a melhor de todas foi a da torneira. Acreditem ou não, durante alguns anos da minha adolescência tive de viver sem uma torneira. Era uma casa completamente degradada, não tinha casa de banho, só uma pia redonda (daquelas de buraco no mármore). Onde tomava banho? Na oficina, pois claro! Mas seguindo em frente. Não havia torneira. Abria-se directamente o cano, enchia-se o jarro de água (um daqueles jarros plásticos verdes com a boca em forma de jarro vegetal, muito populares na altura) e depois lavava-se a cara na bacia. Só se abria o cano uma vez por dia. Ah, sim, e a água era sempre fria. De inverno, gelada!
Finalmente, lá se arranjou uma torneira. Estranho que pareça, eu sempre tive muitos amigos. Que iam a minha casa, esta casa. Esta amiga em particular era mais do que uma amiga, mas não interessa nada agora, e eu mostrei-lhe a torneira. Ela gozou, por eu estar feliz por finalmente ter uma torneira e poder abri-la várias vezes ao dia e não precisar do jarro, e eu ri-me também. Porque me ri? Porque achei ridículo. Estava-me a rir como se não fosse eu naquela situação. Como se eu fosse como ela, com torneiras de água quente e fria, e banheira e tudo. A ponto de gozar com a minha torneira! Mas no fundo, no fundo, acho que também me ria para ela não perceber que eu estava envergonhada. Acho que me ria para eu não perceber que eu estava envergonhada.
Aquilo era muito giro, para ela. Devia ser também como um passeio à neve, uma ida à praia. E eu a fingir que era divertido para mim também. Original. Excêntrico. Não ter uma torneira, não é giro?
É assombroso, perfeitamente assombroso, como eles não viam a diferença. Como eu não via a diferença. Mas foi melhor assim. Que eu me risse. Enquanto houve paciência para me rir. Acho que se gastou, e a paciência não é coisa que se compre com dinheiro.
E agora já gastei muito tempo com isto.
sexta-feira, 8 de novembro de 2013
“O Livro dos Espíritos” – Ricos e pobres
Capítulo “Desigualdades sociais”
A desigualdade das condições sociais é uma lei da natureza? [pergunta]
– Não. É obra do homem e não de Deus.
Essa desigualdade desaparecerá um dia? [pergunta]
– Apenas as leis de Deus são eternas. Vós não vedes essa desigualdade se apagar pouco a pouco todos os dias? Desaparecerá juntamente com o predomínio do orgulho e do egoísmo, apenas restará a diferença do merecimento. Chegará o dia em que os membros da grande família dos filhos de Deus não se olharão como de sangue mais ou menos puro, porque apenas o Espírito é mais ou menos puro, e isso não depende da posição social.
O que pensar dos que abusam da superioridade da sua condição social para oprimir o fraco em seu proveito? [pergunta]
– Esses se lamentarão: infelizes dele! Serão por sua vez oprimidos: renascerão numa existência em que suportarão tudo o que fizeram os outros suportar.
Capítulo “Provas de riqueza e de miséria”
Porque Deus deu a uns riquezas e a outros a miséria? [pergunta]
– Para experimentar cada um de maneiras diferentes. Aliás, vós já o sabeis, essas provas foram os próprios Espíritos que escolheram e, muitas vezes, nelas fracassaram.
Qual das provas é a mais terrível para o homem, a miséria ou a riqueza? [pergunta]
– Tanto uma como outra; a miséria provoca a lamentação contra a Providência; a riqueza estimula todos os excessos.
Neste mundo tanto as posições de destaque quanto a autoridade sobre seus semelhantes são provas tão arriscadas e difíceis para o Espírito quanto a miséria. Quanto mais se é rico e poderoso, mais se tem obrigações a cumprir e maiores são as possibilidades de fazer o bem e o mal. Deus experimenta o pobre pela resignação e o rico pelo uso que faz de seus bens e do seu poder. [Allan Kardec]
À luz da doutrina espírita, faz sentido que a riqueza se torne uma prova mais perigosa do que a pobreza. Quanto maior a fortuna (e quero incluir aqui também o poder), maior a responsabilidade. Maior o risco de explorar os outros, de falhar na solidariedade, de se cair no orgulho de se considerar que se é rico porque se tem mérito enquanto o pobre é pobre porque é estúpido ou inepto (nada mais errado, a pobreza é um ciclo, a igualdade de oportunidades não existe; a própria noção de igualdade de oportunidades é uma mentira inventada pelos ricos para justificarem o seu status social pois, ao convencer o mundo de que existe igualdade de oportunidades, só não é bem sucedido quem não tem mérito para o ser...).
domingo, 2 de junho de 2013
Gotika: arquivos Agosto 2004
(Falta de) Perspectivas
As minhas perspectivas ao longo da vida:
4 anos: bailarina, cabeleireira, veterinária
8 anos: cabeleireira, veterinária, professora
12 anos: escritora, professora, psicóloga, zoóloga
14 anos: psicóloga (mas não dá porque não há dinheiro para as explicações de matemática, vou ter de escolher Humanísticas - FODA-SE!), logo, socióloga
18 anos: Socióloga não tem saída, Professora também não, logo, Relações Públicas
22 anos: Relações Públicas não tem saída, Publicidade não tem saída, Jornalismo não tem saída... Vou ver o que há no jornal.
32 anos: operadora de call center
Publicado por _gotika_ em 02:26 PM | Comentários: (30)
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
“Entrevista com o vampiro”
Quem estranha a minha ausência tem razões para desconfiar. Pois ando entretida a ler o livro original, em inglês e tudo, tentando em vão separar-me da impressão do filme. O que é impossível.
Mas quem viu o filme pode ficar descansado, até agora tenho notado que o livro foi fielmente representado, passo a passo, sem tirar nem pôr.
Com uma imprecisãozinha grave: Quem morreu a Louis não foi a esposa ao dar à luz. Louis nunca chegou a casar. Quem morreu foi o seu irmão mais novo, devido a um acidente talvez por culpa de Louis. A versão “esposa e filho” é bem mais romântica mas também muito mais banal. O amor por um irmão é assim algo difícil de explicar?...
Uma parte omitida: Depois de tentarem matar Lestat, Louis e Claudia fogem para a Europa mas não vão direitinhos para Paris. Claudia leva Louis para a Transilvânia atrás das lendas de vampiros, à procura das respostas que Lestat não sabia dar, e encontram por lá uma espécie de vampiros zombies não-inteligentes. Acontece uma batalha gore de Louis contra os zombies. Bom material para um filme de mortos vivos série B, mas a verdade é que o livro não explica muito bem (até aqui) a existência destes zombies nem porque é que são diferentes dos protagonistas...
O livro é grande e a memória é curta, por isso posso adiantar que Brad Pitt desempenhou o papel tão bem que não é possível imaginar outro Louis. Já Tom Cruise... *suspiro* Quando é que Tom Cruise fez alguma coisa bem feita? Talvez em “Eyes Wide Shut”, com Nicole Kidman, mas com certeza devido à direcção implacável de Stanley Kubrik - era impossível falhar (“Lolita”, “Dr. Strangelove”, “Laranja Mecânica”, “2001”, “The Shinning”...)! Desde o primeiro momento percebi que aquele não era o actor para a personagem Lestat, e quanto mais leio do universo das “Vampire Chronicles” mais lamentável me parece o seu desempenho.
Outro erro de casting é António Banderas no papel de Armand. Mas alguém acredita na sua vampiricidade?...
É verdade que no primeiro livro, este “Entrevista com o Vampiro”, Lestat é representado por Louis como um monstro ignorante, egoísta, insensível, vaidoso, oportunista, traiçoeiro, sarcástico e cruel. É também verdade que Lestat é um bocadinho de isto tudo. Mas não é apenas isto. Mais tarde, o próprio Louis confessa que tem saudades do “tirano” que estava habituado a odiar e não percebe porquê. Primeira constatação, porque de facto Lestat não é mentiroso nem falso (como Louis pensou a princípio). Parecendo que não, já faz esquecer meia dúzia de defeitos. Segundo, Lestat tem momentos de verdadeira candura em que mostra a sua estranha bondade debaixo da capa de frieza com que parece encarar o mundo.
Comparando depois a sua experiência com Claudia, a muito interessante personagem da criança vampiro que não se lembra de ter sido humana, Louis acaba por confrontar-se com a verdadeira personificação do Mal.
De humano a vampiro, Louis não perde a angústia de questionar a falta de sentido da existência, tão fascinado pela beleza e efemeridade da vida quanto dominado por impulsos suicidas que nem sempre se esforça por combater. Acaba por se entregar passivamente aos acontecimentos, apenas um espectador que hesita em pertencer completamente à vida ou à morte, ao Mal ou ao Bem.
E depois, é assim... Quem não sabe o que é um gótico tem em Louis o exemplo perfeito.
Publicado por _gotika_ em 06:10 AM | Comentários: (5)
Comentários 10.02.04 +/- 4h00
Sobre o Brasil, o que eu disse foi tão somente - e repito por outras palavras para que se perceba bem - que a dificuldade em sair do ciclo de pobreza se deve muito à mentalidade portuguesa que lá ficou. Já passou demasiado tempo para que se ponha a culpa na colonização. Tal como em Portugal, que nunca foi oficialmente colonizado (embora neste preciso momento esteja vendido à Espanha, o que é uma coisa completamente diferente), reina a mentalidade do chico esperto, do pato bravo, do assalto sistemático aos bens do Estado e da empresa do patrão para benefício próprio, da economia paralela, da fuga aos impostos, do benefício de uma clientela que vampiriza e mantém uma elite no poder, enfim, do salve-se quem puder. Em ambos os casos, Portugal e Brasil, o estado de coisas perpetua-se por culpa de um massa popular inculta e ignorante, muitas vezes analfabeta ou iletrada, mantida por largas décadas à custa da ditadura. As semelhanças são demasiado óbvias para serem coincidência.
Compreendo plenamente o Pedro Henrique. No entanto, também não penso que seria diferente se o país tivesse sido colonizado por outras potências europeias. Seria com certeza um país ainda mais violento - veja-se Cuba, veja-se a Argentina, o Chile, o Haiti, a África inteira! A herança portuguesa é também uma herança de passividade, para o melhor e o pior. Mas não deixa de ser uma herança de imobilismo, e isso é o seu pior.
Ao Simplista Complicado: Da maneira como falas, dás a entender que estás muito satisfeito com a situação, que não é preciso mudar. Lamento muito que penses assim. Eu exijo mais, muito mais!
Publicado por _gotika_ em 04:24 AM | Comentários: (5)
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Gotika: arquivos Março 2004
Drácula ainda tem descendentes vivos!
E os parentes de Vlad Drakul não gostam nada que enxovalhem o nome da família...
Publicado por _gotika_ em 02:12 PM | Comentários: (6)
Comentários 08.02.04 +/- 14h00
Apenas um acrescento pessoal ao que a Gotika já comentou. Se nós nascemos neste país, é neste país que, em princípio, temos de construir a nossa vida e dar por ele o nosso esforço. Se não isto é o quê? Uma maternidade? Ou apenas para vir passar férias? Assim preferia ter nascido noutro país para não me dar ao trabalho de ter de mudar de lugar. É espectacular a facilidade com que se vai para o estrangeiro estudar e trabalhar, com bolsas que dão para cobrir as despesas básicas...(leia-se a ironia nesta frase). Será que é um sinal de estupidez querer trabalhar no nosso país e querer que ele seja melhor, que evolua como os outros países vizinhos (já só penso naqueles que estavam em situação semelhante à nossa quando começaram a vir os subsídios comunitários)? Que este seja um país de crescimento social, cultural, económico, científico? Porque é disso que se tem estado a falar. Se a solução é ir embora, então estamos muito bem... O ensino superior em ciências não nos prepara assim tão bem para a vida activa laboral fora da universidade e do meio académico. Ok, a licenciatura serva para fornecer "ferramentas" em determinada área. E quando as "ferramentas" são insuficientes e vêm enferrujadas, para não falar de ausentes, em alguns casos? Ok, nós tratamos de as complementar e desenferrujar, tudo bem. Eu fiz isso. Pós-graduações, mestrados, cursos de formação, 5 anos de trabalho, tudo. E agora? Já depois de bater às portas todas, o que é que resta? Ir para o estrangeiro, ou tentar lutar por alguma coisa cá dentro deste país? Não teremos direito a manifestarmos o estado de coisas ou será sempre interpretado como "lamechice"? Seremos todos estúpidos? É que eu tenho uma família a meu cargo, com todas as implicações que daí advêm. Enviado por Alya em março 8, 2004 09:27 AM
Grande comentário, Alya!
Vou apenas acrescentar que está tudo dito e não me apetece responder mais a pessoas que não sabem o que dizem e nem pensam no que estão a dizer.
As minhas primas estão lá fora mas para exercerem a licenciatura lá fora tiveram de fazer uma parte do curso lá fora também, porque os nossos cursos não têm credibilidade nenhuma fora deste Ensino do terceiro mundo.
Eu não quero ir para fora. Gosto do clima e da natureza. É a única coisa que Portugal tem boa. Também me enerva aquela mentalidade muito portuguesa que é "se for para servir às mesas, vou servir às mesas para o estrangeiro". Eu posso muito bem servir às mesas AQUI. Não vou para fora com o intuito de ganhar dinheiro. Se não posso trabalhar naquilo que estudei, é-me indiferente o que faço... mas gosto do clima. Salve-se o clima!
Certamente o ensino é mau e facilitista. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, e por isso falei da Suécia. A razão profunda é a mesma que fez, há séculos, todas as riquezas da Índia demorarem em Lisboa o tempo de transbordo para as naus holandesas e os cofres italianos. Fomos, sem saber, os primeiros empregados de mesa do mundo. É que aqui estás a falar do capitalismo, e o capitalismo é feito de uma percepção do mundo que não soubemos nunca fazer nossa. Um mundo de cálculo e de método. De cumprimento de regras exteriores e de interiorização de regras de eficácia. Um mundo que germinou nas terras frias protestantes e se alimentou da severidade das Bíblias encadernadas a negro. Um mundo de cidades e de quotidiano (um mundo, já agora, que se fez também à custa de lugares escuros e almas caladas, e não foi por acaso que o gótico vitoriano não nasceu nas terras do vinho e do sol...). Foi-nos valendo o Brasil, a África, a França. Foi-nos enganando a ideia de que se "eles", os que mandam, quisessem, o mundo seria perfeito. E agora estamos encurralados no meio da grande revolução do mundo. De facto não fizemos o trabalho de casa. De facto a juventude foi enganada, e nem sequer sabemos bem o que é que correu mal. Resta-nos a mansidão dos mortos ou o combate total que é apanágio dos vivos. Não resta mais nada. Enviado por Goldmundo em março 8, 2004 12:05 PM
Goldmundo, continuas no tempo das caravelas?... Não passou já tanta água debaixo dessa ponte?
O que me parece é que já se podia ter aprendido e aplicado os modelos estrangeiros de sucesso mas há falta de coragem política para mexer nos interesses estabelecidos. O que falta ao povo português é viajar, ver os exemplos lá fora. Onde os carros de facto param antes ainda de o peão chegar à passadeira. Onde há cinzeiros ao longo dos passeios para as pessoas não atirarem beatas para o chão. Onde se recicla o lixo. Coisas de um português ficar parvo. E isto apenas na vizinha Espanha que não é o país mais desenvolvido da Europa.
Por fim, o desemprego não afecta só os licenciados mas também as pessoas mais velhas que, em desespero, têm respondido a anúncios para ir trabalhar para o Reino Unido aliciados por 200 contos por mês, o que lá é um ordenado de miséria, e se vêem privados de assistência médica e direitos, ainda por cima sem saberem falar a língua. Casos dramáticos de todo o tipo.
Também já estou farta de que as pessoas pensem que os desempregados estão nessa situação porque são estúpidos. Pensam assim dois tipos de pessoas: os que ainda não sentiram na pele o desemprego (mas da maneira que isto vai ninguém está livre) e os mais velhos que não imaginam o que é trabalhar a recibos verdes porque no seu tempo se trabalhava numa empresa a vida inteira, da infância até à morte. Muitos recebem com choque a notícia do desemprego como se um dogma existencial tivesse desabado diante dos seus olhos. Nem se deram conta do que lhes ia acontecer!
Sim, é dramático que o país não tenha nada para oferecer excepto biscates e salários de miséria. É dramático que estejamos cada vez mais perto do Brasil: a classe média a afunilar-se, meia dúzia de ricos muito ricos e uma maioria cada vez maior de pobres (a maior parte pobres envergonhados, à "portuguesa").
E por falar no Brasil, onde reina a corrupção, o desrespeito pelos direitos humanos e a quase impossibilidade de encaminhar o país no caminho do desenvolvimento, culpo por esse estado de coisas nada mais nada menos do que a mentalidade portuguesa, eivada dos mesmos males, que deixou por lá a sua herança de cunhas.
Publicado por _gotika_ em 02:09 PM | Comentários: (19)
Comentários 08.02.04 +/- 00h00
Na Suécia, onde o clima nem sequer permitia que houvesse "empregados de mesa", havia fome e camponeses descalços há pouco mais de cem anos.
E?...
Em Portugal ainda há fome e havia camponeses descalços há bem menos de 50 anos.
Nestas terras de sol ignoramos os direitos e julgamos compensar-nos incumprindo os deveres.
Este sim, é um bom comentário.
Eu já dei aulas a futuros licenciados sem emprego. Era deprimente. Não havia sequer luta de classes e professores exploradores. Viviam todos em paz, na absoluta ignorância do que era suposto acontecer ali. Uma estudante disse-me uma vez que eu era diferente dos outros professores, "assim para o intelectual". Isto porque eu gostava de ler, e muitas vezes trazia um livro para o bar, em vez da "Bola". Mas lembro-me também, num exame de fim de curso, de um miúdo desesperado. Precisava muito de passar e tinha-se esquecido da calculadora. Sem ela, como saber quanto era "dez por cento de cem"? Ah sim, e os jipes... Enviado por Goldmundo em março 7, 2004 03:38 PM
É interessante. Admites portanto que o Ensino é facilitista. Admites portanto que as pessoas chegam ao Ensino Superior sem saber fazer contas (e sem saber Português, acrescento eu). Admites que a formação é má e massificada.
Ainda bem. Porque isto até me ajuda a justificar o próximo comentário:
Ó Gotika, isto tudo é muito bonito e eu respeito o sentimento de desilusão das pessoas face ao desemprego em que vivem. Mas bolas, leiam a declaração de Bolonha sobre a criação de um espaço europeu no sector de ensino. A questão já não é aproveitar a massa cinzenta de um país. A questão é europeia. Se falam nos exemplos dos outros países, pois bem, peçam a homologação dos diplomas, desenferrujem o inglês já que têm tanta massa cinzenta e... ala para os outros países. Mas que lamechice. Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar. O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas. O que é que a malta quer? um cargo de professor de biologia, química ou português num liceu de província dado pelo Estado para o resto da vida? Mas o Estado não dá isso a ninguém (excepto aos boys q são muitos e maus...) Enviado por em março 7, 2004 10:18 PM
Primeiro, o que mais me irrita no teu comentário: "ala para os outros países". Porquê? Eu gosto do clima aqui. Por acaso até nasci aqui. Estás então a admitir que neste país não há futuro...? Que a única solução é fugir...?
"Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar." E será que a comunidade quer realmente receber alguma coisa ou quer, como tu muito bem insinuas, mandar a massa cinzenta para outras paragens?
"O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas." Então deixa-me elucidar-te que os estudos facultados pelo Estado são de tal má qualidade que não servem para nada lá fora. Pelo menos na maioria dos cursos da área das Humanidades. Na área das ciências já não se passa o mesmo, talvez porque a Ciência é universal, mas a nível de experimentação e investigação o Ensino em Portugal continua a ser risível.
Quanto às (poucas) oportunidades que existem para sair do país - isto partindo do princípio que as pessoas são obrigadas a sair, o que já por si é dramático! - são muitas vezes insuficientes porque a verba oferecida NÃO CHEGA para sobreviver lá fora e nem toda a gente tem condições para, de facto, sair. Porque se for para lá trabalhar e estudar acaba por perder a bolsa e por perder os estudos. Não passa de um imigrante como os outros, não um estudante. E há aqui uma diferença abismal. Os já licenciados, devido à má qualidade da formação que aqui recebem, não têm a mínima possibilidade de competir com os licenciados europeus. Essa então é a maior mentira de todas. Não por falta de massa cinzenta mas por falta de conhecimentos que não lhes foram transmitidos onde deviam ter sido.
Quanto às bolsas e oportunidades verdadeiramente boas, acredites ou não - e da maneira que falas não me pareces muito dentro da realidade - são aproveitadas pelos filhos dos tais boys. De tal modo que não são divulgadas pelo povinho e, quando divulgadas, já estão preenchidas.
Eu sei que é difícil pra algumas pessoas acreditar no lamaçal em que se tornou este país, mas fingir que não estamos no lamaçal só ajuda a perpetuar a lama.
Por isso, antes de abrirem a boca vejam lá se sabem o suficiente daquilo que dizem. Se fosse assim tão fácil as pessoas não estavam na situação em que estão. Não podem ser tantos tão estúpidos.
Mas parece que algumas pessoas estão tão enterradas na lama que já não a vêem ou acham que a lama é normal. Não é.
Publicado por _gotika_ em 12:15 AM | Comentários: (3)
Comentário:
É curioso como esta discussão parece tão actual agora, mas como tanta gente a achava descabida na altura. Tão descabida que eu acabei por me fartar de dizer a mesma coisa. Mas não me calei sem dar luta.