Ou não fosse Camilo, esta é a história de um amor de perdição.
Mas antes do conto existe um prefácio, muito irónico e muito político, cheio de piadas às ideias da época, que hoje teria antes lugar num blog como este. Mas não havia internet e estes textos satíricos e críticos só tinham lugar na literatura. Aqui, Camilo goza com aqueles que julgavam o caminho-de-ferro o progresso que de imediato elevaria o desenvolvimento do país. “O cavador, na hora da sesta, lerá, na vinha, de barriga ao ar, o Times, e Benjamin Constant.” Muitas destas piadas estão datadas e perderam-se para sempre. Mas achei curioso como é que quase dois séculos depois ainda se aponta o TGV e a alta velocidade como imprescindíveis para o desenvolvimento do país. Como diria o outro, quanto mais as coisas mudam mais ficam na mesma. Pelo menos hoje temos algo que não havia no tempo de Camilo, uma educação que chega efectivamente a todos, mas que ainda não basta para desfazer esse grande cancro que sempre afligiu o país e não dá sinais de diminuir, antes pelo contrário: a desigualdade. E uma desigualdade ainda maior no interior, para lá do Marão, onde se passa esta história. De certa forma, apesar da sátira datada, o prefácio continua actual.
Mas vamos lá ao conto. A história é curta e não há muito a dizer. Um homem já avançado em idade conta a um amigo o motivo de ter uma caveira em sua casa, dentro de uma redoma. E tudo começa num amor de perdição. Neste caso, em vários. Quando era novo, este homem amou loucamente uma mulher que o “atraiçoou”. Marta, de seu nome, amou loucamente a outro, Pedro de Mesquita. Mas um filho segundo de uma família nobre, Heitor Correia, queria cortejá-la também. Os dois, Pedro de Mesquita e Heitor Correia, acabam mesmo por pegar-se em duelo numa Quinta-Feira Santa, à saída da igreja, onde Pedro de Mesquita mata o rival com a sua espada de forma limpa e nobre (segundo as regras destas coisas). Mas o irmão do nobre derrotado procura Pedro de Mesquita logo de seguida e mata-o cobardemente a tiro de bacamarte. Marta morre de desgosto em questão de dias. (No Romantismo, as heroínas morriam assim, de desgosto.) Mas o homem que a amava sem ser correspondido nunca deixou de a amar. Quando chegou a altura de levantar-lhe as ossadas, subornou o coveiro para o deixar ficar com a caveira. Até à velhice, continuou a sentar-se a adorar a caveira da mulher que amava, ora imaginando que esta o perdoava ou que lhe tinha rancor.
É a presença desta caveira que pode qualificar o conto como gótico, mas na minha opinião apenas marginalmente. Temos aqui um homem desconsolado, incapaz de superar uma paixão de juventude, com uma fixação mórbida. Não há elementos sobrenaturais e o próprio admite que os seus delírios não passam de imaginação. Não existe uma consequência trágica desta fixação, como, por exemplo, em Edgar Allan Poe. Apesar da excentricidade, o homem segue com a sua vida, pacatamente, até ser velhinho. Não me parece o bastante para ser um conto gótico. Um conto ultra-romântico sobre alguém que não consegue ultrapassar uma paixão não correspondida, isso sim. Mas eu espero mais qualquer coisinha do “rótulo” gótico.
O ponto alto do conto é o duelo e a vingança cobarde do irmão do nobre derrotado. Este outro nobre nunca é punido, pelo contrário, recebe um perdão real por ser fidalgo. Se calhar era disto que Camilo queria falar.
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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute –
Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.
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