terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Até à próxima.

"O Silmarillion", resumido e anotado III

Fëanor, filho mais velho de Finwë rei dos Noldor, foi o maior artesão de todos os tempos. Febrilmente absorvido pela ânsia de produzir, foi também fecundo e teve sete filhos, o que era invulgar nas famílias de elfos. Foi ele que desenvolveu as runas da escrita, mas a sua maior realização foi sem sombra de dúvidas as jóias chamadas silmarils. As silmarils eram três gemas de rara beleza e poder que continham dentro delas a luz das árvores de Valinor. A princípio, nos tempos de inocência, Fëanor usava as silmarils em público e todos podiam admirar a perícia do seu trabalho. Mais do que por ser o príncipe herdeiro dos Noldor, Fëanor tornou-se também apreciado e respeitado devido ao seu incalculável talento.
Mas eis que Melkor é libertado, e vê as silmarils. E também as desejou só para si.

[Porque no princípio, antes da criação do mundo, era a Luz que Melkor queria possuir, mas não a encontrou porque a Chama Imperecível pertencia apenas a Ilúvatar. Por isso Melkor amava e fogo e, na sua frustração, refugiava-se nas trevas, exactamente o contrário da Luz.]

Ora, Melkor saiu da sua prisão de três eras ainda mais enraivecido do que antes mas fingiu-se modificado e começou a ensinar muitas coisas aos Noldor. Os elfos de Ingwë não gostavam dele e os Teleri das praias de Alqualondë não lhe pareciam dignos de atenção. Mas já os Noldor não perdiam uma ocasião de aprender mais sobre todos os ofícios em que Melkor era mestre. E Melkor encontrou neles os ouvidos privilegiados para semear o seu mar de mentiras. Porque Melkor odiava os Elfos e culpava-os pelo confronto que o tinha oposto aos outros Valar, e contra eles era especialmente dirigida a sua vingança. E para isso o seu primeiro propósito foi virar os Elfos contra os Valar, e ao mesmo tempo, se possível, os Elfos uns contra os outros. Desse grande mal a terra de Arda jamais se curou e Melkor acabou, no fim, por triunfar.
Não lhe foi muito difícil fazê-lo. Aos filhos de Finwë divulgou rumores de que o filho da primeira esposa, Fëanor, queria afastar Fingolfin e Finarfin, os filhos da segunda, da tomada de decisões do pai, o rei. E a Fëanor fez chegar a mesma desconfiança a respeito de Fingolfin e Finarfin, a ponto de envevenar de tal modo os irmãos uns contra os outros que todos começaram a forjar armas, convencidos de que eram os únicos a fazê-lo. Fëanor tornou-se cioso das suas jóias e meteu-as num cofre, onde ninguém lhes podia pôr em vista em cima e muito menos as mãos.
A todos os Elfos, Melkor fez saber, mas não directamente para que os Valar não desconfiassem dele, que depois dos Elfos viriam ao mundo os Homens, de quem os Valar de facto não tinham falado aos elfos porque não sabiam o dia nem a hora dessa chegada. E começou a criar intriga, fazendo os elfos suspeitar que os Valar lhes tinham escondido a verdade e os mantinham ali em Valinor, prisioneiros, para que os Homens tomassem conta da Terra-Média e suplantassem os Elfos para sempre.
O ambiente em Valinor tornou-se pesado. Fëanor não gostava de Melkor e nunca falava com ele pessoalmente, mas os boatos venenosos tinham-lhe chegado aos ouvidos por outros meios. E certa noite, ao chegar ao palácio do pai, encontrou um dos irmãos a falar baixo com o rei, como quem conspira. Impetuoso como era, pensou que os rumores eram de facto verdade, puxou da espada, apontou-a ao irmão e ameaçou-o de morte.
Por este crime de ter levantado a espada contra o irmão, os Valar chamaram-no a julgamento e foi então que se soube de todas as mentiras que Melkor andava a espalhar em Valinor aos ouvidos dos Elfos. Ao ser descoberto, Melkor fugiu em forma de nuvem, porque nessa altura ainda tinha um ser incorpóreo, e voltou a esconder-se antes que os outros Valar o pudessem deter.
Mas o julgamento também foi pesado para Fëanor. Foi condenado a permanecer doze anos no exílio, fora de Valinor, apesar de o seu próprio irmão o ter perdoado. O rei Finwë, contudo, não abandonou o filho e disse que enquanto este estivesse no exílio também não entraria em Valinor.
Foi por isso que, quando Manwë decidiu organizar um grande festival para reconciliar os Noldor uns com os outros, Fëanor apareceu porque tinha sido convocado, e não levava roupa de festa nem as silmarils, mas o seu pai, orgulhosamente, recusou-se a comparecer.
Eis o princípio da tragédia e o começo da Guerra das Jóias. A partir daqui o destino de Arda ficou para sempre manchado pelas mentiras de Melkor, mas sem o desejar ou sem disso ter conciência, Fëanor, o maior inimigo de Melkor, acabou por ser, ironicamente, e devido à cegueira do seu orgulho, a maior arma para o cumprimento dos desígnios do senhor de Angband.

Outra grande história é a de Melkor e Ungoliant. Melkor finge que foge para a Terra-Média mas em vez disso vai às regiões de Avatar, a sul de Aman, onde habita Ungoliant, outro espírito desencaminhado pela maldade de Melkor que permanecia aí em forma de gigantesca aranha, alimentando-se da luz das Árvores de Valinor e tecendo grandes teias de escuridão. Melkor convence Ungoliant a voltar a Valinor, escondendo ambos nas suas teias tão negras que eram impenetráveis até para os olhos dos Valar, em troca das silmarils e da luz das Árvores. E como Ungoliant tivesse medo de enfrentar os Valar, Melkor tentou-a com a sua palavra de honra: “Sim, com as duas mãos te darei as silmarils”.
E Ungoliant não resistiu. Tecendo grandes teias em volta de ambos, ajudou Melkor a regressar a Valinor sem que os Valar dessem por isso, e chegaram às Árvores, e Ungoliant bebeu-lhes o suco até as mirrar. No momento em que decorria o festival, Valinor ficou às escuras e houve silêncio em toda a terra de Aman. Só se ouvia, ao longe, o cantos dos Teleri, que viviam na costa.
Mas Ungoliant não ficou por aqui. A seiva luminosa das Árvores tinha sido armazenada em grandes tanques. Também esses ela bebeu e tornou-se enorme, tão medonha que o próprio Melkor teve medo.
Mas Melkor também não ficou por aqui. Foi à casa de exílio de Fëanor, assassinou o rei Finwë (o único que não tinha fugido da escuridão e o único valente que se lhe atravessou ao caminho), e roubou as silmarils. Só então fugiu com Ungoliant para a Terra-Média, através do estreito gelado de Helcaraxé, que unia Aman ao outro continente.
Aí, Ungoliant pediu-lhe as jóias. A contra gosto, Melkor abriu uma mão e deu-lhe todas as gemas que estavam no cofre de Fëanor, mas as silmarils guardou na outra, embora o queimassem, porque as silmarils tinham sido abençoadas pelos Valar e não podiam ser tocadas por mãos maléficas. Mas Ungoliant insistiu: “Com as duas mãos. Ainda só me deste com uma mão. Agora dá-me o que tens na outra.”
Foi aqui que Melkor recusou, e Ungoliant, que se tornara tão grande e poderosa que o atemorizava, teceu sobre ele uma grande teia e aprisionou-o, mas Melkor deu um grito que fez tremer toda a terra e chamou a ele os seus balrogs e todas as criaturas que o aguardavam em Angband. Foi assim que os vassalos libertaram o líder e Ungoliant foi forçada a fugir para sul.
De Ungoliant não se sabe mais nada excepto que foi dela que nasceu toda a prole de aranhas gigantes da Terra-Média, e Tolkien sugere que a progenitora de todos esses monstros acabou por chegar a Harad onde, esfomeada, se devorou a si própria.
Melkor voltou para Angband de onde quase nunca mais saiu e fez para si uma coroa onde colocou as três silmarils.

Em plena escuridão, em Valinor, os Valar apercebem-se do mal que tinha sido feito e Yavanna, criadora das árvores, diz que não pode criá-las uma segunda vez, por isso pede a Fëanor que lhes ceda as jóias para tentar “curar” as árvores moribundas. Mas Fëanor não cede, porque para ele as silmarils também eram um trabalho que não podia fazer de novo. E assim que nega o pedido, chegam as notícias da morte de Finwë e do roubo das silmarils. Furioso e desesperado, Fëanor amaldiçoa os Valar por o terem chamado ali enquanto, pensava ele, devia ter estado a proteger o pai. Amaldiçou também Melkor e a partir daí todos os Noldor lhe passaram a chamar Morgoth e o nome Melkor nunca mais foi pronunciado pelos Elfos.
Agora Fëanor era o rei dos Noldor e a sua raiva não conhecia limites. Desrespeitando a proibição, entrou em Tirion e convocou a si todos os Elfos. Disse-lhes palavras tão poderosas que convenceu a maioria de que ali não passavam de escravos dos Valar, aprisionados em Valinor para não terem poder na Terra-Média, e que tinham de perseguir Melkor e partir para a guerra se não eram um povo de cobardes, e que, afinal, também Morgoth era um Valar por isso os outros não deviam ser muito diferentes dele.
Tanta coisa disse, fruto do veneno que Melkor tinha espalhado e da sua própria raiva, que os Noldor decidiram segui-lo imediatamente. E Fëanor e os seus sete filhos fizeram também um juramento, por Manwë e por Ilúvatar, que fariam a guerra a Valar ou Elfo ou Homem que os tentasse impedir de recuperar as silmarils.
Até ali, os filhos de Fingolfin e Finarfin tinham sido como irmãos para com o tio Fëanor, mas eis que o juramento os dividia. Os dois meios irmãos de Fëanor e os seus sobrinhos Turgon, filho de Fingolfin, e Finrod, filho de Finarfin, tentaram demover os Noldor, mas em vão. E mais ainda em vão porque Fingon, também filho de Fingolfin, e Galadriel, filha de Finarfin, apesar de não gostarem particularmente de Fëanor, sentiram crescer em si uma sede do poder que viriam a ter na Terra-Média onde tudo era selvagem e indomado.
E foi assim, convencendo uma parte e obrigando os outros por dever e preocupação a acompanhar os seus entes queridos, que Fëanor persuadiu os Noldor a abandonar Valinor.

Os Valar tinham assistido em silêncio enquanto eram acusados das mais pérfidas intenções de que eram completamente inocentes. Magoados com a ingratidão dos Noldor, compreendiam também que tinha sido tudo obra de Melkor, que de facto era um deles, e lamentavam as perdas dos Elfos. Mas não podiam perdoar tamanha injustiça. Por isso Manwë enviou um mensageiro a avisar os Noldor de que, se saíssem, Valinor lhes seria negado para sempre e nunca mais encontrariam o caminho de volta, mas os elfos, incitados por Fëanor, continuaram a marcha.
E então Fëanor lembrou-se dos Teleri, porque precisava dos seus barcos para atravessar o mar, mas os Teleri não lhos cederam porque não tinham dado ouvidos às mentiras de Morgoth e amavam os Valar, e tinham pelos barcos uma afeição semelhante à dos Noldor pelas silmarils, e porque se apercebiam da loucura que guiava Fëanor.
Foi então que os Noldor puxaram das espadas e deu-se o primeiro fratrícidio de Elfo por Elfo. E Fëanor roubou os barcos aos Teleri.
Nesse momento da jornada, uma figura surgiu no caminho dos elfos, talvez, diz-se, o próprio Mandos, e pronunciou a maldição dos Noldor: que a casa de Fëanor e de todos os que o seguissem seria completamente destruída, que sofreriam e morreriam pela espada na Terra-Média, e que seria a traição a sua ruína.
Nessa altura, Finarfin arrependeu-se e voltou para trás, abandonando os filhos e levando alguma da sua gente com ele.
Mas de todos os que continuaram, nenhum Noldor voltou. Excepto um. Galadriel.*

[*A mesma Galadriel d’”O Senhor dos Anéis”. Em escritos posteriores, como nos “Contos Inacabados”, Tolkien deixa antever que o destino de Galadriel é mais importante do que é descrito na história de Frodo e do Anel e no “Silmarillion”.
Não foi por não ter ido à guerra que Galadriel escapou à maldição dos Noldor. Aredhel, filha de Filgolfin, que também deixou Valinor com Fëanor, tem um fim bastante inglório e trágico apesar de nunca ter pegado em armas.

E o que dizer de Fëanor? Apesar de orgulhoso, às vezes arrogante, mesmo insolente, Fëanor não é tão cego como parece. Talvez não se tenha dado o caso de não se ter apercebido de que Melkor jamais seria derrotado pela força; talvez tenha deixado de se importar desde que morresse a lutar pelo fruto do seu trabalho. A obsessão de Fëanor pelas silmarils não é semelhante à dos portadores do anel do poder. As silmarils eram de facto a sua obra prima. Quando Melkor o visita no exílio, a princípio para mostrar simpatia, dizendo que os Valar não tinham agido bem, e que se calhar até queriam roubar-lhe as silmarils, Fëanor apercebe-se muito bem de que era o próprio Melkor que se traía a si próprio. Diz Tolkien que Fëanor “fechou a porta na cara do ser mais poderoso da terra”. Fëanor talvez tenha sido possuído por uma loucura maior do que a razão que lhe era ditada pelo seu próprio intelecto.
Seja como for, Fëanor foi apenas o primeiro a cair. Outros se lhe seguiram.]

Fëanor faz ainda mais. Como os navios dos Teleri não chegavam para toda a comitiva, embarca consigo os da sua casa e abandona o resto dos Noldor ao frio do gelado Helcaraxé, onde muitos morreram. Mas nem isso deteve os restantes Noldor, exactamente porque lhes tinha sido somada mais uma traição fratricida, e os abandonados clamavam por vingança.
De modo que a maldição de Mandos não era tanto uma maldição como um aviso do que estava para acontecer se o curso dos eventos não se alterasse. Tudo o resto era inevitável.

Ora, na Terra-Média, Morgoth já tinha começado a atacar o reino de Doriath, mesmo antes da chegada dos Noldor. E grandes batalhas foram travadas entre os Noldor e o poder de Angband. Mas só depois da morte de Fëanor (que não demorou muito) é que os Elfos da Terra-Média acabaram por se unir contra o inimigo comum e conseguiram impor um cerco a Morgoth que durou séculos.
Durante todo esse tempo, Valinor esteve escondida e nenhum Elfo conseguiu regressar, embora tal tivesse sido tentado. E foi durante esse longo cerco e tempo de relativa paz que vieram ao mundo os Homens.

Os Homens eram seres semelhantes aos Elfos mas tão estranhos que um dos nomes que lhes foi dado terá sido Os Inescrutáveis.
Mas como o inimigo era comum e a lógica era militar, Homens e Elfos passavam o tempo a combater, não a tecer conjecturas existenciais.
E foi assim até à grande batalha que marcou o início do fim do reino dos Elfos na Terra-Média. Durante o cerco, novos reinados tinham aparecido. Fingolfin, irmão de Fëanor, foi o primeiro dos grandes príncipes a morrer em combate, e chegou mesmo a lutar em duelo com Morgoth, com a mesma espécie de loucura e desespero que tinha acometido o irmão séculos atrás. Claro que Morgoth o despedaçou.
A seguir foi Fingon. E de todos os nobres que ainda restavam, apenas Turgon escapou porque era senhor do reino secreto de Gondolin, cuja localização nem o próprio Morgoth sabia, e foi por isso poupado na grande batalha graças ao sacrifício de dois Homens, Huor e Húrin, que o deixaram viver para guardar o segredo durante mais algum tempo e assim garantir alguma esperança para os Elfos e Homens da Terra-Média.

Aqui dá-se um ponto de viragem. O tempo dos Elfos passava. Por fim, depois de muitas lutas pelas silmarils em que os filhos de Fëanor, obedientes ao juramento, defrontaram os próprios familiares pela posse das jóias, os Elfos acabaram por se aniquilar uns aos outros mesmo sem a ajuda de Morgoth. Mas Morgoth não perdia tempo em “ajudar” sempre que isso lhe era possível, e julgava no seu trono em Angband que era uma questão de tempo até ser senhor da Terra-Média agora que os Valar tinham abandonado os Elfos. Mas Morgoth não tinha contado com os Homens, que morriam depressa e lhe pareciam desprezíveis.
Contudo, nem todos os Valar tinham abandonado o destino dos Elfos e dos Homens na Terra-Média. Ulmo, senhor dos mares e das águas, continuava a velar pelos filhos de Ilúvatar. E escolheu um homem, Tuor, filho de Huor

[e primo de Túrin, aquele cuja história eu gosto muito]

para levar uma mensagem a Turgon em Gondolin: que Turgon não se apegasse às obras do seu trabalho e abandonasse a cidade secreta. Mas Turgon não quis. Talvez pelo mesmo amor à sua obra prima de que fora culpado o seu tio Fëanor, Turgon lembrou-se da maldição e voltou a temer a traição. Durante séculos, ninguém entrava nem saía de Gondolin sem autorização, se de todo, mas agora Turgon endureceu ainda mais a sua guarda e mandou selar a porta para que ninguém entrasse nem saísse mais. E pensou que enquanto conseguisse manter a fortaleza secreta e inacessível todos os sofrimentos do mundo lá fora não o atingiriam e à sua gente. Foi esse o erro mais grave.
Porque a traição acabou por vir de dentro, como tinha sido predito, e Gondolin foi denunciada e devastada num ataque sem precedentes. Diz Tolkien que Turgon pereceu na queda da sua própria torre, que nunca abandonou.

[O que nos lembra o episódio da Torre de Babel.]

Mas a filha de Turgon tinha casado com Tuor, uma união entre Elfos e Homens como não era costume, e ambos conseguiram salvar alguns dos habitantes de Gondolin através de uma passagem secreta.

[Curiosamente, dizem os “Contos Inacabados”, o elfo Glorfindel que luta contra um balrog (e morre no duelo) nessa passagem secreta é precisamente o mesmo Glorfindel que ajuda Frodo a chegar a Rivendell quando este é perseguido pelos Ringswraiths. Como? Muito simplesmente... os elfos reincarnam. Os homens não, porque não é esse o seu destino após a morte. Esse destino é, com já se disse, apenas conhecido a Ilúvatar.]

Dessa união nasceu Eärendil, o marinheiro, que conseguiu finalmente regressar a Valinor e pedir misericórdia e ajuda para os Elfos e Homens da Terra-Média.
E se o conseguiu foi com a ajuda de uma silmaril que o guiou no caminho. Essa silmaril foi resgatada da coroa de Morgoth por mais um casal das duas raças, Beren dos Homens e Lúthien (filha de Melian e do rei Thingol) dos Elfos. Estes deram à luz Elwing, que por sua vez casou com Eärendil, e dessa união nasceram Elros e Elrond.
Mas Eärendil e Elwing, que chegaram juntos a Valinor, nunca mais regressaram. O seu destino foi o de acender uma estrela no céu, Eärendil, a estrela mais brilhante de todas, porque era uma das silamrils de Fëanor.

[A história de Eärendil e Elwing é surrealista que baste, mas nada que equivalha à história de Beren e Lúthien (conhecida até por Sam Gamgee), que se dão ao luxo de morrer e voltar à vida física, já para não falar na parte em que assumem a forma de lobos... De lobos?... E do cão que fala. E como não gosto especialmente da imaginação delirante de Tolkien nessa passagem em particular, fica assim aqui levemente mencionada.]

Foi então que os Valar decidiram intervir, quando Morgoth já se julgava dono do mundo. E foi tal a hoste que veio de Aman, e foi tal a violência do confronto, que toda a parte oeste da Terra-Média foi arrasada e inundada. O espaço onde se situava Angband, Doriath ou a cidade secreta de Gondolin deixou simplesmente de existir. Muito se desfez também na memória dos homens, recém chegados em comparação com os Elfos.
À retribuição dos Valar contra Morgoth chamou-se a Guerra da Ira (War of Wrath). Melkor foi finalmente capturado e ficará aprisionado, diz-se, até ao fim do mundo. Mas Sauron fingiu-se arrependido e ficou-se pela Terra-Média...
Quanto aos filhos de Fëanor, os dois que sobreviveram, mesmo depois da Guerra da Ira e da prisão de Melkor, continuavam eles próprios aprisionados ao juramento porque agora as silmarils, obra do seu pai, voltaram às mãos dos Valar, criadores das Árvores de onde Fëanor retirou a luz. E os Valar recusaram, depois de tudo o que os filhos de Fëanor tinham feito (e não foi pouco), devolver-lhes o que não consideravam deles.
Os dois irmãos discutiram em privado o que seria pior. Perecer a cumprir o juramento ou entregar-se à justiça dos Valar sem o cumprirem. Decidiram-se pela primeira opção. E atacaram o acampamento de Valinor e recuperaram as duas silmarils que restavam. Só que, depois de tudo o que tinham feito, as jóias os queimavam porque tinham sido abençoadas e não podiam ser tocadas por quem praticava o mal. Selaram eles próprios o seu destino. Sem conseguir suportar a queimadura das silmarils, um dos irmãos afogou-se no mar e o outro atirou-se do alto de uma montanha para as profundezas da terra. O juramento seguiu-os até à morte. E assim terminou a Guerra das Jóias.
Com a Guerra da Ira termina também a Primeira Era da Terra-Média e começa a Segunda, mas esta pertence a Numenór.



Esplendor e queda de Numenór

Com os Valar, contra Morgoth, lutaram Homens e Elfos. Aos Elfos foi concedido o perdão e foi-lhes permitido voltar para Valinor se o desejassem.
Aos homens nobres que tinham lutado pelos Elfos foi concedida uma ilha entre Aman e a Terra-Média. Um dos seus nomes era Numenór, outro Westernesse. Outro ainda, Atallantë...
No destino de Numenór e dos Homens, uma vez que o tempo dos Elfos tinha passado, entram os dois irmãos meio-elfos filhos de Eärendil e Elwing: Elros e Elrond. Visto que os irmãos pertenciam a duas raças, foi-lhes permitido pelos Poderes escolherem o seu destino. Elros escolheu o destino dos Homens mortais e tornou-se o primeiro rei de Numenór. Elrond [sim, esse Elrond] escolheu o destino dos Elfos e ficou por muito tempo na Terra-Média para contar a história quando já ninguém se lembrava dela. Com Elrond ficou também Círdan, de que a história não fala muito em parte alguma mas que era um elfo que nunca tinha deixado a Terra-Média desde o príncipio, e só o fez no último momento do tempo dos elfos, depois da Guerra do Anel.
Não há muito para dizer do esplendor de Numenór. A príncipio os homens viviam longos e longos anos e dedicavam-se a todos os ofícios e ciências, em especial à navegação. Uma só lei lhes estava imposta: não podiam viajar para oeste até ao ponto em que perdessem de vista a costa de Numenór. Para leste, na direcção da Terra-Média, podiam viajar, e de facto viajaram e trouxeram muitos conhecimentos e ajuda aos homens que ainda lá viviam nas trevas da ignorância.
Eram também amigos dos elfos de Valinor, que lhes ofereceram as sete palantires e um rebento da árvore que crescia em Tol Eressëa à imagem do perdido Telperion, a que chamaram Nimloth. [Mais uma vez, é a mesma árvore que é plantada em Gondor.]
A proibição imposta pelos Valar tinha por fim que os homens nunca vissem a terra de Valinor, onde nada morria, e não desejassem a imortalidade como a dos Elfos.
Tinham razão, porque foi esta a raiz de todo o mal que se seguiu.

[Até aqui, a história mais interessante de Numenór talvez seja a de Aldarion e de Erendis, relatada nos “Contos Inacabados”. Trata-se do romance do príncipe navegador Aldarion e da sua noiva prometida Erendis, e de como ele não tinha certeza se gostava mais dela ou do mar, e de como ela não tinha a certeza se o havia de aceitar assim dividido e partilhado com tamanho rival. É um romance triste e o casamento de ambos não dura, e enquanto dura não é feliz.]

Talvez porque na Terra-Média os homens estavam demasiado preocupados em sobreviver aos ataques de Morgoth, foi só em Numenór que se preocuparam com a sua mortalidade. E quanto mais se preocupavam com ela, ironicamente, menos duravam as suas vidas. Foi dito que em tempos os Elfos e os Homens escolhiam quando morrer, mas agora os Homens agarravam-se à vida e recusavam a morte, e viam-se reduzidos a uma velhice de debilidade e senilidade que não tinham experimentado antes.
A seguir ao esplendor de Numenór, vem a decadência. Reis cada vez mais tiranos, cada vez mais preocupados com a sua riqueza e a sua imagem, cada vez mais exploradores do que colonizadores da Terra-Média.

[A história é demasiado triste e lembra demais uma outra Terra ou uma Roma qualquer.]

Havia em Numenór uma grande colina chamada Meneltarma onde os habitantes da ilha tinham por costume entregar a Ilúvatar os primeiros frutos do ano, mas com o tempo até essa celebração fora abandonada.
Muitos reis anteriores estavam tão zangados com Valinor que pura e simplemente tinham proibido os súbditos de conviver com os Elfos, e por isso estes deixaram visitar a ilha. Mas havia ainda um pequeno grupo de amigos dos elfos, cada vez mais perseguidos, que se auto-denominavam os Fiéis. A mãe de Ar-Palantir, um dos últimos reis, pertencia aos fiéis e instruiu o filho na história de Valinor e de tudo o que se tinha passado. Mas já ninguém se lembrava. Todos se preocupavam apenas com a sua riqueza e poder.
Ar-Palantir ainda olhava para os mares na esperança de que os Elfos voltassem nos seus navios vindos de Tol Eressëa, mas eles não voltaram. Ar-Palantir (assim chamado porque tinha o dom da clarividência) profetizou então que a sobrevivência de Numenór estava ligada à da árvore dos reis: se a árvore mirrasse, definharia o reino de Numenór.
Depois de ar-Palantir veio o pior de todos os reis, ar-Pharazon, que retornou às antigas ideas e perseguiu cada vez mais os amigos dos Elfos.
A isto tudo não era estranho o que se passava na Terra-Média, onde Sauron crescia de dia para dia. E Sauron, seguindo o exemplo do seu mestre Morgoth, queria para si não só o domínio da Terra-Média como, se possível, a destruição de Numenór também.
Até que chegou aos ouvidos de ar-Pharazon que Sauron se tinha proclamado Senhor da Terra. Imediatamente ar-Pharazon partiu de Numenór com uma grandiosa armada, montou acampamento nas costas da Terra-Média e convocou Sauron a comparecer perante ele.
E Sauron veio. Nessa altura ainda não se julgava capaz de enfrentar a força de Numenór embora o número de orcs e criaturas vis não parasse de aumentar nas suas hostes.
Perante ar-Pharazon, Sauron fingiu-se conquistado e posto na ordem, mas isso não chegava para o soberbo rei. Achava que podia manter Sauron mais controlado se o levasse para Numenór.

[Já dizia Maquiavel, manter os amigos perto e os inimigos ainda mais perto mas, como se pode ver pelo exemplo seguinte, é um conselho que não se deve levar sempre à letra porque o feitiço vira-se contra o feiticeiro.]

Sauron regozijou-se e fingiu que ia contrariado. Porque naquela altura, como Melkor antes dele, Sauron ainda podia fazer para si próprio uma aparência agradável aos olhos humanos. E Sauron não era como Melkor. Em vez de arrogante, fazia-se servil. Em vez de exigir galanteios, cobria deles o rei. Em vez de se enaltecer, humilhava-se. Em vez de dar ordens, manipulava.
E assim que percebeu, já em terras de Numenór, que os Homens tinham um grave problema em aceitar a mortalidade, foi ele que começou a encher os ouvidos do rei com a injustiça que era a morte, e que a imortalidade não era para todos, e que homens nobres como o rei mereciam, não!, deviam exigir a imortalidade!, e foi por ali fora, até chegar ao ponto de dizer que Ilúvatar não existia, que Ilúvatar era uma invenção dos Valar, que o verdadeiro Criador era Melkor, Senhor da Liberdade, e envenenava o espírito do rei contra Valinor. A seguir ao espírito do rei, todos os espíritos do reino que, percebendo a preferência de ar-Pharazon pelos conselhos de Sauron, não se atreviam a contradizê-lo para não caírem em desgraça aos olhos do monarca.
E Sauron chegou ao ponto de mandar tanto em Numenór que fez erigir um templo, uma torre, semelhante ao posterior Barad-dur mas com uma cúpula em vez do olho, onde ardia um fogo noite e dia, e depressa a cúpula se tornou negra, e ali se faziam sacrifícios humanos a Melkor. E foi assim que Sauron pôs toda aquela boa gente a adorar o inimigo dos filhos de Ilúvatar.
Os escolhidos para esses sacrifícios eram escravos trazidos da Terra-Média, ou os Fiéis, amigos dos elfos, que não eram acusados por essa razão mas sim por alegadamente fomentarem a traição ao rei. Ar-Pharazon tinha-se tornado no tirano mais terrível e impiedoso de toda a história dos Homens e Elfos.
Ora, havia ainda um conselheiro do rei que pertencia aos Fiéis e que era também descendente de Elros, de nome Amandil, que tinha sobrevivido tanto tempo por ter mantido as suas ideias em profundo segredo. E Amandil percebeu que o tempo era negro e não havia esperança para os homens de bem. Chamou a si o seu filho Elendil [sim, esse mesmo Elendil] e informou-o de que tencionava partir no seu navio para oeste, quebrando a proibição dos Valar e tentando chegar a Valinor para implorar a intervenção dos Poderes antes do desastre final, porque o rei preparava-se para declarar guerra a Valinor e já tinha preparada a armada que não tardava em largar.
A Elendil, o pai ordenou que abastecesse navios e recolhesse neles todos os Fiéis que ainda existiam e que ficasse ao largo da ilha e esperasse um sinal. A bordo, Elendil levaria as palantires e um rebento da árvore dos Reis. O seu filho Isildur [sim, esse mesmo Isildur] tinha-lhe colhido o último fruto antes de Sauron queimar a própria árvore no altar do templo.
Da viagem de Amandil não se sabe nada. Apenas que uma segunda embaixada como a de Eärendil não funcionaria outra vez e que para a maldade dos homens de Numenór não havia misericórdia.

[Tudo indica, por exemplos anteriores, que Amandil não foi deixado perecer e que deve ter sido acolhido em Valinor, mas não se sabe ao certo. Nunca ninguém da raça dos Homens voltou de Valinor, embora alguns lá tivessem chegado, pois essa era a lei de que Valinor estava reservada apenas aos Elfos.]

E ar-Pharazon partiu em toda a pompa para Valinor, e quebrou a proibição e chegou mesmo a Valinor. Aí, desembarcando, encontrou a terra vazia, e os seus homens entraram em Tirion e encontrarama cidade deserta. E ar-Pharazon desafiou os Poderes a virem lutar pela terra se a queriam manter.
Diz Tolkien que pela primeira vez os Valar abandonaram o domínio de Arda e entregaram a Justiça ao próprio Ilúvatar. E o que aconteceu de seguida foi uma espécie de Apocalipse e Dilúvio.
Ilúvatar fendeu um grande abismo no meio do mar, entre Aman e Numenór, e todas as águas e navios foram sugados para dentro dele.

[O que lembra o destino do exército do Faraó no Mar Vermelho.]

Ar-Pharazon e os seus homens ficaram sepultados debaixo das pedras da colina de Tirion que lhes desabou em cima.
As fundações de Numenór quebraram-se e a ilha afundou. Depois veio uma onda gigante que varreu a ilha para o fundo do mar. Os barcos de Elendil e Isildur e Anárion, seus filhos, que estavam do lado leste de Numenór, escaparam ao abismo do mar, mas foram levados em ondas do tamanho de montanhas até às costas da Terra-Média, onde chegaram como náufragos.
Aí foram acolhidos por Gil-Galad, filho de Fingon, que vivia na companhia de Círdan e de Elrond e era agora o último rei Elfo da Terra-Média.

Mas Sauron teve mais do que esperava. Quando as fundações da ilha se partiram ele estava dentro do templo, a rir-se de ar-Pharazon. Sauron apenas queria que o rei levasse a guerra a Valinor e encontrasse a morte. Nunca esperou que a própria Numenór fosse destruída. Mas Sauron era um espírito. Perdeu, nessa grande derrota, a possibilidade de se apresentar com uma forma agradável aos olhos dos homens e quando voltou à Terra-Média era uma figura temível de se ver, mas sobreviveu a tudo.
Não se sabe, porque Tolkien não diz no “Silmarillion”, se Sauron levou o Anel do Poder com ele para Numenór. Porque o Anel do Poder, o Um, tinha sido forjado na Terra-Média pelo próprio Sauron antes da chegada de ar-Pharazon. Seria muito estranho que o tivesse deixado ficar para trás porque quando partiu a guerra pela posse dos anéis já tinha começado. Os Elfos que restavam na Terra-Média tinham sido enganados pelas aparentes boas intenções de Sauron logo após a Guerra da Ira e tinham sido levados a forjar os três anéis de que muito se fala depois, mas depressa descobriram que em segredo Sauron tinha também fabricado um anel a que os outros obedeciam.

[Nos “Contos Inacabados” é dito que Gil-Galad chega a pedir ajuda a Aldarion, o tal que teve um casamento infeliz, no tempo em que os reis de Numenór ainda mantinham a sua nobreza de carácter.]

E Sauron também já tinha corrompido os Ringwraiths, que eram nada mais nada menos do que homens de Numenór do época em que a ilha perdida estava à beira do declínio.

Como é mais ou menos do conhecimento geral, por essa altura do regresso de Sauron e de Elendil à Terra-Média, formou-se a Última Aliança entre Elfos e Homens e Sauron foi derrotado. Mas Elendil e Gil-Galad pereceram. E também o Irmão de Isildur, Anárion, que durante um tempo teve a missão de proteger Gondor da ameaça antes da Aliança ser formada, como mais tarde fez Faramir enquanto a Companhia do Anel cumpria a sua missão.

[Injustamente, não se fala de Anárion o suficiente, apenas porque foi Isildur a plantar a famosa White Tree em Gondor. Mas fê-lo, antes de partir para aquela que seria a sua emboscada mortal, em memória do irmão.]

Do sucedido a partir daqui pouco há a dizer. Sauron foi afastado por mais algum tempo mas não completamente porque Isildur adquiriu o Anel do Poder e não teve força de vontade para o destruir. Ao contrário do que é sugerido por um certo filme, não é apenas Elrond que o aconselha a atirar o Anel ao fogo de Mount Doom, mas também Círdan, e sempre Círdan, que está presente desde o princípio das coisas desde que os Elfos as recordam.

E como se sabe tudo foi esquecido. Como é que todo este passado foi varrido da memória dos homens da Terra-Média, como é que o reino de Gondor foi apenas um fogo-fátuo do esplendor que tinha sido Numenór, como é que no Shire se chama por Elbereth mas não se sabe quem ela é... ao contrário do que parece, é muito fácil de compreender. Os homens esquecem. Ponto final. E esquecem ainda mais depressa o que não querem lembrar porque traz más memórias. Ao contrário dos Elfos, os Homens são vítimas dos contínuos erros do passado.

Os últimos parágrafos do “Silmarillion” são dedicados àqueles que, no príncipio da Quarta Era, já depois de Aragorn, o rei Elessar, restituir o poder de Gondor, regressam a Valinor. Acaba em Valinor como começa em Valinor.
Frodo e Bilbo são hobbits, e os hobbits são da raça dos Homens dos filhos de Ilúvatar, e como foi dito todos os Homens que chegam a Valinor já não regressam porque é essa a lei. E acompanhou-os Galadriel, que já tinha visto Valinor no tempo das Árvores e no tempo das Trevas e na Guerra das Jóias. (Mas não Celeborn, o seu marido, nem Legolas o elfo. Esses ficam durante mais algum tempo.) E com eles vai também Círdan, que nunca tinha visto Valinor, mas cuja missão na Terra-Média chega ao fim, e Elrond, praticamente uma criança nascida há poucos anos. Mas com eles regressa também Gandalf.

Gandalf... Estive aqui a pensar se havia de o dizer ou não. Advirto que para mim conhecer a verdadeira natureza de Gandalf retirou um pouco da magia do mistério que a personagem inspira.
Gandalf é um Maiar. Como Melian, como Sauron. O que lhe torna a vida muito mais fácil. E que explica que tenha “morrido” em Moria para reaparecer em Fangorn. É difícil respeitar um Maiar, um espírito incorpóreo que desconhece a verdadeira morte, como se respeita um venerável velho sábio. Gandalf é Olórin, e já passeava nos jardins de Lórien, em Valinor, muito antes de o primeiro Elfo acordar e ver as estrelas na penumbra dos céus de Arda.
Talvez Ilúvatar tenha razão e a mortalidade dos homens seja uma dádiva difícil de compreender. E ao mesmo tempo um dom, mas só invejado por aqueles que o não experimentam. Como, aliás, é da natureza de todos os dons.

domingo, 26 de fevereiro de 2006

"O Silmarillion", resumido e anotado II

As estrelas foram criadas pela Valar companheira de Manwë, Varda, a quem os Elfos mais veneram e também chamam Elbereth.

[Quando Frodo diz o seu nome na escuridão de Cirith Ungol, não sabia a que entidade estava a invocar. Por alturas da Guerra do Anel toda esta mitologia tinha já sido perdida na Terra-Média e no Shire em particular.]

Yavanna é a Valar senhora da natureza, dos animais, das plantas e da terra fértil. Foi também a criadora das árvores que iluminavam Aman. Preocupada com o abate de árvores inevitável pelos Elfos e Homens que haviam de habitar a terra, foram para ela criados os guardadores de árvores. E é assim que os Entes aparecem na Terra-Média.

Na hora devida, os Elfos acordam no leste da Terra-Média. Foi Oromë, o Caçador, o Valar que os encontrou primeiro. Mas por esta altura os Elfos já temiam os Valar porque Melkor tinha-se estabelecido a norte da Terra-Média, no seu refúgio subterrâneo em Utumno, e tinha já começado a maltratar os Elfos porque serem a criação de Ilúvatar. Os Elfos temiam o Dark Lord que existia a norte porque este levava os que se perdiam e nunca mais ninguém os via. Nas suas masmorras, Melkor transformou Elfos em Orcs, porque já não era capaz de fazer nada que não fosse uma abominável imitação da obra dos outros Valar. E criou também animais pavorosos: dragões, lobos e monstros. Mas, de tudo o que fez, a acção mais odiosa para o Criador foi mesmo e para sempre a de ter criado os Orcs a partir dos nobres Elfos. E Melkor não estava sozinho nos seus trabalhos. Atraíu para si muitos outros espíritos divinos, de natureza semelhante à dos Valar mas de hierarquia inferior, os Maiar. Alguns destes assumiram a forma de Balrogs, demónios de fogo e escuridão. Sauron era também um Maiar e serviu a Melkor desde o início.

[Diz Tolkien de Sauron que "era menos perverso do que o seu mestre porque serviu outro e não a si próprio durante muito tempo". Tenho de discordar veementemente. Tolkien - e muitos como Tolkien - confunde humildade com servilismo. Sauron não servia Melkor por dever ou lealdade mas apenas pela mesma razão servilista e oportunista com que muitos carreiristas, quais sanguessugas, se empoleiram nas costas do hospedeiro até ao momento de incharem a ponto de servirem apenas os seus interesses. Tolkien era um ingénuo quando escreveu esta frase. Se há alguma nobreza e honestidade em Melkor, a Potestade rebelde, apesar de toda a sua arrogância, maldade e egoísmo, delas não tem nada o seu cão de fila Sauron. (Como se demonstrará mais à frente, no episódio de Numenór.)
Foi uma opinião.]

Até agora, à espera de que os filhos de Ilúvatar acordassem, os Valar tinham tido medo de procurar Melkor e confrontá-lo em batalha, porque dessa guerra de Titãs [mais uma referência mitológica em Tolkien] resultaria a ruína da própria forma de Arda e nestas convulsões gigantescas os filhos de Ilúvatar poderiam perder-se para sempre.
Mas agora que sabiam que Melkor não estava quieto e continuava a perverter a criação, não só aprisionando os Elfos como envenando toda a terra e água e ar com os seus fumos venenosos, os Valar reuniram e decidiram trazer os Elfos para Valinor, a sua morada, no continente de Aman, a oeste da Terra-Média.
Antes, fizeram guerra a Melkor e aprisionaram-no na casa de Mandos (Halls of Mandos, morada impenetrável dos mortos) durante o período de três eras, altura em que seria de novo libertado e poderia de novo pedir perdão.
Mas muitos subterrâneos de Utumno ficaram por explorar, e Melkor já tinha construído outra fortaleza, também parcialmente subterrânea, em Angband, e aí os Valar não procuraram, e aí ainda ficaram muitos dos vassalos de Melkor, à espera do regresso do líder.
Entretanto, Oromë, que como todos os Valar e Maiar podia aparecer aos filhos de Ilúvatar em forma magnífica mas semelhante à deles, propôs aos elfos que se juntassem aos Valar em Valinor. Mas os elfos tinham medo dos Valar devido às más acções de Melkor. Muitos fugiram. Outros ouviram-no mas mesmo assim temiam segui-lo. Foi-lhes então proposto que enviassem três embaixadores a Valinor, para que pudessem ver e contar ao seu povo o que tinham visto. Ingwë, Finwë e Elwë acederam, visitaram Valinor e regressaram cheios de vontade de partir para sempre da Terra-Média. As gentes de Ingwë e Finwë foram as menos relutantes em partir, por isso chegaram primeiro ao mar. Mas o povo de Elwë atrasou-se pelo caminho. Destes, um grupo chegou ao Anduin e preferiu abandonar a marcha, seguindo antes pelas margens do grande rio onde se foram estabelecendo e nunca chegaram a ver Valinor.
O próprio Elwë perdeu-se por acaso e conheceu, em Beleriand*, a bela Melian.

[*Todas os lugares da Terra-Média citados durante esta época já não existem no tempo da Guerra do Anel porque entretanto a face da terra foi completamente alterada e tudo indica que grandes porções de solo tenham sido perdidas no mar aquando da Guerra da Ira (War of Wrath) mais à frente.]

Melian era uma Maiar de Valinor, onde tinha vivido nos jardins de Lórien*, cuidando deles e ensinando as suas canções a todas as aves.

[*Lórien em Valinor, não Lothlórien da Terra-Média.]

Elwë apaxonou-se por ela e ficou preso ao seu encantamento durante tanto tempo que anos se passaram antes que ele pudesse dizer uma única palavra. Por isso, Elwë acabou por desposar Melian e tornou-se no rei Thingol do reino de Doriath da Terra-Média, sem nunca mais voltar a ver Valinor.
O povo de Elwë procurou pelo seu rei mas como não o achavam acabaram por colocar no seu lugar o irmão de Elwë, Olwë, e foi este quem os guiou no resto do caminho.
Por terem perdido muito tempo, estes Elfos ficaram conhecidos como os Teleri.
Quando chegaram ao mar, já as outras duas tribos tinham partido para Valinor, numa imensa ilha flutuante. Por isso os Teleri viveram muito tempo perto do mar, e dedicaram-se à construção de barcos e à vida marítima, e nunca mais quiseram viver longe da costa. A ilha que por sua vez os transportou para Valinor ficou, a seu pedido, ao largo de Aman. Chamou-se Tol Eressëa e nela construiram a cidade de Avallonë. Só mais tarde é que os Teleri se juntaram aos outros Elfos em Valinor.
Entretanto, os primeiros Elfos a chegar tinham construído uma espantosa e resplandescente cidade, Tirion, na colina de Túna, e era aí que viviam, perto de Valimar, a cidade dos Valar.
Ingwë e a sua gente acabou por se afastar completamente de Tirion e foram viver para a cidade dos Valar. Ingwë tornou-se no Rei Supremo de todos os Elfos e habitou para sempre junto de Manwë. A sua parte na história termina aqui.
Às gentes de Finwë chamou-se Noldor e, estes sim, são os protagonistas da Guerra das Jóias.
Os Teleri, cuja importância é também decisiva, continuaram a viver na costa, em Alqualondë, onde se dedicavam à construção de barcos.

Durante uns tempos, todos viveram em harmonia. Os Elfos construíram uma civilização avançada, aprendendo muito com os próprios Valar que amavam a companhia dos elfos, e tornaram-se peritos em muitas artes e ofícios.
Finwë, rei dos Noldor, teve três filhos. O mais velho, Fëanor, que era tão genial como impetuoso, da primeira esposa, e os seguintes, Fingolfin e Finarfin, da segunda.
Foi mau augúrio, mas a mãe de Fëanor foi o primeiro Elfo a morrer de cansaço do mundo logo após dar à luz o primeiro filho*. Foi por isso que Finwë se voltou a casar.

[*Os Elfos, e até certa altura também os homens de Numenór, podiam simplesmente decidir o momento em que abandonavam o corpo físico, pelo que por vezes a morte era desejada. Foi o caso da mãe de Fëanor.]

Três eras das Duas Árvores se passaram até ao momento em que Melkor foi de novo libertado. Melkor pediu perdão, alegou em consideração pelo seu caso que passara muito tempo a pensar no que tinha feito mal e que se ia regenerar dali para a frente. Os Valar não acreditaram muito mas deram-lhe o benefício da dúvida. E Melkor foi solto, primeiro só em Valimar, mas como se mostrava tão útil e gentil, depressa por toda a terra de Aman.



Continua

sábado, 25 de fevereiro de 2006

"O Silmarillion", resumido e anotado I

Sim, eu sabia que ainda faltava qualquer coisa.

(Para aqueles que nunca vão ler o "Silmarillion", não digam que nunca vos dei nada; Para os outros, pode ser que este aperitivo vos leve a ler.)

O que vou descrever não é apenas, inteiramente e tecnicamente, o "Silmarillion", mas é o que está na minha versão do livro. O "Silmarillion" propriamente dito relata apenas a Guerra das Jóias. Mas a história começa muito antes e começa assim:


No princípio... era o vazio.
Deus, Ilúvatar, tinha consigo os seus Anjos* e convidou-os a compor música em conjunto.

[*O termo correcto para estes seres divinos filhos de Deus não é Anjos mas sim Ainur, Valar ou mesmo Poderes. Mais tarde falarei deles como Valar ou Poderes ou mesmo Potestades mas por agora chamo-lhes Anjos para que a compreensão seja mais rápida.
Porque é que Tolkien decidiu reescrever o Velho Testamento, ninguém sabe.]

Esta composição teve três temas. Em cada tema, Deus mostrou aos Anjos a visão de [como resistir, como resistir?, é irresistível] uns "novos céus e uma nova terra". Um novo planeta cheio de luz, uma natureza verdejante, animais, plantas, e duas novas raças de filhos de Ilúvatar: os Elfos e os Homens. Aos Elfos, Ilúvatar concedeu vida imortal excepto por morte acidental ou em razão de ferimentos. Mas após a Morte, a alma dos Elfos iria para o lugar chamado a Casa de Mandos*, onde ficaria para sempre ou reincarnaria. A existência dos Elfos estava intimamente ligada à terra e não podia sair dela.

[*Mandos é o equivalente ao deus grego Hades, dos mortos e dos mundos subterrâneos. Mandos acumula a função com a de "deus do destino".]

Já aos Homens, Ilúvatar concedeu a dádiva da mortalidade. Isto significava que morreriam, de velhice se a doença nem a espada os levasse primeiro, mas para onde a sua alma ia depois da morte, ninguém sabia senão Ilúvatar. O último tema da música divina foi apresentado por Ilúvatar sozinho e nem os seus Anjos saberiam interpretar a visão completa do seu desígnio.
Manwë e Melkor eram os filhos de Ilúvatar mais poderosos de todos, e Ilúvatar tinha-os como irmãos. Mas eis que durante a música, Melkor começa a introduzir notas dissonantes que desarmonizavam a melodia de Ilúvatar e se tentavam sobrepôr a ela.
E à medida que Melkor se apercebia da Visão, uma outra tinha para ele, a de governar e ser Rei Supremo na nova terra que acabara de ser concebida em pensamento.
É aqui que as coisas entre Manwë, o fiel e mais poderoso de todos os Valar, azedam com Melkor. Mas tudo podia ter ficado por aí, se Melkor não tem decidido portar-se como um menino mimado a quem roubam o brinquedo.
Assim que os Poderes (chamados Poderes porque são poderes da nova Terra, denominada Arda) começaram a trabalhá-la para a transformarem no paraíso idealizado pela música de Ilúvatar, Melkor começou a destruir. Interessava-se pelo gelo e pelo fogo e queria toda a terra feita à imagem da sua visão. Os que os outros faziam, ele destruía. Se levantavam uma montanha, Melkor deitava-a abaixo. Se criavam um vale, Melkor inundava-o. E por esta altura nenhum dos Valar já queria a sua companhia e Melkor não se importava nada com isso.

[Talvez não se possa dizer que Melkor (mais tarde chamado Morgoth) fosse o Anjo Rebelde da Bíblia. Melkor não apresentava razão alguma para a sua maldade e para provocar uma guerra com os outros, a não ser o capricho infantil de fazer as coisas à sua maneira.]

Manwë, Valar dos céus, dos ventos e das águias, tornou-se o líder dos outros Valar e Melkor acabou por deixar de ser considerado como um deles. Mas Melkor, auto proclamado Senhor da Terra, conseguiu levar outros espíritos para o seu lado, entre eles o mais infame, de nome Sauron, que nessa altura era um lacaio de Melkor.
E quando os Poderes criaram duas lâmpadas para iluminar a Terra, Melkor partiu-as. Furiosos, os outros Valar perseguiram-no e Melkor foi-se esconder na Terra-Média, um continente criado entre Aman (onde era Valinor, a morada dos Valar) e o resto do mundo desconhecido. Entre a Terra-Média e Aman existia um oceano profundo e os dois continentes, Aman e Terra-Média, estavam apenas unidos a norte por uma região de gelos eternos (obra de Melkor) onde nada podia viver.

Então, para compensar as lâmpadas destruídas, os Valar criaram duas árvores, Telperion e Laurelin. A primeira dava luz prateada e a segunda luz dourada.

[Sim, estas árvores têm muito remotamente a ver com a árvore branca de Gondor.]

Eram estas árvores que iluminavam Aman, terra de Valinor, e nunca era noite nem se fazia escuridão, porque todos os dias, simultaneamente, enquanto uma delas minguava a outra crescia. Por momentos ambas as luzes se misturavam, a prateado e a dourada, criando um espectáculo nunca antes visto em Arda. Na Terra-Média, no entanto, a única iluminação vinha das estrelas também criadas pelos Valar, por isso se diz que quando os Elfos acordaram a primeira coisa que viram foi as estrelas e ficaram para sempre conhecidos como os Filhos das Estrelas.
Antes disso, porém, Aulë, o Valar que se interessava por todos os ofícios relacionados com os minérios, a pedra, o metal e as gemas, apressou-se e criou ele próprio uma raça que não estava prevista na canção de Ilúvatar. E assim surgiram na Terra-Média os Anões, muito antes dos Elfos. Mas Ilúvatar não aceitou que outra raça existisse antes dos Elfos e ordenou que os Anões dormissem até ao tempo designado para a chegada dos Elfos, data essa que só Ilúvatar conhecia. E só depois dos Elfos, os Homens.


Continua

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

A vida secreta de Elena Strange

Foi por acaso, se acaso o acaso existe, que Edward conheceu Elena Strange. Ela estava numa das filas da frente mas, mesmo que não estivesse, em toda a audiência do sermão de domingo de manhã era difícil não reparar nos olhos mais bonitos da paróquia. E foi por acaso que tinha sido pedido a Edward para substituir o pastor que se ausentara por uma semana. Foi também por acaso que depois do serviço, naquela manhã, havia uma reunião social de paroquianos. E Elena ficou por mais algum tempo. Foi assim que Edward a conheceu. Ela era alta, ruiva e tinha um sorriso de pedra quando lhe apertou a mão. Tinha uma casaco verde e luvas de renda branca. E uns olhos cinzentos carregados de palavras não ditas.
Elena era uma pessoa muito reservada, mas se calhar porque Edward também era um estranho e não ia ficar na paróquia, Elena deteve-se junto dele e deixou que algumas palavras fossem trocadas a que nenhum outro pastor ou paroquiano tivera direito. E conversaram, e Edward chegou mesmo a ter direito a um sorriso a sério.
Edward era pastor há poucos anos mas seguia uma vocação ardente. Ainda não encontrara a sua cara metade e não pensava muito no assunto porque a obra de Deus o consumia. Eis que Elena vinha transtornar isso tudo. Quando é que soube que estava apaixonado por Elena? Talvez depois de se encontrarem duas ou três vezes, ou no primeiro dia em que a conheceu na igreja?... Edward, ele próprio, não sabia. Mas fora da igreja as conversas estenderam-se, e com ela falou dos mistérios da existência, e Elena argumentava, questionava, perguntava o que Edward nunca ousara pôr em causa, e Edward gostava disso. O que o surpreendia é que Elena, que se questionava, tivesse alguma fé de todo, enquanto ele, que não se questionava, muitas vezes sentia que não podia afastar-se da obra temendo perder a fé.
Elena revelou então porque era tão reservada e quase não falava com os outros paroquianos.
- Gosto de ti, Edward, porque a tua mente é aberta e admite o porquê. Os outros não admitem.
O jovem pastor não pôde deixar de se sentir lisonjeado. Como Elena era diferente de todos os que tinha conhecido! Certamente havia mais sobre ela que ainda não tinha sido dito mas lia-se nos seus olhos cinzentos que às vezes se cobriam de melancolia. E Edward, obviamente, como qualquer apaixonado, queria saber.
Será que Elena alguma vez correspondeu? É difícil de dizer. Elena nunca abordou o assunto. Elena sempre pensou que era impossível. E se depois o deixou ver mais do que o véu das aparências, foi talvez a maior prova de amizade que lhe poderia prestar. Porque a Elena que ele conhecia era uma mulher inteligente, culta e bonita, talvez demasiado perfeita para ser igual às outras, mas agora ela revelava-lhe que não frequentava os mesmos sítios que o resto das pessoas, e era por isso que não se podiam encontrar mais vezes, porque Elena tinha fé mas acabava aí, como ela dizia, o seu “envolvimento com a sociedade”.
- Não é bom para ti seres visto comigo. – explicou-lhe. – Não nos devíamos ver mais.
Foi aí que o mundo de Edward ia desabando. Como era possível que houvesse em Elena alguma sombra de condenável? E mesmo que houvesse, quem é que ia atrever-se a atirar a primeira pedra? Não era ele pastor de uma congregação? Não devia ele dar o exemplo?
Foi então que os olhos cinzentos de Elena se tornaram mais escuros e ela revelou, em confidência, onde Edward a podia encontrar à noite. Se a encontrasse, isto é, e se queria mesmo conhecer a verdadeira Elena.
“Se a encontrasse” foi uma parte de Edward não compreendeu. Só percebeu que ela frequentava um bar que lhe era completamente desconhecido, tanto mais desconhecido porque não era um bar de reconhecido vício. Tudo para Edward era uma novidade. E não sabia o que Elena queria dizer com a frase “eu não sou como as outras pessoas”.
Cabia ao pastor procurar Elena onde Elena dizia que ia estar. Se ele quisesse. “Encontra-me se me encontrares”, disse ela.
Edward não resistiu. Tinha que ver por si próprio. Porque ela explicou mas ele não percebeu, e era como se não tivesse ouvido nada.
Naquele sábado à noite vestiu um fato, pôs uma gravata, e dirigiu-se à morada. Oblivion era o nome do bar, mas o nome era recente. O taxista conhecia o local mas não o nome. Parecia que o bar estava sempre a mudar de sítio e de nome. Parecia que o bar não queria ser encontrado. Edward teria desistido de encontrar um lugar tão obscuro se não fosse o amor que guiava os seus passos. Mas e se Elena precisava de ajuda para sair da perdição? Sim, talvez Elena precisasse de ser salva.
O sangue gelou-lhe nas veias quando a porta do bar foi aberta. Dois ou três rapazes ou homens (era difícil dizer a idade deles devido à maquilhagem) olharam-no de cima a baixo mas resolveram deixá-lo entrar. Estavam vestidos de preto. Tinham os cabelos pintados de preto. As próprias paredes eram pretas. A escuridão era a de um túmulo. Edward teve medo.
Ambientes de vício ele já tinha frequentado na sua caminhada para a vocação. De tudo ele já tinha visto ou experimentado. Mas que inferno estranho era aquele? O que faziam todas aquelas pessoas na penumbra, vestidas de negro, alguns sozinhos outros não tanto, mas todos imersos em música que Edward nunca tinha ouvido? E Elena? Como é que Elena podia estar ali?!... Mas Elena não era do tipo de pregar partidas. Elena era séria e preferia estar calada se não pudesse dizer a verdade. Logo, Elena estava ali, mas ele não a encontrava de facto. “Se me encontrares”, lembrou-se das palavras dela. E agora percebia. Ia ser difícil encontrá-la na escuridão.
Edward deve ter estado sozinho uma meia hora, a bebericar uma cerveja e a olhar para as pessoas e as pessoas a olharem para ele, até que no meio do fumo e na embriaguez da penumbra se tornou invisível e todos deixaram de lhe prestar atenção. Afinal, Edward, no seu fatinho azul e gravata a condizer, parecia um estranho de outro planeta. E, no entanto, para ele eram os outros que pareciam estranhos. Estava rodeado de gente estranha, vestida de preto, maquilhada de preto, entregue à música e à bebida como se pertencessem a um culto. A um culto sem pastor. O único pastor ali era ele, mas aquele não era o seu rebanho. E a música estava tão alta que não se podia pregar. Edward pensou se por acaso não seria a música a religião daquela gente.
E foi entregue a estas meditações que, no meio da penumbra, no que parecia ser uma pista de dança vagamente iluminada onde as pessoas se mexiam para a frente e para trás, finalmente a viu. Elena tinha os longos cabelos caídos, um longo vestido preto e nas mãos luvas de renda preta. Elena dançava e era sem sombra de dúvidas uma deles. Agora Edward percebia que Elena não era nem nunca tinha sido uma dos outros. Era a primeira vez que via Elena, com os lábios pintados de preto e eyeliner à volta dos olhos cinzentos, e aquela fazia sentido. A outra não fazia sentido nenhum. Foi uma sorte “encontrá-la”.
Tão chocado como fascinado, dirigiu-se a Elena que só agora reparava nele, e ela parou de dançar e olhou-o nos olhos durante alguns segundos. Depois guiou-o pelo braço até uma área do bar onde a música estava mais baixa e sentou-o a seu lado.
- Sempre vieste?... – foi só o que perguntou, como se não acreditasse que ele de facto estava ali. – Não devias ter vindo.
- Porque não? Estou aqui há muito tempo e não vejo nada de sórdido. – respondeu ele.
- Vai dizer isso aos teus paroquianos. – desafiou Elena, e levou ao lábios uma bebida, os olhos carregados de preocupação.
Mas Edward tinha de dizê-lo primeiro a si próprio. Que aquele ambiente não era de depravação como ele a conhecia, e no entanto era pior, muito pior. Mas porquê ele não conseguia dizer. Só sabia que não tinha resposta para os paroquianos. Qual era o mal? Qual era o mal?
Elena não se importava. Edward, na realidade, não fazia parte da sua vida. Os seus encontros eram tão secretos como tudo o resto. Porque lhe tinha dito? Por isso mesmo. Edward não era uma ameaça. Mas Elena sabia que estar no púlpito era estar debaixo do julgamento do homens, e agora era ela quem se tinha tornado uma ameaça à reputação de Edward o pastor. Por isso, ela deixou de sorrir.
E, no entanto, ele voltou. Quando voltou vinha vestido de preto para não parecer tão fora do ambiente. E voltou porque continuava a gostar de Elena, e continuava a ter perguntas por responder. Qual era o mal, ele não sabia. Não eram aqueles ambientes todos locais de devassidão e pecado? Não era contra isso que pregava quase todas as semanas? Não era isso que dizia a Bíblia? Mas continuava sem encontrar a sordidez. E isso perturbava-o, e era como se ali sentisse todas as fibras da sua fé a serem sacudidas até que toda a palha caísse como cinza e apenas o esqueleto da árvore ficasse de pé. Nunca se tinha sentido mais perto de Deus.
E havia outra coisa. A música parecia-lhe agressiva, mas as palavras não o deixavam. E nunca noutros locais de perdição tinha ouvido falar de Deus como ali. Isso era estranho, o mais estranho de tudo. Aquela gente esquisita vestida de preto pensava mais em Deus do que os seus fiéis paroquianos. Elena tinha mais fé do que qualquer um deles.
Claro que Edward não pensava que amava Elena por causa disso. A sua paixão, dizia a si próprio, era de natureza mais terrena. Terrena, mas legítima. O seu sacerdócio não exigia votos de celibato.
Quando tentou falar disso a Elena, os olhos dela ficaram vazios. Um sorriso ténue e quase maternal surgiu-lhe nos lábios. Porque Elena conhecia a perda e não era inocente. Seria por isso que gostava de Edward, porque ele era tão inocente e tão puro? Talvez. Mas Elena sabia melhor. E disse-lhe sem qualquer rodeio:
- Não nos podemos ver mais. A tua posição exige que estejas com alguém normal, respeitável, que obedeça às normas da sociedade a ponto de ser um exemplo. Nunca te perdoariam ver-te com alguém como eu.
Claro que Edward tentou argumentar mas Elena estava decidida.
- Sou eu que quero. – e perante a sua mágoa, tentou explicar: - Edward, tu pertences ao mundo do dia e da luz. Eu pertenço ao mundo da noite e das trevas. São mundos que não se misturam. Por alguma razão nos encontrámos, como no lusco fusco do entardecer, mas a noite já vai alta. É aqui que nos separamos.
“É aqui que nos separamos” foi algo que Edward nunca percebeu. E nunca mais foi o mesmo. E nunca mais viu Elena Strange. Porque assim ela quis. E na sua jornada, Edward continuou a procurar o seu rosto entre os paroquianos, mas ela nunca veio e ele nunca mais voltou ao Oblivion.
E no entanto, Edward nunca encontrou ninguém à altura de Elena, e desde esse momento sentiu-se incompleto. Passaram-se meses, anos, tempo infinito até ao momento em que beijando as Escrituras percebeu que a vontade de Deus não podia ser hipócrita como os paroquianos. Onde estava o mal? O mal estava na cegueira dos que não compreendiam a diferença entre o ser e o parecer. Era aí que estava o mal.
Edward deixou de ser inocente. E acabou por perceber o que Elena lhe dizia, anos atrás. Não era ela quem precisava de ser salva. Era ele. Porque ninguém dá valor ao que tem antes de conhecer a perda.
Nessa altura voltou a procurar pelo bar, mas o local e o nome já não eram os mesmos. Anos tinham-se passado. Elena tinha desaparecido. O que aconteceu a Elena, Edward nunca chegou a saber. Mas agora a música já não lhe parecia estranha nem agressiva. A música cantava a Deus com a alma. Edward vestiu-se de preto e passou a fazer parte das pessoas de Elena. Agora ele conhecia a perda e os seus olhos estavam cinzentos e melancólicos como eram cinzentos e melancólicos os olhos de Elena. Agora ele era um deles.
E aqui começa a história da vida secreta de Edward Strange.
Oh, this is so unlike me
this thing that I'm doing
It's so unlike me

You know, this thing that I'm doing
it's so unlike me
It's not really me at all

So, where is me?
In this thing that I'm doing
Oh, where is me?
I can't remember what it looks like, what it feels like

oh, this is so unlike me
this thing that I'm doing
It's not really me at all.





"So unlike me", Ruby Blue

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2006

A verdade sobre os bares góticos

O vídeo a seguir apresentado foi captado em segredo num bar gótico. As imagens são chocantes e podem ferir a sensibilidade de algumas pessoas. Achei, no entanto, que vale a pena divulgá-lo pelo bem da verdade. E também acho que já é tempo de toda a gente saber tudo o que de sinistro se passa atrás das portas...

Está aqui. Vejam por vossa conta e risco.

Apesar das imagens serem chocantes!!! Não se queixem que não avisei.

Memórias

Um homem desesperado comete erros uns atrás dos outros.


-§-



A ignorância é muito possivelmente a raiz de todos os males.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

Preciso de estar sozinha

Vou fechar a porta por tempo indeterminado.

Antes disso, ainda tenho algo para escrever e partilhar.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2006

A maldição do servidor 13

O fórum está, oficialmente, em manutenção.

Server 13 will be offline for ~1-2 hours starting at 3 AM (eastern time). The maintenance is to replace a failed component. The failed component has not caused any data loss nor has it impacted the performance of server 13.

I am also considering taking a special backup which will require ~1 hour of downtime at 1 AM. The backup will further protect your board's data before the maintenance.

Thank you for your patience.


Por isso não se consegue aceder.

Depois deste anúncio, um outro.




IMPORTANTE:

Imperdíveis as entrevistas de Agostinho da Silva em repetição na RTP 2.

CONVERSAS VADIAS
A 2: comemora o centenário do nascimento de Agostinho da Silva (13/02/1906 – 03/04/1994) e homenageia esta personagem fascinante e exemplar


Da primeira vez que vi as entrevistas (era eu adolescente) não percebi nada de nada. Nem uma palavra. O que só prova que não há casos perdidos. É uma questão de andar a rolar pelas pedras da vida até se ver a luz (que não é o isqueiro).
Vale a pena ouvir sempre, e pensar, e se não se apanhar tudo pelo menos um bocadinho, um fragmento de ideia. A genialidade não é para todos e custa a compreender. Agostinho da Silva era um génio capaz de metralhar 30 verdades universais da vida por segundo. Ao pé dele, os entrevistadores ficam de súbito "mais inteligentes", ou demonstram um brilhantismo que não lhes tinha sido dado a revelar antes, prova que um génio tem o poder de elevar o génio no outro. Estas pessoas não deviam morrer nunca; deviam viver para sempre e continuar a guiar-nos no caminho. Como infelizmente não é assim... ficam as entrevistas.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2006

Ah, o prazer de ler palavras honestas! Até eleva a alma!

Tim Rutten:
Regarding Media
Let's be honest about cartoons
THE editor of the Los Angeles Times does not think you need to see any of the cartoons that have triggered deadly riots across the Muslim world.

Earlier this week, I proposed illustrating this column with examples of the caricatures first published last fall in a Danish newspaper. If readers are to form rational opinions about both the ferocity of Islamic reaction and the American news media's response to it, I thought, surely at least a glance at one or two of these mild cartoons is required. I suggested that the cartoons run inside the Calendar section with a notice in this space concerning their location. That way, those who wanted to see them could, while those who might be offended simply could avoid that page.
I fully expected the proposal to be rejected, and it was — quickly and in writing, though the note also expressed the hope that the column would be as forceful and candid as possible.

This paper has ample company. The New York Times, the Washington Post, Wall Street Journal and USA Today all have declined to run the cartoons because many Muslims find them offensive. The people who run Associated Press, NBC, CBS, CNN and National Public Radio's website agree. So far, the only U.S. news organizations to provide a look at what this homicidal fuss is about are the Philadelphia Inquirer, the Austin American-Statesman, the Fox cable network and ABC.

Among those who decline to show the caricatures, only one, the Boston Phoenix, has been forthright enough to admit that its editors made the decision "out of fear of retaliation from the international brotherhood of radical and bloodthirsty Islamists who seek to impose their will on those who do not believe as they do. This is, frankly, our primary reason for not publishing any of the images in question. Simply stated, we are being terrorized, and as deeply as we believe in the principles of free speech and a free press, we could not in good conscience place the men and women who work at the Phoenix and its related companies in physical jeopardy."

There is something wonderfully clarifying about honesty.

Meanwhile, ironies that would be laughable were the situation not so dire have mounted by the day. For one thing, reporting in this paper, the New York Times and Wall Street Journal has made it clear that what's at work here is not the Muslim street's spontaneous revulsion against sacrilege but a calculated campaign of manipulation by European Islamists and self-interested Middle Eastern governments. If the images first published in Jyllands-Posten last September are so inherently offensive that they cannot be viewed in any context, why did Danish Muslims distribute them across an Islamic world that seldom looks at Copenhagen newspapers? As Bernard-Henri Levy wrote this week, we have here a case of "self-inflicted blasphemy."

Then there's the question of why there was no reaction whatsoever when Al Fagr, one of Egypt's largest newspapers, published these cartoons on its front page Oct. 17 — that's right, four months ago — during Ramadan. Apparently its editor, Adel Hamouda, isn't as sensitive as his American colleagues.

Nothing, however, quite tops the absurdity of two pieces on the situation done this week by the New York Times and CNN. In the former instance, a thoughtful essay by the paper's art critic was illustrated with a 7-year-old reproduction of Chris Ofili's notorious painting of the Virgin Mary smeared with elephant dung. (Apparently, her fans aren't as touchy as Muhammad's.) Thursday, CNN broadcast a story on how common anti-Semitic caricatures are in the Arab press and illustrated it with —you guessed it — one virulently anti-Semitic cartoon after another. As the segment concluded, Wolf Blitzer looked into the camera and piously explained that while CNN had decided as a matter of policy not to broadcast any image of Muhammad, telling the story of anti-Semitism in the Arab press required showing those caricatures.

He didn't even blush.



If the Danish cartoons are, in fact, being withheld from most American newspaper readers and television viewers out of restraint born of a newfound respect for people's religious sensitivities, a great opportunity to prove the point is coming.A major American studio, Sony, shortly will release a film version of Dan Brown's bestselling novel "The Da Vinci Code." It's fair to say that you'd have to go back to the halcyon days of the Nativist publishing operations in the 19th century to find a popular book quite as blatantly and vulgarly anti-Catholic as this one.

Its plot is a vicious little stew of bad history, fanciful theology and various slanders directed at the Vatican and Opus Dei, an organization to which thousands of Catholic people around the world belong. In this vile fantasy, the Catholic hierarchy is corrupt and manipulative and Opus Dei is a violent, murderous cult. The late Pope John Paul II is accused of subverting the canonization process by pushing sainthood for Josemaría Escrivá, Opus' founder, as a payoff for the organization's purported "rescue" of the Vatican bank. The plot's principal villain is a masochistic albino Opus Dei "monk" for whom murder is just one of many sadistic crimes. (It probably won't do any good to point out that, while it's unclear whether Opus Dei has any albino members, there definitely are no monks.)

Now many Catholics, this one included, regard Opus Dei as a creepy outfit with an unwholesome affinity for authoritarianism gleaned from its formative years in Franco's Spain. But neither it nor its members are corrupt or murderous. It is a moral — though thankfully not legal — libel to suggest otherwise. Further, it is deeply offensive to allege — even fictionally — that the Roman Catholic Church would tolerate Opus, or any organization, if it were any of those things.

So how will the American news media respond to the release of this film?

Certainly, there should be reviews since this is a news event, though it would be a surprise if any of them had something substantive to say about these issues. But what about publishing feature stories, interviews or photographs? Isn't that offensive, since they promote the film? More to the point, should newspapers and television networks refuse to accept advertising for this film since plainly that would be promoting hate speech? Will our editors and executives declare their revulsion at the very thought of profiting from bigotry?

Naaaaww.

It won't happen for a simple reason that has nothing to do with the ideas being expressed or anybody's sensitivities, religious or otherwise. It won't happen because Pope Benedict XVI isn't about to issue a fatwa against director Ron Howard or star Tom Hanks. It won't happen because Cardinal Roger M. Mahony isn't going to lead an angry mob to burn Sony Studios, and none of the priests of the archdiocese is going to climb into the pulpit Sunday and call for the producer's beheading.

On the other hand, perhaps the events of the last two weeks have shocked our editors and news executives into a communal change of heart when it comes to sensitivities of all religious believers.

Right.

That will happen when pigs soar through the skies on the wings of angels, when the lion reclines with the lamb on high-thread-count Egyptian cotton sheets and no one bothers to beat the world's very last sword into a ploughshare because all the hungry have been fed.

Until that glorious day, those of us who inhabit this real world will continue to believe that the American news media's current exercise in mass self-censorship has nothing to do with either sensitivity or restraint and everything to do with timidity and expediency.

domingo, 12 de fevereiro de 2006

Smoke and mirrors



"A política nuclear da República Islâmica tem sido pacífica até agora. Até agora, temos trabalhado dentro da agência (a Agência Internacional de Energia Atómica das Nações Unidas) e das regras do TNP (Tratado de Não-Proliferação). Se virmos que querem violar os direitos do povo iraniano através dessas regras, devem saber que o povo iraniano vai rever as suas políticas. Não devem fazer algo que leve a tal revisão das nossa política", avisou Mahmoud Ahmadinejad.

No mesmo discurso, aludindo à questão dos "cartoons" de Maomé na imprensa europeia, Mahmoud Ahmadinejad voltou a produzir afirmações que questionam a existência do Holocausto judeu perpetrado pelos nazis na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, classificando o Holocausto como um "mito". Para o líder iraniano, os países europeus são fantoches de Israel.

"Eles dizem que os seus países são livres mas estão a mentir. São reféns dos sionistas e os americanos e os europeus devem pagar por isso", invectivou Ahmadinejad. Invocando a questão da liberdade de expressão, Mahmoud Ahmadinejad questionou: "Como é que os insultos são livres no vosso país mas qualquer investigação sobre o Holocausto é um crime?"

Adepto da ideia de que a morte de seis milhões de judeus durante o regime nacional-socialista alemão é uma fabricação para justificar os interesses israelitas, o Presidente iraniano pediu uma conferência académica para discutir o que aconteceu no Holocausto, sugestão que foi condenada internacionalmente pela maioria dos líderes mundiais. Hoje, voltou a dizer que "se procuram pelo Holocausto, vão encontrar o verdadeiro Holocausto na Palestina".



Sobre a questão das caricaturas. Passei os últimos dias a ler muito do que se escreve por cá e no estrangeiro, não só pelas elites como pelos cidadãos anónimos e pelos jornais que supostamente (já digo supostamente) publicam os factos como eles são. Cheguei à conclusão de que não há nenhuma questão de caricaturas. A verdadeira questão prende-se com este senhor na imagem e tudo o que ele implica.
"Smoke and mirrors" é uma expressão inglesa que significa "enganar ou distorcer a realidade". Nunca uma expressão serviu tão bem para explicar o que se passa actualmente na Europa, embora os americanos estejam bem habituados a ela.
Os factos são o que são. As caricaturas foram publicadas primeiro em Setembro, depois em Dezembro num jornal egípcio em pleno Ramadão, e não aconteceu nada. Subitamente em Fevereiro, em que se agrava o braço de ferro com o Irão, surgem manifestações nas ruas, embaixadas incendiadas, mortos e feridos e ameaças de morte. Pensar que esta reacção não é manipulada por radicais (e governos que pouco fazem para os travar) é ser demasiado ingénuo nos dias que correm. Pensar que a questão se centra em torno da sensibilidade islâmica a qualquer boneco publicado aqui ou ali é uma extraordinária perda de tempo para entreter quem não quer (ou não pode) falar claramente.
Entre estes que não podem falar claramente estão os ministros dos negócios estrangeiros e os diplomatas. Agora os leitores habituais vão estranhar-me mas tem de ser. Isto não é um dramazinho pessoal de pouca importância. Vive-se num clima de pré-guerra mundial. Faz todo o sentido e dita o bom senso que as entidades oficiais não deitem mais achas para a fogueira e condenem as caricaturas. Bem sei que a Europa não está habituada a isto porque os mais novos esqueceram a guerra. (Os americanos, no entanto, estão bem habituados a isto.) Logo, o que os diplomatas dizem faz todo o sentido.
O que nós dizemos, mais abertamente porque os nossos blogs são insignificantes para resolução final das coisas, é outra questão. E quanto mais insignificantes, mais abertamente se pode falar. É por isso que o faço. Se fosse ministra dos negócios estrangeiros não faria (nem poderia, excepto muitos anos depois do desfecho, como em todas as questões de relevância histórica). Trazer a lume tricas de política interna não só é míope como politicamente oportunista. Por outras palavras, é bom para os cegos e os que vêem muito bem.
Voltando ao assunto. A publicação das caricaturas não me faz mossa nenhuma e acho muito bem que tenham sido publicadas para mostrar uma posição. Entretanto, o que é, na minha modesta opinião (modestíssima, acreditem) realmente novo nesta situação é que pela primeira vez desde a Segunda Guerra mundial (ou talvez na História?) a Europa está exaltada porque vê tão somente o seu direito à liberdade de expressão ser posto em causa. Isto surpreende-me. Todas as lutas anteriores da Europa não se centravam em torno da liberdade de expressão mas de algo mais, quer fosse a liberdade política (como no nosso país) ou religiosa ou a libertação do modo de vida servil (a Revolução Francesa com o seu lema "liberdade, igualdade, fraternidade"). Este ataque directo ao "European way of life" atingiu a consciência europeia mais fundo do que os próprios atentados terroristas em Madrid ou em Londres. Isto talvez se deva ao facto de que a Europa, ao contrário dos Estados Unidos, já estivesse habituada a movimentos terroristas no seu próprio seio: o IRA, a ETA, as Brigadas Vermelhas, até no nosso pacífico país as FP25. (Lembro-me de uma bomba que explodiu nas proximidades e fez vítimas quando eu tinha menos de 3 anos. E jamais me esquecerei do terror dos tempos do PREC, vivido na mesma tenra idade.)
Estou, por isso, surpreendida que o clamor de indignação seja provocado pela perspectiva de abdicar de um direito e não pelo terror dos atentados. Talvez ainda haja esperança para a Europa idealista apesar de tudo.
Pena é que muita dessa Europa ainda se deixe enganar por jogos de fumo espelhos que, como a parafernália usada por ilusionistas para esconder o truque, a ilusão do seu ofício, distraem os pensamentos da verdadeira causa das coisas, e a causa está no facto de que a Europa já não é um lugar seguro como nos habituámos a vê-la desde os anos 80 e a queda do muro de Berlim.
De um lado temos o fundamentalismo islâmico em erupção e de outro o belicismo irreflectido dos Estados Unidos (e o seu igualmente preocupante fundamentalismo cristão de que grande parte dos europeus ainda não se apercebeu). A Europa, lamento-o, tem estado de olhos fechados a olhar para o umbigo do seu poderio económico pensando que as convulsões lhe vão passar ao lado. Agora os bárbaros batem-lhe à porta como aconteceu ao Império Romano. Se a história se repete ou não, é o que vamos ver. Vivemos tempos diferentes e sem paralelo. Isso é que nos assusta mais do que tudo. A incógnita, a incerteza. A guerra já não se faz pelas espadas como no tempo das Cruzadas. Os países islâmicos não são a Rússia do tempo da guerra fria. Os valores europeus não são os mesmos que se viviam durante a Segunda Guerra. Tal como nos anos 30 do século XX, se quisermos estabelecer um paralelo algo rebuscado, ninguém sabe muito bem o que fazer nem o que pensar. Daqui para a frente não devemos olhar para as referências em busca de respostas (que as referências não sabem dar ou não querem dar por motivos de Estado que espelham a sua -- legítima! -- ambição política no futuro). Está na altura de pensar pela própria cabeça e de pensar duas ou três vezes antes de dizer seja o que for.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Olhem o que eu encontrei!

"GESTOR DE SINISTROS-URGENTE

Pretendemos candidatos com o seguinte perfil:

- Licenciatura em Direito ou 12ªAno;"

Pode ser visto aqui.




Ser licenciado em Direito ou ter o 12º ano é a mesma coisa?

Ver post abaixo sobre os alhos e as cebolas.

Ser inconveniente

Isto não é um post por pedir desculpa por existir, nem nada que se lhe pareça. Mas mesmo assim senti necessidade de o colocar.

Uma vez, há muitos anos, quando falava numa mesa de bar sobre a minha situação económica (que não se vê porque a pobreza é envergonhada) houve alguém que me disse "estás a ser incoveniente". Eu era inocente na altura e aquilo chocou-me profundamente. Dizer a verdade era "ser inconveniente". Claro que, como podem imaginar pela linguagem, estava a falar com pessoas de um certo nível.
Nesse dia mudei de amigos.

Já o disse aqui, muitas vezes, parece-me, que sou um caso atípico. Nesta internet, sei-o bem, não se espera encontrar situações de grande pobreza. Nem passa pela cabeça das pessoas que abdicar da internet é a última medida porque a internet é a melhor maneira de procurar emprego e ficar sem ela é o mesmo que dantes seria deixar de ler o jornal no café para procurar emprego. Por aqui, estamos conversados. Pensei ser útil explicar isto porque muita gente ainda não percebeu.
Depois, por ser um caso atípico, também gosto de escrever. E gosto de escancarar os meus sentimentos ao vento e de dizer o que se passa mesmo que ninguém leia. Para mim é terapêutico e faz-me bem.
Mas sei, porque já não sou inocente, que esta leitura é custosa para alguns e inconveniente para outros. Pois, sei-o muito bem.
A minha voz ergue-se contra a multidão de aparências que nos rodeiam. A minha voz não se importa com o que os outros pensam. E a minha voz é assim porque é anónima. E é anónima para poder ser assim. Sei que de outro modo não poderia expressar um décimo do muito que já expresso aqui. A sociedade não mo perdoaria.
Este é o ponto primeiro.
o ponto segundo é que este é um blog pessoal, logo, serve para desatar o que se passa comigo e na minha vida. O aspecto de utilidade que possa ou não ter para terceiros é algo que me é alheio e que não me preocupa. Não estou aqui em missão alguma que não o meu benefício pessoal e a minha estimulação intelectual. Se por acaso vêm à baila situações inconvenientes, azar. Ao contrário da mesa do bar, ninguém tem que me ouvir. E eu não preciso de mudar de amigos.

Uma última nota. Volto ao ponto de que ninguém na internet se espera deparar com situações de pobreza. A internet era um ponto de encontro de uma certa classe média alta, e foi assim até um certo ponto em que a banda larga se banalizou e tornou acessível. Junte-se a isso aptidões informáticas e, voilá, aqui me têm! Dito isto, quero acrescentar que há situações muito mais inconvenientes por aí, situações que nunca tiveram voz, que nunca vão ter voz, como os deficientes ou os doentes crónicos que não podem escrever pelo simples facto de estarem imobilizados ou impedidos por motivos físicos, e os idosos que vivem na miséria e não sabem escrever, e aqueles que simplesmente não sabem usar um computador. Peço que pensem nesses por um bocadinho, por muito inconveniente que esse bocadinho seja. Acreditem no que vos digo que se acham as minhas palavras inconvenientes não estão preparados para enfrentar a realidade. Se querem estar preparados ou não para enfrentar a realidade, isso também não é problema meu. Eu só escrevo. Que leia quem quiser. Mas pela vossa saúdinha, se este blog vos faz mal, não o leiam. Melhor que isto não posso fazer.

Os alhos e as cebolas e a invencível armada

Ouvi dizer, não me lembro a quem nem porquê, que o empreendorismo português na época dos Descobrimentos teve os seus aspectos caricatos. Para as naus foram contratados agricultores do Portugal profundo que não sabiam a diferença entre bombordo e estibordo. Os capitães das naus encontraram uma solução peculiar. Penduraram de um lado um saco de alhos e de outro um saco de cebolas e em vez de dizerem “para estibordo” ou “para bombordo” diziam simplesmente “alhos” e “cebolas”.
Não sei se esta história é facto ou lenda mas reconheço-lhe todo o mérito por funcionar.

Imaginemos agora esta solução aplicada à realidade actual. Feitas as naus e pronta a armada a zarpar, contrataram-se os tais agricultores das Beiras (vulgo Berças) para “marinheiros” e adoptou-se o saco de cebolas e o respectivo saco de alhos. Mas agora havia um problema com que o Capitão da armada não contou de antemão. Havia concorrência internacional e o caminho marítimo para a Índia já era percorrido por navios de todos os países. Não que a concorrência preocupasse o Capitão porque só lhe interessava fazer o que lhe foi dito e levar a armada ao porto. Isso da concorrência e do lucro passava-lhe ao lado porque era um funcionário zeloso e fazia o que lhe mandavam. Mas a grande chatice é que a navegação internacional utilizava os termos “bombordo” e “estibordo” e à pala disso quase afundou os navios num embate com os pesqueiros espanhóis logo à saída do porto. Decidiu-se, então, que era “preciso fazer qualquer coisa”.
A solução foi culpar os marinheiros pelo acidente, visto serem mão de obra não preparada, e despedi-los em massa ou arranjar-lhes reformas antecipadas. Alguns, amigos do Capitão, não foram despedidos (não por saberem o que era bombordo e estibordo mas por conviverem socialmente com o Capitão e esposa e filhos e cão), e foram em vez disso promovidos a supervisores dos que haviam de vir substituir os outros.
Contratou-se uma agência de trabalho temporário que colocou este anúncio de acordo com o que foi pedido:

“Precisa-se marinheiros, robustez física, espírito de inciativa, proactividade, bla bla bla, e que saibam distinguir bombordo de estibordo.”

Ora, escusado, porque já se sabia (ou devia saber-se) que ninguém sabia o que era bombordo e estibordo. Foi aí que todo o problema começou. Mas o Capitão achou bem e entretanto foi promovido, por acumulação de anos de serviço, a Comandante da armada.

Como ninguém sabia o que raio era bombordo e estibordo, mas as pessoas precisam de trabalhar porque isto está mau, a tal agência foi inundada de currículos e cartas a assegurar que os candidatos sabiam o que era bombordo e estibordo. Assim que chegavam ao navio, era-lhes ensinado pelos tais supervisores (que também não sabiam o que era bombordo e estibordo) o sistema dos alhos e das cebolas e as manobras para zarpar do porto lá prosseguiam.
Mas os supervisores não conseguiam disfarçar a incompetência porque o Comandante continuava a falar em bombordo e estibordo e eles não sabiam para que lado era e então interpretavam “alhos” e “cebolas” conforme entendiam. Inclusivamente, contradiziam-se entre eles, e os navios queriam sair do porto mas chocavam entre eles e não arredavam dali.
Furioso, o Comandante manda os amigos à merda (porque já tinha o Rei em cima dele a exigir resultados), despede-os, arranja novos supervisores desta nova leva de alhos e cebolas e despede os restantes (só para não dizer que não havia ninguém competente, porque de facto não havia, mas não se podia dar essa impressão porque se assim fosse a culpa era da liderança e não do pessoal e era mau para o Comandante).
Veio logo um gajo novo que sugeriu que o Comandante desse formação aos recém contratados, explicando-lhes de uma vez por todas o que era bombordo e estibordo. Este gajo foi logo despedido, à desculpa de que não tinha habilitações para o lugar (como se alguém tivesse) por ter dado uma boa ideia, boa ideia essa que o Comandante se estava cagando para seguir porque não era próprio da sua patente ir lá abaixo ao convés explicar aos marujos o que era bombordo e estibordo, por isso continuou-se com o sistema de alhos e cebolas.
Mas o Comandante não era parvo nenhum (porque para chegar a Comandante é preciso alguma esperteza) e encomendou um estudo a dizer o que o gajo despedido tinha dito, e que era preciso formação sim senhor, e o Rei lá abriu os cordões à bolsa e veio uma equipa de peritos internacionais dar formação, não aos gajos que já estavam contratados que esses acabaram por ir para o olho da rua, mas a todos aqueles que tiveram a informação de que a formação valia a pena. Os seleccionados para a formação foram os filhos de boas famílias amigas do Comandante, gente que subornou tudo pelo caminho e, lá pelo meio, para não dar muito nas vistas e haver um exemplo positivo para divulgar no reino, um gajo qualquer que até tinha boas notas e conseguiu uma bolsa de estudo.
Os peritos internacionais ensinaram não só o que era bombordo e estibordo como, com infinita paciência, explicaram aos formandos que uma janela redonda num navio se chama escotilha e que aquilo que eles estavam a ensinar se chamava Navegação Marítima e não “Curso de Bombordo e Estibordo”.
Assim que se apanharam com uma certificação profissional, os formandos foram contratados pelas armadas estrangeiras. E isto por várias razões. A primeira é que quando os portugueses são bons são mesmo muito bons. A segunda e determinante, porém, foi que tinham possibilidades de progredir numa carreira a sério, ao contrário dos teatrinhos de faz de conta da armada que teimava em não sair do porto. Por esta altura, a armada tomou a alcunha de “Armada Invencível”, não por ser muito boa mas por ser inamovível.
E os anos passavam e os navios precisavam de ser reparados, então toca de arranjar imigrantes para os arranjar porque se achava que os marujos dos navios eram demasiado qualificados para fazer esse trabalho (porque, lá está, sabiam o que eram alhos e cebolas) de modo que foram despedidos e a expedição ficou em águas de bacalhau durante alguns anos à pala dos subsídios de restauro que ninguém mais recebeu senão o Comandante (e foi logo comprar um iate pessoal como “despesa de formação profissional” para não se esquecer do que era bombordo e estibordo que um homem também não se pode lembrar de tudo).
Entretanto, alguns espertalhões que viram ali a oportunidade, toca de abrir universidades privadas e cursos em universidades públicas para dar resposta às necessidades do mercado de trabalho, cursos esses de dois calibres. Um, de tendência mais profissional, “Curso de Alhos e Cebolas”, para explicar apenas e tão só o sistema de navegação nacional e mais umas cadeiras de Matemática Aplicada pelo meio. Outros, mais honestos, “Curso de Bombordo e Estibordo”, que incluía a cadeira “Alhos e Cebolas” para explcar a relação entre o bombordo e o estibordo e o sistema de navegação nacional e aproveitando à mistura para meter umas cadeiras de Relações Internacionais que havia muitos doutorados no desemprego.
Veio novo recrutamento para a armada depois do restauro e o Comandante, que era velha escola, achou que os licenciados, doutores em Alhos e Cebolas ou Bombordo e Estibordo, eram, em ambos os casos, demasiado qualificados para o lugar de marujos e voltou a recorrer às empresas que trabalho temporário que desataram a meter gente que dizia que sabia o que era bombordo e estibordo mas não fazia a mínima ideia. Mais uma vez, a armada não saiu do porto.
O Rei já andava pelos cabelos mas entretanto já se tinham passado trinta anos desde o início do projecto e o Almirante (que tinha sido promovido por antiguidade ao serviço) já estava velhinho e acabou por morrer sem se reformar. Foi a oportunidade de sua Sereníssima Majestade culpar o funcionalismo público pela ineficiência da Armada Inamovível e vai dái, zás, mete lá um boy da sua confiança política e o cargo deixa de ser um cargo público para ser um cargo de “mérito”.
O novo Comandante, que o boy nunca chegou a passar por Capitão, não só não sabe o que é bombordo nem estibordo nem o que é alhos e cebolas, como logo se depara com a evidência de que o velho Almirante não tinha deixado indicações para onde se queria ir afinal (que o Almirante, como se disse, achava abaixo do seu nível deixar explicações escritas ou outras, porque “um cargo de chefia é para ser obedecido e não para dar explicações”, dizia ele, quando a verdade é que não sabia escrever à máquina e nunca tinha visto um computador à frente mas não gostava de admitir que tinha de se modernizar porque isso era “degradante para o prestígio da carreira”), e o novo Comandante, como se dizia atrás, ficou sem saber o que estava ali a fazer. Mas não o podia admitir, porque o Rei pressupunha que ele sabia para onde se queria ir e, afinal, era um cargo de confiança política, por isso fingiu que sabia e calou-se muito caladinho. E quando lhe vieram perguntar, “Excelência, bombordo ou estibordo?”, ficou a olhar para os oficiais do momento como um burro para um palácio, e quando um deles trocou por miúdos “Alhos ou cebolas?” o homem foi mesmo aos arames e toca de despedir os dois. Depois de despedidos, perguntou aos restantes “Para onde?”, que eles “já lá estavam há tempo suficiente para saber”, e os desgraçados, não querendo ter o mesmo fim, disseram o que primeiro lhes veio à cabeça. Mas como não conversavam entre eles temendo ser traídos pelas costas, e já não havia sindicatos nem o raio que o parta porque era o salve-se quem puder, desataram também a fazer o erro dos anteriores e a gritar no convés: “alhos” para um lado e “cebolas” para o outro.
Os navios chocavam e a armada não saía do porto.
Nova vaga de despedimentos, em que se incluiram os oficiais acima (não escaparam), porque o boy queria apresentar serviço e parecer eficiente e para isso tinha culpar alguém.
Mas como também não era completamente parvo, lá decidiu meter gente nova e contratar uma empresa de formação para explicar, mais uma vez, aos marujos, o sistema de alhos e cebolas. A primeira coisa que o formador fez, porque era um chico esperto que também não sabia o que eram os alhos e as cebolas, foi abrir os sacos porque, pensou ele, bastava abrir os sacos para saber onde estava o quê! Esperto! Só que não resultou. Tinham-se passado tantos anos que quando o inteligente abriu os sacos só lá estava pó. Mas chico esperto como era, que nisto os portugueses são de facto imbatíveis, toca de arranjar uma solução provisória que era escrever num papel “alhos” e noutro papel “cebolas” para substituir os sacos e chamou ao procedimento “adaptação às novas realidades do mundo tecnológico da autoestrada da informação”.
Houve logo um formando (que podia ser eu) que simplesmente perguntou “mas se alhos e cebolas estão a substituir bombordo e estibordo e se se vai escrever num papel, porque não se escreve logo bombordo e estibordo e se esquece os alhos e as cebolas?”. Ideia genial. Erro fatal. Logo o formando (que podia ser eu) foi dispensado por 1) precisar de um papel para saber o que era bombordo e estibordo; 2) desrespeito à autoridade; 3) inadequação ao lugar; etc. E perguntaram os familiares e amigos ao formando (que podia ser eu) “Mas porque é que tiveste de fazer a pergunta?!”, e responde o formando “Mas eu só pensei...”, e interrompem os amigos e familiares: “Mas porque é que tiveste de pensar?!”. Não que a perda fosse grande para a armada, porque este formando não sabia a diferença entre bombordo e estibordo (como, aliás, ninguém sabia, e era essa a origem do problema, e o único que sabia era o Almirante e já tinha morrido) e que a perda fosse grande para o formando porque este não era nada parvo e percebeu claramente que daquela armada ninguém saía vivo.
E de facto foi uma questão de tempo até que o formador fosse também dispensado, e nova leva de gente que não sabia o que eram as cebola e os alhos foram contratados, só que desta vez eram os filhos dos agricultores que nunca tinham visto nem um alho nem uma cebola à frente em toda a vida, e para eles alhos e cebolas e bombordo e estibordo era tudo a mesma merda desde que lhes pagassem porque não valia a pena pensar mais nisso e quem pensava muito não aquecia o lugar.
E mais uma vez a armada não saiu do lugar e não foi a lado nenhum.

A epopeia podia continuar mas a partir daqui repete-se. Sai um boy, entra outro boy, muda o Rei, mudam os boys, e continua tudo sem saber onde estão as cebolas e os alhos, já nem se fala em bombordo e estibordo, e o novo Rei já nem sabe para onde o antecessor queria ir. A armada tornou-se de facto invencível.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

O regresso do Rei



The Sisters of Mercy
Lisboa, Coliseu
5 de Abril de 2006

Eu também cá quero disto

Notícia fornecida através de um membro do fórum (obrigada!!!).

Padre inglês celebra missas ao som de bandas góticas

Um padre inglês celebra missas em Cambridge ao som de bandas góticas como os Sisters of Mercy, noticia a imprensa local.


O reverendo Marcus Ramshaw, de 34 anos, confessa-se um gótico e decidiu celebrar alguns serviços ao som de alguns nomes do movimento musical surgido nos anos 80.

As missas góticas são celebradas na Igreja St Edward King and Martyr à luz de velas e incluem uma liturgia escrita especificamente para a ocasião.

Além dos Sisters of Mercy, a banda sonora do serviço religioso é fornecida por nomes como os Joy Division ou os Depeche Mode.

«O objectivo da missa é frisar que todos desesperamos por vezes, todos sofremos revezes e, por vezes, a vida parece sem esperança. A missa gótica restabelece uma ligação: Deus continua a apoiar-nos mesmo se estamos cegos», explica o clérigo.

19-01-2006


http://diariodigital.sapo.pt/disco_digital/news.asp?section_id=2&id_news=17279

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2006

"A paixão de Cristo", filme, de Mel Gibson, 2004



20 em 20.

(Na imagem, Rosalinda Calentano, "Satanás")

Os miseráveis e os miseráveis

Há dois tipos de miseráveis:

Os miseráveis que passam fome.
Os miseráveis que fazem os outros passar fome.

Acontece na vida de algumas pessoas ter de escolher entre os dois. É nesse momento que se lhes mede a têmpera.


(Post para gáudio dos que têm muito a perder por alguém que não tem nada a perder. Riam-se por dentro, se faz favor.)

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

O meu maior defeito é a honestidade. É uma honestidade tão brutal que se lê nos meus olhos, por isso não me adianta manter a boca fechada.
O meu segundo maior defeito é ser uma pessoa séria.
O meu terceito maior defeito é não conseguir esconder os dois primeiros.