quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Spartacus

 "Spartacus", protagonizado por Liam McIntyre


Este não seria, em princípio, o género de série que eu julgaria que me interessasse. Evitei ver, durante muito tempo, devido a este preconceito que veio no “embrulho” de apresentação. Mais tarde, lendo críticas de outros fãs em fóruns da série, constatei que esperavam o mesmo que eu: só que o que eles queriam, eu abominaria! “Spartacus” assenta, pelo menos inicialmente, numa tradição de séries de acção (porrada, guerra, karaté…) de enredo muito básico. Alguns fãs, levados em erro, queixavam-se porque achavam o enredo muito complicado.

[Um pequeno aparte para que se compreenda porque foram levados em erro. Tornou-se quase um cliché dos filmes de acção um certo tipo de enredo: um gajo duro, veterano de guerra ou praticante de artes marciais, mas decente e leal e boa pessoa, retira-se do combate para viver uma existência pacífica em família. Bom marido, pai extremoso, disposto a viver em paz e sossego. Até que um malvado qualquer, inimigo, criminoso, agência governamental, etc, lhe mata a mulher e a prole. Isto são os primeiros 10 minutos do filme e a justificação para a carnificina que se segue. O resto é o gajo a vingar-se, a partir aquela merda toda, enfim, o “kill them all”. E este é, em linhas gerais, o primeiro episódio de “Spartacus”. Incluindo o “kill them all”.]

O enredo nunca é complicado, mas as séries de acção também já não são o que eram. Muita coisa mudou desde os tempos de “Kung Fu”, e o público feminino saiu nitidamente beneficiado (actores mais jeitosos, introdução de cenas românticas, maior profundidade psicológica das personagens).  Recentemente, por motivos de audiência, esta abordagem “musculada” estendeu-se também às séries históricas (ou baseadas em factos históricos em que nem sempre a veracidade histórica é respeitada). Tenho lido opiniões que identificam este “Spartacus” como descendente directo de “Roma”, e não discordo, embora seja conveniente recordar que a tradição de séries históricas de reconstrução muito realista e chocante data de mais atrás, por exemplo com “Eu, Cláudio” (de 1976). Em “Roma”, novos limites foram ultrapassados, a câmara deixou de ter medo de mostrar sangue (e sexo quase explícito), e resultou extraordinariamente.  Seguiram-se outras séries que aproveitam o filão da crueldade e barbarismo de outros tempos, como os “Os Tudors”, e a partir daí parece que existe uma competição para ver quem consegue fazer a série mais sangrenta, mais sádica, mais chocante. “Spartacus” inclui-se nesta linha, com requintes de crueldade dignos de filme de terror. 

Não há outra maneira de o dizer, a série perturbou-me. Todas as três temporadas (mais a série intercalar, possivelmente a mais sádica de todas). Não pelo sangue, pelas tripas, pelos miolos. Sendo uma história de gladiadores, e de guerra, não é aconselhável a quem se incomoda com estas coisas. Devo mesmo dizer que os realizadores trataram com elegância as cenas mais desagradáveis (aproveitando a imagética BD de “300”, o filme, em que o sangue é apresentado, por exemplo, a encher todo o écran como encheria uma “vinheta” de banda desenhada), ao contrário de uns “Tudors” em que os pormenores mais perturbadores das execuções são mostrados com um sádico realismo.
O que me perturba, em Spartacus, é a desumanidade com que os escravos são tratados. Revira o estômago aos espectadores modernos, e os realizadores sabem que sim. Pior ainda: quando os romanos começam a crucificar pessoas os cristãos começam a sentir-se incomodados, muito incomodados. Os realizadores também sabem.
Não é por acaso que o velhinho filme “Spartacus”, com Kirk Douglas, costumava ser exibido na Páscoa. A derradeira cena, na Via Ápia, fala por si. E acaba mal, muito mal. Existe, na revolta de Spartacus, uma primeira centelha de valores muito caros aos cristãos. Num mundo de barbarismo, a bondade. Num mundo de escravidão, a libertação.
Mas quem foi o verdadeiro Spartacus? É possível que nunca venhamos a saber, apenas podemos especular. Só sabemos dele o que os romanos contam. É preciso não esquecer que a História, como tentativa de registo científico de relatos de várias fontes, é uma modernidade do século XIX. Em tempos romanos os “historiadores” faziam de propósito por exagerar a ameaça do adversário porque quanto mais temível este fosse maior era a glória da vitória de Roma. Assim tão simples. Aníbal, tudo indica, foi exagerado. Spartacus poderá ter sido também. (Curiosamente, de Jesus, o que provocou a maior de todas as revoluções, existe apenas, que se saiba, uma pequena menção histórica. Jesus, mero pregador judeu sem importância, não era percebido pelos romanos como uma ameaça.) Poderia ser Spartacus, o verdadeiro, minimamente idealista como o Spartacus do filme e da série?... Sempre existiram iluminados, génios à frente do seu tempo, algumas vezes admirados outras vezes esmagados. Não discuto isto. Seria o verdadeiro Spartacus um deles? Ou um rebelde, sem outra causa excepto resistir aos romanos dentro do império como os bárbaros resistiam fora (e ganharam, no fim), atacando e roubando e fazendo-lhes a vida negra? Em suma, um terrorista? Menos nobre ainda, algo entre o ladrão e um cacique de guerrilha em busca de glória e poder? Não sabemos. A série apresenta uma explicação plausível para muitas das  movimentações do verdadeiro Spartacus, mas haveria outras.
A minha visão desiludida do mundo não me ajuda muito a acreditar em heróis. E menos consigo acreditar que o verdadeiro Spartacus, como o da série, conceba já, naqueles tempos, valores de liberdade, fraternidade, igualdade. É muito cedo, demasiado cedo. Para que a humanidade lá chegasse foi preciso cortar muitas cabeças. Noutras arenas.

E mesmo assim, neste século XXI do 3º milénio, liberdade temos menos do que já tivemos. Fraternidade (porque “fraternidade” é pedir demais) chama-se agora solidariedade e caminha a passos largos para a caridadezinha. Quanto à igualdade, ui!, isso nunca existiu excepto na utopia da palavra. Nunca existiu, não existe, e nunca existirá.

Não acredito, pois, como dizia, que o verdadeiro Spartacus tivesse a noção dos valores que encarna na série. Contudo, posso estar enganada, porque nem um século depois um outro Fulano, o que dizia “quem vive pela espada morre pela espada”, inventou a civilização ocidental como a conhecemos hoje. Não foi preciso derrotar Roma, foi Roma que, em desespero de causa, se agarrou com unhas e dentes à religião dos escravos, a verdadeira revolta civilizacional. Spartacus, qualquer um deles, não ia gostar disto, mas Roma haveria de mandar no mundo durante mais dezanove séculos! Não a mesma Roma, mas Roma à mesma.
O corpo de Spartacus nunca foi encontrado. O corpo de Cristo, se calhar até menos procurado por ser julgado de menor importância, também não. Terá esta coincidência, em pleno século do cristianismo, alimentado a lenda de Spartacus?


Heróis e zombies
“Spartacus” foi um êxito de audiência. Como “The Walking Dead”. É interessante  reflectir na altura em que estas coisas são feitas, como se alimentadas pelo espírito do tempo que paira no ar. Zombies e escravos. Escravos zombificados e zombies escravizados. Sem um Spartacus que nos livre disto. Mas merecemos? Diz a lenda que quando os rebeldes foram capturados pelos romanos todos eles se acusaram: “Eu sou Spartacus!”, de modo a poupar o verdadeiro à morte ou a um castigo exemplar. Estes, diz a lenda, não eram zombies. Lutavam, e sacrificavam-se, não deambulavam pelo centro comercial a encher a barriga. Cada povo tem o Spartacus que merece, ou a falta dele.
Spartacus morreu, mas o espírito de Spartacus não morreu. Renasceu, em toda a sua valentia, durante a Resistência. E pode renascer ainda, quando os escravos perceberem que são mais do que os dominus e dominas do mundo. Era de crer que por esta altura já tivessem percebido. Como não percebem, conclui-se que são zombies. Mexem, mas naquele cérebro já está tudo apagado.




...



 Andy Whitfield, primeiro protagonista de "Spartacus"


R.I.P.
Lamento a morte de Andy Whitman (protagonista da primeira temporada), aos 37 anos. Esta morte, precoce, carregou de luto uma ficção já de si carregada de morte. A Fox está a re-exibir a primeira temporada.





3 comentários:

Fashion Faux Pas disse...

Hell yeah. Nada mais posso dizer, e é por isto que me dá cá um quentinho na alma saber que alguém como tu me lÊ aos domingos. Por isso é que fecho os comentários em certos posts, não quero a caixa com comentários tipo "força, há q ter esperança, sê mais optimista, tens de lutar, nunca desistas" de gente que não percebeu UM CÚ daquilo que eu escrevi. UM cú. É isso que acho verdadeiramente assustador - eu preciso daquele blog para falar das futilidades e das mundanidades que no meu circulo cada vez menor de amigos não é de bom tom, nem interessa a ninguém a não ser a moi même, preciso, sim, confesso, mas ao mesmo tempo não consigo al ser apenas e só o ser acéfalo que fala da roupa e da maquilhagem e do sapatinho e do caneco, não consigo compartimentar as coisas e acabo a falar de outras coisas que não têm interesse nenhum para 99% da malta que ali vai, e é aí que reside para mim o susto: como é que é possivel ou: compartimentarem-se de tal maneira que online são pessoas altamente despreocupadas e com uma persona oca, ou: não estarem nem aí e nem sequer se aperceberem do que se está realmente a passar na sociedade actual?? Tenho muito medo deste povo que cala e come, só te digo, não pelo povo, mas por quem lhe sobe ás costas e faz o que quer sem nada acontecer. AInda bem que pelo menos alguém que me lê partilha da mesma noção!!!! Happy New Year, com menos coelhos espero eu de que.

katrina a gotika disse...

Já te passou pela cabeça que essas pessoas não percebem porque ainda não lhes tocou na pele? Em termos absolutos, porque têm um rendimento mensal per capita superior a 1000 euros (per capita no agregado familiar)?
Que até a crise é desigual? Que um casal com um filho, ambos desempregados, sem família que ajude (por azar, que também existe) não é a mesma coisa que um casal desempregado com um filho e com dois pais de cada lado a pagar as contas, mais ajudas de avós e tios? Já te passou pela cabeça que quem não tem apoio financeiro da família nem sequer pode competir nos mesmos termos, porque o que uns gastam em educação e ajudas de custo em cursos lá fora outros precisam para comer e nem ir para um Erasmus podem, ou tirar o mestrado cá dentro, ou a licencitura, porque têm de ir trabalhar e ajudar a família, perpetuando o ciclo de pobreza em que nasceram e de onde não conseguem sair?
No outro dia (ia escrever um post sobe isso mas não escrevi), vi o dono de uma pastelaria dar uma empada a um miúdo com fome. Se não lha desse, o miúdo não levava a empada.
Há poucos dias vi uma professora, com dois filhos lamentar aos meninos que ainda não podia ser este ano que iam à Disney (e férias não sabia).
Estás a ver o fosso? Uma empada. Uma visita à Disney. Isto não é na Roménia e na Dinamarca. É tudo aqui. Aqui. A desigualdade, o fosso da desigualdade.
Dizia a outra, a da Disney: "Quase que nos tira a vontade de sonhar".
Há quem já não sonhe há muito tempo. Mas ela não sabe disto. Ela ainda pode sonhar porque ainda não lhe tocou a sério. Então, é das tais que diz "deves ter esperança, força, etc".
A gente tem que ter força e lutar, que remédio, mas não esperes compreensão dessas pessoas se alguma vez te faltar uma empada e te vierem convidar para uma viagem ao estrangeiro (coisa que já me aconteceu...).
A desigualdade aprofunda-se. Surge a caridadezinha, para minimizar os remorsos dos que ainda têm a mais. A liberdade é que é cada vez temos menos. Até nos querem tirar a liberdade de dizer as verdades. Mas isso não podemos deixar.

Fashion Faux Pas disse...

Hear hear. QUando quiseres formar um movimento politico, avisa-me. Tens o meu voto.