sábado, 24 de setembro de 2016

Black Sails / Velas Negras


Eu nunca gostei particularmente de piratas, e continuo a não gostar. Do que gosto mesmo muito é de uma série bem feita, com um enredo sólido e dramático e personagens psicologicamente bem construídas. Já começa a ser uma raridade, e por isso me custa tanto que não se fale de Black Sails como se devia falar. Esta é uma das melhores séries actualmente no ar! Os personagens têm uma coisa chamada motivação. O enredo não tem buracos e absurdidades. Os cenários, o guarda-roupa e a localização também não deixam de dar uma ajuda.
Mas esta não é uma "telenovela" de época com piratas galantes a cortejar carinhas bonitas (embora as haja). Nem é um filme de capa e espada daqueles de bocejar de tédio. E não falta aqui o seu crânio esmagado, ou a sua cabeça cortada, ou as suas tripas de fora. Mas ao contrário de outras séries mais populares, aqui há realmente um motivo para a violência. E há violência, mas não é gratuita, e há sexo, mas não se pretende que funcione como mero efeito de choque. Esta é uma série séria e para ser levada a sério, e é uma série inteligente, e tenho para mim que é esse o motivo de não ser falada. (Que se tirem as devidas conclusões...)
Li algumas reviews e descobri que a história é inspirada em acontecimentos e piratas reais (ou algo ficcionados em livro, não percebi bem nem quis investigar), mas não me interessa nada. Reafirmo, nunca me interessei por piratas, nem quando era o Johnny Depp, e o período histórico do século XVIII também nunca despertou o meu maior fascínio, nem aqui (muito menos aqui), nem na Europa, e muito menos nas colónias inglesas das Caraíbas. Demasiado moderno para o meu gosto, que anda por paragens mais antigas. Não quero nada saber, aliás, prefiro não saber se estes cavalheiros existiram mesmo (ou uma versão deles). Gosto mais deles assim como são, assim construídos, assim apresentados.


Foi com alguma surpresa, há três temporadas atrás, que comecei a ver esta série. Não parecia outra coisa senão outro cocktail de violência gratuita, desde a primeira cena, só que desta vez com piratas. Mas foi só a primeira cena. Dez minutos depois já se percebe que o que se passa ali não são só piratas atrás do tesouro do navio (galeão?) espanhol  L'Urca de Lima, e só melhora, e melhora, e melhora. Afinal, o Capitão Flint tem motivações, motivações muito mais profundas do que acredito que alguma vez algum pirata pudesse ter tido na vida real. Não pode ter existido um capitão Flint na vida real, nem um John Silver, nem um Charles Vane. Simplesmente não pode! (Um Billy Bones, talvez.) Mas acima de tudo, não pode ter havido um Capitão Flint, que desde o início nos explica que afinal não é uma série sobre piratas. "Eles não querem que se pense de nós que somos apenas criminosos. Eles querem fazer de nós monstros", explica, quando se percebe que o seu alvo principal, e o seu maior inimigo, é o Império Britânico. É contra o Império Britânico que Flint luta, foi o Império Britânico que lhe roubou tudo, é o Império Britânico que Flint quer destruir. Na impossibilidade de o fazer, é do Império Britânico que Flint quer roubar Nassau, lar dos piratas.
Isto não nos lembra nada? Claro que lembra. É até bastante óbvio, quando a série começa com o logotipo do canal Starz. Sim, lembra-nos Spartacus, também uma produção Starz Originals, de que já aqui falei.
Estes piratas, não apenas Flint mas também Vane, e Rackham, e Silver, e elas, Eleanor, Max, Anne Bonny, Miranda, todos querem a mesma coisa primordial: liberdade! Libertação da pobreza, libertação da escravatura e de todos os outros tipos de servidão, libertação da moral esmagadora dos tempos, liberdade suficiente para um homem negro ser importante e uma mulher decidir os destinos de Nassau.
É este o segredo da série, como também já o tinha sido de Spartacus, o anseio por liberdade que ecoa dentro de nós, nos nossos dias, nesta geração, já não uma liberdade como aquela que os hippies ansiavam, porque já não acreditamos em hippies, mas uma outra, que sabemos que é impossível e desesperada. Flint, tal como Spartacus, é um homem desesperado que não olha a meios para atingir os fins. Um monstro? Definitivamente sim, um monstro, ou o monstro em que o tornaram, fica à apreciação de cada um. Estes são personagens que vivem no fio da espada, personagens que não podem ter escrúpulos. Personagens que não podem confiar em ninguém, e muitas vezes nem em si próprios.
Mas ao contrário de Spartacus, esta não é, de todo, uma história só de homens. Eu teria muito medo das carinhas bonitas que exercem o seu poder sem pegarem numa espada. Ficcional, tendo em conta a época? Sem dúvida. Não podemos acreditar que na sociedade patriarcal de 1700 alguma vez uma mulher fosse encarada como igual, nem por maridos, nem por amantes, nem pelos próprios subordinados. Uma mulher era sempre a mulher de alguém.


Poderia alguma vez existir uma Eleanor Guthrie? Não acredito. Poderia alguma vez a ex-escrava e prostituta Max conseguir o respeito de toda a Nassau? Não acredito. (E no caso de Max não acredito que possa acontecer agora, muito menos naquele tempo!) Poderia alguma vez alguém levar a sério uma Anne Bonny? Talvez no Wild West, com umas boas pistolas, mas isto ainda não é o Wild West. Curiosamente, Black Sails consegue o equilíbrio suficiente entre o poder efectivo que estas mulheres exercem no mundo que as rodeia e o poder persuasivo que exercem entre os lençóis (que era o único poder que a mulher daqueles tempos podia exercer) que nos convence de que até podia ser possível.

Uma série demasiado boa para se perder. Uma série tão boa que num dos episódios a melhor cena de acção foi uma tempestade, e foi aterrador, e no episódio seguinte a melhor cena de violência foram dois homens num bote a calçar um tubarão, e foi arrepiante. Uma série tão boa que disse aqui coisas que nunca pensei vir a dizer de uma série de piratas. Mas é mesmo sobre piratas? Não, não é. Tentar colar este "universo paralelo" a acontecimentos reais é cuspir num banquete. Esta Nassau, este enredo, estes  personagens, são tão melhores do que alguma vez a realidade podia ter sido!


Uma última nota sobre o tema musical de abertura. Épico! Magnífico! Também existe uma versão longa. Ambas rodam no meu Winamp.


1 comentário:

katrina a gotika disse...

Fiz esta crítica antes de ver o fim. A série só melhora e melhora até ao último episódio. Pela narrativa coesa do princípio ao fim, pelo suspense e pelas personagens bem construídas, grande série. Soberba, mesmo!