quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

Os alhos e as cebolas e a invencível armada

Ouvi dizer, não me lembro a quem nem porquê, que o empreendorismo português na época dos Descobrimentos teve os seus aspectos caricatos. Para as naus foram contratados agricultores do Portugal profundo que não sabiam a diferença entre bombordo e estibordo. Os capitães das naus encontraram uma solução peculiar. Penduraram de um lado um saco de alhos e de outro um saco de cebolas e em vez de dizerem “para estibordo” ou “para bombordo” diziam simplesmente “alhos” e “cebolas”.
Não sei se esta história é facto ou lenda mas reconheço-lhe todo o mérito por funcionar.

Imaginemos agora esta solução aplicada à realidade actual. Feitas as naus e pronta a armada a zarpar, contrataram-se os tais agricultores das Beiras (vulgo Berças) para “marinheiros” e adoptou-se o saco de cebolas e o respectivo saco de alhos. Mas agora havia um problema com que o Capitão da armada não contou de antemão. Havia concorrência internacional e o caminho marítimo para a Índia já era percorrido por navios de todos os países. Não que a concorrência preocupasse o Capitão porque só lhe interessava fazer o que lhe foi dito e levar a armada ao porto. Isso da concorrência e do lucro passava-lhe ao lado porque era um funcionário zeloso e fazia o que lhe mandavam. Mas a grande chatice é que a navegação internacional utilizava os termos “bombordo” e “estibordo” e à pala disso quase afundou os navios num embate com os pesqueiros espanhóis logo à saída do porto. Decidiu-se, então, que era “preciso fazer qualquer coisa”.
A solução foi culpar os marinheiros pelo acidente, visto serem mão de obra não preparada, e despedi-los em massa ou arranjar-lhes reformas antecipadas. Alguns, amigos do Capitão, não foram despedidos (não por saberem o que era bombordo e estibordo mas por conviverem socialmente com o Capitão e esposa e filhos e cão), e foram em vez disso promovidos a supervisores dos que haviam de vir substituir os outros.
Contratou-se uma agência de trabalho temporário que colocou este anúncio de acordo com o que foi pedido:

“Precisa-se marinheiros, robustez física, espírito de inciativa, proactividade, bla bla bla, e que saibam distinguir bombordo de estibordo.”

Ora, escusado, porque já se sabia (ou devia saber-se) que ninguém sabia o que era bombordo e estibordo. Foi aí que todo o problema começou. Mas o Capitão achou bem e entretanto foi promovido, por acumulação de anos de serviço, a Comandante da armada.

Como ninguém sabia o que raio era bombordo e estibordo, mas as pessoas precisam de trabalhar porque isto está mau, a tal agência foi inundada de currículos e cartas a assegurar que os candidatos sabiam o que era bombordo e estibordo. Assim que chegavam ao navio, era-lhes ensinado pelos tais supervisores (que também não sabiam o que era bombordo e estibordo) o sistema dos alhos e das cebolas e as manobras para zarpar do porto lá prosseguiam.
Mas os supervisores não conseguiam disfarçar a incompetência porque o Comandante continuava a falar em bombordo e estibordo e eles não sabiam para que lado era e então interpretavam “alhos” e “cebolas” conforme entendiam. Inclusivamente, contradiziam-se entre eles, e os navios queriam sair do porto mas chocavam entre eles e não arredavam dali.
Furioso, o Comandante manda os amigos à merda (porque já tinha o Rei em cima dele a exigir resultados), despede-os, arranja novos supervisores desta nova leva de alhos e cebolas e despede os restantes (só para não dizer que não havia ninguém competente, porque de facto não havia, mas não se podia dar essa impressão porque se assim fosse a culpa era da liderança e não do pessoal e era mau para o Comandante).
Veio logo um gajo novo que sugeriu que o Comandante desse formação aos recém contratados, explicando-lhes de uma vez por todas o que era bombordo e estibordo. Este gajo foi logo despedido, à desculpa de que não tinha habilitações para o lugar (como se alguém tivesse) por ter dado uma boa ideia, boa ideia essa que o Comandante se estava cagando para seguir porque não era próprio da sua patente ir lá abaixo ao convés explicar aos marujos o que era bombordo e estibordo, por isso continuou-se com o sistema de alhos e cebolas.
Mas o Comandante não era parvo nenhum (porque para chegar a Comandante é preciso alguma esperteza) e encomendou um estudo a dizer o que o gajo despedido tinha dito, e que era preciso formação sim senhor, e o Rei lá abriu os cordões à bolsa e veio uma equipa de peritos internacionais dar formação, não aos gajos que já estavam contratados que esses acabaram por ir para o olho da rua, mas a todos aqueles que tiveram a informação de que a formação valia a pena. Os seleccionados para a formação foram os filhos de boas famílias amigas do Comandante, gente que subornou tudo pelo caminho e, lá pelo meio, para não dar muito nas vistas e haver um exemplo positivo para divulgar no reino, um gajo qualquer que até tinha boas notas e conseguiu uma bolsa de estudo.
Os peritos internacionais ensinaram não só o que era bombordo e estibordo como, com infinita paciência, explicaram aos formandos que uma janela redonda num navio se chama escotilha e que aquilo que eles estavam a ensinar se chamava Navegação Marítima e não “Curso de Bombordo e Estibordo”.
Assim que se apanharam com uma certificação profissional, os formandos foram contratados pelas armadas estrangeiras. E isto por várias razões. A primeira é que quando os portugueses são bons são mesmo muito bons. A segunda e determinante, porém, foi que tinham possibilidades de progredir numa carreira a sério, ao contrário dos teatrinhos de faz de conta da armada que teimava em não sair do porto. Por esta altura, a armada tomou a alcunha de “Armada Invencível”, não por ser muito boa mas por ser inamovível.
E os anos passavam e os navios precisavam de ser reparados, então toca de arranjar imigrantes para os arranjar porque se achava que os marujos dos navios eram demasiado qualificados para fazer esse trabalho (porque, lá está, sabiam o que eram alhos e cebolas) de modo que foram despedidos e a expedição ficou em águas de bacalhau durante alguns anos à pala dos subsídios de restauro que ninguém mais recebeu senão o Comandante (e foi logo comprar um iate pessoal como “despesa de formação profissional” para não se esquecer do que era bombordo e estibordo que um homem também não se pode lembrar de tudo).
Entretanto, alguns espertalhões que viram ali a oportunidade, toca de abrir universidades privadas e cursos em universidades públicas para dar resposta às necessidades do mercado de trabalho, cursos esses de dois calibres. Um, de tendência mais profissional, “Curso de Alhos e Cebolas”, para explicar apenas e tão só o sistema de navegação nacional e mais umas cadeiras de Matemática Aplicada pelo meio. Outros, mais honestos, “Curso de Bombordo e Estibordo”, que incluía a cadeira “Alhos e Cebolas” para explcar a relação entre o bombordo e o estibordo e o sistema de navegação nacional e aproveitando à mistura para meter umas cadeiras de Relações Internacionais que havia muitos doutorados no desemprego.
Veio novo recrutamento para a armada depois do restauro e o Comandante, que era velha escola, achou que os licenciados, doutores em Alhos e Cebolas ou Bombordo e Estibordo, eram, em ambos os casos, demasiado qualificados para o lugar de marujos e voltou a recorrer às empresas que trabalho temporário que desataram a meter gente que dizia que sabia o que era bombordo e estibordo mas não fazia a mínima ideia. Mais uma vez, a armada não saiu do porto.
O Rei já andava pelos cabelos mas entretanto já se tinham passado trinta anos desde o início do projecto e o Almirante (que tinha sido promovido por antiguidade ao serviço) já estava velhinho e acabou por morrer sem se reformar. Foi a oportunidade de sua Sereníssima Majestade culpar o funcionalismo público pela ineficiência da Armada Inamovível e vai dái, zás, mete lá um boy da sua confiança política e o cargo deixa de ser um cargo público para ser um cargo de “mérito”.
O novo Comandante, que o boy nunca chegou a passar por Capitão, não só não sabe o que é bombordo nem estibordo nem o que é alhos e cebolas, como logo se depara com a evidência de que o velho Almirante não tinha deixado indicações para onde se queria ir afinal (que o Almirante, como se disse, achava abaixo do seu nível deixar explicações escritas ou outras, porque “um cargo de chefia é para ser obedecido e não para dar explicações”, dizia ele, quando a verdade é que não sabia escrever à máquina e nunca tinha visto um computador à frente mas não gostava de admitir que tinha de se modernizar porque isso era “degradante para o prestígio da carreira”), e o novo Comandante, como se dizia atrás, ficou sem saber o que estava ali a fazer. Mas não o podia admitir, porque o Rei pressupunha que ele sabia para onde se queria ir e, afinal, era um cargo de confiança política, por isso fingiu que sabia e calou-se muito caladinho. E quando lhe vieram perguntar, “Excelência, bombordo ou estibordo?”, ficou a olhar para os oficiais do momento como um burro para um palácio, e quando um deles trocou por miúdos “Alhos ou cebolas?” o homem foi mesmo aos arames e toca de despedir os dois. Depois de despedidos, perguntou aos restantes “Para onde?”, que eles “já lá estavam há tempo suficiente para saber”, e os desgraçados, não querendo ter o mesmo fim, disseram o que primeiro lhes veio à cabeça. Mas como não conversavam entre eles temendo ser traídos pelas costas, e já não havia sindicatos nem o raio que o parta porque era o salve-se quem puder, desataram também a fazer o erro dos anteriores e a gritar no convés: “alhos” para um lado e “cebolas” para o outro.
Os navios chocavam e a armada não saía do porto.
Nova vaga de despedimentos, em que se incluiram os oficiais acima (não escaparam), porque o boy queria apresentar serviço e parecer eficiente e para isso tinha culpar alguém.
Mas como também não era completamente parvo, lá decidiu meter gente nova e contratar uma empresa de formação para explicar, mais uma vez, aos marujos, o sistema de alhos e cebolas. A primeira coisa que o formador fez, porque era um chico esperto que também não sabia o que eram os alhos e as cebolas, foi abrir os sacos porque, pensou ele, bastava abrir os sacos para saber onde estava o quê! Esperto! Só que não resultou. Tinham-se passado tantos anos que quando o inteligente abriu os sacos só lá estava pó. Mas chico esperto como era, que nisto os portugueses são de facto imbatíveis, toca de arranjar uma solução provisória que era escrever num papel “alhos” e noutro papel “cebolas” para substituir os sacos e chamou ao procedimento “adaptação às novas realidades do mundo tecnológico da autoestrada da informação”.
Houve logo um formando (que podia ser eu) que simplesmente perguntou “mas se alhos e cebolas estão a substituir bombordo e estibordo e se se vai escrever num papel, porque não se escreve logo bombordo e estibordo e se esquece os alhos e as cebolas?”. Ideia genial. Erro fatal. Logo o formando (que podia ser eu) foi dispensado por 1) precisar de um papel para saber o que era bombordo e estibordo; 2) desrespeito à autoridade; 3) inadequação ao lugar; etc. E perguntaram os familiares e amigos ao formando (que podia ser eu) “Mas porque é que tiveste de fazer a pergunta?!”, e responde o formando “Mas eu só pensei...”, e interrompem os amigos e familiares: “Mas porque é que tiveste de pensar?!”. Não que a perda fosse grande para a armada, porque este formando não sabia a diferença entre bombordo e estibordo (como, aliás, ninguém sabia, e era essa a origem do problema, e o único que sabia era o Almirante e já tinha morrido) e que a perda fosse grande para o formando porque este não era nada parvo e percebeu claramente que daquela armada ninguém saía vivo.
E de facto foi uma questão de tempo até que o formador fosse também dispensado, e nova leva de gente que não sabia o que eram as cebola e os alhos foram contratados, só que desta vez eram os filhos dos agricultores que nunca tinham visto nem um alho nem uma cebola à frente em toda a vida, e para eles alhos e cebolas e bombordo e estibordo era tudo a mesma merda desde que lhes pagassem porque não valia a pena pensar mais nisso e quem pensava muito não aquecia o lugar.
E mais uma vez a armada não saiu do lugar e não foi a lado nenhum.

A epopeia podia continuar mas a partir daqui repete-se. Sai um boy, entra outro boy, muda o Rei, mudam os boys, e continua tudo sem saber onde estão as cebolas e os alhos, já nem se fala em bombordo e estibordo, e o novo Rei já nem sabe para onde o antecessor queria ir. A armada tornou-se de facto invencível.

3 comentários:

Gafanhoto disse...

Espantasmagórico!
olá Mestra.
Respeitosamente solicito autorização para copiar o texto.

inté. gafanhoto

Escabroso disse...

She's got a point!

katrina a gotika disse...

Olá Gafanhoto. Pensava que já não saltavas por aqui. Fico contente que sim, porque de vez em quando lembro-me de ti, e dou toda a autorização para espalhar a palavra aos quatro ventos. Para que ouça quem tem ouvidos.