"O diabo tem de sair por algum lado" - Carlinhos, em "Rabo de Peixe"
Em 2001, centenas de quilos de cocaína deram à costa em Rabo de Peixe. O que se passou depois poderia ter sido esta série. Quatro amigos da vila piscatória, um dos lugares mais pobres da Europa, decidem que esta é a sua única oportunidade de conseguirem uma vida melhor.
Lembro-me de ler sobre o incidente caricato na altura e lembro-me de pensar o que faria se fosse comigo. Bem, não fazia nada, exactamente por causa da polícia e dos traficantes. Vender cocaína aos quilos atrai demasiada atenção, algo que os protagonistas descobrem num instante.
Mas convenhamos. A droga dá 23 milhões e 820 mil euros. Põem este valor à frente de um pobre muito pobre, e o pobre não pensa duas vezes. Não por ganância ou desejo de luxos, mas porque "com esse dinheiro posso comprar uma casa à minha mãe". Eduardo, jovem pescador, o melhor aluno da sua turma, teve de deixar a escola para ir para o mar. O pai dele precisa de uma operação às cataratas e o Serviço Nacional de Saúde não dá resposta. É esta a sua motivação principal. Com o tempo, se tivesse conseguido chegar longe, daria mais em mau, como Walter White?
Sim, esta é quase a premissa de "Breaking Bad", um génio injustiçado que se mete no negócio da droga porque precisa do dinheiro para pagar as despesas médicas do filho. Eduardo não é um doutorado em Química como Walter White, mas também não precisa de ser. O seu conhecimento do mar, da geografia, do lugar, já o colocam à frente dos traficantes e da polícia. Depois é só preciso ter alguns dedos de testa, sangue frio, e um grande motivo de bom filho a ajudar o pai.
O enredo também segue a fórmula de sucesso drama/acção/humor/thriller que me recorda tanto de "Breaking Bad". Curiosamente, as críticas comparam mais a série a "Narcos", que eu não vi, mas "Narcos" é posterior. Da mesma forma, também encontrei aqui vestígios de "The Wire", mas podem ter chegado igualmente via "Breaking Bad" porque são séries que se foram influenciando umas às outras, e ainda bem. Já as influências de "Pulp Fiction", também comuns a estas séries todas, devem ter vindo directamente do original.
"Rabo de Peixe" (título em inglês "Turn of the Tide") esteve no Top 10 de séries mais vistas da Netflix e compreende-se porquê. Adorei a adaptação deste tipo de enredo a uma realidade portuguesa (e até fiquei com inveja de não se passar em Lisboa). Não temos os cartéis sul-americanos? Temos melhor e mais original, a máfia. Não temos o Tuco Salamanca? Temos o traficante de bairro, Arruda, com a fachada da oficina de mecânico. Não temos Jesse Pinkman a vender Blue Sky aos putos da esquina? Temos o playboy Ian a traficar com os nórdicos que conheceu quando viveu por lá. Não temos as mães de família dos bairros sociais norte-americanos? Temos as mães de família que vão à missa e competem entre elas para levar a imagem de Nossa Senhora para casa. Está tão bom, tão realista, tão bem feito, que não se consegue parar de ver episódio após episódio.
Disse que fiquei com inveja de não se passar em Lisboa, mas é só dor de cotovelo. As paisagens são tão deslumbrantes, tão fantásticas, e funcionam tão bem na história que não imagino isto noutro lado, e com certeza que as paisagens também contribuíram para o sucesso da série.
Por falar em paisagens, foi aqui que a credibilidade foi desafiada. Os Açores não são o deserto do Novo México. É preciso querer acreditar que tudo aquilo podia acontecer sem que aparecesse um pescador, um turista, um guardador de vacas, ou que qualquer pessoa pode subir por um farol acima, por exemplo. As testemunhas incautas que surgiam em lugares inesperados, até no meio do deserto, tornaram-se mesmo num dos elementos mais dramáticos de "Breaking Bad". Também não fiquei convencida com aquela troca de carro. É muito estranho que numa ilha, naquele ambiente de pobreza, conseguissem arranjar duas carrinhas precisamente iguais em tão pouco tempo, e com a mesma capota e com o mesmo crucifixo. Já nem falo da matrícula, porque algumas pessoas topam logo pela matrícula que não é o carro que elas conhecem. (Seria mais credível terem ali dois ou três populares a trocar o que ia na carrinha.)
"Rabo de Peixe" foi renovado para uma segunda temporada, e confesso que estou apreensiva. Esta foi uma grande história, bem contada, e, na minha opinião, bem resolvida. Receio muito a "maldição" da segunda temporada.
Agora uma nota sobre a banda sonora. Ganda bosta de banda sonora. Mas não culpo quem a escolheu. Isto era efectivamente a música que se ouvia na rádio na altura (na sua maioria). Compare-se com a banda sonora de "Yellowjackets", tudo êxitos dos anos 90, e temos aqui um bom exemplo do declínio da música mainstream a partir do ano 2000. (E não estou a falar de cenas alternativas, estou mesmo a falar da música dos tops de vendas, da música de massas.) Mas a série não tem culpa disto.
"Rabo de Peixe" é uma série de qualidade acima da média que merece o sucesso que teve e que nos pode deixar muito esperançosos quanto ao futuro da ficção televisiva.
(Para quando algo do tipo "Midnight Mass" à portuguesa? É que depois de ver isto, até dava, é que dava mesmo. Não estou a sugerir uma cópia, estou só a dar ideias.)
E aprendi quatro ou cinco palavrões que não conhecia, entre eles blica e naião, para não me esquecer.
E outra que eu também não sabia: rapexinho, natural de Rabo de Peixe.
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domingo, 17 de agosto de 2025
Rabo de Peixe / Turn of the Tide (2023 - ?) [primeira temporada]
domingo, 12 de novembro de 2023
The Wire (2002 - 2008)
Vi esta série policial por uma questão de arqueologia televisiva. Volta e meia, ao ler críticas a “The Shield”, a “Breaking Bad” e “Better Call Saul”, lá me aparecia uma menção a “The Wire”: “The Wire” isto e “The Wire” aquilo. Acabei por ver por curiosidade. Três episódios depois ponderei seriamente desistir. É sobre uma equipa de polícias a tentar apanhar uma rede de traficantes de droga de rua que usam pagers (pagers!) e cabines telefónicas (cabines telefónicas!) para contactarem uns com os outros. A série começa por volta de 2002 ou 2003, após o 11 de Setembro, e a maioria dos recursos foram deslocados para o contraterrorismo. Os polícias vêem-se gregos e têm de preencher catadupas de papelada para requisitar uma escuta telefónica (the wire) e descobrir o código que os traficantes utilizam. O humor (?) é questionável e impregnado do que hoje chamamos “masculinidade tóxica”. A série é tão datada que parece algo dos anos 80 ou 90. Mesmo assim, porque sou paciente, continuei a ver para perceber de onde vinham tantos elogios. “The Wire” tem cinco temporadas, cada uma com um enredo mais ou menos independente, e a história só começa a “aquecer” lá pelo meio de cada uma delas. Cada uma das temporadas traz consigo uma catrefada de personagens novos e eu também me vi grega para os distinguir e entrar na nova história.
Aqui vou parar para fazer a minha distinção no que toca a séries policiais: as de entretenimento e as dramáticas. Chamo entretenimento a séries em que os polícias bons apanham um criminoso por episódio, e é só isso. Uma série policial dramática, por outro lado, segue os polícias “para casa”, mostra-nos os seus problemas e a sua intimidade, torna-os tridimensionais em vez de máquinas de apanhar meliantes. (“Mentes Criminosas” começou assim mas as últimas temporadas descambaram na fórmula psicopata-da-semana, e isto só para falar de uma série que eu via porque geralmente não vejo séries sem uma grande componente dramática).
Da minha experiência como espectadora, a avozinha das séries policiais dramáticas foi “Hill Street Blues” (“A Balada de Hill Street”, 1981 - 1987). Aqui os polícias eram mesmo de carne e osso, tinham amantes e problemas de alcoolismo, e os meliantes não eram necessariamente vilões.
“The Wire” segue esta nobre tradição, o que só lhe fica bem, mas na minha opinião perde-se demais a tentar contar histórias tão díspares como as dos traficantes e dos toxicodependentes, as dos estivadores do cais que estão a ficar sem empregos, as dos putos dos bairros pobres que se vêem sem alternativa senão ir vender droga para a esquina, a do declínio da imprensa escrita e, por último, um enredo sobre ambições políticas e corrupção que nunca me conseguiu interessar. Tudo muito dramático e realista, sem dúvida, mas demasiado fracturado para ser coeso.
Fiquei completamente chocada quando consultei as datas de “The Shield”, que eu julgava uns dez anos posterior, e percebi que “The Wire” e “The Shield” são contemporâneos (2002 - 2008). “The “Wire” é uma série de qualidade, não há dúvida, mas não chega aos calcanhares de “The Shield”, uma história mais chocante, mais escorreita, com princípio meio e fim (coisa que “The Wire” ameaçava nunca vir a ter). Vic Mackey não punha escutas. Vic Mackey entrava por ali dentro e partia cabeças roubava a droga e o dinheiro, e ainda arranjava maneira de prender os traficantes à mesma. Vic Mackey e a sua Strike Team já não eram só polícias: eram os vilões. (Um deles matou o companheiro com uma granada!)
Daqui a “Breaking Bad” (2008 - 2013) foi um passo. Em “Breaking Bad” já não acompanhamos a acção pela perspectiva dos polícias: passámos completamente para o outro lado e torcemos pelos “maus da fita” (se é que o são, porque é debatível).
Tudo isto para dizer que penso que os elogios a “The Wire” se devem mais aos temas abordados, principalmente os temas políticos fracturantes na sociedade americana, do que propriamente à narrativa, enredo e personagens (se bem que alguns personagens tenham conseguido espaço “para respirar” e crescer, como Stringer Bell, o traficante de rua que acabou a gerir o negócio como se fosse o CEO de uma multinacional: isto sim, é um vilão de carne e osso!).
Vale a pena ver “The Wire” para compreender o panorama que nos trouxe a “Breaking Bad” e ao que está para vir, mas aviso já que é preciso alguma paciência para chegar à parte boa da história. Por exemplo, quando um detective decide “inventar” um serial killer para arrancar recursos da Câmara Municipal para apanhar uma rede de traficantes. Grande trapalhada quando mete os jornais também, e um jornalista tão inescrupuloso como o detective decide inventar notícias sobre o mesmo serial killer (inexistente). Mas para chegar aqui, ó Céus, foi preciso paciência!
Uma última curiosidade: em "The Wire" temos a oportunidade de ver um jovem Seth Gilliam a contracenar com Chad Coleman (respectivamente Padre Gabriel e Tyreese Williams em "The Walking Dead"). Aqui Seth Gilliam faz o papel de Sargento Carver, um durão que lhe assentava como uma luva. Talvez isto explique porque é que "The Walking Dead" foi buscar o Sargento Carver quando já ninguém suportava o Padre Gabriel?... Sinceramente, não me recordo de os dois personagens se encontrarem em "The Walking Dead" mas parece que também contracenaram juntos.
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domingo, 12 de fevereiro de 2023
El Camino: A Breaking Bad Movie (2019)
Só descobri que este filme existia porque “tropecei” nele a ler críticas de “Better Call Saul”. “El Camino”, realizado por Vince Gilligan e interpretado por Aaron Paul, conta-nos em duas horas o que aconteceu a Jesse Pinkman depois de ser resgatado por Walter White dos neo-Nazis que o mantinham escravizado a produzir metanfetaminas.
Embora lançado como filme, este último episódio de formato alargado funciona antes como um epílogo de “Breaking Bad”. Era necessário? Talvez não. É como comer um enorme gelado de chocolate depois de uma óptima refeição. É necessário? Não. Mas sabe bem!
Gostei muito de ver como Jesse cresceu durante o cativeiro, como abandonou o adolescente irresponsável que só queria mais droga. Agora Jesse é um homem que aprendeu a lição, perseguido pela Lei e atormentado pelo stress pós-traumático, que sabe que tem de estar disposto a correr todos os riscos e sofrer as consequências pela sua liberdade, e, em último caso, pela sua própria sobrevivência. Jesse brilha neste epílogo como o carisma de Walter White nunca lhe permitiu na série original.
Aconselho este filme a todos os amantes de “Breaking Bad”, a que ele obviamente se dirige, mas deixo o aviso: é melhor ser visto antes de “Better Call Saul”, não porque a série contenha spoilers mas porque é uma experiência muito mais satisfatória. Por exemplo, há uma cena em que Jesse tem de destruir o interior de um apartamento, paredes e tudo, à procura de dinheiro para escapar. Isto ecoa a outra cena em “Better Call Saul” em que Chuck destrói a sua própria casa à procura de fios de electricidade escondidos. Ou melhor, agora já sabemos que é Chuck quem ecoa Jesse e não o contrário.
Tal como tudo o que Vince Gilligan faz, este epílogo é uma obra-prima. Às vezes o que importa não é a chegada, mas o caminho. Tal como diz o título, este filme é sobre a viagem de Jesse para a liberdade.
terça-feira, 22 de novembro de 2022
[Actualizado] Better Call Saul (2015-2022)
[contém spoilers]
[Actualizado: quando fiz o post, por ser tão longo, esqueci-me de falar da cinematografia brilhante; corrigi essa falta no último parágrafo]
Saul Goodman é o melhor advogado do mundo. Se eu precisasse de um advogado podem crer que não pensava duas vezes antes de ligar ao Saul… desde que o pudesse pagar.
Na crítica à primeira temporada disse aqui que Saul Goodman é tão genial como Walter White, na sua especialidade, uma vez que Saul foi dos poucos que sobreviveu literalmente a Walter. Depois de vermos as seis temporadas da prequela descobrimos que Saul Goodman não sobreviveu apenas a Walter White, mas também ao psicopata Tuco Salamanca, ao ardiloso Hector, aos sinistros primos, ao perigoso Eduardo, ao implacável Gustavo Fring, e até mesmo ao fleumático Mike Ehrmantraut. Tendo em conta que Walter White eliminou todos estes personagens, directa ou indirectamente, e que Saul sobreviveu a Walter, acho que temos uma ilacção:
Walter White > [Salamancas, Fring, Ehrmantraut]
Saul Goodman > Walter White
O próprio Saul o diz: “Eu não era apenas um cúmplice. Eu era indispensável. Eu criei o império de Walter White. Sem mim, ele teria sido morto ou preso em menos de um mês”.
Se alguém pensou que a genialidade de “Breaking Bad” não podia ser ultrapassada, “Better Call Saul” pode muito bem vir a provar o contrário. É certo que não existem tantas explosões, perseguições, tiroteios e homicídios, mas transformar uma sessão de tribunal numa cena tensa e “explosiva”, como fazem Vince Gilligan e Peter Gould, não é para todos. É difícil encontrar adjectivos para qualificar o que é perfeito. “Better Call Saul” devia ser uma prequela à volta da personagem comic relief de “Breaking Bad” e tornou-se uma obra prima de storytelling, humor, personagens sólidas e enredo irrepreensível.
Dar em mau
Não existe uma expressão em português para exprimir o significado de “breaking bad”, excepto talvez o brasileiro “virar mau” ou “virar para o mal”, ou “tornar-se mau” ou “dar em mau”. Seguindo o tema da série-mãe, todos aqui viram para o mal. De Saul Goodman nós já sabíamos que ia dar em advogado de criminosos que aconselha Walter a desfazer-se de pessoas mandando-as para o “Belize”, só não sabíamos como é que ele lá chegava. O mesmo podemos dizer de Mike Ehrmantraut. O que desconhecíamos era sobre Ignacio Varga (“Nacho”), Chuck, Kim Wexler, e outras personagens fascinantes que não aparecem em “Breaking Bad”. A questão coloca-se, premente e inquietante, tendo em conta o universo de cartéis em que se movem: o que lhes aconteceu? Obviamente, não posso responder a essa pergunta.
Nacho, Fring, Ehrmantraut
Comecemos talvez por Nacho, o filho de um imigrante estofador de automóveis que quer mais da vida do que passar dia e noite agarrado à máquina de costura sem chegar muito longe. Trabalhando primeiro para o louco Tuco (a quem conhecemos muito bem de “Breaking Bad”), adquire mais responsabilidades quando este é preso. Mais responsabilidades, no universo dos Salamancas, significa mais violência, espancar e matar mais gente. Nacho é aquele rapaz de bom coração que percebe que se meteu em coisas demasiado negras para o que consegue suportar, mas não pode simplesmente fugir. Nacho sabe que fazer isso pode custar a vida ao seu pai, um “civil” que nunca quis nada com criminosos, e que muito provavelmente custará. O seu plano é convencer o pai a fugir, e até já mandou fazer passaportes falsos para ambos. Nacho é daqueles personagens de quem gostamos e por quem torcemos, mas a questão é complicada: como é que se foge aos poderosos Salamanca? Quanto mais Nacho lhes tenta escapar, mais se enrola com Gustavo Fring, o arqui-inimigo dos Salamanca.
De Gustavo Fring não aprendemos muita história passada. Alguns pormenores são-nos esclarecidos, mas no essencial a série-mãe já nos mostrou a sua backstory e a razão por que odeia tanto Hector. Quando muito, descobrimos que Fring é mais brutal do que o imaginávamos.
Já quanto a Mike Ehrmantraut, é uma reviravolta de 180 graus. O ex-polícia que conhecemos na primeira temporada a trabalhar como cobrador de bilhetes num parque de estacionamento era tão “certinho” que não aceitaria um suborno nem para deixar um carro sair sem pagar. Então, o que aconteceu? Uma parte já sabemos. Mike faz tudo pela neta e pela viúva do filho (igualmente um polícia, como o pai, assassinado em serviço). Mas a transformação não é de um dia para o outro. Pressionado pelas despesas da nora, tudo começa por aceitar um “biscate” como guarda-costas de um gajo de um laboratório que quer desviar comprimidos para vender aos gangues (esta substância serve como base à metanfetamina). Quem é que lá está para comprar? Nacho, às escondidas de Tuco. Nacho fica tão impressionado com a postura de autoridade, honestidade e profissionalismo que Mike lhe inspira que recorre a ele para tentar resolver um problema: Tuco, que naquela altura já tem a cabeça tão apanhada pelas drogas que mata homens leais à mínima paranóia. Justificadamente, Nacho receia ser o próximo e quer contratar Mike para matar Tuco. Mike arranja uma maneira melhor de se livrarem dele, mas é assim que se envolve com os Salamancas e acaba enterrado até ao pescoço ao serviço de Fring. A qualquer momento, Mike podia ter escapado, mas no seu caso a culpa é um pedregulho que o esmaga e prende a uma sentença auto-imposta: nos seus dias de polícia, Mike aceitava subornos. Aliás, toda a esquadra era corrupta. Quando chegou a vez do seu filho, Mike aconselhou-o a fazer como os outros se não queria arranjar problemas. Foi assim que o filho de Mike acabou morto e Mike não se consegue perdoar. Talvez por isso Mike sempre tenha exercido uma certa figura paternal com Jesse Pinkman, em “Breaking Bad”, e a repete aqui com Nacho.
James McGill vs Charles McGill
Antes de se chamar Saul Goodman, Saul era Jimmy McGill, irmão do prestigiado advogado Charles McGill, a quem tenta seguir as pisadas. Mas o que Jimmy McGill deseja ardentemente é merecer o respeito do irmão mais velho, e isso nunca conseguirá. Jimmy passou uma juventude de expedientes e pequenos golpes mas decidiu endireitar-se e tirar o curso por correspondência enquanto trabalhava na sala de correio da empresa onde o irmão é sócio: Hamlin, Hamlin e McGill (HHM). Conseguiu completar o curso e entrar na Ordem dos Advogados, tudo sem dizer uma palavra a Charles para a surpresa ser maior (e melhor, julga ele). Quando finalmente atinge este objectivo, conta ao irmão e pede-lhe um emprego na HHM. É aqui que acontece algo que pode ter virado Jimmy para o mal, se não mesmo *a coisa* mais relevante em toda esta escalada descendente. Em vez de uma oportunidade, Jimmy leva um chuto, sendo recusado por outro sócio da firma, Howard Hamlin. Tivesse sido contratado, ter-se-ia endireitado de vez? Nunca saberemos. É daquelas coisas. Mas foi aqui que começou a revolta. Jimmy já era capaz de recorrer a truques e expedientes. Saber que os ricos e privilegiados nunca o vão aceitar entre eles só o justifica mais para contornar a Lei quando lhe convém.
Mas fica pior. Jimmy acaba por descobrir que não foi Howard Hamlin mas o próprio Charles, ou Chuck, como os íntimos lhe chamam, quem lhe deu o chuto. Sem ter sequer a hombridade de lho dizer na cara, mandou o sócio fazer o trabalho sujo. Depois de muito espicaçado, Chuck acaba por confessar a Jimmy que este não pode ser advogado porque a Lei é demasiado sacrossanta para um tipo desonesto que nunca vai mudar. “É como pôr uma metralhadora nas mãos de um gorila”. Isto destrói Jimmy por dentro e envia-o no caminho de Saul. Acontece que Jimmy idolatrava o irmão. Chuck sofre de uma alergia à electricidade (psicológica, mas incapacitante) e vive numa casa a luz de camping gaz, sem frigorífico, sem conseguir sair para não se expor aos campos magnéticos que o “aleijam” lá fora. Durante anos, foi Jimmy quem o visitou todos os dias, logo de madrugada, para lhe levar comida fresca, gelo, mantimentos vários e até o Financial Times. E que recebe como paga? Ser chamado gorila com uma metralhadora nas mãos. Finalmente, Jimmy não desculpa o irmão (que sempre o menosprezou e lhe fez muitas e muitas como esta) e rompe definitivamente com ele. Eu já o teria feito muito antes e aplaudi.
Aqui vou cometer um spoiler. Chuck, furioso consigo próprio porque não conseguiu derrotar Jimmy, e frustrado porque sabe que a sua “doença” é imaginária, suicida-se. Por esta altura Jimmy já o tinha cortado da sua vida, que é o que se faz a pessoas tóxicas, e o suicídio não o afecta externamente. Faz-me confusão que as pessoas ainda esperassem, depois de tudo, que Jimmy sofresse pelo irmão, que o tivesse apoiado mais antes (para levar mais chutos?), porque são “sangue”. Lixe-se o sangue quando é tóxico. Ninguém merece uma vida de humilhação permanente e era isso que Jimmy tinha com Chuck. Até no suicídio, Chuck quis que fosse tudo sobre ele, a pobre vítima do irmão malvado a quem Chuck não conseguiu vencer em tribunal. Isto, sim, foi o que lhe atingiu o orgulho a ponto de se suicidar, e nada mais. Ninguém fica bem nesta fotografia.
Kim Wexler
Por último, a grande surpresa da série, Kim Wexler, ex-colega de Jimmy na sala de correio da HHM que também subiu a pulso na vida. Assistimos a como de amigos se tornam mais do que isso, e começamos a perguntar-nos: se Kim não está em “Breaking Bad”, se Saul Goodman nunca fala dela, o que aconteceu a Kim?
É impossível não nos apaixonarmos por Kim, com os seus defeitos e tudo. Kim começa por ser a bússola moral de Jimmy, avisando-o quando está a ir longe demais, até ao dia em que experimenta ela própria “virar má”. De início é apenas uma brincadeira, um pequeno logro em que ela e Jimmy fazem com que um estranho armado-em-bom lhes pague uma garrafa de tequila de 500 dólares (500 dólares a garrafa!). O que acontece depois é que Kim gostou demasiado da experiência. De amigos, Jimmy e Kim passam a ser amantes e cúmplices, mais tarde marido e mulher. E de novo nos dá um calafrio no estômago: o que aconteceu a Kim?
“Better Call Saul” gira em torno de dois grandes casos jurídicos. O primeiro, encontrado por Jimmy quando andava a ganhar a vida a custo a fazer testamentos a velhinhos por um preço irrisório, até que lhe sai a “lotaria”: descobre que uma grande cadeia de lares cobra demasiado e ilegalmente aos velhinhos, deixando-os apenas com uma pequena “mesada”. Isto transforma-se num litígio tão complexo que envolve a HMM e outras duas ilustres firmas de advogados. O outro caso é quando Kim consegue, sozinha, assegurar como cliente da HMM um banco local, Mesa Verde, ainda de tamanho modesto mas em plena fase de expansão. Desta vez, a culpa é mesmo de Howard Hamlin. Kim esperava ser promovida a sócia, mas é subestimada. O grande erro de Howard foi mesmo esse: subestimar Kim. Uma das firmas envolvidas contrata-a, para grande irritação de Howard, e Jimmy ajuda-a a “roubar” o cliente Mesa Verde à HMM recorrendo a tudo o que foi preciso, legal e ilegalmente. É a primeira vez que trabalham juntos, sabendo ambos que estão a transgredir, mas a verdade é que, ainda mais do que os benefícios materiais, estão ambos a divertir-se imenso. “Tu e eu, juntos, somos veneno”, dirá um dia Kim Wexler a Jimmy, mas ainda não. Agora o alvo é Howard Hamlin. Começa igualmente por ser uma brincadeira, uma conversa de cabeceira, mas Kim vira mesmo para o mal e da conversa passa-se à prática. O caso dos velhinhos explorados ainda não chegou a acordo porque os advogados de cada lado se recusam a ceder. Por cada ano que passe, menos tempo terão os velhinhos para aproveitarem a indemnização. Por outro lado, Jimmy, que aqui já é Saul Goodman, tem direito a um bónus quando o acordo acontecer. Então, porque não dar cabo da imagem de Howard Hamlin, desacreditá-lo, obrigá-lo a chegar a acordo e pôr fim ao processo? Era só isso, sem mais consequências e nem sequer muito graves: insinuações, acusações falsas e desmentíveis. Subitamente, a vida de Howard torna-se um inferno. E ainda assim ele continua a subestimar Kim, julgando que é tudo ideia de Jimmy/Saul, por dinheiro, quando na verdade já é ela quem puxa os cordelinhos, por vingança. (Howard nunca ouviu dizer que a fêmea da espécie é mais letal do que o macho…) Por fim, até Howard abre os olhos e põe o dedo na ferida: “Vocês não me fizeram isto por dinheiro! Vocês fizeram-me isto porque vos está a dar gozo!” Touché!
O homem que viveu duas ou três vezes
Um gozo que acaba em tragédia, e uma tragédia que dá origem ao maior segredo de “Better Call Saul”: a série não é apenas uma prequela; os últimos episódios, filmados a preto e branco, muito à film noir, são uma sequela. A princípio não percebi o preto e branco até me lembrar de Hitchcock. Mas é claro que os génios criativos por detrás de “Breaking Bad” e “Better Call Saul” devem adorar Hitchcock. Até uma das personagens-chave destes últimos episódios se chama Marion, como a personagem de “Psycho” assassinada no duche. Mas confesso que não gostei do preto e branco, o que não passa de uma preferência pessoal de quem cresceu com a TV a cores.
O final também não me convenceu. Não é que não seja válido e chocante, mas depois de tudo e mais alguma coisa Saul Goodman, vencedor, deita tudo a perder por amor? A sério, por amor? A minha natureza cínica revolta-se por dentro. Infelizmente não posso contar mais nada ou explicaria melhor as minhas razões. O que não quer dizer que Saul, novamente transformado em Jimmy McGill, não fosse capaz, mas com recompensas que valessem a pena.
Terminei “Better Call Saul” cheia de vontade de ir ver “Breaking Bad” outra vez, mas mudei de ideias. Não é a mesma série, não é a mesma história, não são as mesmas personagens. “Better Call Saul” vive e completa-se por si própria, não depende de mais nada. E as gargalhadas, ah, as gargalhadas. Quando Jimmy decide convencer o patrão a despedi-lo sem justa causa é o melhor momento de humor da série toda. Mas atenção, isto não é um programa cómico e há aqui passagens tão ou mais pesadas do que no predecessor. Aconselho a toda a gente que gostou de “Breaking Bad” e do humor de Saul Goodman. Genial!
[Actualizado] Cinematografia
Com todo este drama, até me esqueci de falar na cinematografia, e que falha seria não salientar esse trabalho de bastidores. Passa despercebido ao olho leigo, mas nem sequer consigo imaginar a criatividade necessária para filmar cada cena de uma perspectiva de câmara diferente: de dentro de uma mala, de cima da bancada da cozinha, a seguir os passos de Jimmy ou Kim. Nunca sabemos onde a câmara vai estar. O jogo de luz e sombra, o uso de cor e a falta dela, são verdadeiras delícias.
E depois temos momentos quase surrealistas. Lembro-me, por exemplo, da passagem em que Jimmy é obrigado a deitar um cone de gelado de menta para o chão (que vai ser importante mais tarde) e uma formiga solitária o encontra. Seguem-se minutos de beleza e estranheza enquanto todo o formigueiro explora e se apodera deste “festim”, ao mesmo tempo que a formiga solitária atinge o topo do cone. Durante todo este bocado, vimos (e ouvimos?) o mundo da perspectiva das formigas. Tal como na poesia, cada um terá a sua própria interpretação (a haver alguma) do significado deste desvio no âmbito da história. Muita gente diria que esta extravagância não avança o enredo nem desenvolve as personagens e que podia ser cortada. Não posso concordar! A cena das formigas é poesia e a poesia não precisa de justificação.
A cinematografia de “Better Call Saul” é poesia, e está tudo dito.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: Quantas vezes se deve ver uma obra-prima?
domingo, 3 de janeiro de 2021
Better Call Saul
[contém spoilers de “Breaking Bad”]
Que série tão boa! Deve ser a primeira vez que faço a crítica a uma série antes de acabar de ver a primeira temporada. É que já estou convencida e ainda não vi o último episódio.
“Better Call Saul” é um spin off e uma prequela de “Breaking Bad”, a história do homem que viríamos a conhecer por Saul Goodman, advogado amoral e sem escrúpulos.
Em “Breaking Bad”, Saul Goodman era em todas as suas aparições o comic relief de uma tragédia. Por isso também parti para esta série enganada, à espera talvez de uma série humorística. E de facto “Better Call Saul” tem momentos verdadeiramente hilariantes, mérito do actor Bob Odenkirk e dos criadores Vince Gilligan e Peter Gould, mas afinal é a história dramática do homem chamado Jimmy McGill. Aproveitamos para aprofundar também outra personagem de peso de “Breaking Bad”, Mike Ehrmantraut, que nunca chegámos a conhecer verdadeiramente porque não era pessoa de muitas falas e muito menos confidências.
Vimos “Better Call Saul” e perguntamo-nos: como é que nunca se percebeu a grande personagem que aqui estava em Saul Goodman? Fácil. Porque em “Breaking Bad” todas as personagens eram grandes, mas nenhuma conseguia brilhar ao lado da estrela poderosa Walter White. Walter White, como um buraco negro, sugava todas as atenções. De tal modo que ver “Better Call Saul” me levou a visionar algumas partes de episódios de “Breaking Bad” e decidi ver esta última série outra vez. O apelo de Walter White é demasiado magnetizante para olharmos para o lado.
Mas aqui, Saul Goodman, ou melhor, Jimmy McGill, pode brilhar à vontade. Esta é uma série completamente focada nas personagens, que nos consegue manter interessados mesmo quando eles estão a discutir pormenores da lei e casos de tribunal de que não percebemos nada. As personagens são tão realistas que quase sinto que as conheço. Por exemplo, a relação de amizade entre Jimmy e Kim, que às vezes parece a de dois ex-namorados, outras vezes nem parece ter chegado tão longe. São apenas dois amigos que mandam bocas um ao outro e se ajudam mutuamente, lealmente, quando é necessário. Amizade pura, muito mais interessante do que qualquer envolvimento romântico.
Jimmy McGill pode não ser o génio científico que Walter White era, mas não deixa de ser um génio à sua maneira.*
[*Aliás, e perdoem-me outra referência e spoiler de “Breaking Bad”, que Saul Goodman seja um génio não é de admirar. Só uma inteligência acima da média conseguiria escapar com vida (literalmente, com vida) à devastação nuclear que a implosão de Whalter White provocou em seu redor.]
Sempre um grande espertalhão, passou uma juventude de expedientes e burlas até decidir seguir as pisadas do irmão mais velho, a quem põe num pedestal, e tira um curso de Direito por correspondência. Ou melhor, agora chama-se “à distância”, como ele nos recorda. E é então que aparece McGill o advogado, ainda sem os cartéis mas já o animal feroz que viremos a conhecer como Saul Goodman.
Jimmy McGill vive nas traseiras de um salão de beleza, nuns arrumos, a sua “casa” e “escritório”, e faz das tripas coração para se assumir na profissão, licitamente, a ganhar uma ninharia como defensor público. E Jimmy McGill é um advogado genial, mas tem sempre algo a travá-lo.
Nesta primeira temporada percebemos que foi uma traição que o impediu de progredir, uma traição de partir o coração. Uma traição cheia de ingratidão, que Jimmy McGill não merecia. A traição de quem mais tinha o dever de estar do seu lado.
Nem preciso de mais nada para perceber como é que o bem-intencionado Jimmy McGill se transforma no cínico Saul Goodman que conhecemos na série original. Está explicado. Mas isto não acaba aqui. “Better Call Saul” já vai na quinta temporada, um verdadeiro sucesso tendo em conta que começou como spin off e prequela. Episódios tão bem equilibrados entre o dramatismo e o humor são coisa de verdadeiro génio. Esta é uma série para ver e para rever. Por esta altura, já não espero outra coisa do criador Vince Gilligan.
domingo, 8 de março de 2020
Bates Motel
[crítica à primeira temporada]
Quando ouvi falar de uma série chamada “Bates Motel” e baseada no filme “Psycho”, pensei que o enredo seria: um episódio, um hóspede, um homicídio. Tipo “Dexter”.
A série tenta ser muito mais ambiciosa do que isso. O problema é se consegue atingir o que se propôs. Acabei de ver a primeira temporada e ainda não estou convencida.
“Bates Motel” pretende ser uma prequela de “Pshyco”, anacronicamente passada nos nossos dias, com um Norman Bates adolescente antes de ser o serial killer que conhecemos de Hitchcock. E qual é a figura chave na vida dele que o tornou assim? A mãe, claro está. Esta história é tanto sobre Norma Bates (a mãe), se não mais, como sobre Norman. Os próprios nomes, óbvios, dizem-nos como Norma é possessiva para com o filho. Norman é dela, Norma, e de mais ninguém. Mas esta Norma da série não é a bruxa má que se adivinha do filme (já explicarei porque digo isto).
Na primeira cena da série, o pai de Norman está morto na garagem num acidente muito suspeito. Como consequência desta morte, Norma e Norman mudam-se para a pequena vila costeira de White Pine Bay, onde ela pretende reconstruir a sua vida explorando o motel que comprou com o dinheiro do seguro de vida. Este é logo o primeiro mistério da série. A morte do pai de Norman parece tudo menos um acidente e o dinheiro do seguro dá muito jeito. Como sabemos quem é Norman Bates a nossa tendência é pensar que foi ele… até conhecermos a mãe. E Norma começa a matar, embora em legítima defesa, logo no primeiro episódio.
Não há volta a dar, Norma torna-se uma personagem ainda mais fulcral do que Norman. A interpretação de Vera Farmiga é uma força da natureza. Norma é manipuladora, emotiva, dramática e algo destrambelhada. É o próprio Norman quem a descreve melhor, numa cena em que exasperado lhe grita: “Tu és maluca!” E ela é maluca. Sabem aquelas pessoas que quanto mais se querem desenvencilhar de uma má situação, mais se embrulham? É o caso.
Mas se Norma é maluca, quem sai aos seus não degenera: Norman é mais maluco do que ela. Norman é tão “maluco” que nem sabe que é maluco. Tal como no filme, o adolescente Norman já sofre de episódios dissociativos com “apagões” em que não se lembra do que fez, à mistura com alucinações que muitas vezes nos fazem questionar se aquilo que estamos a ver está mesmo a acontecer ou se se passa apenas na cabeça dele. (Se calhar a intenção da série não era criar esta ambiguidade, mas a partir do momento em que o protagonista alucina conversas e situações a nossa dúvida é inevitável.) O domínio de Norma sobre ele é tanto manipulativo como impróprio. Norma não se parece aperceber (ou não quer admitir) que o filho já tem 17 anos. Prestes a perder o controlo sobre tudo na sua vida, Norma usa Norman como o seu ponto de apoio, quando devia ser ao contrário, ao mesmo tempo que este Norman quase adulto quer fazer tudo para ajudar a mãe, criando entre ambos uma relação de co-dependência com que muitos espectadores se vão identificar de certeza (excepto, espero eu, a parte em que Norma se vai deitar na cama com o filho como se este tivesse 3 anos).
Como se não bastasse todo este drama (direi mesmo patologia) que mãe e filho trazem com eles, White Pine Bay também não é um lugar muito seguro onde se viver. Aparentemente uma vila pacata à beira-mar, toda a economia de White Pine Bay gira em torno de criminalidade em vários graus, desde o cultivo de marijuana ao tráfico de escravas sexuais. E tudo, parece, com o conhecimento do xerife Romero (Nestor Carbonell, o Richard Alpert de “Lost”), que sabe muito mais do que dá a entender. Há até teorias de que é ele o grande Chefão do crime todo, o que nunca é confirmado na primeira temporada mas não me admiraria mesmo nada. Esta “vila pacata cheia de segredos” tem feito com que “Bates Motel” seja comparado a “Twin Peaks” e até a “Breaking Bad” (por causa das actividades criminais em cada canto), mas na minha opinião as semelhanças começam e acabam aí.
Várias séries dentro da mesma série, mas no mau sentido
Um dos grandes problemas da primeira temporada, embora com certeza tenha sido feito de propósito não fossem os espectadores aborrecerem-se, é que às vezes parece que estamos a ver séries diferentes na mesma série.
Se não, vejamos. Nesta versão, Norman tem um meio-irmão mais velho, Dylan, filho de Norma e de um relacionamento anterior ao pai de Norman (este relacionamento também é um mistério). Dylan, no meio desta maluquice toda, é um gajo normal. E por ser normal, saiu de casa o mais cedo possível e tem uma relação distante e conflituosa com a mãe. Mas, ao perder o emprego, vê-se obrigado a ir morar com ela em White Pine Bay. Nota-se que Dylan é um jovem desenrascado, mas talvez por pobreza (ele próprio se queixa que nunca tinham dinheiro para nada) não parece ter estudos. Ao chegar a White Pine Bay arranja um trabalho justamente com o gangue da marijuana, e é tão bom no que faz que é logo promovido. Mas apesar da sua ocupação criminal, Dylan acaba por revelar-se um jovem sensível e amigo do irmão, talvez a única influência normal na vida dele, que quer afastá-lo da influência tóxica de Norma. É impossível não gostar de Dylan. O próprio Norman começa por não gostar muito dele (especialmente porque Dylan odeia Norma) mas Dylan acaba mesmo por conquistá-lo com amizade, conselhos e companheirismo. Acompanhar Dylan é como ver outra série, uma série de drama e crime em que um jovem tenta desenrascar-se como pode.
Depois, temos um sub-enredo Young Adult à volta da escola nova de Norman. As miúdas populares da escola, por alguma razão, engraçam com ele, e uma delas, Bradley, até dorme com ele num momento vulnerável da vida dela. Norman julga que é o início de uma relação séria, mas afinal o sexo não significou nada para Bradley. (Alerta Norman Bates: aos 17 anos já foi seduzido, usado e descartado por uma rapariga bonita e inacessível… o que obviamente o deixa magoado. Mas magoado a ponto de querer matar todas as mulheres bonitas? Ainda não.) Ao mesmo tempo, Norman conhece Emma, uma rapariga com uma doença pulmonar grave, que, esta sim, tem um grande fraquinho por Norman, embora não seja correspondida. É através dela que Norman se envolve na descoberta das escravas sexuais chinesas que são traficadas em White Pine Bay, sendo que o motel era uma base de operações para os traficantes. Todo este sub-enredo é típico de Young Adult, em que os adolescentes se metem em aventuras que são areia a mais para a camioneta deles.
E depois temos toda a maluquice de Norma, que contagia quem contracena com ela e que muitas vezes transforma a série numa comédia negra (ou apenas comédia?). O problema é que não se percebe se o objectivo destas cenas era mesmo serem cómicas, ou se ficaram tão disparatadas que nos deixam a pensar se é para rir ou não.
Todos estes sub-enredos podiam funcionar perfeitamente, mas em “Bates Motel” simplesmente não encaixam muito bem, criando a tal sensação de que foi tudo ali pespegado com fita-cola e que estamos a ver “filmes” diferentes no mesmo filme.
Um sub-enredo muito falhado
Mas ainda sobre as escravas sexuais, foi onde a série meteu mesmo a pata na poça. Um assunto grave como este devia ser tratado com a maior seriedade, mas “Bates Motel” tratou-o com uma leviandade quase cómica. Quando deixou de interessar ao enredo principal, o sub-enredo das escravas sexuais desapareceu num instante. A escrava sexual foi, aparentemente, abatida a tiro nos bosques por um dos vilões, sem que víssemos a morte, sem que nunca mais ninguém se importasse com ela nem em descobrir o seu corpo. Pobre escrava sexual, não passou de um filler para encher episódios. Muito mau, muito mau.
O actor que faz de Deputy Shelby, o traficante de escravas, também não podia ter sido mais mal escolhido. É nada menos do que Mike Vogel (que eu conheço principalmente como protagonista de outra péssima série, “Under the Dome”; quando é que dão um papel como deve ser a este actor, que merecia muito melhor do que isto?).
Ora, basta olhar para Mike Vogel. Isto não é um homem que precise de manter uma escrava chinesa presa na cave. Isto é um homem que deve ter uma fila de mulheres à porta daqui até à China. [Sim, também estou a ser leviana, mas não resisti à piada.] Na vida real, a procura de escravas sexuais não tem nada a ver com necessidades e/ou atractivos físicos dos abusadores, mas com factores muito mais desviantes, entre eles o desejo de domínio absoluto sobre a vítima e o sadismo. Este Deputy Shelby devia ser um tipo asqueroso e sádico, mas não é nada do que vemos aqui (ou não tivemos tempo de ver porque a personagem nunca chegou a ser desenvolvida como devia ser.) O pobre actor bem tenta, o melhor que pode, transmitir este factor asqueroso à sua personagem, mas nunca teve muito com que trabalhar. Em vez de um traficante de pessoas, os seus diálogos eram mais adequados a um criminoso vulgar, um traficante de droga, por exemplo. O Deputy Shelby foi a personagem mais mal conseguida num cast que, pelo contrário, nos apresenta personagens bastante sólidas e credíveis. Mais valia terem arranjado antes uma rede de exploração de trabalho de imigrantes ilegais, o que é igualmente mau, mas não tão mau como o rapto e violação de mulheres.
Este sub-enredo das escravas sexuais foi tão mal feito, e as críticas foram tantas, que se calhar os autores da série nem o quiseram corrigir e acabaram com ele abruptamente.
Os bons momentos superam os maus
O que funciona muito bem é a dinâmica entre Norma e Norman, e até mesmo Dylan, quando a família disfuncional se encontra dentro de portas.
Aqui nota-se que “Bates Motel” foi pensado a partir de “Psycho”, com o infame cenário exterior e interior da casa e do motel, e os personagens vestidos num guarda-roupa tão retro que podia bem passar pelos anos 60, e principalmente aquelas televisões antiquíssimas onde Norman gosta de ver filmes a preto e branco. [O maior mistério da série, na minha opinião, é como é que eles conseguem manter aquelas televisões a funcionar quando há muito tempo que a minha pifou e mandar arranjar uma televisão daquelas fica mais caro do que comprar um plasma, já para não falar que essas televisões não tinham entrada para cabo nem gravador de vídeo, só para antena analógica, então como é que Norman consegue ver os filmes a preto e branco se não tem um canal “Memória”?] O pai de Emma é também um taxidermista que ensina Norman a embalsamar animais, o que faz sentido com o filme. E algumas vezes os realizadores da série filmam certas cenas com um toquezinho de Hitchcock que resulta muito bem, como daquela vez em que Norma encontra um cadáver autopsiado na sua cama e desata a gritar histericamente, algo que podia ter feito parte do filme original ou de filmes da mesma época, ou a cena em que Bradley rejeita Norman, sozinhos, rodeados de nevoeiro, e não deve ter havido um espectador que não tenha pensado que era ali, que era já, que Norman a estrangulava de raiva.
Mas Norman é um miúdo adorável, por quem torcemos, com quem não é difícil empatizar porque sabemos que durante os episódios dissociativos ele não tem consciência do que faz. Por exemplo, Norman encontra uma cadelinha abandonada e quer logo ficar com ela, mesmo quando Norma não aprova. Quando a cadela morre atropelada (isto foi para manipular os nossos sentimentos) Norman fica devastado e leva-a ao pai de Emma para a embalsamar. Como é que não se gosta de um miúdo assim?
E depois existe ainda um outro sub-enredo, em que uma professora de Literatura de Norman, de trinta anos no máximo, bonita e sexy, se interessa demasiado por ele. Em todas as cenas em que estão juntos sempre me pareceu que aquilo era ainda mais impróprio do que a relação super imprópria de Norman com a mãe. Abraços e festinhas na cara? Isto, comigo, e esse professor/professora era logo denunciado ao Conselho Directivo. Não admira que o pobre Norman fique traumatizado com as mulheres. É preciso ter azar com tantas malucas na vida dele. No fim da temporada, esta professora aparece degolada depois de uma cena em que Norman a vê mudar de roupa (talvez de propósito à frente dele), expondo uma lingerie super sexy. Mas se pensam que isto é um spoiler, pois não é! Porque antes disto a vemos ter uma violenta discussão ao telefone com um ex-namorado que parece estar a ameaçá-la (e que, segundo outras pistas, também deve estar ligado às actividades criminais da terra). Norman estava em casa da professora antes de ela morrer e volta para casa muito perturbado, com um dos seus “apagões”, mas nada nos garante que tenha sido o seu primeiro homicídio. Conhecendo a série e as suas voltas e reviravoltas, não me admirava nada que tivesse sido antes o tal ex. Mas esse é um mistério para a segunda temporada.
A verdade é que “Bates Motel” devia ser a prequela de como Norman Bates se transforma num assassino e estamos todos à espera do momento inevitável em que ele comece a matar. O maior problema da série é que não se está a ver como é que vão transformar aquele miúdo adorável num serial killer. Não é preciso ser um grande psicólogo para perceber que o problema do Norman Bates do “Psycho” era a repressão sexual e a educação puritana que recebeu. Aquela cena do duche, a faca e a mulher nua, tudo aquilo é sexualidade reprimida. E não é difícil de imaginar a Norma Bates do filme como uma daquelas mulheres para quem o sexo é algo de sujo e pecaminoso, sempre a dizer ao filho “aquelas ordinárias, olha como se comportam agora, sem decência nenhuma, isto não é de boas raparigas, não dês o desgosto à tua mãe de andar com essas galdérias, etc”. Ora, a Norma da série não é nada disto e repressão sexual é coisa que não existe naquela casa. Pelo contrário, eu diria mesmo que existe descontracção sexual a mais. Tanto da parte de Norma, sexualmente muito activa sem o esconder dos filhos, como da miúda da escola que dormiu com Norman e não significou nada, como da parte da professora que anda sempre vestida como uma mulher fatal. A temática sexual paira sempre sobre o enredo nas suas formas mais extremas (desde a parte das tais escravas sexuais até às alusões ora subtis ora explícitas de incesto, passando pela violação mostrada logo no primeiro episódio e muito realista), às vezes de forma dramática e bem feita, outras vezes não tão bem conseguida. Será por aí que a psique frágil de Norman vai ser afectada? É que uma mãe destrambelhada não chega para fazer um serial killer. A própria série o prova com o caso de Dylan, filho da mesma mãe e criado na mesma maluquice.
“Bates Motel” é uma série com muitos desequilíbrios e altos e baixos, mas estranhamente viciante, talvez devido à solidez dos personagens. Os momentos bons superam os maus e conseguimos seguir a história com interesse por muitos desvios mal pensados que nos surjam ao caminho. Além disso, a série vale a pena nem que seja só pela performance fantástica de Vera Farmiga, que eu não conhecia (embora o nome não me fosse estranho uma vez que conheço a irmã mais nova, Taissa Farmiga, de “American Horror Story”). Fiquei fã.
segunda-feira, 1 de julho de 2019
Colony (2016-2018)
[crítica às três temporadas; contém spoilers]
É um erro pensar nesta série como mais uma invasão extraterrestre. “Colony” é a história de uma família que tenta sobreviver a uma colonização repressora e brutal onde a vida humana perdeu o valor. Nada do que acontece aqui não aconteceu já em várias ditaduras do século XX. Desde a Ocupação nazi e à Resistência francesa (onde a série se inspira predominantemente), às outras ditaduras fascistas e comunistas, das europeias às soviéticas, às asiáticas, às latino-americanas. A invasão extraterrestre é uma desculpa para revisitar episódios da História tão monstruosos que é mais fácil imaginá-los cometidos por criaturas de outro planeta.
Will Bowman (Josh Holloway, o Sawyer de “Lost”) era um agente do FBI antes de chegar a Ocupação, mas agora o mundo está muito diferente. Quando a série começa, a invasão já aconteceu. Em flashback, vemos como os alienígenas dividem a área de Los Angeles em várias colónias através de umas titânicas muralhas de metal que caem directamente do céu nocturno e destroem tudo onde aterram (mais uma boca política a um certo muro…). Ao mesmo tempo, todos as forças de segurança, policiais e militares, são estrategicamente eliminadas (assassinadas) como medida para prevenir uma rebelião inicial. Não que tal rebelião fosse muito longe, porque os meios militares dos invasores são de tal modo avançados que neutralizam qualquer tecnologia terrestre. Os seres humanos não têm capacidade para se defender e têm de se submeter por uma questão de sobrevivência. Will consegue escapar a esta onda de assassinatos assumindo o nome de um vizinho que estava fora de Los Angeles e começando a trabalhar como mecânico. Kate Bowman, esposa de Will, (Sarah Wayne Callies, a Lori de “The Walking dead” e a Sara Tancredi de “Prison Break”) tem um bar que é fechado pela Ocupação. Existe um recolher obrigatório e qualquer incauto apanhado na rua depois de soar a sirene tanto pode ser morto imediatamente pelos drones extraterrestres que vigiam as ruas como, pior, ser preso e enviado para um lugar sinistro chamado a Fábrica, de onde nunca ninguém volta.
O drama dos Bowman é que um dos seus três filhos (o miúdo do meio, Charlie) ficou preso noutra colónia e não o conseguem ir buscar. As deslocações são proibidas. A colónia é uma grande prisão. Automóveis, telemóveis, todos os meios de comunicação avançados, foram neutralizados ou proibidos pela Ocupação. Os residentes recorrem a chamadas em cabines telefónicas anónimas onde, como nos tempos das ditaduras do século XX, transmitem mensagens em código. Tudo está a ser vigiado pelas câmaras da Ocupação, todas as comunicações são ouvidas. Noutras das alusões à Segunda Guerra Mundial, é através de frequências secretas de rádio que a Resistência transmite informação codificada.
A comida é racionada. Algumas pessoas, como os diabéticos, que é o caso do sobrinho de Kate, não têm acesso a medicamentos porque os Anfitriões (nome dado aos extraterrestres pelos representantes humanos da Ocupação) não consideram as suas vidas relevantes. Para os Anfitriões, os seres humanos são apenas um recurso: mão-de-obra em campos de trabalho, de onde se mantém toda a logística da Ocupação. A alusão aos campos de concentração nazis é arrepiante quando vemos um grupo de pessoas chegar à tal Fábrica, onde homens e mulheres (todos juntos) são mandados despir completamente e submeter-se a um “banho” químico de descontaminação. Nunca nos é explicado, mas pressupõe-se que quaisquer bactérias que transportem poderão ser nocivas à tecnologia extraterrestre. Esta tecnologia, descobrimos mais tarde, também é radioactiva, o que faz adoecer os trabalhadores que entram em contacto com ela. Vemos um deles começar a tossir sangue e a ser prontamente levado para parte incerta. Já não sendo produtivo, adivinha-se-lhe o que lhe acontece. Outros trabalhadores (vítimas) o substituirão.
Mas isto é na Fábrica, um verdadeiro campo de extermínio de todos os que lá vão parar. Cá em baixo na Terra (a Fábrica não fica na Terra) os ocupados tentam por tudo sobreviver e evitar ir lá parar.
Nem eram precisas listagens
Porventura o mais chocante desta série (chocante para quem não conhece os perversos mecanismos dos sistemas ditatoriais como eles sempre se desenvolveram) é a quantidade de pessoas que colaboram voluntariamente com a Ocupação, que fazem do lema do inimigo o seu lema, que por instinto de sobrevivência ou sadismo nada se importam com a vida dos seus semelhantes desde que mantenham o seu poder dentro da Autoridade Global, a face humana da Ocupação. A série até aproveita para fazer um comentário à actualidade, explicando que estes colaboradores de topo foram seleccionados um a um antes de chegar a Ocupação através dos seus dados online. Alguém diz mesmo que as nossas vidas estavam todas na internet para eles escolherem. Existe verdade nisto. Actualmente a nossa vida está toda online. E nem me refiro apenas às redes sociais, onde só partilhamos o que queremos. Refiro-me mesmo aos serviços do Estado, especialmente dados médicos e financeiros, onde qualquer hacker pode descobrir que lojas frequentamos, que medicamentos tomamos, que produtos consumimos. Tanta informação nas mãos erradas é uma receita para nos desenharem o perfil: pobre, abastado, casado, solteiro, desportista, sedentário, feliz, infeliz. Nas mãos de um regime ditatorial, o perfil seria diferente: saudável (mão-de-obra capaz), doente (dispensável, a eliminar), pai ou mãe (mais susceptível a intimidação), e por aí fora. Na série, com a ajuda dos colaboradores humanos, os Anfitriões tiveram acesso a listas de possíveis colaboracionistas e de elementos indesejáveis a abater. Assustador, não é?
Mas na vida real nunca foram precisas estas listagens. Basta que qualquer grande facínora chegue ao poder que imediatamente se encontra rodeado de batalhões de pequenos facínoras à cata do seu quinhão de poder que numa sociedade democrática e regida pela ética dificilmente conseguiriam alcançar. (E mesmo assim conseguem, que os pequenos facínoras também sabem jogar pelas regras.) O que “Colony” mostra aqui é a realidade nua e crua que o vizinho do lado ou o amigo de longa data pode ser o primeiro a mandar-nos para a Fábrica, especialmente se for uma questão de “nós ou ele”.
Colaboras ou resistes?
“Colony” começa quando Will consegue esconder-se, clandestino, num camião de carga destinado à colónia onde se encontra o seu filho Charlie, na esperança de o encontrar. Para seu azar, a Resistência faz explodir o camião quando este cruzava a passagem entre as duas colónias, debaixo da muralha alienígena, para potenciar o número de vítimas entre os colaboradores. Will é preso, o seu verdadeiro nome é revelado, e é-lhe feita uma proposta que ele não pode recusar: trabalhar para a Autoridade Transicional e ajudar a capturar os terroristas responsáveis pela explosão (na perspectiva da Ocupação, a Resistência é uma organização terrorista) ou… ganhar um “bilhete de ida” para a Fábrica, ele e toda a família. Por outro lado, se colaborar, prometem-lhe a possibilidade de lhe ser devolvido o seu filho.
O poster da série pergunta: Colaboras ou resistes? É fácil responder quando não se tem família, pais e filhos sujeitos a represálias, e até, neste caso de uma ditadura brutal, a correrem risco de vida. De repente, a resposta não é assim tão simples. Will aceita, por falta de opção.
Kate começa a envolver-se em actividades clandestinas para arranjar insulina para o sobrinho no mercado negro. Ao saber que o marido está a colaborar com a Ocupação, Kate decide, por sua vez, entrar em contacto com Eric Broussard, ex-militar e implacável membro da Resistência, para o ajudar na luta contra os ocupantes. Agora que Will tem acesso aos bastidores da Autoridade Transicional, Kate torna-se um elemento muito útil para a Resistência, obtendo informação privilegiada através do marido, que de nada suspeita.
“Colony” é, acima de tudo, e principalmente nas duas primeiras temporadas, um drama familiar e inteligente que coloca o casal um contra o outro, pelo menos até Will perceber que Kate trabalha com a Resistência e tem de tomar uma atitude. Adorei a cena, muito realista, em que finalmente se confrontam. Will nunca lhe pergunta ou diz “sei o que andas a fazer”. (E isso Kate também já tinha percebido.) O que ele lhe diz é “há semanas que ando a encobrir o que andas a fazer”.
Como colaborador, Will tem acesso a regalias que a restante população não tem, como sempre acontece nestes regimes. Mas uma das regalias é um presente envenenado. Tendo como desculpa as possíveis represálias que a família pode sofrer devido à colaboração de Will, os miúdos deixam de ir à escola e é-lhes atribuída uma tutora ao domicílio. Esta tutora é uma fanática da religião promovida pelos Anfitriões, a Igreja do Maior dos Dias, que promete vida eterna a todos os que forem fiéis ao novo regime. (Isto lembra-me os khmer rouge, no Cambodja, que endoutrinavam as criancinhas para denunciarem todos os que se opusessem ao regime.) Uma das melhores cenas da série é quando Kate se apercebe disto e mostra à filha, Grace, uma série de livros de várias religiões em que todas prometem o mesmo. Mas a miúda é muito jovem e susceptível (deve andar pelos 8/10 anos) e já lhe fizeram uma autêntica lavagem cerebral. De onde podemos tirar uma lição prática. Foi tão fácil endoutrinar Grace porque esta foi a primeira religião com que teve contacto. Se Grace tivesse tido alguma espécie de educação religiosa talvez tivesse resistido mais ao fanatismo da tutora, digo eu.
Agora que Will e Kate estão tão envolvidos na Ocupação e na Resistência, a sobrevivência torna-se cada vez mais periclitante para toda a família.
Era bom mas descambou
As duas primeiras temporadas de “Colony” são tão boas, mas mesmo tão boas, que quase cheguei a dizer aqui que é a melhor série que vi desde “Breaking Bad” e “Black Sails”. Só que:
1, entretanto vi “The Terror”
2, a segunda parte da terceira (e última) temporada de “Colony” foi por água abaixo.
Perguntei-me muito, quando soube que a série tinha sido cancelada, porque é que tinham acabado com uma série tão boa, tão bem escrita, focada em personagens bem construídos e desempenhados (a princípio, confesso, só conseguia ver o Sawyer e a Lori, e preferia ter visto nela a outra Kate, a de “Lost”, a única Kate que conseguia imaginar ao lado de Sawyer. Mas Sarah Wayne Callies impôs-se e a química entre os dois actores é excelente). As duas primeiras temporadas são espectaculares (em todos os sentidos, até na grandiosidade dos cenários exteriores com as grandes muralhas extraterrestres, os lançamentos de naves para o espaço, as cenas na Fábrica). A terceira temporada começa bem, mudando a família para um esconderijo nas montanhas onde se introduzem num campo da Resistência liderado por um survivalista ditatorial que gere a comuna com mão de ferro, em que não é por acaso que um dos episódios se chama “Sierra Maestra” e quase são fuzilados como traidores. Mais uma referência a outros movimentos insurgentes de guerrilha.
Infelizmente, na segunda parte da terceira temporada, quando eles vão para Seattle, foi o descalabro. Nem sequer vou dizer que o pior foi terem de facto mostrado extraterrestres (como tantos fãs exigiam) o que tornou a série numa dessas coisas que começam por Stargate e Babylon que eu não vejo. O pior nem foi isso, mas o grande plot hole no enredo.
Parece que os extraterrestres invasores até não eram tão maus de todo (apesar dos milhões que mataram indiscriminadamente e mandaram para a Fábrica e outros campos de trabalho forçado), e que andavam a fugir de uns extraterrestres ainda piores (e copiados do Predador, o que não foi nada brilhante), e que afinal até precisavam de um super-exército para combater estes últimos. Onde a bota não bate com a perdigota foi o que mencionei logo no início desta crítica: todas as forças de segurança, policiais e militares, são estrategicamente eliminadas (assassinadas) como medida para prevenir uma rebelião inicial. Há até uma cena em que Broussard e outros militares de elite são convocados a um único ponto de encontro, logo no início da invasão, para serem massacrados de uma só vez. Broussard consegue escapar porque tem um mau pressentimento à última da hora. Na terceira temporada, de repente, tanto Broussard como Will aparecem numa lista de operacionais a NÃO-abater por serem importantes para o tal exército ao serviço dos Anfitriões. Então em que é que ficamos? Os militares de elite são valiosos para os extraterrestres ou são alvos a abater? Quem escreveu a terceira temporada, será que viu a primeira?
E se fosse só isto! De repente há um colaborador, que nunca tínhamos visto na vida, que anda a esconder estes militares dos Anfitriões no intuito de estabelecer uma aliança com os inimigos deles e assim recuperar o planeta. Mas se estamos a falar de espécies tão avançadas (os Anfitriões conseguiram dominar a Terra em questão de horas) alguém acredita que vai ser um exército de humanos a fazer a diferença? E já agora, quem é que disse aos Anfitriões que este inimigo ia simplesmente “aceitar” lutar contra o exército de humanos na Terra quando o que estes outros extraterrestres querem mesmo são os Anfitriões e podem atacá-los no espaço? “Exmo.s Inimigos, sabemos que vêm aí e tomámos a liberdade de preparar para V.Exas estes soldadinhos aqui neste lindo planeta para vosso entretenimento e lazer. Façam favor de aproveitar, matar os humanos e visitar as belas paisagens terrestres, enquanto nós assistimos do conforto da nossa nave. Felizes em servir V.Exas. Voltem sempre.”
Eu explico: nas primeiras temporadas viram-se pessoas serem transportadas em cápsulas de animação artificial para as naves extraterrestres sem que soubéssemos porquê. Era um mistério que tinha de ser explicado. A série meteu os pés pelas mãos e explicou-o assim, com estes enormes plot holes. Os escritores começaram a inventar, pura e simplesmente, com o único objectivo de fazer render o peixe e sem grande vontade de começar a dar respostas ou de conduzir a narrativa a um fim coerente (a lembrar "Lost", onde o showrunner Carlton Cuse também andou...).
Se calhar até tinham conseguido vender melhor esta intrujice se tivessem sido os protagonistas a descobri-la. Mas em vez disso começámos a acompanhar a história pela perspectiva de um personagem novo, de quem nem me vou dar ao trabalho de saber o nome, enquanto Will e Kate e Broussard quase tropeçam no enredo principal por acaso.
E só mais uma: quem é que disse aos Anfitriões que estes soldados humanos mantidos em cápsulas de vida suspensa quereriam ou aceitariam lutar pelos invasores e opressores, quando subitamente têm como aliado natural uma espécie que também quer destruir os Anfitriões? O inimigo do meu inimigo meu amigo é, e claro que toda a gente estaria a pensar numa aliança com este inimigo comum dos Anfitriões. Até parece que quem escreveu as duas primeiras temporadas da série se foi embora a meio da terceira, de tal modo a qualidade e a coerência foi por água abaixo.
Mas a verdade é que as audiências de “Colony” nunca foram boas. Na minha opinião, muito da culpa se deve a ter sido dirigida a um público-alvo errado, os apreciadores de ficção científica com extraterrestres (Stargate, Babylon, etc) sem grande profundidade, em vez de se salientar o drama humano. A série é extremamente brutal e pessimista, às vezes é bastante deprimente, e raramente temos um qualquer motivo de esperança. Direi mesmo que foi isso que faltou à Resistência durante toda a série: uma vantagem secreta que pudesse efectivamente ser usada para derrotar os Anfitriões. Episódio após episódio, tivemos de assistir enquanto inocentes eram massacrados e a Resistência se desfazia aos pedaços em vez de se tornar mais forte. Esta falta de esperança que permeia toda a série pode ter afastado muitos espectadores que apreciam uma ficção científica mais levezinha em que os Bons ganham e os Maus perdem e tudo acaba bem.
Marketing errado, enredo pesado e deprimente, brutalidade e violência (embora nunca gratuita) podem ter ajudado ao cancelamento da série, mas nada tão grave como o final da terceira temporada. Eu, sinceramente, fiquei contente quando acabou porque não queria ver a série afundar-se mais.
Mas aconselho vivamente as duas primeiras temporadas e o princípio da terceira. São excelentes. Faz de conta que acabou na temporada 3 episódio 5, bem intitulado “The End of the Road”.
terça-feira, 13 de junho de 2017
Mad Dogs (2016)
quinta-feira, 28 de julho de 2016
The Unborn / Espírito do Mal (2009)
Há muito tempo que não consigo fazer uma crítica a um filme de terror. Exactamente o mesmo tempo há que não vejo nada que mereça ser criticado. É verdade que cada vez é mais difícil produzir um filme deste género que seja completamente original e que cumpra o objectivo (terror = aterrorizar, assustar), mas não é também verdade que o objectivo é plenamente atingido em quase todos os episódios de The Walking Dead? Desconfio bem que os bons argumentistas se mudaram para a televisão: Breaking Bad, Lost, Wayward Pines, American Horror Story, Sobrenatural, só alguns nomes sem pensar muito. Onde os argumentistas estão muito melhor, na minha opinião. Não é estranho que dê por mim a preferir uma boa série a um filme medíocre de 90 minutos. Da mesma maneira que sempre preferi um romance de mil páginas a qualquer conto curto. Gostar de séries é uma sequência natural.
The Unborn / Espírito do Mal também não merece grande crítica. Pelo menos fez algum sentido, que há muito tempo os filmes de terror que tenho visto nem se esforçam por fazer! A heroína começa a ser assombrada por um espírito errante que quer voltar ao mundo dos vivos e possuí-la. A primeira parte até é bem construída, promissora de algo interessante. Infelizmente, o filme perde-se muito depressa em sustos e gritos, e imagens de "meter medo" completamente previsíveis que acabam por não meter medo porque não têm consistência lógica em que se basear. Assim:
A rapariga grita muito, grita que se farta, grita demais, o fantasma grita quando a vê, as visões gritam também. Tive de baixar o som muitas vezes tal era a gritaria. As imagens de meter medo, como esta acima, faziam mais sentido na capa de um álbum de death metal ou coisa assim. E depressa o filme descambou num exorcismo, e aqui começou a desfilar a sucessão de clichés que toda a gente já viu um milhão de vezes. Até nazis o filme conseguiu meter! Dou-lhes um pontinho pela originalidade, ainda assim, porque supostamente foi um exorcismo hebraico. Não sei se foi ou não, só relato o que me venderam. (Mas nunca vi uma heroína gritar tanto durante um exorcismo sem que ninguém lhe estivesse a fazer mal nenhum. Este filme devia-se chamar "Screams", mas o nome já estava registado.)
Entristece-me dizê-lo mas este foi o menos pior filme de terror que vi em muitos anos. Pelo menos teve cabeça, tronco e membros, e entreteve-me durante os 90 minutos. Não é um filme de se que exija mais.
12 em 20
sexta-feira, 1 de julho de 2016
Breaking Bad
Jane "Beetlejuice", por caricatura que seja, foi a parte mais irritante de Breaking Bad.
Mas somos manipulados. Até ao fim, somos manipulados. Queremos sentir empatia pelo homem que tosse e que encara a morte de frente com coragem, queremos acreditar que é um homem desesperado que só quer deixar dinheiro à família. Queremos sentir empatia mesmo quando já sabemos que ele não sentiria empatia por nós, que sem pensar duas vezes nos metia também num barril cor-de-rosa. Queremos acreditar que é um homem desesperado mesmo quando temos à frente todas as provas em contrário, queremos acreditar que naquelas circunstâncias todos nós faríamos o que ele faz, que na face da morte há um Walter White à espera de despertar em cada um de nós, mas sabemos que não. Porque o homem é um monstro, mas nós não somos, e só conseguimos amar um monstro quando fechamos os olhos à sua monstruosidade. E é assim que Breaking Bad nos manipula, do primeiro ao último episódio, e encantados na canção do bandido deixamo-nos convencer.