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terça-feira, 24 de outubro de 2023

The Book of Eli / O Livro de Eli (2010)

Contém MUITOS spoilers. Quem gosta de filmes pós-apocalípticos e ainda não viu este deve parar de ler imediatamente e voltar depois. O aviso está feito.

O filme até começa bem. No género “pós-apocalíptico”, um viajante solitário é obrigado a sobreviver como puder. Trinta anos depois de uma guerra nuclear que destruiu o planeta (a palavra “nuclear” nunca é dita mas aquelas crateras e os fumos radioactivos não terão outra explicação…?) a água potável é rara e valiosa e já se acabaram os produtos de higiene como champô e sabonete. A cinematografia é espantosa e coloca-nos imediatamente neste mundo devastado, o que teria muito mais impacto se o género “pós-apocalíptico” não se tivesse tornado uma moda que vimos todos os dias…
Logo nos primeiros minutos do filme percebemos que este Eli é um durão. (Na verdade não temos a certeza se ele se chama Eli, apenas que tem um crachá na mochila a dizer “Olá, eu sou o Eli”, por isso vamos chamar-lhe assim.) Neste mundo há canibais e salteadores, e Eli é atacado por um gangue de 5 ou 6 que o querem roubar e possivelmente comer. Eli, armado apenas com uma catana, dá cabo deles todos, mesmo tendo um deles uma serra eléctrica a funcionar! (Vai ser importante mais à frente.)
Como acontece neste tipo de história, Eli sobrevive do que caça e do que encontra em locais abandonados. À noite, depois de procurar abrigo, gosta de ler um livro “misterioso” e de ouvir música num dispositivo electrónico. É este último “vício”, quando a bateria descarrega, que leva o solitário Eli a procurar uma povoação do tipo faroeste onde a recarregar. (Nota curiosa: o dono da loja de engenhocas é Tom Waits, o músico!)
É aqui também que aparece o vilão, o chefão lá do sítio, que tem todos os capangas à procura de um livro “misterioso”. Obviamente, este é o livro raro que Eli traz na mochila.

Último aviso: SPOILERS!!!
O chefão diz que este não é apenas um livro mas uma arma. Que com as palavras deste livro, que ele recorda de antes do apocalipse mas não lembra de cor, vai conseguir controlar toda a gente desesperada que ainda resta no mundo.
É aqui que está o “spoiler”. O filme quer fazer disto uma grande revelação. Que livro “misterioso” é este? Vou dar umas pistas. Logo nos primeiros minutos do filme, Eli faz citações bíblicas. O livro é grosso. Tem uma capa preta. Na capa tem uma cruz dourada. Qual livro será, qual será? Eu, sinceramente, tive esperança de que fosse o Necromicon de H. P. Lovecraft ou algo ainda mais obscuro. Mas não, é apenas a Bíblia. Acontece que após a guerra apocalíptica os sobreviventes queimaram todas as Bíblias por acharem que esta tinha contribuído para a guerra, ou que tinha sido mesmo a sua causa (e não podemos dizer que estivessem muito enganados…). As poucas Bíblias que escaparam são raras, e Eli tem uma. Assim que se apercebe disto, o chefão decide fazer tudo para lhe deitar as mãos, a bem ou a mal.
Cá está a metáfora, senhores e senhoras: a Bíblia é uma arma porque a religião é uma arma. Nem sequer é uma metáfora implícita porque o chefão verbaliza estas palavras aos capangas: este livro não é só um livro; é uma arma.
Aqui, comecei a ficar apreensiva. Estávamos num filme apocalíptico que de repente começa a virar no sentido evangélico. Mas vamos lá ver no que vai dar.
Bem, vai de mal a pior. Eli recusa entregar o livro, e diz mesmo a uma aliada que faz pelo caminho que ouviu “uma voz”, uma voz que o mandou ir para Oeste e proteger o livro até encontrar um lugar onde o possa deixar em segurança. Voz de Deus, alucinação? Preferi acreditar na alucinação porque já não estava a gostar nada da direcção em que o filme teimava em ir.
Perseguido pelo chefão e os capangas, mas auxiliado pela nova aliada, Eli continua a dirigir-se para Oeste. Entretanto temos umas cenas de porrada e tiroteio na estrada, à Mad Max, e Eli acaba por perder o livro. Mas, aleluia!, o final é tipo “Farenheit 451” e Eli, afinal, não precisava da Bíblia porque a tinha decorado toda! Assim, quando encontra novamente a civilização, exactamente onde a Voz lhe disse para ir, consegue recitar todas as palavras, versículo a versículo, qual Moisés apocalíptico.
Sim, leram bem, o objectivo deste filme é salvar a Bíblia, dê por onde der.
Mas há pior!



O pior
Ainda bem que não me apercebi disto. Quando li as críticas até me caiu o queixo. Então não é que Eli é supostamente cego? E não é que eu não dei por nada? E não dei por nada porque o filme quer fazer disto uma outra “revelação” chocante, e tenta por todos os meios enganar-nos para não o percebermos até à “grande revelação” de que a Bíblia de Eli sobreviveu à queima porque… está em Braille! Logo, Eli é cego.
Este é o gajo que dá conta de 5 ou 6 marmanjos, um deles com uma serra eléctrica. Este é o gajo que anda a direito numa estrada sem precisar de bengala. (Como é que ele sabe se não há um buraco no asfalto?) Sim, reparei que Eli dá muita importância à audição e ao cheiro, mas também o fazem todas as personagens de “The Walking Dead”. Certas vezes Eli segue algo com o olhar, e até espreita por uma janela, algo que nenhum cego precisa de fazer. E quanto à Bíblia em Braille, há pessoas não cegas que sabem ler Braille. Por exemplo, professores ou pessoas que têm invisuais na família. A Bíblia em Braille não quer dizer nada.
Até encontrei comentários sobre isto mais papistas do que o Papa (indo para além do filme), especulando que Deus teria dado visão a Eli enquanto este cumpria a sua missão e retirando-lha quando já não era necessária. Tudo isto para explicar porque é que Eli, sendo cego, era tão durão e eficiente. Sim, bem seria preciso intervenção divina porque não há maneira nenhuma de que alguém cego conseguisse fazer o que Eli faz. Ainda bem que não percebi que o homem era supostamente invisual (o filme não me convenceu da cegueira) ou teria achado isto tudo uma palhaçada descomunal.
Só faltou pregarem o Evangelho abertamente, mas implicitamente até o fazem à mesma. Eu pensava que estava a ver uma história sobre um sobrevivente pós-apocalíptico e saiu-me um super-Moisés da ala Republicana americana e religiosa, um filme cheio de armas e Bíblia como eles gostam. Oh, que desperdício de efeitos especiais e cinematografia! Que desperdício de actores! Que desperdício de ideias e cenários pós-apocalípticos!
Volta Mad Max, estás perdoado!
(Mas pelo menos percebi onde foram buscar a ideia do super-Morgan e das bombas nucleares em “Fear the Walking Dead”. Ah! Aquilo sempre me pareceu que caiu do céu aos trambolhões. Agora já sei.)

12 em 20

 

domingo, 18 de junho de 2023

The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood

Não é costume dizer isto, mas a série estragou-me o livro. Não consegui ler sem imaginar “The Handmaid’s Tale” (a série) na minha cabeça a todos os instantes. Isto significa duas coisas: que a série respeita perfeitamente o material original, e que o livro publicado em 1985 foi o bastante para incendiar imaginações e perturbar consciências até aos dias de hoje.
Não estou a dizer com isto que não adianta ler o livro se já se viu a série, nem que a série é melhor do que o livro, mas depois de ter uma visualização de todo este mundo com personagens tão fortes como June (na série, porque no livro nunca é revelado o nome de Offred, a protagonista) não me foi possível dissociar as duas coisas. A maior parte das vezes dei por mim a reconhecer as cenas e a apontar mentalmente os monólogos de Offfred: “Olha, a June disse isto exactamente assim”; “Olha, a June disse isto mas deixou parte de fora”; “Olha, aqui está dito de forma diferente”. Também não ajuda que eu esteja completamente viciada na série.
Em suma, preferia ter lido o livro primeiro, mas agora já está. Atwood foi ousada em apresentar-nos Gilead tão intimamente sem grande exposição, como se o leitor conhecesse perfeitamente a distopia em que Offred estava aprisionada e porquê. Só posso imaginar o choque que isto tenha causado aos leitores que não sabiam para o que iam (como me costuma acontecer a mim), e que se calhar tiveram de ler duas ou três vezes para perceber todo o horror que Offred, muitas vezes veladamente, lhes ia revelando nos seus diários.
No entanto, existem pequenos pormenores de diferença. Como aquelas crianças a quem é repetidamente contado um conto de certa maneira até o ouvirem de forma diferente e que dizem “a história não é assim”, obviamente que reparei neles. Outros ajudam-nos a perceber melhor certas relações e acontecimentos que a série não aprofundou. Por exemplo, a origem da frase “nolite te bastardes carborundorum” está aqui muito melhor explicada.
E depois há a cena da gata…

Spoilers
No livro, June (vou usar o nome da série) e Luke têm uma gata. Quando Gilead faz com que June e todas as mulheres percam o emprego, June conforta-se abraçando a gata contra o peito. Comovente, não é? Mas na hora de fugir para o Canadá com Hannah, Luke e June apercebem-se de que não podem “levar um gato com eles a cruzar a fronteira”, que deixar a gata para trás os podia denunciar (se a deixassem à solta ela miava em volta da casa) e que não a podiam oferecer a ninguém que os pudesse trair de seguida. Então o que é que fazem? A gata está escondida debaixo da cama e June até diz “eles sabem sempre”. Luke leva a gata para a garagem e mata-a. Assim mesmo. Mais tarde, quando de facto são traídos, June pergunta-se que género de maldade leva outros seres humanos a traírem os vizinhos. June, filha, e o que terá pensado o animalzinho nos seus últimos momentos naquela garagem, traído pela única família que conheceu, a quem amava e por quem se julgava tão amado que era abraçado contra o peito, que últimos momentos foram esses, cheios de medo, confusão, dor e amargura? Pensaste nisso?
Felizmente, os criadores da série perceberam que isto não ia cair nada bem no público actual e não incluíram essa cena. Afinal, o livro foi publicado em 1985, quando os animais não eram considerados parte da família. Que lhes fazer? Matá-los, afogá-los à nascença, fazia-se tudo isso quando eram incómodos e já não davam jeito. Actualmente é impensável deixar um animal para trás (por exemplo, os refugiados da Ucrânia levaram cães e gatos com eles), e não daria tanto nas vistas porque muita gente leva os animais de estimação quando vai de férias. Na altura talvez não.
Não é que eu não acredite que a June da série não seja capaz de matar um gato, dois gatos, mil gatos. Pelo contrário. O que acho é que a June da série é monstruosa a um ponto que a Offred do livro nunca chega a ser e mesmo assim não me apeteceu torcer por ela. Perturbou-me, revoltou-me. Isto não é dizer pouco quando se fala de “The Handmaid’s Tale”, mas para tudo o resto eu já ia preparada.
Ainda por cima, na série, quando fogem, June e Luke passam por imensos matagais desertos onde podiam muito bem ter deixado a gata e assim esta sempre tinha uma oportunidade de caçar ou encontrar um novo lar. Na garagem é que não teve oportunidade nenhuma.
A acção do livro só cobre as primeiras duas temporadas da série e a própria Margaret Atwood faz parte da equipa, o que poderá explicar o sucesso da expansão do mundo de Gilead. O livro termina quando Offred é levada para parte incerta pela polícia do regime, sem saber o que lhe vai acontecer. Acredito que este fim em aberto tenha causado pesadelos a inúmeras gerações de leitores.
Por fim, o livro deixa-nos uma nota de esperança. Muitos anos no futuro, durante um simpósio sobre Gilead, os diários de Offred (aparentemente gravados em cassete, como em certa passagem da série) são analisados e debatidos, sendo mesmo posta em causa a sua veracidade e de que modo Offred os poderia ter gravado e escondido. Mas Gilead é sempre referida como uma sociedade do passado, algo de extinto que merece a pena ser estudado. O que nos diz, também não disfarçadamente, que Gilead não ganhou no fim.
Margaret Atwood escreveu uma distopia magnífica, um sucessor perfeito dos gigantes “Farenheit 451” e “1984”, e ainda por cima com um contexto muito actual.
Recomendo a toda a gente que não faça o que eu fiz: leiam o livro primeiro, até porque é curto. E depois, sim, devorem a série.
Quanto à cena da gata… vou fingir que não li. Já me perturbou mais do que o bastante.

 

domingo, 12 de março de 2023

The Handmaid’s Tale [quarta e quinta temporadas]

[contém spoilers]

[Primeiras duas temporadas]

[Terceira temporada]

“O pânico é um desperdício de energia.”
Assistir a “The Handmaid’s Tale” é difícil. Das quatro pessoas que faziam críticas que eu lia desde o início da série, só uma delas não desistiu. Pior do que a violência física talvez seja mesmo a violência psicológica que o espectador tem de suportar tal como os personagens. Eu, no entanto, considero esta série educativa e até mesmo inspiradora, um abre-olhos, um kit de sobrevivência para quem não gosta de enterrar a cabeça na areia. Por exemplo, quando June e Luke são capturados e muito possivelmente vão ser executados, e June lhe diz quando ele se está a passar: “O pânico é um desperdício de energia.” June tem experiência com situações extremas e já percebeu que em Gilead o importante é manter sempre a cabeça fria (“keep your shit together”, como Moira lhe diz) para poder agir no caso de surgir uma mínima hipótese de fuga. Não adianta entrar em pânico. Acontecerá o que tiver de acontecer.
“O pânico é um desperdício de energia.” Vou assimilar esta lição de vida e não me esquecer dela.
“We only wanted to make the world better. Better never means better for everyone. It always means worse for some.”, diz Fred logo na primeira temporada. Nos regimes totalitários, a primeira coisa a ser proibida são os livros. Gilead não é excepção. Chamo a atenção para o nº da porta de Emily em Toronto: 451, o que certamente também não é um detalhe inocente.
No último episódio da terceira temporada, num flashback, June recorda o início de Gilead. Vemos mulheres serem presas e separadas. Vemos doentes e deficientes mentais serem levados para parte incerta. Vemos mulheres nuas a serem examinadas em contentores, recordando os campos de concentração nazis. A partir da terceira temporada (que já ultrapassa o livro de Margaret Atwood) a série começou a estabelecer cada vez mais paralelos deste tipo, a começar com o símbolo de Gilead, que não sei bem o que é mas dá a entender que é uma pomba de asas abertas. Parece mais a águia nazi, especialmente nas longas faixas negras que acompanham os procedimentos oficiais. A presença constante dos soldados a falar indistintamente ao rádio, os cães a ladrar, os adornos subliminares em forma de suástica nas portas das Jezebels e até nos canteiros da escola de Hannah, acentuam esta imagética da 2ª Guerra Mundial. Custa-me menos ver “The Handmaid’s Tale”, porque afinal é ficção, do que a assistir a documentários do que aconteceu na realidade.

Com esta ninguém contava
Mais uma vez, não esperava voltar a escrever sobre “The Handmaid’s Tale” tão cedo mas os acontecimentos no enredo já começam a ser demais para a crítica final.
A grande “bomba” da quarta temporada é sem dúvida a gravidez de Serena Joy. Como eu dizia, o casamento dos Waterfords já estava de pantanas antes da chegada de Offred e eles simplesmente já não tentavam. Ambos julgavam que o outro era estéril. Na última noite que passaram juntos, quando Serena o ia entregar aos americanos, aconteceu o improvável. A gravidez de Serena vem acentuar ainda mais que tudo o que Offred passou foi em vão.
Mas finalmente conseguimos ter uma certeza sobre a personagem: a maior ambição na vida de Serena era mesmo ser mãe, isso não era fachada. Vemo-la ajoelhada na capela do estabelecimento prisional do Tribunal Criminal Internacional, a agradecer a Deus por mais uma semana de gravidez sem perder o bebé. Isto é sincero. Serena faria tudo para ter uma criança, inclusive roubá-la à mãe. E não seria a única. Ainda antes de Gilead, quando June dá à luz Hannah, uma estranha entra na maternidade e tenta roubar o bebé. É preciso ter em mente que foi esta crise de natalidade que esteve na origem do regime de Gilead. Com esta gravidez, Serena consegue esquecer a sua obsessão com Nichole (o que já era doentio).
A quarta temporada é também aquela em que vimos June transformar-se num monstro. Depois de uma tentativa de fuga falhada, June é recapturada e desta vez a Tia Lydia propõe uma inovação para as Servas mais insubmissas, uma “Colónia de Madalenas” onde estas podem trabalhar no campo e receber os Comandantes para a Cerimónia mensal. Ou seja, uma quinta de procriação. As servas em causa não chegam a ir para lá porque conseguem fugir de vez (ou morrer pelo caminho). June é resgatada no cenário de guerra de Chicago (que me recordou o mundo apocalíptico de “The Walking Dead”) por Moira, que ali se encontrava com uma ONG humanitária. “Resgatada” não é bem o termo. Moira quase teve de a arrastar dali para fora porque June continuava a recusar sair de Gilead sem Hannah.
Enfim, June está no Canadá, junto de Luke, Moira e Nichole, mas é uma estranha que eles já não reconhecem. Na sua deposição ao representante do governo americano no exílio, Mark Tuello, June acusa Serena Joy de ser um monstro, uma sociopata narcisista e uma grande actriz. Pergunto-me se neste caso não estará a chamar roto ao nu. Sim, compreendo muito bem que June tenha regressado de Gilead um monstro de raiva e fúria, com a culpa de ter falhado (não ter conseguido libertar Hannah) e a culpa de todo o sangue nas suas mãos (por esta altura June já foi a causadora de tantas mortes como o número de pessoas que salvou, o que é um balanço complicado, mas por outro lado quem se mete na Resistência já sabe ao que se arrisca) a acrescer à frustração. E sim, acredito que Serena Joy seja um monstro, mas um outro tipo de flor venenosa: a fanática religiosa. Ainda não estou convencida da sua sociopatia porque quando Eden foi executada (temporadas atrás) Serena ficou tão impressionada que decidiu tomar uma posição pelas mulheres e raparigas de Gilead, o que lhe custou um dedo. Isto demonstra empatia.
June, por outro lado, está completamente descontrolada. Depois de uma magnífica cena em que June depõe contra Fred em tribunal (aconselho a reparar em como a câmara se vai movendo na direcção dela, tão devagar que nem se nota), com toda a compostura e coerência, Fred faz um acordo com o governo americano para revelar os segredos de Gilead em troca da sua liberdade. June perde a cabeça. Ou ganha-a, é difícil tecer julgamentos, e consegue aliciar as mulheres do seu grupo de terapia a darem vazão a toda a raiva que tentam ultrapassar. June não quer ultrapassar a raiva, quer usá-la. E com alguma sorte que a pôs no caminho das pessoas certas, consegue o que quer.
Ao primeiro visionamento, pensei que o que acontece a Fred é um barbarismo sádico, mas ao segundo visionamento mudei de ideias. Temporadas atrás, Fred dá uma tareia de cinto a Serena que não era obrigado a dar (pela lei de Gilead, isto é). No meio de tantas atrocidades em “The Handmaid’s Tale” aquilo passou-me quase despercebido (e Serena até merecia levar uma tareia, se bem que não do marido nem naquelas circunstâncias). Detestei Fred, e descobri que era possível detestá-lo ainda mais. E agora temos a confirmação de Serena de que Fred não era assim mas mudou quando o poder lhe subiu à cabeça. Como eu desconfiava. Logo, Fred não passa de um homem desprezível e só teve aquilo que mereceu.
Da primeira vez que conseguiu fugir, June quase rompeu a orelha para arrancar a etiqueta vermelha de “mulher fértil” que lhe foi colocada como se fosse gado. É curioso e intrigante que após chegar ao Canadá June não tire a etiqueta e continue a usar a cor vermelha típica das servas. Interpreto esse comportamento como o de alguém que desta vez não está disposto a deixar Gilead para trás, que quer usar a raiva contra Gilead para continuar a lutar.

Rita
Não cheguei a falar muito das Marthas. As Marthas são as criadas (escravas) de Gilead. Rita Blue é uma delas e consegue escapar. Não ter sido uma Serva não significa que esteja menos traumatizada. Tudo o que quer é esquecer um passado em que era considerada propriedade, “registada e tudo”, como ela diz. No meio de tantos horrores, foi um prazer vê-la sozinha a deliciar-se com um sushi que não teve de cozinhar ela própria no seu apartamento em Toronto. Rita é das personagens mais simpáticas e teve um fim feliz. Bem, esperemos.

Pactos com o Diabo
Também não falei muito das Tias. As Tias são a Gestapo no feminino, basicamente. São elas que determinam a vida de todas as outras mulheres, até as das Esposas. A Tia Lydia é um monstro de sadismo com muitos traumas pessoais a transformarem-na noutra fanática religiosa com um bastão de electrocutar gado na mão. Duvido que esta personagem consiga alguma vez redimir-se. Mas há progressos. Lydia desenvolveu um carinho especial pela Serva Janine e decide tratar as mulheres sob sua guarda com maior compaixão. As definições de “carinho” e “compaixão” de Lydia não são iguais às nossas, mas é melhor do que nada.
Quase afastada devido a um ataque contra si (Emily espetou-lhe uma faca nas costas, e bem merecida), Lydia encontra-se na necessidade de fazer uma aliança com alguém que antes desprezava, o Comandante Lawrence. Também a situação dele é periclitante, mas neste pacto improvável ambos decidem “corrigir Gilead” no que está mal. Finalmente percebemos que Lawrence foi vítima das utopias que escreveu e que nunca deviam ter passado de ficção. Lawrence odeia Gilead. A sua última invenção é a ilha de New Bethlehem, sem as regras de Gilead, sem Servas nem enforcamentos e sem proibição de ler, para atrair os refugiados de volta. Curiosamente, a ideia quase consegue convencer June (aliciada pela proximidade de Hannah), que abre os olhos a tempo.

Por esta altura, dois movimentos curiosos começam a desenvolver-se no Canadá sem que estejam aparentemente relacionados. Um deles é religioso e apoia os Waterfords. Em suma, as pessoas ficam fascinadas com Serena e a sua gravidez miraculosa. Não é de espantar. A crise de natalidade é real. Serena é uma mulher bonita, alta, carismática, boa oradora quando a deixam abrir a boca, uma Grace Kelly encantadora. Os casais inférteis podem naturalmente pensar, em desespero de causa, que se Gilead consegue uma gravidez de uma “mulher estéril” eles também deviam fazer o mesmo, fechando os olhos a todas as atrocidades. O imperativo biológico de procriar é muito forte.
O outro movimento é talvez ainda mais preocupante. Se a princípio os refugiados de Gilead eram bem-vindos, agora uma contra-corrente de canadianos começa a querê-los fora do país.
Sabendo isto tudo, Serena dirige-se a Gilead onde se sente em casa para fazer propostas, e leva patadas atrás de patadas. Mas uma fanática não desiste, e Serena ajudou a conceber Gilead, excepto quando…

Pacto de duas diabas
O episódio mais marcante da quinta temporada, se não da série toda, no entanto, é “No Man's Land”. June e Luke fazem uma incursão por terras de ninguém (em busca de informação sobre Hannah) onde June é capturada para ser executada em Gilead ou pelo caminho. Entretanto, Serena é enviada para um Centro de Informação de Gilead em Toronto, tipo uma embaixadora informal, mas o Centro é depressa fechado. Ficamos a saber que Gilead tem gente rica e poderosa do seu lado no Canadá, e Serena vê-se “refugiada” na casa dos Wheelers. É um paralelo com os Waterfords, porque Mrs. Wheeler prende Serena na propriedade e tenciona roubar-lhe o bebé. Pela primeira vez, Serena sabe o que é ser uma Serva, e não gosta nada.
Conseguindo convencer Mr. Wheeler de que quer ser ela a matar June, consegue fugir da mansão, já em trabalho de parto. E assim as duas inimigas confrontam-se em pleno matagal, sozinhas. Muito contra a sua vontade, June ajuda Serena a ter o filho. A solidariedade feminina sobrepõe-se ao ódio. Esta série não é sobre a infertilidade; pelo contrário, o tema principal é a maternidade.
Este foi um dos melhores episódios que eu já vi na vida, por todas as razões e mais alguma, e especialmente pelo realismo com que se desenrola o parto. Se Elisabeth Moss faz um papelão quando teve de dar à luz Nichole sozinha, Yvonne Strahovski não lhe fica atrás. Se Serena Joy merecia ajuda? Talvez não, mas June é incapaz de virar as costas a outra mulher em dificuldades. Talvez agora, que Serena está em muito maus lençóis, June consiga seguir em frente e dar a vingança por terminada.

O fim está próximo
O que podemos esperar da última temporada? Eu gostava de ver a redenção de alguns personagens. Mas não quero, NÃO QUERO, ver o apaixonado Nick Blaine na Parede, nem Luke, ou, pior ainda, a pobre Janine (a quem saiu a sorte grande ao ser colocada na casa de Lawrence e não percebeu a oportunidade que deitou fora. Se ao menos June lhe tivesse contado mais coisas…) Lawrence e Lydia podem muito bem acabar na Parede, se bem que eu preferisse uma redenção. Mas é possível redimir Lydia? Duvido. E Serena Joy, terá finalmente a epifania de perceber que o seu papel é ajudar a derrubar Gilead, da mesma forma que derrubou o governo dos Estados Unidos? E o desgraçado Mark Tuello, que tem um fraquinho romântico por Serena, terá alguma sorte?
Por último, e June? Esta é uma mulher capaz de tudo para resgatar a filha Hannah. Será que vamos ter um final feliz… ou não? Isto é “The Handmais’s Tale”, não esqueçamos. June já gastou toda a sorte que tinha.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 3 vezes

domingo, 5 de dezembro de 2021

Brave New World / Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley


Uma distopia é sempre a utopia de quem a inventou. Perguntem aos comunismos, aos fascismos, até ao nazismo, e a resposta seria igual: instituir um regime para o Bem comum, para a melhoria e estabilidade da sociedade ideal conforme esse regime a imagina. A própria democracia é uma utopia, mas, como disse o outro, é o método de governo menos mau que já inventámos até agora.
“Brave New World” foi publicado em 1932, entre duas guerras. O título espanhol é particularmente bem conseguido ao traduzi-lo como “Um Mundo Feliz”. “Brave New World” foi o livro que iniciou todas as distopias, mas não temos aqui a violência e a brutalidade de George Orwell ou Ray Bradbury. George Orwell e Ray Bradbury já tinham visto regimes que Huxley não viu. Como li numa outra crítica, se em “1984” (George Orwell)* as pessoas são controladas pelo medo, em “Brave New World” as pessoas são controladas pelo prazer. Se em “Farenheit 451” (Ray Bradbury) os livros são queimados, em “Brave New World” as pessoas estão tão imersas em prazeres acéfalos que já ninguém quer ler livros.
O livro deve ter sido bastante chocante em 1932, mas, admito, quase 100 anos depois, eu própria fiquei chocada. Na sociedade de “Brave New World” não há mães nem pais. Aliás, “mãe” e “pai” são palavras obscenas. Todos os bebés são feitos em laboratório e a sua inteligência é manipulada, ainda no tubo onde são gerados, de acordo com as funções que essa pessoa vai ser condicionada a desempenhar. Desse modo, por exemplo, um bebé condicionado para trabalhos manuais nunca ficaria frustrado com o seu trabalho, enquanto que a um sujeito Alfa é permitido que a inteligência se desenvolva e são atribuídos trabalhos intelectuais. Resultado, o trabalhador da fábrica é feliz, o Alfa é feliz. São todos felizes e não questionam.
A juntar a isto, o sexo com vários parceiros é incentivado. O objectivo é que o sujeito nunca crie laços afectivos (com uma família, por exemplo) ou passionais (com um só amante). Essas emoções fortes criam motivações, ressentimentos, ódios, instabilidade. Para que todos sejam felizes, a sociedade tem de ser estável.
Neste mundo, nunca ninguém está sozinho nem tem tempo de pensar. Ou estão a trabalhar ou a divertir-se em jogos ou filmes. A juntar a isto, a sociedade fornece uma droga, Soma, para quem começar a pensar demais. A ciência está tão avançada que as pessoas podem divertir-se, sem adoecer ou envelhecer, até morrerem.
Isto não é muito diferente do nosso mundo, pois não? Até há quem já tenha experimentado este modo de vida. Tirando a parte não envelhecer e morrer de overdose, isto é.
Confesso que em algumas passagens me senti atraída por esta sociedade de juventude e felicidade permanente. Não era tão bom? Estar contente, estar sempre contente?
No nosso mundo, por exemplo, não se pode manifestar muita tristeza. Mandam-nos logo para o psiquiatra e dão-nos antidepressivos. Pensar demasiado na morte? Prolongar "demasiado" um luto? Não gostar particularmente da vida? Só podem ser doenças mentais. Venha daí uma tablete de Soma. Sim, estamos quase lá.
A esta sociedade chega um estranho, a quem chamam Selvagem, que acidentalmente leu todas as obras de Shakespeare. São obras proibidas, mas mesmo que estivessem disponíveis talvez ninguém lhes pegasse porque são “velhas”. O Selvagem fica chocado com o que vê. Foi criado noutros princípios e não quer viver numa sociedade sem individualidade nem espiritualidade, em que não existe noção de transcendente, em que não há sequer a necessidade de Deus.
Num diálogo muito filosófico com o Controlador do Mundo, o Selvagem diz-lhe:

"But I don't want comfort. I want God, I want poetry, I want real danger, I want freedom, I want goodness. I want sin."
"In fact," said Mustapha Mond, "you're claiming the right to be unhappy."
"All right then," said the Savage defiantly, "I'm claiming the right to be unhappy"


No nosso mundo, aqui, que não é uma utopia de certeza, há cada vez menos este direito à infelicidade. Ninguém quer ser infeliz e ninguém quer lidar com os infelizes.
Há dissidentes, no mundo artificialmente feliz de “Brave New World”. Mas não há medo, tortura, violência, intimação. Os dissidentes, os que recusam esta sociedade sem individualidade, são simplesmente enviados para ilhas distantes onde podem viver uns com os outros como lhes apetece. Dois dos amigos do Selvagem são enviados para lá, compulsivamente. O Selvagem também quer ir, mas recusam-lhe o desejo. Como filho de um pai e de uma mãe naturais, tornou-se um valioso espécime de estudo. Mas o Selvagem também não tem qualquer interesse em ser estudado. Foge da civilização, cheio de culpa e remorsos devido à morte da mãe, e entrega-se, por sua vez, a uma outra utopia, a religiosa, vivendo num farol abandonado como um monge eremita, com auto-flagelação e tudo.
Nem mesmo assim o deixam em paz. Alguém o descobre e o transforma num divertimento circense, numa atracção de Feira de Aberrações. Tal como eu previa, o Selvagem não aguenta mais este isolamento, esta sensação de ser único e incompreendido, e volta-se para o Soma também. Mas não previ o que aconteceria a seguir.
Este livro continua tão actual como no dia em que foi publicado, se não mais, porque a nossa sociedade caminha (ou já lá está?) para o hedonismo absoluto, mesmo sem precisarmos de ser condicionados. Quem é que não quer estar contente, sempre contente? Mas de que vale a vida sem a morte, a alegria sem o sofrimento? Valerá alguma coisa? Uma excelente reflexão a termos todos.

* Nota sobre “1984” de George Orwell
Entretanto, li também “1984” de George Orwell. Fiz a crítica, agendei o post, estava pronto a publicar. Desgraçadamente, entrei no post agendado para mudar uma vírgula. Com um CTRL+Z desastrado, apaguei o post todo. O Blogger tem um sistema de “auto save” e não me permitiu voltar atrás com outro CTRL+Z. Lá se foi a crítica toda, e que trabalho me deu a escrever! Como o post já estava pronto, corrigido e agendado no Blogger, já não tinha sequer o rascunho da crítica. Fiquei tão zangada, mas tão zangada, que desisti de a escrever outra vez. Neste momento ter-me-iam dado jeito uns comprimidos de Soma para acalmar. Serviu-me de lição. Agora não apago os rascunhos enquanto os posts não estiverem publicados e guardados em back up.
Devido à violência do livro, também não voltarei a lê-lo e muito menos a comentá-lo. Direi apenas que devia ser um livro de leitura obrigatória para toda a gente. Se ainda não leram “1984”, larguem tudo e vão já ler.



domingo, 20 de setembro de 2020

The Hunger Games / Os Jogos da Fome (2012)

 

É difícil não gostar desta história. Algures numa sociedade autoritária, uma revolta dos oprimidos foi esmagada pela elite opressora. Como castigo e “lembrança”, esta elite organiza jogos de morte escolhendo à sorte dois jovens de cada distrito insurgente. Este ano, a lotaria fatal calhou à irmã mais nova de Katniss, que parece não ter mais de 13 anos. Katniss, a irmã mais velha, voluntaria-se para ir aos jogos em seu lugar. Logo aqui temos de empatizar com a protagonista, uma irmã mais velha que se oferece em lugar da irmã mais nova sabendo que muito possivelmente irá morrer em vez dela. Katniss é corajosa mas não acredita nas suas hipóteses de derrotar os outros adversários. Começa um jogo mortal, transmitido na televisão para a elite organizadora, em que só um dos adversários pode ser vencedor. Todos os outros terão de morrer.
Digo que é difícil não gostar desta história porque é difícil não torcer pelos fracos e oprimidos. Mas depois de ouvir falar tanto de “The Hunger Games”, esperava muito mais daqui. Esperava algo que me chocasse, talvez. Mas se calhar depois de ver “Spartacus”, amargo e sangrento, já pouco me consiga chocar.
Ou se calhar os livros são melhores do que o filme, ou se calhar os filmes seguintes são melhores do que o primeiro e ajudam-nos a criar um laço mais forte com os protagonistas? Confesso que não queria ver a miúda morrer, mas tirando o facto de ser uma miúda a lutar pela sobrevivência não consegui senti-la como personagem tridimensional. Quem é Katniss quando não está a ser perseguida pelos campos? Não sei. Talvez os filmes seguintes me esclareçam.
“The Hunger Games” faz parte de uma série de Young Adult distópico que tem tido muito êxito recentemente. (Outro exemplo é “Divergente”, um filme que eu já vi e não gostei, de que nem me apetece fazer a crítica. Tenho o livro e perdi qualquer vontade de o ler.) Não me espanta que as gerações mais novas estejam fascinadas com distopias. Eu sempre estive, desde os clássicos “Farenheit 451” de Ray Bradbury e “1984” de George Orwell (que ainda não li mas está na lista), só para citar os que me ocorrem mais à memória. Durante uns tempos o gosto pela distopia parece ter-se esbatido, mas voltou em força. Não me admira nada porque estas são as primeiras gerações (a começar pela minha) que vão ter um nível de vida abaixo do que os seus pais tiveram. À medida que as desigualdades se aprofundam, regressa o interesse no modelo máximo da sociedade de elites e oprimidos, a sociedade distópica.
Isto para mim não é novidade nenhuma. A desigualdade é o estado normal do mundo segundo o conheço. Sempre cresci tão rodeada de pobreza, crueldade, indiferença, insensibilidade, hipocrisia (como a daquelas pessoas que ganham 5000 euros por mês e “sentem-se bem” a comprar comida para os pobrezinhos no supermercado duas vezes por ano, mas se calhar já não se “sentiam bem” se lhes pedissem para abdicar de quatro quintos do salário para o distribuir pelos trabalhadores explorados de forma mais justa para que estes já não fossem pobres, porque aí os pobres já são pobres porque são estúpidos, coitadinhos, e quem ganha 5000 euros por mês é porque os merece) para me comover com uma Katniss ficcional. Katnisses conheço eu muitas, de carne e osso, todos os dias a lutar pela sobrevivência e a engolir exploração e humilhações (quando não são coisas piores) porque precisam do ordenado mínimo para subsistir. Os verdadeiros Jogos da Fome.


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