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domingo, 1 de março de 2020

La Morte Amoureuse (1836) / Clarimonde, de Théophile Gautier


“Clarimonde” (publicado inicialmente em 1836 com o título “La Morte Amoureuse”)  é um conto clássico a não perder por todos os amantes de vampiros. Nunca nos é dito claramente quando se passa, mas tudo aponta para o século XIX, talvez mais cedo. Um jovem padre, no momento da sua ordenação, é fascinado pela bela Clarimonde que o observa na igreja. A partir daí, cada vez mais enredado pelos seus encantos (ou encantamentos?), o jovem, já ordenado, começa a viver com ela um estranho idílio: quando dorme, ele é o nobre Romuald, rico e dissoluto, vivendo com a sua amante em Veneza; quando o nobre dorme, volta a ser de novo o pobre presbítero. Como diz o protagonista, Romuald deixa de saber se é um nobre a sonhar que é padre, ou um padre a sonhar que é nobre. Mas a verdade é que são felizes. Uma felicidade apenas perturbada por escura sombra quando Romuald percebe que de noite Clarimonde lhe bebe o sangue, mantendo assim a sua vida e beleza eterna. Pois Clarimonde já morreu há muito tempo.
Não posso contar mais nada porque o conto é muito curto, mas o fim é à Van Helsing. Recorda-nos vividamente o momento em que os personagens de “Drácula” descobrem Lucy, morta-viva, no túmulo, e a destroem.
Ou melhor, o Van Helsing de Bram Stoker é que poderá ter sido inspirado aqui, uma vez que “Drácula” é de 1897, sessenta anos posterior a “Clarimonde”. Isto não quer dizer que o conto de Théophile Gautier tenha sido fonte de inspiração para Stoker, nem é obrigatório que o seja, visto que muitas vezes duas histórias semelhantes podem ter sido inspiradas por outra ainda mais antiga (geralmente do folclore) sem que qualquer dos autores conheça a obra um do outro. De qualquer das formas, as semelhanças saltam à vista.
“Clarimonde” está disponível em inglês no Projecto Gutenberg.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Drácula (série TV)

*** contém spoilers, mas não revela o final ***

Primeiro que tudo, estou muito agradecida a esta série! Tão agradecida, para que conste, que a minha apreciação é assumidamente parcial. Antes desta série, sempre que pensava no Jonathan Rhys Meyers só me vinha à cabeça, como se gravada por um ferro em brasa, a imagem de Henrique VIII (“The Tudors”). Obviamente, Jonathan Rhys Meyers foi escolhido para o papel para facilitar a vida aos espectadores que de outro modo não apenas teriam de assistir aos caprichos de um monarca abjecto com uma predilecção por cortar cabeças (especialmente cabeças de rainhas), como também teriam de olhar para a carantonha de um monarca abjecto e feio (como era a criatura na realidade), o que seria duplamente penoso. O casting de Jonathan Rhys Meyers tornou a experiência menos dolorosa. (Mas um monarca abjecto e feio não merecia que Jonathan Rhys Meyers lhe vestisse a pele!)
Desde os “Tudors”, portanto, não conseguia pensar em Jonathan Rhys Meyers sem horror e asco, o que era a todos os níveis uma pena!
Nem tenho palavras para agradecer que essa imagem tenha sido substituída, e com o tempo, oxalá, completamente desvanecida, e me lembre antes desta:


Embora, para dizer a verdade, Jonathan Rhys Meyers interprete os dois papéis da mesma maneira, resultando de modo elogioso para Henrique VIII que não podia ter metade do charme deste Drácula. Meyers lá tem a sua razão, um monstro é um monstro, a diferença é apenas ficcional. Mas basta de reminiscências dos “Tudors”, série que já bastou ver uma vez e não é agradável de recordar. Falemos de “Drácula”, 2013-14, série de TV.



Conde de Monte-Drácula
A minha reacção ao saber deste “Drácula” não foi famosa: “Oh não! Mais uma adaptação de Bram Stoker e ‘atravessei oceanos de tempo para te encontrar!’...”
(Por falar em *ainda* mais uma adaptação. Parece que existe um novo Drácula, filme, do qual vi algumas cenas pavorosas em que o nosso Vlad lutava usando artes marciais! Sim! Artes marciais! Drácula Kung Fu! Este arrisca-se a ser o único filme de Drácula que eu não vou ver jamais. Nem a minha compulsão obsessiva de ver tudo o que é vampiros resiste na presença de artes marciais. Não, obrigada, não.)
A série surpreendeu-me. Trata-se, sim, de uma adaptação do clássico de Bram Stoker, passada na Inglaterra vitoriana e elencando todas as personagens que já conhecemos (Drácula, Mina, Jonathan, Lucy, Renfield e Van Helsing). Mas o espectador vai ser confrontado com alguns choques, e alguns espectadores, creio, não vão conseguir ultrapassar o primeiro episódio. O que seria uma pena, na minha opinião, porque a série começa de forma esquisita mas torna-se bastante interessante.
O primeiro grande choque... Bem, antes terei de explicar porque é que Drácula está em Londres. (Não é um spoiler “grave” porque tudo o que vou dizer é esclarecido nos dois primeiros episódios.) Drácula, o verdadeiro, o único, o Impalador, Vlad Drakul, princípe da Valáquia, está em Londres sob a identidade de Alexander Grayson, empreendedor americano de grande mas recente fortuna de origem obscura (como não seria de estranhar de um americano arrivista), para se vingar da Ordem do Dragão. No seu tempo, a Ordem do Dragão queimou na fogueira a esposa adorada de Vlad (a série nunca explica exactamente porquê) e foi também a Ordem do Dragão que como castigo por heresia, e usando rituais ocultos, transformou Vlad no primeiro caminhante das Trevas, para sempre amaldiçoado. (O que foi uma péssima ideia que a Ordem do Dragão teve, mas avançando.) A Ordem do Dragão existe ainda na Inglaterra vitoriana, na forma de uma sociedade oculta, corrupta e fanática, composta apenas dos mais ricos e poderosos que não olham a meios para atingir os fins. Drácula também não olha a meios para atingir os fins. E começa a vingança. Drácula não pretende simplesmente matar os líderes; quer destruir, para sempre e de uma vez por todas, a Ordem do Dragão, e vai usar tudo ao seu dispor para o conseguir: compra, suborno, chantagem, embuste, difamação, homicídio. Tirando a parte do homicídio, a vingança de Alexander Grayson recorda o maravilhoso enredo do Conde de Monte Cristo e vai deliciar quem gosta de uma boa história de vingança.
Os ricos e poderosos da Ordem do Dragão acabam de descobrir a importância que o petróleo vai ter na economia mundial do futuro. (Como nós tão bem sabemos.) Estão dispostos a começar uma guerra com o Império Otomano para ter acesso ao petróleo do Médio Oriente. (Nós também sabemos que sim, e como!, e ainda!) Drácula pretende cortar o mal pela raiz. E aqui vem o grande choque: Drácula apresenta-se como um empresário que quer implementar uma fonte de electricidade limpa, sem fios, barata, não poluente, não dependente do petróleo!!! Electricidade gerada a partir do campo magnético da Terra!!! (Era bom, não era?) E com isto pretende destruir as grandes fortunas dos membros da Ordem da Dragão, impossibilitando a dependência petrolífera, e acabar com esta para sempre!
Quanto à Ordem do Dragão, bastará mencionar que são uma cambada de capitalistas ricos, exploradores, poluidores, os donos do mundo, os donos dos mercados, os donos dos homens, e também a mim me apetecia arrancar-lhes à dentada algumas cabeças, mesmo não sendo vampira, e daqui exorto, inequivocamente:
Drácula, amigo, o povo está contigo!


É o grande choque do primeiro episódio. Drácula, empresário?! Electricidade verde e sem fios?! No século XIX?! E internet também, não? E já agora, televisão a cores, para vermos estas séries de ficção científica?
Aconselho todos os espectadores a fecharem os olhos a esta tolice, uma tamanha tolice que pode afastar muita gente da série logo no primeiro episódio. É daquelas coisas que podem ofender irreparavelmente os intelectos mais apegados às ciências, o que compreendo, mas, como em tantas outras séries do género, às vezes temos mesmo de fingir que acreditamos se queremos apreciar o que interessa. Na minha opinião, vale a pena fechar os olhos porque há muito a apreciar. Até porque todo este ambiente laboratorial de experimentação com electricidade nos vai proporcionar cenas que evocam outro grande clássico da época, Frankenstein! E agora vou falar do segundo choque:

Van Helsing está a trabalhar com Drácula!!!
Sim, o caçador de vampiros mais famoso do mundo está de conluio com aquele que é o seu arqui-rival, o seu arqui-inimigo, o seu nemesis! E porquê? Porque a Ordem do Dragão também lhe matou a família. (Com quem eles se foram meter!) Isto não quer dizer que Drácula e Van Helsing sejam amigos. Longe disso. Mas Van Helsing é um homem racional e frio, e sabe a quem recorrer. Logo na primeira cena do primeiro episódio, vemos dois exploradores a penetrar no túmulo onde Drácula repousa há séculos. (Muito Indiana Jones.) Algo me fez logo adivinhar que um deles era Van Helsing (quem mais poderia ser?), mas pensei, mais logicamente, que Van Helsing procurava o túmulo para matar Drácula, como é costume, no que podia ser a última cena de uma história contada a partir do fim. Foi um choque perceber o quanto estava enganada. Mas um choque refrescante, admito.

Tão amigos que eles não são.

A verdade é que o personagem Van Helsing se tornou um herói por mérito próprio na cultura popular mais recente. O velho professor, fanático e algo excêntrico, do livro de Stoker, já não cai bem como caía na época. Entretanto, tivemos Van Helsing, o sex symbol, e penso que tudo mudou desde aí. Este Van Helsing (Thomas Kretschmann, que por sua vez já encarnou Drácula em “Dracula 3D”, que eu ainda não vi) é um professor de meia idade, entre o génio científico e o homem de acção. É dele a ideia da electricidade magnética, é dele a invenção do soro que permite a Alexander Grayson caminhar ao Sol durante o dia. Van Helsing também se quer vingar e também não olha a meios para atingir os fins. Enquanto Van Helsing fornece a inteligência, Drácula fornece o músculo. O maniqueísmo na ficção é algo do passado. Neste novo universo de personagens “cinzentos” já não existem muitas personagens completamente boas ou completamente más. Gosto desta adaptação que apresenta os personagens à luz da modernidade. Quem contava com outra adaptação de Stoker “à letra” pode esperar ainda outros choques:

Renfield. Adorei o que fizeram com este personagem! Não é o louco babado do hospício que come moscas e clama “Mestre! Mestre!”. Este Renfield (Nonso Anozie) é um ex-escravo norte-americano que conseguiu tirar um curso de Direito graças a um mecenas abolicionista, mas viu fechadas todas as portas de emprego devido à sua cor. Também Renfield tem muitas razões para estar zangado com os donos do mundo. Renfield, à sua maneira, também se quer vingar.

Imaginam o meu choque ao perceber que Renfield é o senhor grande e negro e, acima de tudo, são da cabeça?!

Lucy Westenra (Katie McGrath). Esta não é a Lucy namoradeira e vitoriana que só pensa em arranjar um marido. Esta é a Lucy inexperiente que ainda não sabe em que equipa joga, mas acaba por descobrir, e é na equipa da Mina. Infelizmente, não é correspondida. Infelizmente, tendo em conta as alternativas, muitos espectadores torceram para que ficassem juntas. Faziam um par bonito. Mas o que não tem de ser não tem de ser.

Como é que se podia não torcer por isto?

Jonathan Harker (Oliver Jackson-Cohen). Este também não é o Jonathan virtuoso e debilitado e merecedor de simpatia que Stoker nos apresenta. Este Jonathan é um homem frio e ambicioso, ávido de subir na vida, que chega a sugerir deixar para trás os amigos antigos (e pobres) quando começa a relacionar-se com a alta sociedade. Tem que ser Mina a intervir para que Jonathan “veja o seu erro”. No fundo, percebe-se disto que Jonathan não muda de ideias nem vê erro nenhum, só quer agradar à futura mulher (nesta versão, Mina e Jonathan ainda não são casados). Jonathan é o tipo de homem que descarta quem já não lhe é útil, e também não olha a meios para atingir os fins. Sem Mina, onde estaria a sua consciência? Aparentemente, em lado nenhum.

Não é o Jonathan Harker querido e fofinho da história de Stoker.

Por fim, Mina Murray (Jessica De Gouw), ainda o nome de solteira. Talvez seja um dos maiores choques que a Mina “doméstica” e bem comportada, do livro, se transforme, nesta série, numa mulher independente e progressista e estudante de medicina. Jonathan revela que não a merece quando é apanhado em flagrante a dizer que depois do casamento Mina se vai deixar dessas “coisas”. Mina ouve, mas perdoa-o, porque o amor é cego. E porque o amor é cego, Mina acaba por ser magneticamente atraída pelo americano recém-chegado que a adora e admira, na mesma medida em que o carácter de Jonathan progressivamente a repele. É científico. Grayson nem precisa de sex appeal sobrenatural, e não o usa. Mas esta Mina é mais racional do que emotiva e luta contra a paixão... enquanto consegue.
Afinal, Drácula sempre cruzou oceanos de tempo para a encontrar, porque (aproveitando a mitologia já existente em torno dos dois, que vem dos filmes e não do livro original de Stoker) Mina é, de facto, a reencarnação de Ilona, mulher de Vlad. Este encontro do amor, inesperado, perturba Grayson e quase o distrai da sua missão de vingança. Drácula tem aqui uma crise de consciência como também já faz parte da mitologia do vampiro moderno (o que temos de agradecer aos vampiros da senhora Rice) e por causa de Mina sente a ânsia de viver novamente, como homem, à luz do Sol. O soro, contudo, não é suficiente...

Sempre cruzaram oceanos de tempo para se encontrarem...

Todos estes novos elementos se tornam bastante interessantes à medida que a história se desenrola e são motivo para levar a sério a adaptação que recomendo vivamente.
O final é muito bom e surpreendente e abre portas para uma segunda temporada que não vai existir (a série foi mesmo cancelada). Sendo assim, a série merecia pelo menos mais um ou dois episódios para fechar a história. Talvez os autores tenham planeado uma segunda temporada mas as audiências não foram suficientes para a justificar? É uma pena. Como digo, o fim prometia, no mínimo, um último episódio para o grande e épico confronto que já ninguém esperava. E mais não posso revelar.
Posso apenas recomendar, e quando a série for repetida tenciono ver de novo. Não imagino porque é que esta adaptação tenha passado tão despercebida. Desconfio que foi a tal energia magnética, limpa e sem fios que estragou a série para muitos espectadores do primeiro episódio que não lhe deram a hipótese de um segundo. Manias de meter ficção científica em tudo às vezes dão nisto. Afinal, a tal energia magnética até não era importante para a história e podiam ter arranjado um esquema que envolvesse bancos, especulação, escândalos e política. Atingia os mesmos fins, e talvez a série tivesse mais hipóteses. Se é verdade que os fins justificam os meios, também há meios tão incompetentes que nem os fins servem. Acho que este foi um desses casos.



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Gotika: arquivos Março 2004

março 08, 2004

Drácula ainda tem descendentes vivos!

E os parentes de Vlad Drakul não gostam nada que enxovalhem o nome da família...

Publicado por _gotika_ em 02:12 PM | Comentários: (6)


Comentários 08.02.04 +/- 14h00

Apenas um acrescento pessoal ao que a Gotika já comentou. Se nós nascemos neste país, é neste país que, em princípio, temos de construir a nossa vida e dar por ele o nosso esforço. Se não isto é o quê? Uma maternidade? Ou apenas para vir passar férias? Assim preferia ter nascido noutro país para não me dar ao trabalho de ter de mudar de lugar. É espectacular a facilidade com que se vai para o estrangeiro estudar e trabalhar, com bolsas que dão para cobrir as despesas básicas...(leia-se a ironia nesta frase). Será que é um sinal de estupidez querer trabalhar no nosso país e querer que ele seja melhor, que evolua como os outros países vizinhos (já só penso naqueles que estavam em situação semelhante à nossa quando começaram a vir os subsídios comunitários)? Que este seja um país de crescimento social, cultural, económico, científico? Porque é disso que se tem estado a falar. Se a solução é ir embora, então estamos muito bem... O ensino superior em ciências não nos prepara assim tão bem para a vida activa laboral fora da universidade e do meio académico. Ok, a licenciatura serva para fornecer "ferramentas" em determinada área. E quando as "ferramentas" são insuficientes e vêm enferrujadas, para não falar de ausentes, em alguns casos? Ok, nós tratamos de as complementar e desenferrujar, tudo bem. Eu fiz isso. Pós-graduações, mestrados, cursos de formação, 5 anos de trabalho, tudo. E agora? Já depois de bater às portas todas, o que é que resta? Ir para o estrangeiro, ou tentar lutar por alguma coisa cá dentro deste país? Não teremos direito a manifestarmos o estado de coisas ou será sempre interpretado como "lamechice"? Seremos todos estúpidos? É que eu tenho uma família a meu cargo, com todas as implicações que daí advêm. Enviado por Alya em março 8, 2004 09:27 AM

Grande comentário, Alya!
Vou apenas acrescentar que está tudo dito e não me apetece responder mais a pessoas que não sabem o que dizem e nem pensam no que estão a dizer.
As minhas primas estão lá fora mas para exercerem a licenciatura lá fora tiveram de fazer uma parte do curso lá fora também, porque os nossos cursos não têm credibilidade nenhuma fora deste Ensino do terceiro mundo.
Eu não quero ir para fora. Gosto do clima e da natureza. É a única coisa que Portugal tem boa. Também me enerva aquela mentalidade muito portuguesa que é "se for para servir às mesas, vou servir às mesas para o estrangeiro". Eu posso muito bem servir às mesas AQUI. Não vou para fora com o intuito de ganhar dinheiro. Se não posso trabalhar naquilo que estudei, é-me indiferente o que faço... mas gosto do clima. Salve-se o clima!

Certamente o ensino é mau e facilitista. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, e por isso falei da Suécia. A razão profunda é a mesma que fez, há séculos, todas as riquezas da Índia demorarem em Lisboa o tempo de transbordo para as naus holandesas e os cofres italianos. Fomos, sem saber, os primeiros empregados de mesa do mundo. É que aqui estás a falar do capitalismo, e o capitalismo é feito de uma percepção do mundo que não soubemos nunca fazer nossa. Um mundo de cálculo e de método. De cumprimento de regras exteriores e de interiorização de regras de eficácia. Um mundo que germinou nas terras frias protestantes e se alimentou da severidade das Bíblias encadernadas a negro. Um mundo de cidades e de quotidiano (um mundo, já agora, que se fez também à custa de lugares escuros e almas caladas, e não foi por acaso que o gótico vitoriano não nasceu nas terras do vinho e do sol...). Foi-nos valendo o Brasil, a África, a França. Foi-nos enganando a ideia de que se "eles", os que mandam, quisessem, o mundo seria perfeito. E agora estamos encurralados no meio da grande revolução do mundo. De facto não fizemos o trabalho de casa. De facto a juventude foi enganada, e nem sequer sabemos bem o que é que correu mal. Resta-nos a mansidão dos mortos ou o combate total que é apanágio dos vivos. Não resta mais nada. Enviado por Goldmundo em março 8, 2004 12:05 PM

Goldmundo, continuas no tempo das caravelas?... Não passou já tanta água debaixo dessa ponte?
O que me parece é que já se podia ter aprendido e aplicado os modelos estrangeiros de sucesso mas há falta de coragem política para mexer nos interesses estabelecidos. O que falta ao povo português é viajar, ver os exemplos lá fora. Onde os carros de facto param antes ainda de o peão chegar à passadeira. Onde há cinzeiros ao longo dos passeios para as pessoas não atirarem beatas para o chão. Onde se recicla o lixo. Coisas de um português ficar parvo. E isto apenas na vizinha Espanha que não é o país mais desenvolvido da Europa.

Por fim, o desemprego não afecta só os licenciados mas também as pessoas mais velhas que, em desespero, têm respondido a anúncios para ir trabalhar para o Reino Unido aliciados por 200 contos por mês, o que lá é um ordenado de miséria, e se vêem privados de assistência médica e direitos, ainda por cima sem saberem falar a língua. Casos dramáticos de todo o tipo.
Também já estou farta de que as pessoas pensem que os desempregados estão nessa situação porque são estúpidos. Pensam assim dois tipos de pessoas: os que ainda não sentiram na pele o desemprego (mas da maneira que isto vai ninguém está livre) e os mais velhos que não imaginam o que é trabalhar a recibos verdes porque no seu tempo se trabalhava numa empresa a vida inteira, da infância até à morte. Muitos recebem com choque a notícia do desemprego como se um dogma existencial tivesse desabado diante dos seus olhos. Nem se deram conta do que lhes ia acontecer!
Sim, é dramático que o país não tenha nada para oferecer excepto biscates e salários de miséria. É dramático que estejamos cada vez mais perto do Brasil: a classe média a afunilar-se, meia dúzia de ricos muito ricos e uma maioria cada vez maior de pobres (a maior parte pobres envergonhados, à "portuguesa").
E por falar no Brasil, onde reina a corrupção, o desrespeito pelos direitos humanos e a quase impossibilidade de encaminhar o país no caminho do desenvolvimento, culpo por esse estado de coisas nada mais nada menos do que a mentalidade portuguesa, eivada dos mesmos males, que deixou por lá a sua herança de cunhas.

Publicado por _gotika_ em 02:09 PM | Comentários: (19)


Comentários 08.02.04 +/- 00h00

Na Suécia, onde o clima nem sequer permitia que houvesse "empregados de mesa", havia fome e camponeses descalços há pouco mais de cem anos.

E?...
Em Portugal ainda há fome e havia camponeses descalços há bem menos de 50 anos.

Nestas terras de sol ignoramos os direitos e julgamos compensar-nos incumprindo os deveres.

Este sim, é um bom comentário.

Eu já dei aulas a futuros licenciados sem emprego. Era deprimente. Não havia sequer luta de classes e professores exploradores. Viviam todos em paz, na absoluta ignorância do que era suposto acontecer ali. Uma estudante disse-me uma vez que eu era diferente dos outros professores, "assim para o intelectual". Isto porque eu gostava de ler, e muitas vezes trazia um livro para o bar, em vez da "Bola". Mas lembro-me também, num exame de fim de curso, de um miúdo desesperado. Precisava muito de passar e tinha-se esquecido da calculadora. Sem ela, como saber quanto era "dez por cento de cem"? Ah sim, e os jipes... Enviado por Goldmundo em março 7, 2004 03:38 PM

É interessante. Admites portanto que o Ensino é facilitista. Admites portanto que as pessoas chegam ao Ensino Superior sem saber fazer contas (e sem saber Português, acrescento eu). Admites que a formação é má e massificada.
Ainda bem. Porque isto até me ajuda a justificar o próximo comentário:



Ó Gotika, isto tudo é muito bonito e eu respeito o sentimento de desilusão das pessoas face ao desemprego em que vivem. Mas bolas, leiam a declaração de Bolonha sobre a criação de um espaço europeu no sector de ensino. A questão já não é aproveitar a massa cinzenta de um país. A questão é europeia. Se falam nos exemplos dos outros países, pois bem, peçam a homologação dos diplomas, desenferrujem o inglês já que têm tanta massa cinzenta e... ala para os outros países. Mas que lamechice. Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar. O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas. O que é que a malta quer? um cargo de professor de biologia, química ou português num liceu de província dado pelo Estado para o resto da vida? Mas o Estado não dá isso a ninguém (excepto aos boys q são muitos e maus...) Enviado por em março 7, 2004 10:18 PM

Primeiro, o que mais me irrita no teu comentário: "ala para os outros países". Porquê? Eu gosto do clima aqui. Por acaso até nasci aqui. Estás então a admitir que neste país não há futuro...? Que a única solução é fugir...?
"Uma licenciatura não existe para dar empregos, quem tem massa cinzenta, algo a oferecer à comunidade, não fica à espera que o venham chamar ou que lhe arranjem um lugar." E será que a comunidade quer realmente receber alguma coisa ou quer, como tu muito bem insinuas, mandar a massa cinzenta para outras paragens?
"O Estado só tem que facultar os estudos e impedir que pessoas com mérito fiquem impossibilitadas de estudar. O resto é com cada um. Há um espaço europeu, há programas de pós-graduações, há bolsas, há estágios, há linhas de crédito, ninhos de empresas." Então deixa-me elucidar-te que os estudos facultados pelo Estado são de tal má qualidade que não servem para nada lá fora. Pelo menos na maioria dos cursos da área das Humanidades. Na área das ciências já não se passa o mesmo, talvez porque a Ciência é universal, mas a nível de experimentação e investigação o Ensino em Portugal continua a ser risível.
Quanto às (poucas) oportunidades que existem para sair do país - isto partindo do princípio que as pessoas são obrigadas a sair, o que já por si é dramático! - são muitas vezes insuficientes porque a verba oferecida NÃO CHEGA para sobreviver lá fora e nem toda a gente tem condições para, de facto, sair. Porque se for para lá trabalhar e estudar acaba por perder a bolsa e por perder os estudos. Não passa de um imigrante como os outros, não um estudante. E há aqui uma diferença abismal. Os já licenciados, devido à má qualidade da formação que aqui recebem, não têm a mínima possibilidade de competir com os licenciados europeus. Essa então é a maior mentira de todas. Não por falta de massa cinzenta mas por falta de conhecimentos que não lhes foram transmitidos onde deviam ter sido.
Quanto às bolsas e oportunidades verdadeiramente boas, acredites ou não - e da maneira que falas não me pareces muito dentro da realidade - são aproveitadas pelos filhos dos tais boys. De tal modo que não são divulgadas pelo povinho e, quando divulgadas, já estão preenchidas.
Eu sei que é difícil pra algumas pessoas acreditar no lamaçal em que se tornou este país, mas fingir que não estamos no lamaçal só ajuda a perpetuar a lama.
Por isso, antes de abrirem a boca vejam lá se sabem o suficiente daquilo que dizem. Se fosse assim tão fácil as pessoas não estavam na situação em que estão. Não podem ser tantos tão estúpidos.
Mas parece que algumas pessoas estão tão enterradas na lama que já não a vêem ou acham que a lama é normal. Não é.

Publicado por _gotika_ em 12:15 AM | Comentários: (3)


~~§~~


Comentário:
É curioso como esta discussão parece tão actual agora, mas como tanta gente a achava descabida na altura. Tão descabida que eu acabei por me fartar de dizer a mesma coisa. Mas não me calei sem dar luta.

sábado, 16 de julho de 2011

Gótico na literatura

Aqueles que já me conhecem deste blog já saberão que não vejo o gótico apenas como um movimento musical urbano-depressivo (era assim que se chamava na altura) originado no final da década de 70 (Joy Division -- banda a que, se bem que por linhas muito tortas, se deve o rótulo -- e afins).
Na minha perspectiva, o gótico sempre existiu, no mínimo como representação artística de uma forma de sentir (e, porque não, de espiritualizar?) temas relacionados com a dor, o sofrimento, a beleza, e, claro está, e acima de tudo, a morte. No gótico, a morte é o grande tema verdadeiramente omnipresente. O gótico serve também como forma de sublimação, através da arte. A música nada mais é do que uma das expressões dessa arte.

A leitura da introdução do livro de que falarei hoje levou-me a considerações sobre o que nós consideramos literatura gótica. Ficarão, tenho a certeza, tão surpreendidos quanto eu ao perceber que a princípio os escritores góticos também recusavam o rótulo "gótico".
Onde é que nós já ouvimos isto, direis vós?
É muito mais antigo do que pensamos, respondo eu.



Como o nome indica, "Gothic Short Stories", da editora Wordsworth Classics, é uma compilação de pequenas histórias seleccionadas pelo editor desde os primórdios deste estilo na literatura. Não vou falar delas, mas da fantástica introdução que projecta uma luz excepcional sobre o género gótico, na literatura e não só, de que vou traduzir algumas partes chave:
Começando pelo verso:

"No finais do século XVIII alguns autores começaram a escrever histórias "góticas" como maneira de reaproximar a literatura do irracional, do sobrenatural e do bizarro, o que tinha sido negligenciado na 'Idade da Razão'."
[Tradução minha]


Porque é que a literatura chamada gótica está cheia de fantasmas, terror, temas sinistros? Confrontado com o terror inspirado por algo de misterioso e terrível e fora do seu controlo -- A Morte -- o ser humano sublima esse medo através desta forma de arte. (Saliento _esta_ porque há outras formas de arte e outras formas de sublimação que não são arte.)
Na literatura gótica, tal como nos filmes de terror da actualidade, o leitor/espectador tem a sensação de desafiar o terror/a morte, olhando-os de frente.
(Isto é tão primitivo quanto os ritos de iniciação: por exemplo, caçar um leão. Daí eu ter insistido na existência de outras formas de expressão desta ansiedade comum ao ser humano.)

O medo da morte e o sofrimento causado pela morte sempre se exprimiu ao longo dos séculos, na arte, de forma aterradora. Pensem, por exemplo, nas gárgulas. Ou nos vitrais ou murais representando o inferno. A sociedade de hoje já não acredita no inferno, ou se acredita é num bem mais levezinho, no entanto consome filmes de terror que produzem o mesmo efeito que as gárgulas deveriam produzir no homem medieval.

Mas hoje o tema é literatura e existe bastante que pensar nesta introdução que citei e que aparentemente não tem nada a ver com o movimento musical gótico... Ou será que tem? Eu acho que sim.

A invenção da literatura gótica é geralmente atribuída a Horace Walpole e datada de 1764. Foi na altura um meio de reconquistar territórios imaginativos e emocionais que tinham sido largamente rendidos à cultura racional e iluminista do século XVIII. Neste conto curto, "O Castelo de Otranto", Walpole levou a narrativa de volta ao período "Gótico" da Idade Média -- a Idade das Trevas, como aqueles no tempo do Iluminismo a consideravam -- porque lhe parecia mais apropriado incorporar incidentes sobrenaturais numa ficção passada num período em que a crença no sobrenatural era generalizada. Tal crença era frequentemente associada com a superstição católica, e onde esta existia, na Grã-Bretanha de meados do século XVIII, era frequentemente vista como o produto aberrante de mentes incultas: criados, camponeses ou mulheres. (...) Só na segunda edição de "O Castelo de Otranto" é que Walpole admitiu a sua autoria da história; a primeira edição manteve o seu "goticismo" a uma distância segura ao afirmar que era uma tradução de um manuscrito italiano medieval.


Vemos assim que, desde o seu incipiente princípio, também a literatura gótica tentou fugir ao rótulo, se não mesmo negá-lo, repudiá-lo, como algo indigno de uma mente culta e intelectual. O que é que isto nos lembra? Pois é. Lembra-nos mesmo aquelas bandas que afirmam: não, nós não somos góticos, estamos acima disso.

Em 1773, quando Anna Letitia Aikin escreve o seu fragmento "Sir Bertrand", esta autora pensa que...

(...) o que torna o gótico potente, concluiu ela, é o "prazer constantemente ligado ao estímulo da surpresa de novos e maravilhosos itens" (...)
Aplicada como fórmula para gerar a narrativa gótica, a tendência desta teoria do Gótico é simplesmente gerar uma coisa estranha a seguir à outra, como "Sir Bertrand" demonstra. O herói é conduzido através de uma sequência de efeitos, cada um dos quais precisando de ser mais "estranho e inesperado" do que o anterior. (...)
mas a leitura de Aikin do vocabulário gótico como meramente um tipo de "novo e maravilhoso" ou "estranho e inesperado" soa demasiado literal e limitado a ouvidos modernos.


Será? É que ainda há realizadores de cinema que acreditam que um bom filme de terror se pode limitar a uma mera sucessão de sustos e saltos na cadeira... Vemos que algumas coisas não mudaram muito desde 1773.

A autora mais influente dos que desenvolveram o Gótico nos sessenta anos seguintes ao "Castelo de Otranto" foi Ann Radcliffe (1764-1823) (...)
Radcliffe e os seus inúmeros imitadores fizeram evoluir o vocabulário do que agora pode ser considerado Gótico "clássico".


Parafraseando a introdução:
A acção continuou a ser situada no passado, porventura não tão distante como em "O Castelo de Otranto". Os castelos continuaram a ser um cenário valioso, de preferência total ou parcialmente em ruínas, guarnecidos com masmorras e passagens labirínticas, idealmente com uma das alas permanentemente selada, fonte de maior mistério. Bandidos sinistros povoavam o universo de Radcliffe, sendo outra fonte de perigo para as suas heroínas. Mosteiros e abadias eram também uma rica fonte de inspiração, aproveitando o clima de negação sexual e potenciando dramas de identidades secretas, histórias ocultas e perseguição.

Conforme o Gótico se desenvolvia nestes anos primordiais, o sobrenatural não era um elemento essencial: Radcliffe era famosa por praticar uma forma de Gótico em que as ocorrências misteriosas eram supostamente atribuídas a causas sobrenaturais mas acabavam por provar não o ser.


Isto é, já na altura havia vergonha de admitir o elemento sobrenatural no gótico. Esta vergonha de ser gótico chega aos nossos dias de variadíssimas formas. Curioso, no mínimo.

O que é aparente, olhando agora para as várias versões da evolução do Gótico no fim do século XVIII é que nelas o estímulo do terror é apenas parte da maquinaria dos incidentes sobrenaturais ou semi-sobrenaturais, da superstição medieval, violência ou tortura - de "novos e maravilhosos itens". Frequentemente, substanciando esta maquinaria, existem outras "agendas" de ansiedade. (...) ansiedades acerca do poder masculino e da propriedade, a tirania exercida por lei de pais sobre filhas, maridos sobre mulheres, guardiães sobre pupilas - ansiedades que encontravam ao mesmo tempo uma expressão não gótica na escrita de feministas como Mary Wollstonecraft.


No resto da introdução, o editor explica claramente como, com o passar dos tempos, outras ansiedades surgiram também no domínio da ficção gótica: a loucura, a sexualidade, a decadência (por exemplo, recordemos "The Fall of the House of Usher" de Egdar Allan Poe), a violência, a morte. Em suma, os medos mais profundos do ser humano.



Agora que recomendei vivamente a leitura de pelo menos a introdução desta compilação, restam-me ainda mais perguntas. O que é que podemos considerar literatura gótica nos dias de hoje?
Quem se acusa?

Aposto que se segue um imenso silêncio. ~evil grin~

Sempre que se segue este silêncio eu faço a pergunta ao contrário, como na música. Que música é que os góticos ouvem? Segue-se a lista, etc.
Que livros é que os góticos lêem? Parece-me que a lista está por fazer. Mas sabemos que lêem, ou melhor, devoram, a literatura gótica dita "clássica", isto é, histórias de terror. Antigas ou modernas, do "Drácula" aos vampiros de Anne Rice.
Mas não só. Tenho para mim que também gostam de "As Brumas de Avalon" ou "O Senhor dos Anéis". Sei também que gostam do Romantismo do século XIX. O Romantismo não é necessariamente sobrenatural.
Então, o que falta fazer é a lista de autores modernos que não escrevem sobre o sobrenatural. Porque os deve haver. É melhor começarmos a partilhar.

Voltando ainda ao tema do Romantismo, estou a lembrar-me do autor que melhor o expressou em língua portuguesa. Este foi Alexandre Herculano e a sua maior obra "Eurico, o Presbítero". Tudo o resto, na minha opinião, Camilo Castelo Branco incluído, na literatura portuguesa do século XIX e seguinte foi já imbuído de uma crítica de costumes muito mais digna do rótulo Realismo do que do Romantismo propriamente dito. O amor de Eurico e Hermengarda está destinado a ser impossível, como na tragédia grega. [Se quisermos extrapolar muito, tão impossível como os amores de um vampiro por um ser mortal.] Já os problemas que atribulam os amantes de "Amor de Perdição" são causados pela sociedade e poderiam ser facilmente resolvidos se a sociedade assim o desejasse. Duas perspectivas completamente diferentes.

Por último, sendo o gótico um movimento internacional, nestas alturas tenho pena de não saber mais sobre literatura estrangeira mas é aqui que os meus conhecimentos acabam. Por esta mesma razão achei tão pertinente partilhar estas linhas convosco, na esperança também de que outros mais sapientes as continuem.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

True Blood


(Na versão portuguesa "Sangue Fresco", em exibição na RTP1)

Qual é o problema desta série? Um dos problemas, reparo agora, é por onde começar a enumerar os problemas, que não são poucos.
Comecemos pelo mais imediato. A princípio (digo primeira temporada) dá a sensação de que os autores não sabem se querem fazer uma série de vampiros ou uma série dramática sobre os usos e mentalidades do sul dos Estados Unidos. Atenção, nada tenho contra séries dramáticas, antes pelo contrário. Tenho tudo contra misturas mal feitas. E esta mistura não podia ter saído pior. Pergunto-me mesmo se, depois de cada episódio, os autores não faziam uma sondagem às preferências dos espectadores e lá iam "navegando" a série à mercê das audiências.
O que não era preciso. A série tem excelentes pernas para andar: depois da descoberta científica de um produto substituto do sangue humano, os vampiros já podem "sair do armário" e reivindicar os seus "direitos". Depois de séculos nas sombras, decidem finalmente viver integrados em sociedade. É muito gay mas é mesmo assim.
A ideia é original e ousada. Não era preciso mais nada. Não era preciso, por exemplo, misturá-la com os dramas de uma mãe alcoólica e ultra-evangélica que negligencia a filha. Isso é outro argumento. No máximo, a questão seria abordada, sem nunca perder de vista o coluna vertebral da história "principal". A certa altura, pelo contrário, a série já nem tem coluna vertebral, de tão (mal) fragmentada.
Volto a insistir que nada tenho contra séries dramáticas. Veja-se o caso de Anne Rice, que tão bem faz nos seus livros o casamento entre os vampiros e a mesmíssima cultura do sul dos Estados Unidos. (Olha a série a perder originalidade... e pontos!) Para quem tem preguiça de ler os livros, o filme "Entrevista com um vampiro" exemplifica muito bem do que falo. Os livros fazem-no ainda melhor, prova de que a mistura pode ser feita... se bem feita. "True Blood" faz mal.
A par destas duas linhas directoras, vampiros + drama, surge a terceira, vampiros + drama + soft porno. Se calhar nem é tanto a questão de os vampiros terem apetite sexual o que me desgosta (por repulsiva que me seja a ideia de um vampiro a fazer sexo, não se a subtileza do vampiro romântico, desde os tempos de Lord Ruthven, em "The Vampyre" de Jonh Polidori, é exactamente a metáfora do desejo, metáfora que "True Blood" transforma em minha opinião em blasfémia -- por pouco que a minha opinião valha), mas o facto de não se perder nenhuma oportunidade de meter toda a gente a fazer sexo. Pretos com brancos, brancos com brancos, pretos com pretos, vampiros com mulheres, vampiros com homens, vampiros com vampiros, e só falta alguém fazê-lo com o cão. Sim, precisamente esse cão, em forma de cão. Olha o que se poupa em downloads porno!
Entretanto estávamos a falar de quê, que já me esqueci? Ah, sim, a série de vampiros. Pois a série de vampiros, no meio de toda esta fodenguice, torna-se um bocado difícil de acompanhar. Pergunto-me mesmo se existe...
Concedo que existem boas cenas (de vampiros, esclareça-se), e uma das notas positivas vai para o vampiro Eric Northman, um vampiro sueco e medieval, que assim que aparece na série lhe dá logo uma inesperada pica (falo de adrenalina):


Isto sim, é um senhor vampiro, antigo e ameaçador, envolto nas sombras do bar Fangtasia, que nos arrepia a espinha por muitas razões. Aqui está a metáfora, um digno representante de Lord Ruthven, de Drácula, de Lestat, de todos os vampiros perigosos e sedutores de que se possam lembrar na história da literatura e do cinema. Nem quando aparece a pintar o cabelo perde o carisma. Afinal, quem disse que um vampiro não pode ser vaidoso? Infelizmente, tinham de estragar, e na segunda temporada põem o senhor da fotografia vestido de fato de treino, a fazer compras num supermercado. Já tem o cabelo curto, e para compor o ramalhete só falta estar também oleoso. Um cachecol do Benfica ao pescoço e tornar-se-ia um digno candidato para as recentes séries portuguesas. "Liedson, marca-me essa merda ou chupo-te o sangue todo, caralho!", podia ser uma das suas falas. (O quê, Liedson não é do Benfica? Então mudem o cachecol.)
Fica o desgosto, e a fotografia para lembrar a primeira temporada.

Voltando a "True Blood", que é difícil dada a dispersão em que a própria série se perde, tanta que como disse a princípio se torna difícil (e maçudo) apontar-lhe os defeitos todos, não contentes com esta mistura intragável os autores ainda decidiram juntar-lhe shape shifters, deusas gregas, e o diabo a sete, porque sabe-se lá mais o que pode aparecer. Sim, porque entretanto o próprio shape shifter já "avisou" os espectadores de que não é um lobisomem, porque "os lobisomens são uma coisa completamente diferente". Boa. E uns zombies também, porque não? Falando em seres sobrenaturais, a série tornou-se tão sem pés nem cabeça que mais valia dar-lhe o tiro de misericórdia. Na minha opinião entravam por aquela terra de Bonstemps os irmãos Winchester (sim, esses mesmos, do "Sobrenatural") e matavam à caçadeira aquela bicharada toda: vampiros xungas, deusas gregas de mau feitio, homens-cão... e todos os seres humanos patéticos que por lá pululam. Evangélicos e "Jesus people" à cabeça.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

"O Historiador" ("The Historian") por Elizabeth Kostova


Vlad Drakul, o Empalador, príncipe da Valáquia (retrato)

Não, eu não acredito que se nos dias de hoje Vlad Drakul fosse vivo, ou morto-vivo, que é a mesma coisa, se tornasse num estudioso rato de biblioteca. Custa-me até conceber como pode alguém ter tal ideia, excepto se a autora andou a ler Anne Rice e confundiu Drácula com o vampiro Marius, esse sim, um coleccionador, um historiador, um erudito. Mas o vampiro Marius era um civilizado e educado cidadão do Império Romano, não um sociopata que ficou infame para a História sob o nome de o Empalador. Tamanha mudança de personalidade, não obstante os 500 anos do vampiro, ou nunca aconteceria ou teria de ser muito bem explicadinha - e nisto a autora não convence o leitor familiarizado com a carreira do sociopático príncipe da Valáquia, ao lado do qual, devido à sua desumana crueldade, o próprio Hitler nem parece um mau rapaz.
Posto isto, que de alguma forma destruiu a verosimilhança da personagem e estragou o usufruto da história, este livro tem momentos muito interessantes, nomeadamente a forma como a personagem principal se vai apercebendo do percurso pessoal do seu pai, bem como de outros historiadores envolvidos na perseguição a Drácula... e o fim que estes tiveram. Quem se interessar por História encontra aqui uma grande oportunidade de aprofundar os seus conhecimentos sobre o Império Otomano, os inimigos de Drácula e invasores de Constantinopla (de que não se fala no Ocidente de acordo com a sua importância, e que se revela no momento político mundial uma boa fonte de compreensão para entender os conflitos que ainda hoje existem com o Islão).
Outra das características deste livro são as muitas viagens dos personagens (e as inescapáveis descrições que estes fazem delas), que nos leva a desejar que o livro seja brevemente posto em filme... para ver as paisagens!, o que da minha parte é possivelmente a pior crítica que posso dirigir a um livro. Um bom livro, com ou sem descrições, não precisa de um filme que o ilustre. Este, infelizmente, precisa, apesar das descrições palavrosas que me deixaram exactamente na mesma: passa lá para a acção e larga a foto para os directores artísticos.
Por falar em acção, quando a história se afasta da comovente relação entre o pai e a sua filha, e se aventura por arrebates de adaga e pistola, o resultado é fraco, no pior sentido do hollywoodesco, e nota-se ali que houve uma piscadela de olho ao ensaio de um argumento... e não de um livro, o que mais uma vez não é abonatório para o livro.
Não quero aqui revelar o fim, porque é sempre indecente fazê-lo, mas não posso deixar de acrescentar que também este me pareceu hollywoodesco, um fim feliz e "inócuo" . -- Lá está, não posso justificar para além disto de modo a não prejudicar futuros leitores! -- Posso no entanto garantir o seguinte: o livro promete muito mais do que oferece, e teria ganho bastante em abandonar os clichés e enterrar-se, tão subtilmente como começou, num final sombrio, soturno, um final como o som oco do fechar de uma tampa de caixão.
Apesar das críticas que tenho a apontar, a nota é positiva, e este é sem sombra de dúvidas um bom livro (não tão bom como as críticas o anunciam, mas um bom livro) que interessará a todos os amantes de vampiros e de Drácula em particular. Pena que a autora não tivesse conseguido transformá-lo, apesar da tentativa de sair do estereotipo, numa personagem "real", de "carne e osso", ficando-se pelo limitado "monstro" a duas dimensões que nunca chega a convencer o leitor treinado.