O título deste filme podia ser “A Fúria do Herói Zombie”. Um dos heróis do filme é mesmo um zombie revoltado com a maneira indigna com que os vivos tratam os da sua espécie. O que por si só já nos diz que este não vai ser um filme de zombies igual aos outros.
Os novos zombies
É praticamente um facto sociológico: o imaginário do zombie, como o conhecemos, surgiu numa época de inquietação existencial perante a alienação das massas cada vez mais passivas. Os anos 60 e 70 foram as décadas em que a geração dos Baby Boomers chegou à idade adulta. Os Baby Boomers nasceram nos anos após a segunda guerra mundial (em que houve um verdadeiro baby boom, daí o nome). Em relação à geração anterior, que teve de suportar a Grande Recessão, o rescaldo da Primeira Guerra Mundial e a Segunda, e as várias misérias decorrentes da situação internacional, os Baby Boomers foram uns privilegiados. A vida era simples e o caminho bem definido: escola, emprego, casa e filhos. Os salários eram razoáveis, havia emprego para toda a vida. Toda a gente tinha carro e dinheiro para gastar no passeio semanal ao supermercado. Instalou-se o consumismo. A vida era estável. Melhor do que na geração anterior, melhor do que na geração seguinte (nós, os Generation X, e nem falo dos Millenials, nem sabemos o significado de estabilidade). Era a geração que se podia “dar ao luxo”. A vários luxos, na verdade, como a alienação voluntária do flower power e do make love not war. Mas até os hippies assentavam, mais tarde ou mais cedo, para engrossar as massas consumistas e alienadas de uma rotina sempre igual.
Contudo, o medo existia, latente, cinematograficamente espelhado nos filmes de terror: o Twilight Zone, as invasões alienígenas, os insectos gigantes resultantes de experiências nucleares, e os zombies. As próprias massas mortas vivas a devorarem-se/consumirem-se a elas próprias.
Comparemos estes zombies iniciais com o que temos agora. Em The Walking Dead, feito para gerações em que a palavra “estabilidade” já nem existe, o importante é sobreviver. Subsistir mais um dia, à precariedade, às contas a pagar, a tentar viver debaixo de um tecto sem acabar na rua. Sobreviver aos energúmenos que nos acusam de viver “acima das nossas possibilidades” quando na verdade vivemos abaixo das nossas potencialidades. Talvez sejamos zombies também, meio vivos e meio mortos de cansaço, a geração no future que já sabia que nunca o ia ter, mas somos uns zombies diferentes. Os nossos heróis anti-zombie já não se limitam a fugir e a esconder-se e a esperar pelas autoridades. Os nossos heróis anti-zombie só contam consigo próprios.
Land of the Dead, de 2005, é algo na transição entre os filmes de zombies invasivos e os filmes de sobrevivência feroz em que da sociedade como a conhecemos já só sobram resquícios. No apocalipse zombie as ameaças vêm de todos os lados. Os vivos são muito mais perigosos do que os mortos. Land of the Dead vai nesse caminho, mas ainda não chega lá.
Os zombies também se revoltam
Comecei a ver este filme com zero expectativas. O filme que iniciou o universo zombie de George A. Romero, “Night of the Living Dead”, de 1968, foi um dos mais assustadores que já vi na vida. Apesar de ser a preto e branco, ou mesmo por causa disso (a televisão da altura era a preto e branco, o que quase lhe atribuía uma aura de “documentário”); apesar da pouca caracterização dos mortos-vivos, dando-lhes um aspecto mais realista de “cadáveres frescos”; apesar da explicação de que a “ressurreição dos mortos” era causada por uma contaminação radioactiva no cemitério (lá está, o medo latente da Guerra Fria). Os restantes filmes de Romero, lamento dizê-lo, aqueles a cores e com muito ketch up, começaram a tender para o exagero e a palhaçada. Interessantes para ver sem pensar muito. Maus efeitos especiais, zombies a invadir supermercados e a conduzir carros. Com estas memórias, também não esperava muito de “Land of the Dead”. Tendo em conta estas expectativas fiquei agradavelmente surpreendida.
Em Land of the Dead, já estamos em pleno apocalipse zombie, com todas as regras que conhecemos. Mas ainda não é a sociedade esfarrapada de The Walking Dead. Os vivos vivem em cidades bem vedadas e defendidas. Equipas bem preparadas vasculham os arredores abandonados em busca de provisões. Numa dessas excursões de busca, o nosso herói “vivo” (Simon Baker do “Mentalista”) repara que um dos zombies manifesta inteligência acima da média zombiesca. Este nosso herói zombie, a que o filme chama Big Daddy, está cada vez mais indignado com os massacres que os vivos infligem aos zombies. Esquecendo, é claro, que os vivos matam os zombies porque os zombies comem os vivos. Mas este zombie está muito revoltado, se calhar com as indignidades com que os vivos chacinam zombies sem distinção: velhos, mulheres e crianças. Os outros zombies não são tão espertos, mas Big Daddy consegue liderar uns quantos numa marcha de indignados para se vingarem dos vivos “maus”.
Isto parece palhaçada mas o filme consegue fazer-nos empatizar com estes zombies maltratados. Até temos pena deles.
Do lado dos vivos também há grandes injustiças. Uma elite de poderosos, ricos e privilegiados, vive num arranha-céus com tudo do bom e do melhor enquanto uma maioria de pobres e excluídos subsiste das sobras nos “subúrbios” da torre. Também alguns destes excluídos se encontram indignados e a planear uma revolta. Estas intenções valem-lhes repressão brutal por parte do chefão das elites.
Este é um mundo onde o dinheiro ainda existe e vale bastante. Um dos membros da equipa consegue juntar o suficiente para comprar um lugar no arranha-céus mas é rejeitado com desculpas. Mas ele sabe, e nós sabemos, que está a ser rejeitado porque é hispânico. Não faz parte da elite, não tem qualquer possibilidade de ascender na vida. Revoltado, também este jura vingança. Já o nosso herói do lado dos vivos só deseja comprar um carro que o leve para bem longe, para onde não haja zombies nem pessoas. (Amigo, como te compreendo! Era exactamente o que eu fazia!)
Todo este ambiente de tensão resulta na destruição da cidade. O zombie Big Daddy aprende por acaso a disparar uma metralhadora e consegue ensinar os outros a fazer o mesmo. [Zombie Rambo] Também os ensina a atravessar um rio, simplesmente caminhando debaixo de água já que não precisam de respirar. [Zombie ninja] Não se vê claramente, mas é ele e o seu exército zombie que consegue fazer explodir as defesas da cidade. É a fúria do herói zombie.
O final é estranho. O nosso herói vivo, relutante mas bonzinho, decide poupar estes zombies espertos. Porque o faz é um mistério. Se calhar porque compreende neles uma consciência de si próprios? Se calhar porque os considera também excluídos, como a grande massa de gente viva nas mesmas condições?
Claramente, a preocupação social do filme já não deriva do consumismo e da apatia, como os originais, mas de uma preocupação com a desigualdade que em 2005 já deve ser gritante. A América já não era a terra das oportunidades. Até os zombies se revoltam, e com razão.
É um filme diferente dos zombies de até então, com algumas cenas perturbadoras que me surpreenderam. Já não julgava que depois de tantos filmes do género ainda alguma coisa me impressionasse, mas aquela cena do umbigo faz mesmo impressão.
The Walking Dead criou outro patamar de qualidade que filmes anteriores não conseguem alcançar (tirando o original “Night of the Living Dead”, de 1968, que é realmente arrepiante), mas este Land of the Dead é um filme cheio de acção que merece ser visto. Gostei de encontrar motivações em todos os personagens, até nos zombies. As diferentes perspectivas conseguem criar-nos empatia e dividir-nos entre a ameaça colocada pelos mortos-vivos e as dúvidas que Big Daddy nos suscita.
Não é uma obra prima, mas vê-se bem.
Curiosidade: neste filme os mortos-vivos já são chamados de “walkers” e “stenchers”. Julguei que “walkers” era originalidade de The Walking Dead, mas enganei-me. É do mestre Romero.
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