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domingo, 8 de dezembro de 2024

Mayfair Witches (2023 - ?)

 

Apesar de ser uma completa fanática das Vampire Chronicles de Anne Rice, nunca consegui interessar-me o suficiente pelo universo das Mayfair Witches e nunca li nenhum livro da saga. Dito isto, não consigo avaliar até que ponto esta série respeita ou não o original, excepto por alguns pormenores.
Em “Mayfair Witches”, Rowan, uma cirurgiã em ascensão na carreira, começa a desenvolver dons letais que não sabe controlar: matar alguém só com o poder da mente. Rowan pede ajuda à mãe adoptiva, doente com cancro, que lhe assegura (falsamente) que ela não tem poderes nenhuns e que é tudo imaginação. Após a morte da mãe, Rowan está mais determinada do que nunca a encontrar os pais biológicos mas esbarra com barreiras inultrapassáveis. Cada vez mais perdida e perplexa, e depois de já ter matado um homem e três corvos sem querer, Rowan é finalmente abordada por um agente da Talamasca, Ciprien Grieve, que lhe explica que ela é descendente das bruxas Mayfair de New Orleans. Rowan e Ciprien vão a New Orleans mesmo a tempo de Rowan conhecer a mãe verdadeira, Deirdre, que é assassinada em circunstâncias misteriosas. Rowan descobre que não é apenas descendente mas a herdeira da família, e que as Mayfair têm uma estranha ligação a um ser chamado Lasher, mais demónio do que outra coisa, que parece ser a fonte dos seus poderes mas que as mantém sob o seu controlo. Com a morte de Deirde, Lasher quer apossar-se de Rowan, mas Rowan não foi criada como Mayfair e fará tudo para se livrar dele.
À medida que acompanhamos as descobertas de Rowan, vemos também as passagens relevantes da vida da sua mãe, Deirdre, e de Suzanne, uma curandeira da Escócia do séc. XVII que parece ter sido a primeira das bruxas Mayfair.
(Falando em Deirdre, Annabeth Gish continua a brilhar em papéis discretos e secundários como brilhou em "The Fall of the House of Usher", "Midnight Mass", "The Haunting of Hill House" e "The X-Files".)
A certa altura nas Vampire Chronicles, Anne Rice começa a fazer um cruzamento entre os dois universos. Em “Blood Canticle”, Lestat apaixona-se por Rowan, uma cirurgiã da família das Mayfair, e inclusivamente decide torná-la vampira mais tarde (mas nunca aconteceu até ao penúltimo livro da saga). Claro que pensei que a Rowan da série pudesse ser a mesma, e não me lembro dos pormenores nem vou fazer a batota de pesquisar, mas uma coisa garanto: esta Rowan não é a mesma Rowan. Até que ponto é que a Rowan das Mayfair Witches é a mesma das Vampire Chronicles também não imagino. (Nem estava à espera de ver Lestat nesta série, mas se ele aparecesse também não fazia mal nenhum, quanto mais Lestat melhor.)
Tendo tudo isto em conta, devo dizer que gostei muito da série. É verdade que não li os livros das Mayfair, mas o que li sobre elas nas Vampire Chronicles pareceu-me tão estranho, mas mesmo tão… estapafúrdio, que perdi qualquer vontade de investigar mais. Tinha um certo receio quanto a estes elementos estapafúrdios (que também existem nas Vampire Chronicles, admito) mas a série simplesmente os descartou e fez muito bem. Desta forma a vida das Mayfair desenrolou-se de forma mais realista, à parte a magia, e interessante. Gostei principalmente do ambiente e costumes de New Orleans, a fazer justiça ao universo geral de Anne Rice, e adorei a Talamasca. A Talamasca, uma organização de investigadores do sobrenatural comum às duas séries, é tudo o que eu tinha imaginado e se calhar até mais um bocadinho.
Não me importava nada de ver o cruzamento dos dois universos mas, considerando as atrocidades que fizeram ao original de “Interview With The Vampire”, até tenho medo de sugerir.

PS: Já depois de escrever este artigo li uma crítica à série de alguém que conhece os livros a fundo. A pessoa disse de “Mayfair Witches” as cobras e lagartos que eu disse de “Interview With The Vampire”: história original destruída, adaptação inferior. Fica o aviso.


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez

PARA QUEM GOSTA DE: Anne Rice, Lives of the Mayfair Witches, Vampire Chronicles, bruxas, sobrenatural, Interview With The Vampire (série de televisão)

domingo, 7 de julho de 2024

Interview With The Vampire (série TV, 2022 - ?)

Toda a gente que lê este blog há alguns anos sabe que sou uma FANÁTICA das Vampire Chronicles. Li todos os livros pelo menos duas vezes (excepto o último), vi os dois filmes várias vezes. Há cerca de 15 anos que ouvi falar na produção de “Interview With The Vampire” numa série televisiva e não podia ter ficado mais entusiasmada: finalmente íamos ver a história COMPLETA, com todos os PORMENORES dos livros que fascinaram milhões de fãs em todo o mundo. Falo dos verdadeiros fãs, não daquelas pessoas que viram um filme ou dois e não sabem mais nada da história.
Da mesma forma, não podia ter ficado mais decepcionada, abismada, irritada com a série de que falo aqui e que pode ser tudo menos “Entrevista Com o Vampiro”. Isto não é uma adaptação, isto é fan fic. O que me leva a maior desapontamento ainda com Anne Rice, que sendo produtora executiva teve forçosamente de aprovar todas as alterações. Para quem não sabe, Anne Rice sempre foi contra toda a produção de fan fic (ficção escrita por fãs) do seu trabalho, alegando que deturpavam a história. Mas aparentemente se há dinheiro envolvido já não existe “deturpação”.
O outro problema é: porquê? Porque é que se criou todo um enredo alternativo às Vampire Chronicles quando o original é tão bom e nunca foi adaptado como só uma série de televisão permitiria? Porque é que se quis desiludir milhares de fãs com uma história inferior que atenta contra os elementos mais importantes do original?

Louis de Pointe du Lac
A história começa em 1910. (Porquê, mãezinha, porquê? Porque é que tivemos de perder todo o encanto do século XIX, o século do vampiro?)
Aqui, Louis de Pointe du Lac é crioulo e um proxeneta (dono de bares, casas de prostituição e actividades ilegais em geral). Um Louis crioulo podia ser uma boa ideia, mas a própria questão da raça (incluída por motivos de “diversidade”, algo que nunca teve qualquer relevância no original) coloca contradições gritantes. É Louis quem nos diz que as ruas mal-afamadas de New Orleans eram o único lugar onde um negro podia ser alguém. Por outro lado, o pai dele era dono de uma plantação de açúcar (como no original) que faliu. A família de Louis (mãe, irmã e irmão) é negra e rica. E o pai? Seria branco? Poder-se-á sequer imaginar historicamente que uma família negra pudesse ser dona de uma plantação na Louisiana da altura? * É Louis quem nos diz: não. Então como é que é possível? Mais valia terem retirado completamente a parte da plantação e as coisas faziam mais sentido: Louis de Pointe du Lac, proxeneta, ponto final. (O verdadeiro Louis de Pointe du Lac deve andar às voltas no caixão. Nunca tal criatura sombria e depressiva podia alguma vez estar ligado a negócios de prazer. Aliás, foi esse desprazer com a vida que atraiu Lestat.)
* No segundo visionamento, notei que Louis diz isto sobre a plantação: “Capital acumulado de plantações de açúcar e o sangue de homens que se pareciam com meu bisavô, mas não tinham a sua posição”. Então, a plantação passou para descendentes de escravos? Considerando que seria possível, mesmo assim não invalida a contradição: “as ruas mal-afamadas de New Orleans eram o único lugar onde um negro podia ser alguém”.
Peço desculpa, eu disse que a história começa em 1910. Referia-me ao ano em que Louis conhece Lestat. A série começa nos nossos dias, num dos anos da pandemia, quando Louis, agora instalado no Dubai, convida o jornalista veterano Daniel Molloy para lhe dar uma segunda entrevista 50 anos depois da primeira. Daniel Molloy, que no original também foi transformado em vampiro, está muito mais velho e cínico e sofre de Parkinson. (Esta alteração, por exemplo, não me incomoda muito porque Daniel Molloy nunca foi importante para a história em geral.) Louis, ao que parece, quer corrigir o que disse há 50 anos porque também está mais velho e… mais sábio? Porque mudou de ideias? Porque quer comer Daniel Molloy depois da entrevista? Eu também não sei. A certa altura ambos queimam as gravações em cassete da primeira entrevista, o que não podia ser mais simbólico do que estão a fazer ao trabalho de Anne Rice (com o consentimento da própria). Então este Louis (recuso-me a considerá-lo o “verdadeiro”) começa a contar a história de como era libertino e de como se assumiu como homossexual quando fez sexo com um homem (Lestat). Ui! Isto é mesmo pôr no lixo todos os livros das Vampire Chronicles e deitar-lhes fogo.
Os vampiros de Anne Rice não fazem sexo. O que não quer dizer que não se envolvam em actividades sexuais, mas o êxtase está todo no sangue. Isto não é uma nota de rodapé e não é um pormenor, faz parte da identidade do vampiro de Anne Rice: a imortalidade vem com o preço da perda do prazer sexual, mas o êxtase do sangue supera-o sobremaneira.
Em certos casos, nas Chronicles, alguns vampiros envolvem-se em actividades sexuais com outros vampiros e mortais, o que é sempre representado como uma união profunda, rara, de amor platónico e transcendente, de uma tentativa de voltar a sentir vida. Por exemplo, Lestat e Rowan em “Blood Canticle”. (E sim, temos muitos pormenores bastante explícitos de como estas relações ocorrem, do princípio ao fim. Anne Rice nunca foi exactamente uma púdica.) Transformar isto no mais comezinho da experiência humana é retirar aos vampiros de Anne Rice tudo o que os torna seres únicos e fascinantes, para sempre afastados da humanidade perdida mas nostálgicos por ela, imortais mas amaldiçoados pelo peso da eternidade.
Aliás, a homossexualidade nunca foi escondida nas Chronicles, bem pelo contrário. Muitos vampiros, entre eles Lestat e Marius, assumem-se como bissexuais com todas as letras. Mas Louis nunca o fez e nada nos deu a entender que a sua relação com Lestat não fosse puramente platónica (até ao momento em que Louis o começou a odiar, isto é). A série põe Lestat e Louis a dormirem no mesmo caixão como qualquer casal gay. Isto sim, é fan fic da pior, como certos desenhos que circulam online e que quase me fazem dar razão a Anne Rice quanto à imaginação púbere dos fãs.

Lestat de Lioncourt
Falando no diabo, Lestat é a única personagem que escapa mais ou menos incólume às abominações do enredo. Sam Reid, o actor, consegue personificar o demónio de cabelos loiros como toda a gente o conhece, apesar de o quererem remeter ao papel de marido rabugento que não tem sexo em casa e vai ter com uma amante quando Louis não lhe liga. Isto também é problemático. Lestat nunca se envolve com uma qualquer só pelo sexo. Como no caso de Rowan, o que o atrai a alguns humanos que ele considera extraordinários é um profundo respeito, fascínio e admiração em que o vampiro dá prazer em troca de sangue (ou, no caso contrário, acontecem coisas desagradáveis como em “The Tale of The Body Thief”). Geralmente a amada ou amado são transformados em vampiros também. Não me parece que ele tenha esse respeito imenso pela cantora com que se envolve nesta série.

Claudia
Claudia não é a criança-vampiro de causar pesadelos. É uma miúda de 14 anos, mais ou menos a idade de Armand quando foi transformado. No entanto, com a chegada de Claudia a série começa finalmente a assemelhar-se à dinâmica do original, pelo menos durante uns episódios. Quando a primeira temporada termina, Claudia ainda está viva e o mundo está em plena Segunda Guerra Mundial. Já não são tempos de um Théâtre des Vampires, uma das melhores passagens do livro e do filme. Isto significará que Claudia não morre de todo, o que foi o momento mais dramático e o ponto de não retorno entre Louis e Lestat, já para não falar em Armand? Por outro lado, nesta versão, Armand já não teria razões para destruir Claudia por ser “contra as regras, demasiado nova e dependente para ser um vampiro”. Esta Claudia é bastante auto-suficiente e passa bem por adulta com o vestuário e a maquilhagem apropriada. Aliás, a certa altura ela zanga-se com os “pais” e foge de casa. Nas suas peripécias, conhece outro vampiro de quem se torna amiga e que, tudo dá a entender, a viola de seguida. NÃO! Vampiros não violam vampiros (nem sequer humanos). Primeiro, NÃO CONSEGUEM e não têm prazer sexual. Segundo, a única coisa que lhes interessa noutro vampiro é talvez a amizade, a partilha de um sangue mais potente (como em “Queen of The Damned”), ou a aniquilação do outro por causa do “território de caça”. Obviamente esta gente não leu as Vampire Chonicles e Anne Rice concordou em destruir toda a obra de uma vida. É triste.
Sinceramente, não sei o que estou a ver mas não é “Entrevista Com o Vampiro” de certeza. Pelo menos falaram em Nicholas e Magnus, muito de passagem. Foi pena não terem seguido os livros. Eu teria querido ver o Lestat humano preso na torre, o jovem actor Lestat, e todos os vampiros e vampiras que existiram muito antes de Louis aparecer em cena. O que não queria nada ver era esta abominação. Estou a torcer para que a segunda temporada leve com uma estaca no coração e não apareça à luz do dia. Os verdadeiros fãs fazem melhor em ver o filme do Tom Cruise e do Brad Pitt outra vez.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: NUNCA!

PARA QUEM NÃO GOSTA DE: Anne Rice, The Vampire Chronicles, O Vampiro Lestat, o Vampiro Armand, etc, etc


domingo, 5 de janeiro de 2020

The Twilight Saga: Breaking Dawn - Part 1 / Amanhecer - Parte 1 (2011)


Quarto episódio de Edward-o-vampiro-que-brilha e sua amantíssima esposa Senhora-Dona-Bella-Cullen.
O filme não perde tempo. Arranca logo com o casamento. Eu sempre pensei que eles não se casassem tão depressa, que houvesse mais peripécias antes disso. Mas a Bella não quer outra coisa senão ser vampira, e afinal há a ameaça dos Vulturi, por isso faz sentido.
O Jacob, pobre Jacob, nem assim a tira da cabeça. Continua um cachorrinho atrás dela. Será que no último filme/livro este desgraçado sem auto-estima vai finalmente partir para outra? Eu estou a torcer para que sim.
Edward e Bella vão passar a lua-de-mel no Rio de Janeiro, onde descobrimos que Edward sabe falar português. Não percebi nada do que ele disse, mas enfim, pelo menos arranha. Não ficam muito tempo no Rio. Afinal a lua-de-mel vai ser numa ilha privada dos Cullen.
E depois acontece a cena da cama. Na noite de núpcias, Edward consegue partir a cama toda. Ora, eu não costumo pedir pormenores quando o que se passa é normal, mas isto é tudo menos normal! Como é que aquela cama acabou naquele estado? Sim, queria ver isso. Ao pormenor.
Admito que já sabia da cena da cama porque uma amiga me tinha contado. Fartámo-nos de rir as duas. Não sei como é que isto não acabou num Scary Movie. (Para quem não sabe, “Scary Movie” é uma série de filmes-paródia aos filmes de terror. Não costumam ter muita piada.) Esta cena da cama é já de si uma anedota, só precisava de ser condimentada.
Em resultado, e como estão numa ilha isolada onde não há IKEA para comprar camas baratas, Edward e Bella passam o resto da lua-de-mel a jogar xadrez. Pobre Bella. Eu fiquei aborrecida só de assistir.
Mas tudo isto para chegarmos ao verdadeiro enredo do filme: a gravidez de Bella. E é uma gravidez digna de um “Rosemary’s Baby”, ou pior ainda, em que a gestação progride a um ritmo vertiginoso. Os vampiros estão surpreendidos que isto pudesse acontecer e também não sabem o que vai sair dali. Mas Bella quer o bebé, por muito monstro que seja. O que é natural. Vão lá dizer a uma mãe que o seu bebé é um monstro.
Agora fiquei muito curiosa para ver como é que ela explica isto ao pai dela. “Olá pai, cheguei da minha lua-de-mel de duas semanas. Aqui tens a tua neta.” Vai ser o ponto alto de toda a saga para mim.
Os lobisomens decidem que este monstro não pode existir e querem ir matar a Bella. Pouca curiosidade científica da parte dos lobisomens, para quem é lobisomem. A primeira vez que um vampiro tem um filho com uma humana e não querem saber o que vai nascer? Mas os lobisomens de Twilight têm esta característica xenófoba de achar que todos são monstros menos eles, como já assinalei na crítica ao filme anterior.
Por falar em lobisomens, e como também já disse do filme anterior, aquela reunião de lobisomens em estado lobo e a falar inglês entre eles é algo entre o infantil e o ridículo. Percebo como é que pode funcionar nos livros em que as falas telepáticas têm de ser verbalizadas, mas nos filmes resulta muito mal. Teria sido melhor que os lobisomens se reunissem em estado humano, e sempre se evitava mais um bocadinho de CGI mal conseguido.
A princípio Jacob quer matar o Edward, mas depois o amor fala mais alto e decide antes proteger a Bella e o bebé, como já se esperava, e agora não estou a ver o que é que possa acontecer de interessante no último filme. (Tirando a parte em que têm de explicar isto ao pai da Bella, isso eu quero ver!)
Mas esperem, o filme ainda não acabou. Já corriam os créditos finais e eu já estava com o dedo no “apagar”, quando acontece a cena mais interessante do filme todo e eu quase a perdia! Por um minuto ou dois aparecem os Vulturi, os vampiros mais riceanos e vilanescos desta saga e por isso os únicos que me fazem vibrar alguma coisa, dizendo entre eles que os Cullen têm algo que eles querem. Aposto que é a Renesme, a filha da Bella. E devem querê-la porque são vilanescos e malvados, mas pelo menos têm curiosidade científica. Estes Vulturi devem mesmo ter sido inspirados no vampiro Armand. Só pode.
E sim, a pobre criança chama-se Renesme. Não bastando ser filha de dois vampiros, ainda tem de viver com este nome o resto da vida possivelmente imortal. Ninguém merece.

Enfim, o que dizer de sério sobre isto tudo? O filme nunca apresenta uma explicação sobre esta gravidez, mas se é possível, e um pouco mais atrás ainda, se os vampiros podem fazer sexo com humanos, então duvido muito que Renesme tenha sido a primeira vez. De certeza já devia ter acontecido e os Cullen teriam conhecimento disso.
Na mitologia clássica, um vampiro é um morto que se levanta do túmulo por meios sobrenaturais (diabólicos ou outros) sustentados pelo sangue das suas vítimas. (“O sangue é a vida.”) Os vampiros de Twilight parecem-me cada vez menos “mortos” e sobrenaturais e cada vez mais seres humanos geneticamente modificados pelo tal “veneno” (vírus?) que os transforma em imortais com força e rapidez sobre-humanas. Mas fica a questão. Se não estão mortos (Edward produziu um bebé, por isso definitivamente não está morto) porque é que precisam de sangue? O propósito do sangue é mesmo esse, sustentar a vida sobrenatural do vampiro através da ingestão da vida das vítimas simbolizada no sangue. Se não existe esta necessidade sobrenatural, porque é que os vampiros de Twilight são vampiros?
Mas de certeza ninguém quis saber de nada disto.


12 em 20



domingo, 27 de janeiro de 2019

The Twilight Saga: Eclipse (2010)


Terceiro episódio de Edward o-vampiro-que-brilha e Bella a-rapariga-que-só-quer-ser-vampira. E agora também temos Jacob o-lobisomem-que-quer-comer-a-Bella-no-melhor-dos-sentidos.
Fiquei um pouco confusa logo a começar. Nunca me passou pela cabeça que a situação com a vampira Victoria (a ruiva que aprendeu a correr por entre as árvores num ângulo de 90º como na Matrix) não estivesse já resolvida. Isto é que é tenacidade. Victoria quer mesmo muito vingar-se por causa de coisas que aconteceram no primeiro livro/filme e de que eu já não me lembro. Mas recordo que foi o bando da Victoria que se meteu com os Cullen por isso ela não tem razão nenhuma. As pessoas têm mesmo de aprender a desprender-se e partir para outra. Victoria precisa de ler um livrinho de auto-ajuda.
Victoria continua obcecada em matar Bella para que Edward sinta a dor de perder um amor, como ela sentiu. E também dá muito jeito ao enredo principal, porque obriga os vampiros e os lobisomens a fazer uma aliança para se revezarem a proteger Bella.
Entretanto, e depois sabemos que foi Victoria também, alguém cria um exército de vampiros recém-transformados (a quem chamam recém-nascidos) para atacar os Cullen em grande escala. Na mitologia de Twilight os vampiros são fisicamente mais fortes quando são transformados há pouco tempo. Geralmente é o oposto, o que faz com que os vampiros muito antigos sejam praticamente invencíveis. Esta ideia de maior fragilidade física mas de aquisição de outras capacidades é interessante e foge aos lugares comuns do mito do vampiro.
Por falar em mitologia, neste filme temos um flashback que nos explica como começou a animosidade entre os lobisomens e os vampiros. Mas temos também a resposta à questão que coloquei na crítica ao filme anterior, New Moon: os lobisomens têm consciência do que fazem enquanto lobos? Sim, têm. E conseguem, efectivamente, transformar-se quando querem, sem qualquer influência lunar. Até há uma cena em que os lobisomens vão a um encontro com os vampiros em forma de lobos porque se sentem mais seguros assim. (É uma cena algo ridícula, se não mesmo infantil, em que de repente temos os vampiros a combinar estratégia com os lobos silenciosos -- também era melhor se falassem! -- enquanto Bella faz festinhas ao lobo Jacob. Por falar nisso, o CGI dos lobos não é nada realista. Parece um desenho animado para crianças.)

 Eu também gosto muito de animais.

Ora, como dizia na crítica anterior, isto é problemático. Se os lobisomens têm consciência do que fazem como lobos são tão maus como os vampiros e não têm autoridade moral para se sentirem superiores. Duvido que esta questão existencial alguma vez seja abordada no universo Twilight mas fica a minha nota.
Também disse que estava a torcer pelo Jacob, mas neste filme o jovem lobisomem está a passar pela fase “parva” e não podia estar a sair-se pior com a Bella. Mas que outra coisa esperar? O rapazinho tem 16 ou 17 anos, ainda tem muito que aprender sobre como encantar o sexo oposto. O Edward tem 90 anos de lábia e anda atrás de uma miúda do liceu. Desculpem, fãs, factos são factos. Pobre Jacob, não tem a mínima hipótese.
O envolvimento dos Vulturi é, como sempre, o que mais gosto na saga. Porque me lembram os vampiros Riceanos, claro está. Armand ficaria orgulhoso destes Vulturi.
Não percebi, no filme, de que matéria são feitos os vampiros. Pedra, gelo, é por isso que brilham? É o que parece no filme, ou é culpa dos efeitos especiais. (Akasha foi durante séculos uma vampira “petrificada” mas isso era porque não se alimentava. Quando voltou à “vida” parecia completamente de carne e osso.) Quando os vampiros de Twilight são decapitados não há sangue a jorrar e carne à mostra. Parecem objectos partidos, o que lhes retira a humanidade. Como é que podemos ter pena de uma boneca partida? É isto que Bella quer ser?
Por último, nunca é explicado o título do filme. Qual eclipse? Penso que se referem ao exército que era liderado por um testa-de-ferro aparentemente criado por Victoria. Desta forma, ela estava “eclipsada” atrás dele. Será? Eu acho rebuscadíssimo mas não encontro outra explicação. Talvez o livro tenha explicado melhor.

12 em 20

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

New Moon / Lua Nova (2009)


Segundo capítulo das aventuras de Edward o-vampiro-que-cintila e Bella a-rapariga-que-só-pensa-no-Edward.
Um dos motivos porque a saga Twilight foi tão mal recebida pelos verdadeiros amantes de vampiros foi na verdade um equívoco gerado pelo marketing à série. Um desfasamento de expectativas. Embora tenha elementos sobrenaturais, Twilight pertence mais ao género romântico do que a qualquer outro. O facto de ter vampiros e lobisomens é quase irrelevante. Se os substituíssemos por grupos rivais o enredo seria exactamente o mesmo. Esta é, acima de tudo, uma história romântica, e os amantes de horror que não apreciam o género romântico não vão encontrar aqui satisfação.
As minhas razões para continuar a seguir a saga são mais obcecadas. Sou de tal forma uma viciada em vampiros que muito raramente consigo resistir e vejo tudo: do muito bom ao muito mau. Para quem não é alérgico a histórias românticas, a saga Twilight vê-se.

Sempre desconfiei de vampiros que brilham
Depois dos acontecimentos do primeiro livro, que puseram Bella em perigo, Edward decide finalmente fazer a coisa certa e deixar de andar atrás de miúdas de liceu. Mas fá-lo mal. Em vez de revelar os seus verdadeiros motivos, arma-se em “todo-bom” e diz a Bella que esta não é digna dele. Grande estafermo. Eu já não gostava do Edward, mas neste filme começo mesmo a detestá-lo. Sem mais explicações, desaparece, deixando a miúda bastante deprimida por uns meses. Mas na verdade Edward não rompeu completamente, como devia ter feito se era mesmo esse o objectivo. Continuou em contacto com Bella através da ligação psíquica, o que pessoalmente achei de muito mau gosto. (Se vais, vai. Não vás pela metade.) Desta forma, nunca lhe permite recuperar e ultrapassar a relação. O que é mais grave, Bella fica à mercê dos inimigos dos Cullen, na ausência destes, e começa a ser perseguida por vampiros vingativos. Outra má onda. Não a deviam ter deixado sozinha nestas circunstâncias. Nomeadamente Edward sabe o que se passa (através da tal ligação psíquica) e nem isso o leva a mexer o traseiro para ir resolver problemas que são da família dele. (Estão a ver porque é que o detesto?)

Vampiros vs lobisomens
Felizmente, Bella torna-se mais próxima de Jacob, o índio. Admito que sempre gostei deste personagem. Sempre que ele aparecia no livro original, era uma lufada de ar fresco. Jacob parece ser o único que pensa e diz coisas com pragmatismo, e além disso tem sentido de humor. É difícil não torcer por ele. (Mas só aqui entre nós acho que a Bella não o merece.)
Quando se aproximam, Jacob ainda não sabe que é lobisomem. Mas atingiu a idade e as transformações começam a acontecer. (Coitada da Bella, também admito que não pode haver rapariga mais azarada. Ou se apaixona por vampiros ou lobisomens.)
Os lobisomens de Twilight, à semelhança dos vampiros, também não obedecem aos cânones. Não precisam da noite nem da Lua Cheia para se transformarem. Não sei se o livro explica melhor, mas fiquei com dúvidas. Conseguem transformar-se quando lhes apetece ou apenas quando se enfurecem? A Lua Cheia terá alguma influência, ou nenhuma? E até que ponto têm consciência humana na fase lobo? Se percebi bem, são responsáveis por alguns homicídios que a polícia da terra andava a investigar. Mas Jacob parece reconhecer Bella na fase de lobisomem, o que é problemático do ponto de vista da consistência. (Se como “lobo” tem este grau de consciência, também é responsável pelos homicídios.) Também não cheguei a perceber porque é que há rivalidade entre vampiros e lobisomens. O filme não explica, simplesmente apresenta como facto. Nos Diários do Vampiro, pelo menos, são apresentados como inimigos naturais porque uma dentada de lobisomem mata um vampiro. Aqui, não percebo qual é a rivalidade (e não me quero pôr a conjecturar). Afinal, não são todos monstros? Até deviam dar-se bem, penso eu. No primeiro livro/filme já havia aversão dos índios para com os Cullen, mas pensei que se devia apenas a saberem que eram vampiros. Afinal a aversão é outra.
É Jacob que lá está quando é preciso salvar Bella. Começa a estabelecer-se entre eles uma relação maior do que amizade. E eu a torcer por ele, obviamente.
Mas a relação não chega a ter tempo de se desenvolver. Em busca de adrenalina, e porque é jovem e não pensa (e para tentar que Edward a contacte psiquicamente), Bella decide mergulhar de um penhasco. Alice, a irmã adoptiva de Edward e vampira médium, tem uma visão deste mergulho e julga que Bella se tentou suicidar. Aqui acontece uma peripécia um bocadinho forçada. Sem confirmar que Bella está morta, Edward acredita apenas na visão de Alice e decide ir entregar-se a um clã de vampiros na Itália, os Volturi, que matam aqueles que quebram as regras. A primeira de todas é que os vampiros não devem expor-se aos seres humanos (brilhando ao sol). Nesta tentativa de suicídio à Romeu (porque não consegue viver num mundo onde Bella não viva), Edward decide quebrar as regras para que o matem. Mas eu acho isto um pouco precipitado. A própria Alice diz que nem sempre vê tudo. Porque é que o Edward acredita numa visão sem se certificar? Pelo menos ia ao funeral, não? Mas assim é mais dramático.
Bella e Alice chegam mesmo a tempo de o salvar, mas os tais Volturi exigem que ela seja transformada porque sabe demais. Isso, ou morta. Mais uma vez, Edward arranja-lhe problemas. Bravo, Edward vampiro-brilhante! E a Bella deixou o Jacob para isto!
Estes Volturi lembram-me os vampiros de Anne Rice, no tempo do coven do Cemitério dos Inocentes e do Teatro dos Vampiros. A qualquer altura, esperava que o vampiro Armand entrasse pela sala.

 Armand, Lestat e Louis não estavam disponíveis para participar no filme.

Tal como os vampiros de Armand, também estes se julgam a autoridade vampírica e gostam das suas regrazinhas. São os piores. O filme consegue um momento de quase-terror quando um grupo de turistas é guiado para dentro do palácio dos Volturi para lhes servir de refeição. Como é que eles explicariam todos estes desaparecimentos, pergunto-me? Levantar suspeitas também é contra as regras. Mas o filme não é sobre isto.
O facto é que Bella quer ser vampira. Desde o início do filme, não fala de outra coisa. Até me perguntei: mas esta miúda nunca leu Anne Rice? Aparentemente não, porque no mundo de Twilight não existem as Vampire Chronicles. Bella não quer ser vampira para ser imortal, nem para ser jovem para sempre, nem para ter poderes especiais. Nada disso. Bella quer ser vampira para ficar mais próxima de Edward. A princípio ele rejeita a ideia (única coisa em seu favor) mas acaba por concordar (lá se foi a coisa).

E assim terminaram duas horas de filme. Não imagino quando verei a continuação. Acompanho por uma questão de curiosidade e cultura “geral”, como acompanhei o Harry Potter. (De outra forma, como é que ia perceber as referências culturais da gente mais nova?) Comparando entre ambos os fenómenos, desgosto menos do Twilight. Pelo menos tem vampiros. E pronto, é só isto.


13 em 20 (ponto extra porque os Volturi me lembraram outras vampiragens)




domingo, 8 de outubro de 2017

"Prince Lestat", de Anne Rice


Já me tinham avisado de que este livro é uma desilusão, mas recusei-me a acreditar antes de ler. E depois recusei-me a acreditar antes de chegar ao fim. E agora que acabei de ler também não adjectivaria o livro como uma desilusão, mas como um manancial de ideias mal aproveitadas que até podiam ter dado um grande livro se tivessem sido exploradas como Anne Rice nos habituou. Infelizmente, este não é um livro da qualidade a que Anne Rice nos habituou. De todas as minhas queixas, a principal é mesmo essa. O que mais gosto na escrita de Anne Rice é que nos mergulha na psique dos personagens e nos faz compreender todas as suas motivações. Infelizmente, é o que mais falha em "Prince Lestat". Nunca consegui compreender as motivações dos personagens, dos já conhecidos e dos que são apresentados neste livro. Muitas das suas decisões e personalidades pareceram-me até incoerentes, como se durante o hiato em que Anne Rice pôs de lado as Vampire Chronicles se tenha esquecido de quem estes personagens são.

Para explicar estes motivos de insatisfação, terei de incluir spoilers. Quem ainda não leu e pretende ler, pode preferir interromper a leitura aqui e regressar mais tarde.


!!!CONTÉM SPOILERS!!!


Rowan? Qual Rowan? Quinn e Mona, idem
A minha primeira insatisfação é a falta de continuidade com o último livro da série, “Blood Canticle”. No fim deste, Lestat e Rowan, das Mayfair Witches, estão completamente apaixonados. Lestat até pensa em dar o Sangue a Rowan, mas decide adiar porque acha que ela ainda tem muito que fazer como humana. (Esta ideia é importante para este livro.) Mas ficamos a pensar que o romance vai ser retomado, se é que chega a ser interrompido.
Neste livro, eu talvez esperasse continuar a partir daí. Mas mesmo não continuando, nunca imaginei que aconteceria o que aconteceu: Rowan desaparece como se nunca tivesse existido. Nem uma palavra é dita sobre ela. 
Mona e Quinn, personagens de "Blackwood Farm" e "Blood Canticle", também não são mencionados, como se nunca tivessem acontecido, como se Anne Rice se tivesse arrependido de escrever esses dois últimos livros.
Mas Mona e Quinn (apesar de nunca terem sido personagens de que eu goste particularmente, especialmente a fútil Mona) são agora vampiros. Tendo em conta o enredo desta história, eles deviam ter aparecido, mais ainda, deviam ter estado sempre ao lado de Lestat. Incompreensivelmente, desapareceram também.

Os vampiros cientistas e o bebé-proveta
Parece o título de uma comédia, mas aconteceu mesmo. Lestat conhece uns vampiros que são igualmente cientistas e que se dedicam a estudar a fisiologia da espécie a que pertencem (outros vampiros). Até aqui tudo bem e normal. Conseguem convencer Lestat a participar nestas experiências, ao que ele acede porque lhe parecem interessantíssimas, e por meios que nem vale a pena explicar devolvem-lhe temporariamente a capacidade sexual. (Como os leitores das Vampire Chronicles sabem, os vampiros de Anne Rice perdem qualquer capacidade de desejo ou actividade sexual, sendo esta completamente substituída pelo desejo de sangue.) Lestat consegue assim envolver-se numa relação sexual com uma cientista humana, para fins científicos. Quando a coisa termina e o efeito da experiência passa, a Lestat apetece imediatamente "exanguinar" a parceira, o que não deixa de ser engraçado.
Ainda bem que não o fez, porque o sémen aproveitado deste encontro é utilizado para criar em laboratório um bebé 100% humano! Isto é, Lestat é pai! Lestat tem um filho! Humano! Eu adorei esta parte, imaginando que tipo de pai poderia Lestat tornar-se, como o poderia fazer evoluir e transformá-lo.
Que desilusão! Por razões que me ultrapassam, os cientistas acham melhor esconder a criança do pai, embora o miúdo saiba, desde sempre, que é filho do famoso vampiro Lestat.
Ora, isto não me entra na cabeça. Custava alguma coisa que um deles lhe tivesse telefonado:
“Lestat, pá, como vai isso?”
“Hã, assim assim.”
“Pá, nem vais acreditar no que aconteceu. Lembras-te daquela experiência, com a cientista boazona, no laboratório? Pá, és pai, pá! Vem cá já ver o puto! Mas não o comas, fixe? ”
Nada disto aconteceu. Lestat só toma conhecimento deste filho quando este já tem 18 anos. E não se percebe porquê, porque Lestat e os cientistas ficaram amigos e não havia razão para que não participasse na paternidade. O que Lestat teria para ensinar a um miúdo humano!
O que é que Anne Rice estava a pensar, pergunto-me? Que oportunidade desperdiçada.

A insuportável Rose
Em vez disso, somos apresentados a mais uma protegida de Lestat, uma miúda órfã chamada Rose a quem este decide “adoptar”, apresentando-se como tio Lestan. A história de Rose não me diz nada. A miúda foi tão protegida por amas e seguranças que nunca conseguiu aprender a safar-se sozinha no mundo. Cresceu uma flor-de-estufa, uma mosquinha morta. Uma daquelas donzelas do século XIX que choram e desmaiam e precisam de ajuda para atravessar a rua. Uma coisa que já não existe, graças a Deus.
Resultado: Rosa mete-se em problemas atrás de problemas e não sabe sair deles sozinha. Rosa nem sequer tem um grupo de amigos, nem um único. Só podia correr mal!
Em vez desta insuportável Rose, eu queria ver o Lestat ser um pai para o filho verdadeiro. Como é que alguma vez Rose poderia ser relevante, quando subitamente Lestat tem um filho biológico e humano com quem nunca o vemos relacionar-se? Rose não era necessária para nos mostrar que Lestat tem tendências paternais (sabemo-lo desde Claudia de "Entrevista com o Vampiro") e ainda por cima não desempenha qualquer papel influente no enredo. O que Rose fez na história foi ocupar espaço que devia ter sido usado com Viktor, o filho de Lestat.

A ameaça
"Prince Lestat" é a história de como a comunidade vampírica enfrenta a maior ameaça desde que Akasha ("A Rainha dos Malditos") decidiu destruir todos os vampiros (ou quase). A ameaça, suspeito, é a mesma, porque desta vez é o espírito Amel (o espírito que vivia no corpo de Akasha e origem de todos os vampiros) que após milénios de dormência toma consciência de si próprio e decide que existem demasiados vampiros no mundo. Amel possui um corpo (espiritual, mas um corpo) que também tem limitações, e a proliferação de vampiros esgota-o e enfraquece-o. Desta forma, Amel começa a convencer os vampiros mais velhos, os que já adquiram o Fire Gift, a incinerarem os mais novos. A maneira como os atormenta até que lhe façam a vontade nada deve à possessão. Amel é tão cruel que ameaça os resistentes: se não fazem o que lhes manda, mandará outros matá-los a eles.
Descobri muito depressa de quem era esta Voz que sussurrava ao ouvido dos vampiros, mas não penso que o livro tenha feito dela grande mistério, de propósito ou não, porque Lestat e outros vampiros também já desconfiavam ainda antes de começarem a falar disto uns com os outros.
A Voz, que mais tarde se veio a confirmar ser Amel, é o enredo fulcral desta nova história das Vampire Chronicles. O final, sem querer revelar, foi bastante imprevisto.
Mas que faz Lestat ao conhecer o perigo que enfrenta? Lestat vai buscar um pequeno machado e começa a usá-lo dentro do casaco. Sim, leram bem, um machado! E pequeno! Ora, desde quando é que o vampiro Lestat anda com um machado? E para quê? O que é que Lestat fazia com um machado se lhe aparecesse à frente um vampiro de 6000 anos com intenções de o transformar em cinzas? Esta parte é tão estúpida que até dói. O pior é que Anne Rice nem tenta explicar. Podia ter havido uma explicação plausível, algo do género, “sei que um machado não me protege mas era o que eu usava quando era humano e de alguma forma irracional conforta-me andar com ele neste momento de perigo”. Se era isto que Anne Rice queria transmitir, não transmitiu. Mas o machado acabou por ser muito conveniente quando foi preciso um machado e Lestat o tinha dentro do casaco… Ele há conveniências que só as necessidades do enredo podem explicar.

Lestat superstar
Por falar em vampiros de 6000 anos, esta história apresenta-nos uns quantos que ainda não conhecíamos. O que também é bastante interessante. O que não faz qualquer sentido é que até estes concordem que Lestat deva ser o novo líder de todos os vampiros.
Exactamente, o líder! Por razões que me são incompreensíveis, todos os vampiros do mundo (Armand incluído) decidem que Lestat é o homem perfeito para os liderar. Lestat passará a ser o príncipe dos vampiros! Ora, isto não faz sentido nenhum, nem para o próprio Lestat. Ele mesmo o diz, a certa altura, como é que o vampiro que mais regras quebrou ficará agora encarregado de as estabelecer?! (Boa pergunta, Lestat! E olha, já agora, como e porque é que mudaste de ideias? Foi a tua vaidade, não foi? Mas não explicaste, maroto! Dantes costumavas ser mais sincero. Cuidado, não te transformes mesmo num político.)
Mas é assim que Anne Rice apresenta o mundo dos vampiros. De repente, vampiros antiquíssimos, vampiros de primeira geração, vampiros que já viveram milénios, decidem achar que Lestat é presidenciável, ou realeza, ou algo assim, porque… Ah, é verdade. Não se percebe porquê. Porque teve uma banda rock? Porque expôs os vampiros ao mundo (e não foi ele, foi Louis quem o fez primeiro)? Porque os vampiros mais novos o consideram um vampiro superstar? Pela sua bela “juba de cabelo loiro”? Isto era como se um líder político fosse escolhido por ser um fenómeno de popularidade. Até estaria disposta a aceitar se fossem apenas um ou dois vampiros fascinados com Lestat, mas todos? Não. 

As gémeas estavam a mais
Esta fascinação por Lestat também deu muito jeito no caso de Mekare, e em como Anne Rice se livrou das duas gémeas no mesmo livro. (Grande spoiler: as gémeas foram-se, excepto se regressarem como fantasmas.) Mas novamente não faz sentido. Não me lembro exactamente qual era o estado mental de Mekare no fim de "A Rainha dos Malditos", mas é-nos dito neste livro que o cérebro de Mekare está praticamente morto devido a ter passado milénios sem contactar com ninguém. Ora, nesse caso, Akasha, que “petrificou” durante milénios seguidos, não teria ficado no mesmo estado? E não poria isso em causa a capacidade de regeneração vampírica da mitologia destes vampiros? Mas fechando os olhos a estes pormenores (que até não são pormenores, mas adiante), o cérebro de Mekare, dizem-nos, não funciona. Mekare não é capaz de um pensamento racional. Mekare é um vegetal. Muito bem, aceitamos isto. Como é que então Mekare subitamente dá a entender a Lestat que quer morrer? A mesma Mekare que não teve a capacidade mental de perceber que a sua irmã Maharet tinha sido assassinada quase debaixo do seu nariz? Não faz sentido. O cérebro de Mekare funciona ou não funciona, ou só funciona quando dá jeito ao enredo? 
Que mal Anne Rice tratou Mekare, e as gémeas. As gémeas que eliminaram Akasha, que souberam o que fazer para impedir a destruição de todos os vampiros que a morte de Akasha implicava! A única maneira de redimir a falta de cerimónia com que as gémeas foram despachadas seria mesmo fazê-las regressar como espíritos. (Neste livro, somos informados de que alguns fantasmas aprenderam a criar um corpo físico para si próprios. Não sei se gostei disso.) Algo me diz que Anne Rice não o fará, que as gémeas morreram porque a autora se fartou delas, e nota-se. Esta parte, a parte em que se nota, é que me incomoda.

O filho (invisível) de Lestat
E por último, voltamos à tristeza que foi o desperdício deste filho biológico, Viktor. A pobreza que foi aquela primeira conversa: 
“Sou o teu filho Viktor”
“Pois, parece que sim”
Nem foi tão engraçado como isto, foi muito pior. Foi seco, foi forçado, foi artificial. Absolutamente nenhuma emoção, nem boa nem má. E depois Viktor diz ao pai que também quer ser vampiro. (Aqui, recordemos que Lestat não transformou Rowan por achar que ela ainda tinha muito que fazer como humana.) O que faz Lestat? Aceita! Sim, filho, vamos já tratar disso. Marius, transforma-me aqui o puto, se faz favor.
Não Lestat! O que devias ter-lhe dito era o que ele precisava de ouvir: “Queres o quê?! Ser vampiro? Qual vampiro qual carapuça! Quantos anos tens, 18? Pensa mas é em ir para a escola, tirar um curso, arranjar um emprego! Vai viver a vida! E dá-me um neto, já agora! E depois, quando fores um homenzinho, logo se pensa no assunto.” 
Não. Lestat aceita transformar um adolescente em vampiro, antes de ter oportunidade de experimentar a vida, antes ainda de sair de casa dos pais. Isto não me entra na cabeça. Lestat não aprendeu a lição de Claudia?!?!... Por falar em Claudia, o único que ainda tem algum juízo, valha-nos isso, continua a ser Louis. Foi o único que disse ao miúdo que o vampirismo não é vida, é não-vida. Que para ser vampiro Viktor tem de morrer antes. Não adiantou nada. 
Rose apaixonou-se por Viktor e também quis ser vampira. O que não interessa nem ao menino Jesus, porque nunca se viu um romance tão forçado e artificial e conveniente (?) como o destes dois. Detesto tanto esta personagem que quando a autora dá entender que por pouco Rose não sobrevivia à transformação, torci para que não sobrevivesse mesmo. Se esta série de livros é para continuar, Rose tem de desaparecer ou ser remetida para um lugar muito nas sombras, ou ter qualquer papel relevante que não seja ser apenas a filha adoptiva de Lestat que é namorada do filho biológico de Lestat, e que também é vampira.
Nunca julguei dizer isto, mas uma personagem como Rose fez-me desejar que Mona regressasse.
Quanto a Viktor, não sabemos nada dele excepto a sua aparência física e que tem medo de espaços subterrâneos (relevância? não sei). O livro não achou interessante debruçar-se sobre a personalidade do único filho biológico do protagonista. Escolhas curiosas, estas. Este podia ter sido um enredo tão interessante como o enredo de Amel, se não mais, mas Anne Rice desperdiçou-o tão completamente que não percebo por que motivo decidiu que Lestat devia ter um filho. Não é todos os dias que um vampiro deste universo consegue ter um filho biológico, faria todo o sentido que um acontecimento destes fosse explorado à altura.

Não bastando todas estas queixas, ainda tenho outra. No final, Anne Rice tenta convencer-nos de que Louis, subitamente, se livrou da melancolia. Que subitamente decidiu que é feliz. Oh horrores, oh injúria! Se ao menos não soasse a falso! Mas cada vez estou mais convencida de que Anne Rice odeia o personagem Louis e se quer livrar dele. Se não fisicamente, transformando-o noutra coisa. Talvez não fosse assim quando escreveu "Entrevista com o Vampiro", mas depois disso Louis desapareceu e começou a ser cada vez mais maltratado pelas Chronicles. Neste aspecto, "Prince Lestat" não destoa da tendência anti-Louis.

Pela primeira vez desde que leio as Vampire Chronicles terminei este livro sem qualquer vontade de o ler outra vez. Não sei se é uma desilusão, para mim pessoalmente, porque "Blackwood Farm" e "Blood Canticle" já não me agradaram tanto como os anteriores. Confesso que não esperava todos os motivos de queixa que apontei acima, o mais grave de todos a falta de importância que é dada à paternidade de Lestat.
No fim do livro, parece que Lestat decide que os vampiros têm de deixar de pensar mal de si próprios, que não são monstros (não, que ideia!), que já não se devem referir a si próprios como The Damned ou ao vampirismo como The Devil’s Road. Em suma, querem ter orgulho em si próprios como "povo". A minha vontade de ler livros posteriores vai depender disto. O mais interessante nas Vampires Chronicles era o perpétuo dilema dos vampiros entre a necessidade de matar e o remorso, entre a imortalidade e a nostalgia da vida mortal, entre o Bem e Mal. Se este dilema acaba, se até Louis resolve decidir que não podia estar melhor como está, que apelo poderá restar nesta série? Não sei, e talvez leia o próximo livro ("Prince Lestat and the Realms of Atlantis") para só para chegar a uma opinião definitiva.
Mas neste momento as Vampire Chronicles estão a perder-me.
Com outra escritora, diria que este livro foi escrito porque a autora precisava do dinheiro para pagar as contas. (Parece que a série sobre Cristo não vendeu o que se esperava.) Anne Rice, do que sei, não precisa do dinheiro. Mas, talvez por sorte, nunca li dela um livro tão desinspirado como este. É como se, ao decidir deixar de escrever sobre as Trevas e começar a escrever sobre a Luz, ela tenha delirado que as Vampire Chronicles também podiam pertencer à Luz. Fechando os olhos ao crime e à morte, porque os vampiros se alimentam de “malfeitores”. Mas até os malfeitores têm direito a julgamento, e nunca um só homem ou vampiro se deve encarregar de fazer justiça pelas próprias mãos e achar que pertence à “Luz”.
Honestamente, não sei que caminho levam as Vampires Chronicles mas não estou a gostar do sentido em que se dirigem. É possível que este tenha sido o último livro que leio desta série. Para já, não me apetece nada ler o próximo.

Por outro lado, descobri no site da Anne Rice que há planos para transformar as Vampires Chronicles numa série de TV, abrangendo toda a história desde o início. Esta sim, é uma ideia brilhante, que adoraria ver em prática. Que venha ela!





domingo, 12 de maio de 2013

Gotika: arquivos Agosto 2004

agosto 01, 2004

“Blackwood Farm”, Anne Rice

A preguiça, ou dispersão, ou obsessões de outras naturezas, fazem com que tenha tido o prazer de uma crítica para escrever, e não o fazer... durante semanas. Ah, valente!

“Blackwood Farm” não é, na minha opinião, um bom exemplo das Vampire Chronicles. Primeiro que tudo, os personagens são novos. É a história de um jovem vampiro, jovem em idade (22 aninhos...) e vampiricidade (1 ano e meio) que ainda mora com a família e passou os últimos anos da sua vida mortal em terríveis lutas de consciência à volta da descoberta da sua sexualidade e bissexualidade.
É a parte “humana” desta história - e é a maior parte da história - as paixões, a família, até os testamentos e os funerais, que me tiram a pica toda.
Eu gosto de fantasia. Para realidade já basta a minha. E pronto, que dizer?... Vampiros por vampiros, prefiro os que sugam sangue.
Mas a parte de "sexo com fantasmas" é um espanto. Aquelas surpresas que não se sabe de onde vêm e que se encontram no momento menos esperado... A abordagem Riceana à sexualidade.
Querem saber? Leiam o livro. Isto é um blog decente.

Pensamentos

“But you love books, then,” Aunt Queen was saying. I had to listen.
“Oh, yes,” Lestat said. “Sometimes they’re the only thing that keeps me alive.”
“What a thing to say at your age,” she laughed.
“No, but one can feel desperate at any age, don’t you think? The young are eternally desperate,” he said frankly. “And books, they offer one hope - that a whole universe might open up from between the covers, and falling into that universe, one is saved.”

Lestat acrescenta que se cada um de nós mergulhasse na outra pessoa como num livro, e a “lesse”, como a vida seria bem mais interessante.
Lembra-me aquele outro pensamento: “Fazem-se mais amigos em dois meses mostrando interesse nos outros do que em dois anos tentando que os outros se interessem por nós”.

“’Oh my precocious one,’ she said. ‘You never fail to charm me. Bisexual is it, how Byronic and charming. Doesn’t that double one’s chances for love? I’m so delighted.’

O preconceito do costume. Com que então, é ponto assente que os bissexuais têm mais hipóteses de encontrar o amor porque tudo o que vem à rede é peixe?
Era tão bom, não era?
As pessoas que não sabem do que estão a falar deviam estar caladinhas.

Missão cumprida. Venha o último, “Blood Canticle”. Já comecei a ler mas como as coisas andam vou precisar de uma forte dose de obsessão compulsiva para terminar. Enfim, ela virá.

Publicado por _gotika_ em 06:40 PM | Comentários: (8)

domingo, 28 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 09, 2004

"Amélie", por Klatuu Niktos
Klatuu, bem conhecido dos comentadores habituais do blog, pediu-me que publicasse este conto (ou episódio?) da sua autoria. Espero que gostem.

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Um conjunto destes relatos só poderia ter por título "Diário De Um Vampiro", a este relato isolado só posso intitular "Amélie".


[Tradução. Original em francês.]


França, 8 de Maio de 1704, condado de … … … .

Há três noites enviei Amélie à cidade por causa do livro que mandei vir da Holanda sobre construção de lunetas. Ontem Amélie não voltou e quando saí para a noite encontrei-a na floresta, assassinada, violada e com o corpo já meio devorado pelos lobos. Não pude deixar de sorrir da inevitabilidade do destino e do meu capricho. Faz um ano que Amélie se tornou a minha serviçal, deparei-me com ela junto ao regato, cercada pela alcateia, tentando defender-se com um ramo verde, mal ferida num ombro e numa perna e, na altura, salvei-a, nem sei bem porquê. A verdade é que odeio lobos e, depois de ter morto dois deles e os restantes terem debandado, seria ilógico tornar-me eu o carrasco daquela criança que tinha roubado à morte, mesmo que o seu sangue fresco e doce me inebriasse a vontade. Além do mais não preciso de disputar carne aos lobos!
Ergui-a nos braços e ela agarrou-se muito a mim. Não chorava, apenas tremia e murmurava sem nexo. Era uma criança do povo com doze anos de corpo mirrado por uma ascendência de alcoolismo, fome e promiscuidade. O seu rosto era uma caricatura da miséria. Magro, de nariz esborrachado, as maçãs do rosto salientes e sempre avermelhadas, os dentes mal implantados, com uns olhos pequenos sempre perplexos. Amélie não passava de comida para lobos e o mundo tinha decidido o seu destino logo ao nascimento, mas levei-a para o pavilhão. Deitei-a, e procurei entre as coisas do alquimista e nos seus preciosos livros os sais e a sabedoria com que lhe tratei as feridas. As feridas cicatrizaram depressa e sem pus e Amélie ficou ao meu serviço. O Conde achou natural que eu tivesse uma mulher à mercê dos meus vícios, ainda que feia e sem malícia. Ele mesmo me teria dado as mulheres todas da aldeia, se eu assim o desejasse. O Conde tinha em mim um aliado que valia bem o seu peso em ouro.
Amélie passou a habitar esta lúgubre casa comigo, esta casa que tinha assistido à morte do seu último hóspede, apunhalado pelos esbirros do Conde, que atribuiu umas febres que teve à magia do seu anterior protegido neste pavilhão decadente. A criança feia era demasiado ignorante para entender que coabitava com uma sombra, depressa se acostumou aos meus hábitos, predestinada por uma linhagem nascida para obedecer, mas passou a chamar-me "Rei dos Lobos". Nem achei isso insólito, ela era como um gato, um ser inútil com quem eu partilhava displicentemente esta toca de pedra. Os gatos produzem estranhos e incompreensíveis sons e também Amélie, que diz coisas tontas e canta, sem motivo, canções camponesas.
Nunca a vi triste. Dizia que era muito feliz ao lado do Seu Senhor Rei dos Lobos, que a tratava muito bem, como uma filha, e que, quando ela casasse, lhe daria um dote. Era uma criatura singular, fazia parte das pequeníssimas e insignificantes coisas do mundo, como as moscas que se acumulavam nas janelas ou as mínimas flores silvestres que ela apanhava nos campos, que juntava em ramos e espalhava pelas duas salas e a antecâmara do pavilhão. Raramente a via, a não ser ao crepúsculo, quando precisava de lhe falar, mas muitas noites Amélie esperava-me, quase vencida pelo sono e beijava-me as mãos e dizia-me para eu punir todos os lobos maus e chamava os seus patéticos deuses em minha protecção. Por vezes o sono derrotava-a e dava com ela aninhada no tapete junto à lareira e, nem sei porquê, levantava-a e estendia-a no seu leito e era então que a fome de provar o seu sangue era mais forte, olhava-a por um momento e depois saía para a noite.
Hoje o Conde organizou uma batida na floresta e encontrou os assassinos de Amélie. O bando de salteadores há semanas que aterrorizava as aldeias. Um foi morto na refrega e aos três que foram capturados ordenou o Conde que fossem esfolados vivos e depois mandou cortar a cabeça aos quatro, que fez espetar em postes, e os corpos foram esquartejados e dados aos cães. Dos dois que escaparam coube-me a mim persegui-los, não fosse eu o cão de caça preferido do Conde! Tinham fugido em direcção às colinas e por todo o trajecto senti o seu cheiro fétido, mescla de suor, sangue e medo. Quando um valado os separou lancei-me sobre o último, o outro não veio em sua ajuda, antes incitou a montada com gritos e bastonadas da espada. Aquele caiu de bruços e vendo que já não conseguia montar de novo, porque o cavalo se afastava em pânico, virou-se para mim e decidiu enfrentar-me, resolutamente, como só os néscios podem.
Era um brutamontes com mãos e ombros de lenhador e nem por um instante lhe ocorreu render-se, o seu parco entendimento privava-o de perceber o que tinha pela frente e com um urro desferiu uma estocada que me atravessou um braço. Permaneci imóvel a olhá-lo. Por estranho que pareça não me importo de ser ferido. Apesar de imortal eu posso sentir a dor física, a única dor que posso sentir, e a dor traz-me memórias. O homem tinha mais ímpeto que engenho e a segunda estocada mal me roçou. Parti-lhe o pescoço, soçobrou a meus pés como um capote atirado para o chão, e alimentei-me dele.
O sangue não é apenas vida, é também alma. A podridão, a crueldade cega e ávida, a sujidade do seu corpo em cima do corpo moribundo de Amélie, a escuridão de toda uma vida sem desígnio, os crimes, os roubos, os lugares, as vítimas, as emoções elementares, comer, fornicar, rir, invadiram o meu ser. Mesmo sabendo que estou mais próximo das feras que dos homens, como não poderia sentir-me superior a ambos? Se eu mato é porque faço parte do códice do mundo e pertenço ao ministério superior da morte, é em mim que terminam todas as ilusões de poderio e a majestade do tempo afirma o seu reino, nunca me sinto perverso, nunca me deleito ou regozijo, sou o decreto vivo que lembra às criaturas que o pó as exige e refreia e é tudo.
A sombra rápida no encalce de um homem, não era mais um vampiro, era o Rei dos Lobos, o vingador de Amélie! O escuro da noite era como um rio sobre cujas águas eu corria. O foragido tinha-se apeado no sopé das colinas e tentava escapar por entre a vegetação densa. Rodeei-o e a noite rodou comigo. Dentro do antiquíssimo silêncio que liga o caçador e a presa o homem deteve-se, ergueu a espada e virou-se de repente para mim. Nesse olhar todas as suas convicções se desfizeram como fumo, a vida era um inferno premeditado e tudo era falso. O seu rosto começou a transfigurar-se e abanava a cabeça, incrédulo e demente. Já estava morto e sabia-o. O Conde tinha-me informado que o chefe do bando era versado na arte da guerra e um exímio esgrimista, sabia ler e tinha viajado, um burguês caído em desgraça.
Fez menção de se defender, mas todo o seu corpo tremia e o rosto, cada vez mais transtornado, revelava agora a caveira oculta que sempre tinha espreitado aquele dia, o último, o dia do horror absoluto em que o nada abriria as mandíbulas por sobre o saco de fel que era a sua alma. Com um gemido largou a espada e ajoelhou-se, uivava e chorava e pedia perdão e pedia à Virgem! Aquele triste e nojento pedaço de carne, que nada tinha visto de sagrado na inocência de Amélie, invocava agora um folhetim de judeus devorado pelas eras. Com as garras da mão esquerda ceguei-o de um golpe.
O homem tombou e soluçava alto, abençoava-se e maldizia-se, ora erguia o tronco ora rastejava de lado como uma cobra espezinhada e com os dedos rasgava a terra. Porque chorava sem olhos acreditaria que uma qualquer eternidade o esperava em vez do tenebroso vazio sem fim? Com a boca cheia de sangue e de lama sentou-se e a língua saiu-lhe para fora num ululo sem nome. Que patética espécie é a humanidade! Agarrei a espada do chão e trespassei-lhe o peito.
Deixei-o ali, para que as feras esfaimadas construíssem a sua eternidade, e trouxe comigo, pela rédea, a montada de Amélie, um presente do Conde que eu tinha posto ao seu dispor. Nunca me sento num cavalo, a farsa de partilhar o mundo com os homens não me leva a tanto, nenhum propósito teria montar um animal que é menos veloz do que eu. A noite corria a meu lado e parecia contente. Amélie estava vingada.
Pelo caminho os lobos e os mochos espreitavam-me e mais de uma vez tive vontade de atacar aquele alazão branco, de sentir-me invadido pela inconsciência dos brutos e a sua vida mortal. Acho as bestas superiores aos homens, têm uma pureza de pedra e não conhecem a culpa. Entre os livros do alquimista há um de que gosto particularmente, um com gravuras de animais do país dos cafres, para além do oceano. Gostaria de ser um leopardo e não haver nada em mim que entendesse o homem, essa doença de pele do mundo que espalha a guerra pelas terras e pelos mares. A sua única utilidade é justificar a minha existência e confirmar o meu destino.
Pensava no sangue do cavalo, mas também no sangue de Amélie. O sangue de Amélie a ensinar-me a cantar canções camponesas e a vaguear pelos prados, leve como a brisa, e achar isso belo. Quando cheguei ao pavilhão sentei-me no alpendre, virado para o sol nascente. O dia fechava-se para mim e o tempo fechava-se sobre estes ferozes eventos. A morte estende o seu domínio sobre todos os sonhos e eu, seu servo, só poderia aquiescer. Tudo seria devorado, este pavilhão lúgubre, estes dias azedos, este Conde cruel amado pelo povo. Eu continuaria e só dentro de mim a lembrança do que se passou aqui teria o seu epitáfio, nos infindos rolos da minha memória qual vasto cemitério, onde, por entre os crânios, um pobre ramo seco de flores silvestres seria a breve vida de Amélie.
Nos escritos que deixou, o alquimista delira que os orbes acima de mim são as raízes de múltiplos seres. Se assim fosse, que terrores infindos esconderia a escuridão dos céus?

Klatuu Niktos

Publicado por _gotika_ em 11:40 PM | Comentários: (28)


“You could call me a Goth, I think”

(Lestat:) “My longing for the microphone is gone, but I won’t give up the fancy clothes. I can’t give them up. I’m the prisoner of capricious fashion and am actually quite plain tonight. I think nothing of piling on the lace and the diamond cuff links, and I envy Quinn that snappy leather coat he’s wearing. You could call me a Goth, I think” He glanced at me very naturally, as though we were both simple humans. “Don’t they call us snappy antique dresses Goth now, Quinn?”
“I think they do”, I said, trying to catch up.

“Blackwood Farm”, Anne Rice


^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ ...


Queridíssimo Lestat, ser gótico não está na roupa que se veste. É certo que o visual é muito importante para nós góticos - e não preciso de lhe explicar porque sei que nos compreende perfeitamente - mas não há nada mais blasfemo que uma criatura insegura e solitária começar a vestir-se “assim” para se sentir integrada durante os anos de caça à queca.
Bem sei, Monsieur de Lioncourt, que a sua caça é outra. Quem sou eu para criticar as necessidades alheias?... E compreendo que só no meio de nós a sua estranheza de aparência passe despercebida aos simples mortais, e que isso lhe deva ser muito conveniente.
Mas não esqueça, senhor Lestat, que os verdadeiros góticos - um pouco à semelhança da sua “gente” - também se reconhecem uns aos outros à distância. Parece que estão sempre distraídos, mas garanto-lhe que estão a controlar tudo e mais alguma coisa.
Não serão as rendas e os botões de punho que o salvarão, Lestat de Lioncourt. Está avisado: pode parecer igual a nós para os outros todos, mas nós sabemos quem é quem. Não passará despercebido. O verdadeiro gótico sabe o que é pó de arroz branco e o que é pele. Tenha cuidado. Use o pó de arroz. Não custa nada.
Mas não desista já! Apesar da nossa inegável frieza para com estranhos, nunca o movimento gótico deixou de acolher um irmão espiritual. O caminho é árduo e implica duras provas... Anos e anos de música e noite, de noite e música. Muito dinheiro gasto em roupinha. Muitos acessórios, muitos sapatos, muito verniz. Muitas horas à frente do espelho a pintar a cara e a arranjar o cabelo. Mas tempo é o que não lhe falta, deveras? Insista. Não desista. Uma destas noites alguém falará consigo. Se tiver sorte, talvez até um verdadeiro gótico lhe dirija mais do que três palavras e dois olhares furtivos.
Não espere que lá por ser um verdadeiro vampiro os góticos o acolham de braços abertos. Era só o que faltava. No movimento gótico são todos iguais: brancos e pretos, homens e mulheres, bruxas e vampiros. São muitos anos a bater à porta para entrar. É muito eyeliner.
E lembre-se, senhor “eu sou o vampiro Lestat”, gótico a sério é o Corvo porque está morto. Gótico a sério é o seu amigo Louis, que nunca disse que é gótico e se vai chorando da vida entre duas dentadas.
O tempo só recompensa os perseverantes. E a recompensa também não é nada de jeito. Por isso é que a maioria dos candidatos a gótico acaba por ir parar às Docas.
A recompensa é apenas uma noite atrás da outra. Poucos são os chamados e menos ainda os escolhidos. Só se sente em casa quem está em casa.
Se é a sua casa, entre à vontade e sente-se onde quiser.
O Gótico abraça quem abraça o Gótico.

Publicado por _gotika_ em 12:32 AM | Comentários: (16)

sábado, 20 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 05, 2004


“Blood and Gold” - a história de Marius

Venus and Mars
Painter: Sandro Botticelli
(1445-1510)


“Blood and Gold” (“Sangue e Ouro”, Anne Rice) é a história do vampiro Marius, um ser tão antigo quanto Cristo, ou mais ainda.
O livro percorre os últimos 2000 anos pela perspectiva de Marius. É uma leitura extremamente excitante para quem gosta de História (quem não gosta pode sempre passar à frente...). E por ser a história de um dos patriarcas dos vampiros, um Filho dos Milénios (“Child of the Millenia” no original), “Blood and Gold” pode servir também como um excelente resumo das Vampire Chronicles no seu todo, uma espécie de sumário das origens da maioria das personagens que a seu tempo se vão cruzando na vida de Marius e compondo a inesperada teia de relações que percorre a saga.
Disse eu aqui, quando comentei “Merrick”: “É o melhor livro de Anne Rice que já li”. OK, risquem. Actualizem. As mesmas palavras vão agora para “Blood and Gold”. É mesmo verdade que os escritores envelhecem como o vinho do Porto. Gostei de ter demorado a ler “Blood and Gold”, gostei de ser obrigada a parar para reflectir, gostei da profundidade dos diálogos e das emoções das personagens.
E ainda não li nada de Anne Rice escrito depois do 11 de Setembro... A curiosidade mata-me.


A data precisa do nascimento de Marius não nos é revelada, apenas que nasceu no reinado do Imperador Augusto - que durou nada mais nada menos do que 44 anos (de 31 Antes de Cristo a 14 Depois de Cristo).
Por esta altura nasceu Marius, um rico Senador da Roma Imperial, um intelectual do seu tempo, um estudioso que se dedicava às viagens e à escrita de volumes e volumes de História. Não havia em Marius a mais pequena sombra de escuridão ou perversidade. Nada poderia fazer supor que fosse subitamente arrancado à vida para uma existência que lhe era completamente alheia só porque falava línguas, conhecia o Egipto e era elegível para a missão de resgatar os primeiros pais de todos os vampiros.
A sua existência tornou-se no balanço entre o sangue que tirava e o ouro que dava de volta (o título é eloquente), numa tentativa constante de preservar os inocentes e satisfazer as suas necessidades assassinas apenas através do sacrifício do Malfeitor. Como o próprio Marius reconhece, alimentar-se apenas daqueles que julga piores que ele próprio é a sua desculpa para manter uma consciência limpa.
Apesar desta tragédia, desta injustiça que lhe foi imposta contra a sua vontade, deste pesadelo que se abateu eternamente sobre ele, Marius nunca se revolta contra a existência, nunca desespera, nunca perde o gosto pela vida. Nem depois dos golpes mais dolorosos dos seus inimigos, nem da perda sucessiva de todos os que ama, nem da mais completa solidão.
Admiro Marius e as pessoas como Marius, que nunca se apaixonam pela morte por mais terrível que se torne a vida. Onde poderá Marius ter ido buscar tanta força, tanta resistência? Ao incorruptível sentido de Justiça, à sua inabalável confiança no progresso da Humanidade, à inalienável Bondade do seu carácter?
Como é que Marius nunca enlouquece, nem nos momentos mais negros? Qual é o segredo desse equilíbrio? Nas antípodas, temos um Louis depressivo para quem a crueldade da natureza é por si só motivo de sofrimento insuportável. Pelo meio, temos um Lestat maníaco-depressivo que, como a doença indica, oscila entre períodos de profunda depressão e de perigosa euforia. Qual é, então, o segredo de Marius?


Pensamento do dia: quem são os teus deuses?
Marius começa a contar a sua história quando encontra um outro vampiro antigo, o viking Thorne, que tinha estado adormecido e afastado do avanço da civilização durante séculos e séculos.
“Quais eram os teus deuses?”, pergunta-lhe Thorne.

---------- Imaginem agora o mesmo diálogo daqui por uns mil, dois mil anos. A mesma pergunta da mesma criatura viking. A resposta de um ser do século XX deste lado do mundo: “Não existem deuses mas um só Deus, Absoluto, Único, e o Seu filho Jesus Cristo”. Pergunta alguém do ano 3000/4000: “O que é deus?” ------------


The evil doer, the little drink e a consciência pesada
Quando se é um vampiro e se procura o que Marius chama uma “paz com o mundo”, uma consciência tranquila, é preciso elaborar um esquema de moralidade em que o sacrifício da vida humana seja justificado. Para Marius, isto significava dar caça apenas ao Malfeitor (o famoso “evil doer” no original). Thorne preferia a “pequena bebida” (“little drink”), pousando sobre mortais como um colibri de flor em flor mas sem lhes tirar a vida. Marius e Thorne vão juntos a um night club - penso que é um night club porque é um local onde os casais dançam agarrados - e alimentam-se dos presentes sem lhes causar a morte. Mas esta proeza requer já uma perícia de séculos. No mínimo, requer que o vampiro se disponha a esse trabalho. E requer o tal sistema moral que, por exemplo, Louis subverte completamente.
Para Louis, exactamente ao contrário de Marius, o imoral é escolher as vítimas, é julgar este ou aquele como “pior que eu”, é decidir quem vive ou quem morre. Por isso a própria Rainha dos Malditos, Akasha, o acusou de ser o mais predatório de todos os vampiros por não fazer distinção entre velhos e crianças, homens e mulheres, bons e maus. Louis simplesmente tomava para si o primeiro que se atravessasse no seu caminho. Mas não todos. Só os estranhos. Mesmo na sua recusa de julgar, era incapaz de suportar na consciência a morte de alguém que o tinha como amigo.
De Louis, diz Lestat em “The Tale of the Body Thief”:
“For a long moment, I spied upon him. I loved to do this. Often I followed him went he went hunting, simply to watch him feed. The modern world doesn’t mean anything to Louis. He walks the streets like a phantom, soundlessly, drawn slowly to those who welcome death, or seem to welcome it. (I’m not sure people really ever welcome death.) And when he feeds, it is painless and delicate and swift. He must take life when he feeds. He does not know how to spare the victim. He was never strong enough for the “little drink” which carries me through so many nights; or did before I became the ravenous god.”

-------- À parte, um poema de amor:
(Lestat)
His face, quite thin and finely drawn by nature, an exquisitely delicate face for all its obvious strength, was gorgeously flushed. He had hunted early, I’d missed it. I was for one second completely crushed.
Nevertheless it was tantalizing to see him so enlivened by the low throb of human blood. I could smell the blood too, which gave a curious dimension to being near him. His beauty has always maddened me. I think I idealize him in my mind when I’m not with him; but then when I see again I’m overcome.
Of course it was his beauty which drew me to him, in my first nights here in Louisiana, when it was a savage, lawless colony, and he was a reckless, drunken fool, gambling and picking fights in taverns, and doing what he could to bring about his own death. Well, he got what he thought he wanted, more or less.
-------- Peço desculpa pela interrupção. O artigo segue dentro de momentos. Continuo a recusar-me a traduzir “The Tale of the Body Thief”. Gosto demasiado do original.

Lestat, como o próprio diz, não acredita que alguém realmente deseje a morte. As suas vítimas são delicadamente escolhidas por serem perversas... ou por serem boas. Ou por outra amoral razão qualquer que se prende mais com uma escolha estética ou um puro capricho do momento. Lestat é sempre imprevisível, até quando mata.
Armand, por outro lado, e ao contrário do que pensa, sempre conseguiu ensinar a Louis o seu método de procurar levar a morte aos que desejam morrer - o que não deixa de ser uma infernal doçura. Em “Merrick”, Louis chega mesmo a escutar as preces dos mortais e atendê-las. Por isso lhe chamam também “Merciful Death” (morte misericordiosa).
David, mais poderoso embora mais novo no Sangue, entretêm-se com a lendária “little drink”.

------- Tenho para mim, apesar de toda a minha hipócrita moralidade cristã, que se fosse um vampiro acabava por fazer como Lestat: a vitória do capricho. Qual moralidade, qual Malfeitor. Nada de caçar ratos, como Louis fazia no princípio, antes de conseguir suportar a morte humana. Nada de me armar em Anjo Exterminador do Juízo Final, como Marius. Mas pouparia as crianças. As crianças merecem uma hipótese de me provar que estou errada, que o ser humano não é pior do que os animais. --------


Os segredos de Marius
Infelizmente para mim, Anne Rice prefere descrever as antigas civilizações de esplendor, progresso e espalhafato. Roma Antiga, Bizâncio, Egipto, o Renascimento, o Barroco. Da negra Idade Média, ou até do negro século XX durante a guerra, Anne Rice não gosta de falar. É pena.
E assim Marius salta toda a sua existência na Idade Média, queixando-se da Peste Negra e das mentalidades atrasadas desse tempo, até da arte medieval - sem deixar de mencionar que o Gótico era algo de novo e fascinante - até chegar ao Renascimento. Os artistas voltaram-se para o seu tempo, o tempo de Marius, em busca de inspiração. As deusas e deuses da Grécia e Roma antigas voltaram a embelezar os palácios da Europa. Era apenas natural que Marius ficasse irremediavelmente perdido de amores pela arte da época. E por Boticelli. De facto, Boticelli entra na história, conversa com Marius, e é para Boticelli que Marius inventa o sobrenome “de Romanus”. Sandro para aqui, Sandro para ali, foi por muito pouco que Marius, apaixonado pelo homem e pela sua arte, não transformou Boticelli num vampiro. E hoje teríamos uma Vénus a nascer das ondas com dentinhos de vampira - o que não deixava de ser muito mais interessante do que a monotonia do quadro original. (Mas aqui perdoem-me a blasfémia de uma mentalidade do século XX!...)
Marius volta a entrar no mundo dos mortais ao comprar um palácio em Veneza onde abriga jovens rapazes aprendizes da pintura e das outras artes, e onde conhece Amadeo (Armand) e Bianca.
Marius, Amadeo e Bianca são protagonistas das cenas mais quentes de todas as Vampire Chronicles. Há até um episódio a três, quando os dois homens já são vampiros e Bianca é apenas mortal, que... Não. Este é um blog decente. E por ser um blog depressivo, passemos para o episódio em que os vampiros satânicos de Roma destroem a casa e a vida de Marius por o considerarem um herege sem Deus - será uma piada ao Vaticano? Não é o coven de Roma que obriga os seus vampiros a viverem uma vida de eterna penitência e sacrifício? Não é o coven de Roma que canta incessantemente o Dies Irae? Não é o coven de Roma que corrompe a fé do inocente Amadeo e a converte no fanatismo do monstro Armand?

(Marius, no Renascimento)
“De facto, eu estava a desfruir de um Tempo Perfeito. Perguntava-me se para cada imortal haveria um Tempo Perfeito. Perguntava-me se corresponderia ao auge da vida dos mortais - aqueles anos quando se é mais forte e se vê as coisas com a maior clareza, aqueles anos em que uma pessoa pode mais fielmente confiar nos outros, e procurar alcançar uma felicidade perfeita para si próprio.
Boticelli, Bianca, Amadeo - estes eram os amores do meu Tempo Perfeito.”

------- Melhor do que viver um Tempo Perfeito é ter a consciência de que ele está a acontecer, diria eu. Nada mais triste do que só dar por ele quando já passou. --------

Marius seria muito provavelmente um grande homem de Estado ou das Artes ou do Saber se não tivesse sido subitamente levado para as trevas. Mesmo do Outro Lado, continua a ser respeitado como uma espécie de Senador do mundo dos vampiros, um sábio, o antigo guardião dos Primeiros Pais, um ser digno de confiança pela sua noção de Honra e Justiça.
Mas não perfeito. Conhecido pelas suas fúrias memoráveis, por ser demasiado controlador e demasiado orgulhoso, Marius perde todos os que ama exactamente porque a sua possessividade acaba por asfixiá-los.
Não se pode ser bom a tudo.
Marius termina sozinho, no fim do século XX, tirando as ocasionais e breves visitas da sua eterna Pandora e do seu anjo de Boticelli, Armand (Amadeo). Mas nunca mais juntos. Talvez a relação entre eles já seja tão íntima que não permite a harmonia. É sabido que a proximidade arruina o amor mais depressa do que a distância...
Na sua casa, Marius recolheu o vampiro Daniel, o mesmo rapaz da “Entrevista” a Louis, o mesmo que Armand trouxe para os vampiros, porque Daniel está pura e simplesmente louco e não pode ficar sozinho - diz-se que foi do alcoolismo da sua vida mortal. Mais uma vez, Marius é o bom samaritano, o santo, o anfitrião. O eterno solitário.
Tal como as pessoas não conseguem compreender a melancolia de Louis, eu não percebo o amor que Marius tem pela vida. Nunca desejou a morte? Porquê? Qual é o seu segredo?
O segredo de Marius está-me vedado.

Publicado por _gotika_ em 09:58 PM | Comentários: (46)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Gotika: arquivos Maio 2004

maio 14, 2004

“Merrick”

De Anne Rice.


“Merrick” é uma história de amor. Capaz de agradar mais às meninas do que aos meninos. Não me agrada constatar o facto mas a alma feminina tem uma maior inclinação para o romantismo. Penso que isto se deve à educação - os homens não choram, os homens não se emocionam... - e já era altura de mudar as coisas. Homens, revoltem-se!

Antes de passar à história, uma breve descrição dos personagens que a movem:

Lestat de Lioncourt
Bem, Lestat está presente mas não interfere. Desde a sua viagem com Memnoch ao Céu e ao Inferno, o Brat Prince (Príncipe Fedelho), como Marius lhe chama, ficou em estado de choque. Primeiro foi tomado pela loucura e o medo. Depois deixou-se cair num torpor, numa imobilidade parecida com o sono, em que se fechou para o mundo exterior. Não comunica, não responde, não se alimenta. Está noutro mundo. Por vezes parece a David que o espírito de Lestat já não está sequer no corpo do seu amigo. Mas adivinha-se que muito se passa naquela cabeça. É óbvio que Lestat precisa desse isolamento absoluto para conseguir incorporar todas as verdades de que tomou conhecimento durante a sua grande experiência mística. Como é possível voltar a existir da mesma maneira? Que espécie de criatura sairá desse profundo sono?

David Talbot
David é um vampiro recente com uma história extraordinária. Em vida, David tinha já 74 anos e uma doença fatal quando o seu envolvimento com Lestat, de quem se tornou amigo, o levou a enfrentar o Ladrão de Corpos. Foi este ser que invadiu o corpo do velho David e o obrigou a “mudar-se” para o corpo de um jovem cuja alma já passara para o “outro lado”. A história é interessantíssima. Mas o que interessa para agora é que Lestat não se contentou por ter o seu amigo humano num corpo rejuvenescido; o medo de o perder para sempre leva-o a transformar David num vampiro, mesmo contra a vontade do próprio. (“The Tale of the Body Thief”).
A princípio, David não aceita muito bem a transformação mas acaba por se apegar irremediavelmente à sua imortalidade terrena. Com crises existenciais frequentes. Aliás, todos os vampiros, por motivos vários, ponderam pôr fim à vida a certa altura da sua existência. Os outros que lhes acodem nesse momento acabam eles próprios por cair no mesmo desespero mais tarde ou mais cedo.
David está portanto dentro de um corpo jovem mas a sua alma é a do académico versado no sobrenatural, o cavalheiro inglês de invejável idade e sabedoria. Os outros vampiros respeitam-no por isso. David é de todos o mais sensato de uma forma que os outros não poderiam nunca ter sido porque nunca viveram em anos mortais o suficiente para terem semelhante visão do mundo. Tanto Louis como Lestat, os companheiros de David, abandonaram a vida muito jovens para conhecerem uma resignação que só se aprende com a idade humana.

Louis de Pointe du Lac
Regressa o vampiro da “Entrevista”, cada vez mais deprimido, cada vez mais atormentado. Longe estão os anos de raiva. Agora até é bastante amigo de Lestat. O tempo acabou por trazer o perdão e a conclusão de que havia mais para ganhar na amizade do que no ódio. Mas agora Louis está desesperado. Não há razão para continuar. O suicídio torna-se uma obsessão constante.

Merrick Mayfair
Ao contrário do que o nome pode dar a entender, Merrick é uma mulher. O nome da personagem foi-lhe posto por falantes de francês de New Orlans, logo, pronunciava-se Merrique antes de ser americanizado.
O facto de a história girar em torno de uma mulher - até que enfim! - pode explicar o seu carácter romântico (?).
Não vou ao ponto de dizer que as mulheres são de Vénus e os homens são de Marte - acredito que são ambos da Terra - mas que de facto há diferenças, há!
É como as bruxas, que elas existem, existem. E Merrick é uma bruxa, uma feiticeira poderosa e conhecedora do vodu e do camdomblé brasileiro. Desde o começo que gostei desta personagem, uma mulher adulta e solitária que bebe. E não é sangue. É mesmo rum. Sem coca-cola. Da garrafa, para ser mais rápido. E quando bebe - o que não é sempre - faz questão de não parar. “Até cair”.
Merrick entra na história por ter sido amiga (e amante) de David quando este era humano, embora os separasse uma diferença de idades de 50 anos. Aliás, foi por causa dessa diferença de idades que David nunca aceitou a relação e preferiu recolher-se à sua condição de velho e doente.
Merrick, a feiticeira, também tem os seus planos. Conhece os vampiros e quer tornar-se uma deles. É ela quem os manobra - embora eles não saibam - para essa conclusão.

Pergunto-me se as crónicas não seriam mais interessantes se existissem mais personagens humanos entre os vampiros. Por exemplo, David teria dado uma personagem humana extremamente interessante. Merrick também. Mas no fundo, como nós sabemos, os vampiros de Anne Rice são uma metáfora para os seres humanos, os “desperados”, os verdadeiros imortais perdidos na escuridão do destino.
E como tal, esta é uma história de emoções humanas, de paixões e de amizades humanas.

Amor, morte e fantasmas
Desde que uma investigadora do paranormal se confrontou com o fantasma de Cláudia que Louis questiona se o espírito da criança-vampira está em paz, ou se sofre, e se há algo que ele possa fazer para a ajudar. É por isso que David, a pedido de Louis, volta a encontrar Merrick, a quem pede que convoque o fantasma de Claúdia e a encaminhe para a luz se esta estiver perdida.
A princípio, era só isso.
De resto, há muito tempo que Anne Rice não se debruçava tanto sobre a personagem de Louis, e as notícias de Louis não são agradáveis. Considerado o mais fraco de todos os vampiros, muitos dos antigos quiseram oferecer-lhe o sangue deles, mais poderoso, o sangue que permitiria a Louis tornar-se menos humano mas, ao mesmo tempo, prescindir da morte das suas vítimas que tanto o atormenta, vivendo do que os vampiros chamam “a pequena bebida”. É que, paradoxalmente, apesar de ser o mais humano e o mais sensível de todos os vampiros, Louis não consegue poupar as suas vítimas; precisa demasiado do seu sangue. O sangue e o poder dos mais velhos libertá-lo-iam da sua maldição (“cada noite que eu caminhe na terra alguém tem de morrer”, já dizia na “Entrevista”), mas esse poder tem uma contrapartida. Depois de um certo patamar, a luz do sol já não chega para pôr fim à vida. Se Louis quiser morrer, terá que entrar numa pira de fogo. E hesitante entre a vida e a morte, Louis preferiu, durante séculos, ter a hipótese da morte “fácil” ao nascer do sol. Tal como um suicida que guarda centenas de comprimidos para o momento em que se decidir, Louis preza essa pequena vantagem, embora o que mais o atormente na sua existência de vampiro seja, sem dúvida nenhuma, a morte das suas vítimas.
Em todo um capítulo tão bom que o poderia transcrever, Louis explica a David que deseja a morte. Ele não vê o mundo como o Jardim Selvagem de Lestat. A única coisa que o faria continuar a desejar viver seria “uma consciência tranquila”, mas o próprio Louis confessa: “Eu não sei o que quero”.
Perante o desespero de Louis, David chega à conclusão de que ele próprio, afinal, não deseja morrer e pede ao amigo que não pondere essa hipótese. Mas não é sempre assim quando se trata dos “outros”? E como poderia David arranjar argumentos para convencer o amigo a ficar, se no fundo, bem no fundo, ele também não os tem?
Antes de tentar deixar este mundo (desculpem estragar a surpresa, mas ele tenta...) Louis ainda se recorda do que significa estar vivo. Por Merrick.

Esta é a história da paixão de David e Merrick. E de Merrick e Louis. David não gostou mesmo nada de perder a sua amante mortal para o amor de outro homem (ou vampiro, whatever). Mas aconteceu perante os seus olhos e a sua alma despeitada. Merrick e Louis apaixonam-se à sua frente, sem que nenhum dos três tivesse culpa ou pudesse impedir. E Merrick, a feiticeira, aceita chamar o fantasma de Claudia para Louis.
Diz Merrick que os espíritos mentem quando são chamados, mas ouvir Cláudia maldizê-lo está muito longe do alívio que Louis esperava: “Morre por mim, meu amado. Penso que vou ter prazer nisso. Pensavas que eu não estava a sofrer, Pai? Esperavas uma preciosa consolação dos meus lábios? Acreditavas que Deus ta daria, não é? Que a merecias depois de todos os teus anos de penitência. Vem para mim. Vem, fá-lo com grande dor, como um sacrifício. Nunca me encontrarás. Vem.”
Meticulosamente, Louis cumpre o ritual dos suicidas, despedindo-se de Lestat, deixando um bilhete de explicação, distribuindo os seus pertences, e por fim enfrenta a morte. Não há nada que ninguém possa fazer para o deter. E quem tem o direito de impedir alguém de partir só porque a companhia dessa pessoa é agradável? Ao tentar travar o suicídio de um amigo, não haverá nisso uma ponta de egoísmo? E ao tentar salvar a vida de um estranho, não será para nos convencermos a nós próprios que a nossa própria vida vale a pena?

E fantasmas...
(David)
“Essa constante na minha vida é que, não importa o que dissesse em contrário, sempre suspeitei que não havia nada para lá desta existência terrena.
É claro que aqui e ali ‘acreditei’ alegremente no contrário. Convenci-me a mim próprio com aparentes milagres - ventos fantasmagóricos e o correr do sangue vampírico. Mas em última análise, eu temia que não houvesse nada, nada para além da ‘escuridão imensa’ que este fantasma, este fantasma cheio de maldade e raiva, tinha descrito.
Sim, estou a dizer que acredito que podemos ficar a pairar. Claro. Permanecer depois da morte por algum tempo não está fora do alcance de uma futura explicação científica - uma alma de substância definível separada da carne e presa nalgum campo de energia que envolve o planeta. Não é impossível de imaginar, não, de todo. Mas não significa a imortalidade. Não significa um Paraíso ou um Inferno. Não significa justiça ou retribuição. Não significa êxtase ou dor interminável. (...)
Se eu morrer, pode não haver nada. Se eu morrer, pode haver um pairar. Se eu morrer, posso até nunca chegar a saber o que foi feito da minha alma. As luzes à minha volta - o calor de que falou tão tentadoramente a criança fantasma - o calor simplesmente desapareceria.”

Este não será, para os estranhos à saga, o melhor exemplo das crónicas dos vampiros até agora, principalmente depois das interrogações existenciais de “Memnoch”, mas a nível das qualidades literárias da escritora, que melhoram a cada obra como seria de esperar, é o melhor livro de Anne Rice que já li.
Facto a que não é alheio o desespero de Louis e a sua obsessão com o próprio fim. Louis não é feliz, não o era enquanto humano e não o será nunca. Alguns não nasceram para a felicidade. Essa verdade perturbadora para a maioria a mim encanta-me.
E depois a escrita abandona as fastidiosas descrições, a perda de tempo com os detalhes supérfluos, e mergulha directamente no mar de emoções que nos interessa descobrir nos outros para melhor as reconhecermos em nós. Os personagens desabrocham e amadurecem. Reconhece-se a felicidade depois do desespero, ou a felicidade que segue forçosamente o desespero, quando não se espera ganhar mais nada mas também já não há nada mais a perder. Por outras palavras, quando a vida terrena se aproxima do fim e a alma se deleita no prazer dos últimos dias para não perder esse tempo com distracções inúteis.
Por fim, os vampiros acabam por reforçar os laços de amizade. Demorou-lhes séculos. Nós, que não temos séculos, não poderemos abreviar a coisa, ou teremos forçosamente de ficar pelo meio?...

Notas sobre Anne Rice
Na capa de “Blood and Gold”, a crónica seguinte:

“A wonderfully Gothic writer whose talents far outshine those of Stephen King and others in the field” Boston Globe

Não sei se este comentário compara o estilo literário dos dois autores. Só pode ser porque, a nível da história contada, não há comparação possível. Anne Rice comove-nos. Stephen King aterroriza-nos.

“Anne Rice offers more than just a story: she creates myth” Washington Post

Nenhum elogio é maior do que este. Poucos autores se podem gabar do mesmo. Mas o mito está criado. Lestat e Louis são a versão do século XX de Drácula e Mina. Imortais.

Publicado por _gotika_ em 04:40 AM | Comentários: (18)