"O diabo tem de sair por algum lado" - Carlinhos, em "Rabo de Peixe"
Em 2001, centenas de quilos de cocaína deram à costa em Rabo de Peixe. O que se passou depois poderia ter sido esta série. Quatro amigos da vila piscatória, um dos lugares mais pobres da Europa, decidem que esta é a sua única oportunidade de conseguirem uma vida melhor.
Lembro-me de ler sobre o incidente caricato na altura e lembro-me de pensar o que faria se fosse comigo. Bem, não fazia nada, exactamente por causa da polícia e dos traficantes. Vender cocaína aos quilos atrai demasiada atenção, algo que os protagonistas descobrem num instante.
Mas convenhamos. A droga dá 23 milhões e 820 mil euros. Põem este valor à frente de um pobre muito pobre, e o pobre não pensa duas vezes. Não por ganância ou desejo de luxos, mas porque "com esse dinheiro posso comprar uma casa à minha mãe". Eduardo, jovem pescador, o melhor aluno da sua turma, teve de deixar a escola para ir para o mar. O pai dele precisa de uma operação às cataratas e o Serviço Nacional de Saúde não dá resposta. É esta a sua motivação principal. Com o tempo, se tivesse conseguido chegar longe, daria mais em mau, como Walter White?
Sim, esta é quase a premissa de "Breaking Bad", um génio injustiçado que se mete no negócio da droga porque precisa do dinheiro para pagar as despesas médicas do filho. Eduardo não é um doutorado em Química como Walter White, mas também não precisa de ser. O seu conhecimento do mar, da geografia, do lugar, já o colocam à frente dos traficantes e da polícia. Depois é só preciso ter alguns dedos de testa, sangue frio, e um grande motivo de bom filho a ajudar o pai.
O enredo também segue a fórmula de sucesso drama/acção/humor/thriller que me recorda tanto de "Breaking Bad". Curiosamente, as críticas comparam mais a série a "Narcos", que eu não vi, mas "Narcos" é posterior. Da mesma forma, também encontrei aqui vestígios de "The Wire", mas podem ter chegado igualmente via "Breaking Bad" porque são séries que se foram influenciando umas às outras, e ainda bem. Já as influências de "Pulp Fiction", também comuns a estas séries todas, devem ter vindo directamente do original.
"Rabo de Peixe" (título em inglês "Turn of the Tide") esteve no Top 10 de séries mais vistas da Netflix e compreende-se porquê. Adorei a adaptação deste tipo de enredo a uma realidade portuguesa (e até fiquei com inveja de não se passar em Lisboa). Não temos os cartéis sul-americanos? Temos melhor e mais original, a máfia. Não temos o Tuco Salamanca? Temos o traficante de bairro, Arruda, com a fachada da oficina de mecânico. Não temos Jesse Pinkman a vender Blue Sky aos putos da esquina? Temos o playboy Ian a traficar com os nórdicos que conheceu quando viveu por lá. Não temos as mães de família dos bairros sociais norte-americanos? Temos as mães de família que vão à missa e competem entre elas para levar a imagem de Nossa Senhora para casa. Está tão bom, tão realista, tão bem feito, que não se consegue parar de ver episódio após episódio.
Disse que fiquei com inveja de não se passar em Lisboa, mas é só dor de cotovelo. As paisagens são tão deslumbrantes, tão fantásticas, e funcionam tão bem na história que não imagino isto noutro lado, e com certeza que as paisagens também contribuíram para o sucesso da série.
Por falar em paisagens, foi aqui que a credibilidade foi desafiada. Os Açores não são o deserto do Novo México. É preciso querer acreditar que tudo aquilo podia acontecer sem que aparecesse um pescador, um turista, um guardador de vacas, ou que qualquer pessoa pode subir por um farol acima, por exemplo. As testemunhas incautas que surgiam em lugares inesperados, até no meio do deserto, tornaram-se mesmo num dos elementos mais dramáticos de "Breaking Bad". Também não fiquei convencida com aquela troca de carro. É muito estranho que numa ilha, naquele ambiente de pobreza, conseguissem arranjar duas carrinhas precisamente iguais em tão pouco tempo, e com a mesma capota e com o mesmo crucifixo. Já nem falo da matrícula, porque algumas pessoas topam logo pela matrícula que não é o carro que elas conhecem. (Seria mais credível terem ali dois ou três populares a trocar o que ia na carrinha.)
"Rabo de Peixe" foi renovado para uma segunda temporada, e confesso que estou apreensiva. Esta foi uma grande história, bem contada, e, na minha opinião, bem resolvida. Receio muito a "maldição" da segunda temporada.
Agora uma nota sobre a banda sonora. Ganda bosta de banda sonora. Mas não culpo quem a escolheu. Isto era efectivamente a música que se ouvia na rádio na altura (na sua maioria). Compare-se com a banda sonora de "Yellowjackets", tudo êxitos dos anos 90, e temos aqui um bom exemplo do declínio da música mainstream a partir do ano 2000. (E não estou a falar de cenas alternativas, estou mesmo a falar da música dos tops de vendas, da música de massas.) Mas a série não tem culpa disto.
"Rabo de Peixe" é uma série de qualidade acima da média que merece o sucesso que teve e que nos pode deixar muito esperançosos quanto ao futuro da ficção televisiva.
(Para quando algo do tipo "Midnight Mass" à portuguesa? É que depois de ver isto, até dava, é que dava mesmo. Não estou a sugerir uma cópia, estou só a dar ideias.)
E aprendi quatro ou cinco palavrões que não conhecia, entre eles blica e naião, para não me esquecer.
E outra que eu também não sabia: rapexinho, natural de Rabo de Peixe.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes
PARA QUEM GOSTA DE: acção, drama, policial, Breaking Bad, Pulp Fiction
domingo, 17 de agosto de 2025
Rabo de Peixe / Turn of the Tide (2023 - ?) [primeira temporada]
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