terça-feira, 22 de novembro de 2022

[Actualizado] Better Call Saul (2015-2022)

[contém spoilers]

[Actualizado: quando fiz o post, por ser tão longo, esqueci-me de falar da cinematografia brilhante; corrigi essa falta no último parágrafo]


Saul Goodman é o melhor advogado do mundo. Se eu precisasse de um advogado podem crer que não pensava duas vezes antes de ligar ao Saul… desde que o pudesse pagar.
Na crítica à primeira temporada disse aqui que Saul Goodman é tão genial como Walter White, na sua especialidade, uma vez que Saul foi dos poucos que sobreviveu literalmente a Walter. Depois de vermos as seis temporadas da prequela descobrimos que Saul Goodman não sobreviveu apenas a Walter White, mas também ao psicopata Tuco Salamanca, ao ardiloso Hector, aos sinistros primos, ao perigoso Eduardo, ao implacável Gustavo Fring, e até mesmo ao fleumático Mike Ehrmantraut. Tendo em conta que Walter White eliminou todos estes personagens, directa ou indirectamente, e que Saul sobreviveu a Walter, acho que temos uma ilacção:
Walter White > [Salamancas, Fring, Ehrmantraut]
Saul Goodman > Walter White
O próprio Saul o diz: “Eu não era apenas um cúmplice. Eu era indispensável. Eu criei o império de Walter White. Sem mim, ele teria sido morto ou preso em menos de um mês”.
Se alguém pensou que a genialidade de “Breaking Bad” não podia ser ultrapassada, “Better Call Saul” pode muito bem vir a provar o contrário. É certo que não existem tantas explosões, perseguições, tiroteios e homicídios, mas transformar uma sessão de tribunal numa cena tensa e “explosiva”, como fazem Vince Gilligan e Peter Gould, não é para todos. É difícil encontrar adjectivos para qualificar o que é perfeito. “Better Call Saul” devia ser uma prequela à volta da personagem comic relief de “Breaking Bad” e tornou-se uma obra prima de storytelling, humor, personagens sólidas e enredo irrepreensível.

Dar em mau
Não existe uma expressão em português para exprimir o significado de “breaking bad”, excepto talvez o brasileiro “virar mau” ou “virar para o mal”, ou “tornar-se mau” ou “dar em mau”. Seguindo o tema da série-mãe, todos aqui viram para o mal. De Saul Goodman nós já sabíamos que ia dar em advogado de criminosos que aconselha Walter a desfazer-se de pessoas mandando-as para o “Belize”, só não sabíamos como é que ele lá chegava. O mesmo podemos dizer de Mike Ehrmantraut. O que desconhecíamos era sobre Ignacio Varga (“Nacho”), Chuck, Kim Wexler, e outras personagens fascinantes que não aparecem em “Breaking Bad”. A questão coloca-se, premente e inquietante, tendo em conta o universo de cartéis em que se movem: o que lhes aconteceu? Obviamente, não posso responder a essa pergunta.

Nacho, Fring, Ehrmantraut
Comecemos talvez por Nacho, o filho de um imigrante estofador de automóveis que quer mais da vida do que passar dia e noite agarrado à máquina de costura sem chegar muito longe. Trabalhando primeiro para o louco Tuco (a quem conhecemos muito bem de “Breaking Bad”), adquire mais responsabilidades quando este é preso. Mais responsabilidades, no universo dos Salamancas, significa mais violência, espancar e matar mais gente. Nacho é aquele rapaz de bom coração que percebe que se meteu em coisas demasiado negras para o que consegue suportar, mas não pode simplesmente fugir. Nacho sabe que fazer isso pode custar a vida ao seu pai, um “civil” que nunca quis nada com criminosos, e que muito provavelmente custará. O seu plano é convencer o pai a fugir, e até já mandou fazer passaportes falsos para ambos. Nacho é daqueles personagens de quem gostamos e por quem torcemos, mas a questão é complicada: como é que se foge aos poderosos Salamanca? Quanto mais Nacho lhes tenta escapar, mais se enrola com Gustavo Fring, o arqui-inimigo dos Salamanca.
De Gustavo Fring não aprendemos muita história passada. Alguns pormenores são-nos esclarecidos, mas no essencial a série-mãe já nos mostrou a sua backstory e a razão por que odeia tanto Hector. Quando muito, descobrimos que Fring é mais brutal do que o imaginávamos.
Já quanto a Mike Ehrmantraut, é uma reviravolta de 180 graus. O ex-polícia que conhecemos na primeira temporada a trabalhar como cobrador de bilhetes num parque de estacionamento era tão “certinho” que não aceitaria um suborno nem para deixar um carro sair sem pagar. Então, o que aconteceu? Uma parte já sabemos. Mike faz tudo pela neta e pela viúva do filho (igualmente um polícia, como o pai, assassinado em serviço). Mas a transformação não é de um dia para o outro. Pressionado pelas despesas da nora, tudo começa por aceitar um “biscate” como guarda-costas de um gajo de um laboratório que quer desviar comprimidos para vender aos gangues (esta substância serve como base à metanfetamina). Quem é que lá está para comprar? Nacho, às escondidas de Tuco. Nacho fica tão impressionado com a postura de autoridade, honestidade e profissionalismo que Mike lhe inspira que recorre a ele para tentar resolver um problema: Tuco, que naquela altura já tem a cabeça tão apanhada pelas drogas que mata homens leais à mínima paranóia. Justificadamente, Nacho receia ser o próximo e quer contratar Mike para matar Tuco. Mike arranja uma maneira melhor de se livrarem dele, mas é assim que se envolve com os Salamancas e acaba enterrado até ao pescoço ao serviço de Fring. A qualquer momento, Mike podia ter escapado, mas no seu caso a culpa é um pedregulho que o esmaga e prende a uma sentença auto-imposta: nos seus dias de polícia, Mike aceitava subornos. Aliás, toda a esquadra era corrupta. Quando chegou a vez do seu filho, Mike aconselhou-o a fazer como os outros se não queria arranjar problemas. Foi assim que o filho de Mike acabou morto e Mike não se consegue perdoar. Talvez por isso Mike sempre tenha exercido uma certa figura paternal com Jesse Pinkman, em “Breaking Bad”, e a repete aqui com Nacho.

James McGill vs Charles McGill
Antes de se chamar Saul Goodman, Saul era Jimmy McGill, irmão do prestigiado advogado Charles McGill, a quem tenta seguir as pisadas. Mas o que Jimmy McGill deseja ardentemente é merecer o respeito do irmão mais velho, e isso nunca conseguirá. Jimmy passou uma juventude de expedientes e pequenos golpes mas decidiu endireitar-se e tirar o curso por correspondência enquanto trabalhava na sala de correio da empresa onde o irmão é sócio: Hamlin, Hamlin e McGill (HHM). Conseguiu completar o curso e entrar na Ordem dos Advogados, tudo sem dizer uma palavra a Charles para a surpresa ser maior (e melhor, julga ele). Quando finalmente atinge este objectivo, conta ao irmão e pede-lhe um emprego na HHM. É aqui que acontece algo que pode ter virado Jimmy para o mal, se não mesmo *a coisa* mais relevante em toda esta escalada descendente. Em vez de uma oportunidade, Jimmy leva um chuto, sendo recusado por outro sócio da firma, Howard Hamlin. Tivesse sido contratado, ter-se-ia endireitado de vez? Nunca saberemos. É daquelas coisas. Mas foi aqui que começou a revolta. Jimmy já era capaz de recorrer a truques e expedientes. Saber que os ricos e privilegiados nunca o vão aceitar entre eles só o justifica mais para contornar a Lei quando lhe convém.
Mas fica pior. Jimmy acaba por descobrir que não foi Howard Hamlin mas o próprio Charles, ou Chuck, como os íntimos lhe chamam, quem lhe deu o chuto. Sem ter sequer a hombridade de lho dizer na cara, mandou o sócio fazer o trabalho sujo. Depois de muito espicaçado, Chuck acaba por confessar a Jimmy que este não pode ser advogado porque a Lei é demasiado sacrossanta para um tipo desonesto que nunca vai mudar. “É como pôr uma metralhadora nas mãos de um gorila”. Isto destrói Jimmy por dentro e envia-o no caminho de Saul. Acontece que Jimmy idolatrava o irmão. Chuck sofre de uma alergia à electricidade (psicológica, mas incapacitante) e vive numa casa a luz de camping gaz, sem frigorífico, sem conseguir sair para não se expor aos campos magnéticos que o “aleijam” lá fora. Durante anos, foi Jimmy quem o visitou todos os dias, logo de madrugada, para lhe levar comida fresca, gelo, mantimentos vários e até o Financial Times. E que recebe como paga? Ser chamado gorila com uma metralhadora nas mãos. Finalmente, Jimmy não desculpa o irmão (que sempre o menosprezou e lhe fez muitas e muitas como esta) e rompe definitivamente com ele. Eu já o teria feito muito antes e aplaudi.
Aqui vou cometer um spoiler. Chuck, furioso consigo próprio porque não conseguiu derrotar Jimmy, e frustrado porque sabe que a sua “doença” é imaginária, suicida-se. Por esta altura Jimmy já o tinha cortado da sua vida, que é o que se faz a pessoas tóxicas, e o suicídio não o afecta externamente. Faz-me confusão que as pessoas ainda esperassem, depois de tudo, que Jimmy sofresse pelo irmão, que o tivesse apoiado mais antes (para levar mais chutos?), porque são “sangue”. Lixe-se o sangue quando é tóxico. Ninguém merece uma vida de humilhação permanente e era isso que Jimmy tinha com Chuck. Até no suicídio, Chuck quis que fosse tudo sobre ele, a pobre vítima do irmão malvado a quem Chuck não conseguiu vencer em tribunal. Isto, sim, foi o que lhe atingiu o orgulho a ponto de se suicidar, e nada mais. Ninguém fica bem nesta fotografia.

Kim Wexler
Por último, a grande surpresa da série, Kim Wexler, ex-colega de Jimmy na sala de correio da HHM que também subiu a pulso na vida. Assistimos a como de amigos se tornam mais do que isso, e começamos a perguntar-nos: se Kim não está em “Breaking Bad”, se Saul Goodman nunca fala dela, o que aconteceu a Kim?
É impossível não nos apaixonarmos por Kim, com os seus defeitos e tudo. Kim começa por ser a bússola moral de Jimmy, avisando-o quando está a ir longe demais, até ao dia em que experimenta ela própria “virar má”. De início é apenas uma brincadeira, um pequeno logro em que ela e Jimmy fazem com que um estranho armado-em-bom lhes pague uma garrafa de tequila de 500 dólares (500 dólares a garrafa!). O que acontece depois é que Kim gostou demasiado da experiência. De amigos, Jimmy e Kim passam a ser amantes e cúmplices, mais tarde marido e mulher. E de novo nos dá um calafrio no estômago: o que aconteceu a Kim?
“Better Call Saul” gira em torno de dois grandes casos jurídicos. O primeiro, encontrado por Jimmy quando andava a ganhar a vida a custo a fazer testamentos a velhinhos por um preço irrisório, até que lhe sai a “lotaria”: descobre que uma grande cadeia de lares cobra demasiado e ilegalmente aos velhinhos, deixando-os apenas com uma pequena “mesada”. Isto transforma-se num litígio tão complexo que envolve a HMM e outras duas ilustres firmas de advogados. O outro caso é quando Kim consegue, sozinha, assegurar como cliente da HMM um banco local, Mesa Verde, ainda de tamanho modesto mas em plena fase de expansão. Desta vez, a culpa é mesmo de Howard Hamlin. Kim esperava ser promovida a sócia, mas é subestimada. O grande erro de Howard foi mesmo esse: subestimar Kim. Uma das firmas envolvidas contrata-a, para grande irritação de Howard, e Jimmy ajuda-a a “roubar” o cliente Mesa Verde à HMM recorrendo a tudo o que foi preciso, legal e ilegalmente. É a primeira vez que trabalham juntos, sabendo ambos que estão a transgredir, mas a verdade é que, ainda mais do que os benefícios materiais, estão ambos a divertir-se imenso. “Tu e eu, juntos, somos veneno”, dirá um dia Kim Wexler a Jimmy, mas ainda não. Agora o alvo é Howard Hamlin. Começa igualmente por ser uma brincadeira, uma conversa de cabeceira, mas Kim vira mesmo para o mal e da conversa passa-se à prática. O caso dos velhinhos explorados ainda não chegou a acordo porque os advogados de cada lado se recusam a ceder. Por cada ano que passe, menos tempo terão os velhinhos para aproveitarem a indemnização. Por outro lado, Jimmy, que aqui já é Saul Goodman, tem direito a um bónus quando o acordo acontecer. Então, porque não dar cabo da imagem de Howard Hamlin, desacreditá-lo, obrigá-lo a chegar a acordo e pôr fim ao processo? Era só isso, sem mais consequências e nem sequer muito graves: insinuações, acusações falsas e desmentíveis. Subitamente, a vida de Howard torna-se um inferno. E ainda assim ele continua a subestimar Kim, julgando que é tudo ideia de Jimmy/Saul, por dinheiro, quando na verdade já é ela quem puxa os cordelinhos, por vingança. (Howard nunca ouviu dizer que a fêmea da espécie é mais letal do que o macho…) Por fim, até Howard abre os olhos e põe o dedo na ferida: “Vocês não me fizeram isto por dinheiro! Vocês fizeram-me isto porque vos está a dar gozo!” Touché!

O homem que viveu duas ou três vezes
Um gozo que acaba em tragédia, e uma tragédia que dá origem ao maior segredo de “Better Call Saul”: a série não é apenas uma prequela; os últimos episódios, filmados a preto e branco, muito à film noir, são uma sequela. A princípio não percebi o preto e branco até me lembrar de Hitchcock. Mas é claro que os génios criativos por detrás de “Breaking Bad” e “Better Call Saul” devem adorar Hitchcock. Até uma das personagens-chave destes últimos episódios se chama Marion, como a personagem de “Psycho” assassinada no duche. Mas confesso que não gostei do preto e branco, o que não passa de uma preferência pessoal de quem cresceu com a TV a cores.
O final também não me convenceu. Não é que não seja válido e chocante, mas depois de tudo e mais alguma coisa Saul Goodman, vencedor, deita tudo a perder por amor? A sério, por amor? A minha natureza cínica revolta-se por dentro. Infelizmente não posso contar mais nada ou explicaria melhor as minhas razões. O que não quer dizer que Saul, novamente transformado em Jimmy McGill, não fosse capaz, mas com recompensas que valessem a pena.
Terminei “Better Call Saul” cheia de vontade de ir ver “Breaking Bad” outra vez, mas mudei de ideias. Não é a mesma série, não é a mesma história, não são as mesmas personagens. “Better Call Saul” vive e completa-se por si própria, não depende de mais nada. E as gargalhadas, ah, as gargalhadas. Quando Jimmy decide convencer o patrão a despedi-lo sem justa causa é o melhor momento de humor da série toda. Mas atenção, isto não é um programa cómico e há aqui passagens tão ou mais pesadas do que no predecessor. Aconselho a toda a gente que gostou de “Breaking Bad” e do humor de Saul Goodman. Genial!

[Actualizado] Cinematografia
Com todo este drama, até me esqueci de falar na cinematografia, e que falha seria não salientar esse trabalho de bastidores. Passa despercebido ao olho leigo, mas nem sequer consigo imaginar a criatividade necessária para filmar cada cena de uma perspectiva de câmara diferente: de dentro de uma mala, de cima da bancada da cozinha, a seguir os passos de Jimmy ou Kim. Nunca sabemos onde a câmara vai estar. O jogo de luz e sombra, o uso de cor e a falta dela, são verdadeiras delícias.
E depois temos momentos quase surrealistas. Lembro-me, por exemplo, da passagem em que Jimmy é obrigado a deitar um cone de gelado de menta para o chão (que vai ser importante mais tarde) e uma formiga solitária o encontra. Seguem-se minutos de beleza e estranheza enquanto todo o formigueiro explora e se apodera deste “festim”, ao mesmo tempo que a formiga solitária atinge o topo do cone. Durante todo este bocado, vimos (e ouvimos?) o mundo da perspectiva das formigas. Tal como na poesia, cada um terá a sua própria interpretação (a haver alguma) do significado deste desvio no âmbito da história. Muita gente diria que esta extravagância não avança o enredo nem desenvolve as personagens e que podia ser cortada. Não posso concordar! A cena das formigas é poesia e a poesia não precisa de justificação.
A cinematografia de “Better Call Saul” é poesia, e está tudo dito.


ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA:
Quantas vezes se deve ver uma obra-prima?


2 comentários:

Anónimo disse...

Vim aqui parar nem atraves de uma busca simples por fata morgana. Estava a falar com um amigo sobre um loja que existia em Lisboa, nao me recordo bem onde, sei que ficava para o marquês, e bem, ainda nao consegui recordar mas valeu a pena encontrar este blog, recordou muitas coisas de ha 20! Vinte o tempo passa... e tal anos atras, bem, da minha juventude. Dos tempos da juke, do la folie , limbo, algumas festas goticas em coimbra, até do lusitano...o espirito continua, tal como as preferencias, as doc, ainda hoje estive a ouvir a banda sonora do crow ao oevar os miudos para a escola e no regresso peter murphy, mas as valeu a pena recordar. Parabens pelo blog.

katrina a gotika disse...

Obrigada. :)