terça-feira, 17 de janeiro de 2006

A história de Túrin

A história do herói Túrin é algo atípico no universo de Tolkien. Diria mesmo surpreendente. Encontra-se no "Silmarillion" e mais em pormenor nos "Contos Inacabados" ("Unfinished Tales").
Tão invulgar me parece, e tão menos conhecida do que a narrativa do "Senhor dos Anéis", que decidi dá-la a conhecer melhor. E não só me dá um grande prazer contá-la como faz parte da tradição deste blog. Sim, eu penso que é uma história de que os góticos vão gostar.
Túrin não é um herói que se esperaria encontrar em Tolkien. Em Tolkien, os heróis, sejam Homens ou Elfos ou Hobbits ou Anões, partilham de uma nobreza de carácter irrepreensível. (Existe, de facto, um outro herói contestável no universo de Tolkien, que é Feänor, e que também é levado pelo orgulho até à morte, mas enquanto Feänor age pela honra do seu clã e nunca abandona a nobreza da palavra dada, Turin parece não ter princípios excepto os que lhe dão jeito no momento.) A tal ponto que cheguei a queixar-me, aqui mesmo, de que pareciam mal caracterizados. Aragorn, por exemplo, é uma personagem quase de papel. Não tem dilemas, é sobre-humano. Todos os heróis de Tolkien desempenham mais ou menos o mesmo papel. Excepto quando estão sob a influência directa do Mal.
No caso de Túrin, a história é bem diferente. Para começar, o que temos em Túrin não é um herói mas um anti-herói. E um anti-herói tão maldito como amaldiçoado. Ambos. Por um lado, tem sobre si uma maldição mas, por outro, o orgulho e o carácter vingativo e violento contribuem para o desfecho trágico. Esta história é um prato cheio para freudianos e teólogos, mas se não apenas por Túrin ser chamado Blacksword e a certa altura se vestir só de negro, agradará certamente a todos o que apreciam a história de uma alma atormentada que oscila entre a bondade e a vingança, e mais especificamente a todos que gostaram de Lestat e companhia.
Apesar dos actos vis de Túrin, não se deixa de ter uma certa simpatia pela personagem, uma espécie de piedade e tolerância, embora se saiba que o mesmo não se pode esperar da própria personagem, que será porventura a mais complexa de todas as que Tolkien descreveu, e tendo isto em conta não será já tanto de estranhar a própria invulgaridade, em certos pontos sobrenatural, da própria história em si.
Continuo a dizer que Tolkien não descreve tão bem os montes e vales da mente humana como todos os detalhes geográficos da Terra Média, mas neste caso aplica-se bem a expressão "um gesto vale mil palavras". É pelas acções que o conhecemos. De modo que é mesmo preciso contar a história. Mas vou evidentemente contar a história como eu própria a entendi.


Para contar a história de Túrin, tenho de contar a história de Morgoth. Morgoth, de seu nome Melkor, é uma espécie de anjo/deus da Terra Média e arredores que a certa altura se rebela contra o Criador. Melkor que era dos maiores, se não mesmo o maior, de entre todos os filhos espirituais do Criador. E aqui não é preciso dizer mais nada. Melkor é o nosso bem conhecido Lúcifer em versão Terra Média.
Mas este Diabo da Terra Média não quer as almas mas sim as terras e os corpos do seus habitantes. Quer ser o senhor supremo de toda a criação, em carne e osso, em reino e trono. E por isso trava uma guerra sem fim contra todos os habitantes livres da Terra Média até - propõe-se - os escravizar a todos.
Tudo isto é muito, muito antes de Sauron e do Anel. Sauron é por esta altura apenas um lacaio de Melkor, e não vale a pena falar mais nele. Melkor foi chamado de Morgoth, o que na linguagem da terra significa algo de muito, muito mau. E nesta altura não havia ainda Mordor. O reino de Morgoth ficava em Angband. (Por alturas da história do Anel, já há muito que Morgoth tinha sido levado da Terra Média.)
Contra o poder crescente de Morgoth, os "homens bons" da Terra Média, Homens e Elfos e alguns Anões, juntaram-se para fazer guerra a Angband. Mas Morgoth não podia ser derrotado pela criação (o próprio Morgoth tinha participado na criação do mundo). E foi um desastre em que pereceu ou foi feita prisioneira a fina flor da nobreza da Terra Média, tirando algumas excepções de alguns que por qualquer razão importante no futuro estavam "destinados" a escapar. Foi uma espécie de Alcácer Quibir lá da terra.
Entre estes cativos, que na linguagem de Angband significava gente que era levada para a escravidão, foi o pai de Túrin, Húrin, um dos Homens nobres do reino dos Homens (por distinção aos reinos dos Elfos). O próprio Morgoth o interroga, tentando tirar dele informações relativas a assuntos que não interessam para a presente história, e como Húrin teria negado sempre revelar as informações pretendidas, o seu fim seria a morte sumária se... se apenas Húrin não tivesse posto em causa o poder do próprio Morgoth. Chamou-lhe mentiroso, afirmou que o seu poder na Terra Média já não era o mesmo que Melkor tinha antes, no seu tempo de divindade, e Morgoth, digamos, foi aos arames.
"Mentiroso, dizes?! Vou-te provar, Húrin, como é grande o meu poder. E para isso ficarás vivo o tempo que for preciso, pois vou amaldiçoar toda a tua família e quero que assistas até ao fim à grandeza do meu poder".
Digamos que foi uma espécie de demonstração de força. (E nisto tudo não deixo de me lembrar do desafio que Lúcifer pôs a Deus em relação a Jó.)
Morgoth pega em Húrin, senta-o num dos sítios mais altos de Angband e fá-lo asistir a tudo o que se passa depois.
Húrin era casado com Morwen e tinha um filho chamado Túrin, nessa altura ainda uma criança. Tinham tido também uma filha, chamada Riso [tradução], que morreu com a pestilência aos três anos de idade. Foi o primeiro desgosto de Túrin. Diz Tolkien, premonitoriamente, que Túrin procurou o rosto da irmã em todas as mulheres que conheceu.
Depois da batalha desastrosa de que o marido não voltou, Morwen, perante a invasão das suas terras por homens inimigos e aliados de Morgoth, para salvar a vida ao filho e herdeiro de Húrin, decide mandá-lo para o reino élfico de Doriath, ao cuidado do rei Thingol. A separação da mãe foi o segundo grande desgosto de Túrin, especialmente porque também ela foi convidada a juntar-se aos Elfos, mas Morwen era orgulhosa, abominava o que chamava de esmola, e recusou-se a ir. Entretanto, tinha tido também uma bebé, última filha de Húrin, a quem chamou Nienor (Lamento).
Túrin cresceu e fez-se homem mas sempre quis voltar a casa porque sempre se sentiu um estranho em terras estrangeiras e temia pelo que tinha sido feito da mãe e da irmã (que ainda não era nascida quando ele foi mandado para o refúgio). De modo que desde cedo se dedicou às artes da guerra e, junto com o seu amigo elfo Beleg, protegia as orlas do domínio de Doriath contra a ameaça dos Orcs.
Dia fatídico, porém, foi à corte onde um dos elfos conselheiros do rei, que por sinal não aprovava a presença de um Homem num reino de Elfos, o criticou com palavras sarcásticas. Acontecia que Túrin andava despenteado, sujo e desgrenhado devido à sua vida bélica nos bosques, e o elfo provocador atirou-lhe um pente e um insulto: "As mulheres da tua terra também correm nuas como os veados pelos bosques, tendo apenas por vestido os cabelos?". Por isto, Túrin partiu-lhe um copo na cara, e a confrontação teria ido mais longe se os outros elfos presentes não o impedissem.
No dia seguinte, o mesmo elfo tentou matar Túrin à traição, fora da corte, mas Túrin não apenas o subjugou como o obrigou a despir-se e a correr nú pelos bosques à frente da sua espada. O barulho atriu os ouvidos de elfos que assistiram à última parte mas não à emboscada que desencadeou a vingança de Túrin. Na correria, o elfo caiu acidentalmente de uma ravina e morreu.
Logo os outros elfos rodearam Túrin e o quiseram levar perante a justiça do rei, mas Túrin, em vez de se defender, ficou tão ofendido no seu orgulho, por não lhe terem perguntado porque tinha agido assim, que simplesmente lhes virou as costas e abandonou o reino.
Mais tarde, os elfos vieram a saber a verdade e desculparam-no mas era tarde demais. Túrin juntou-se a um bando de Homens fora da lei, ladrões, assassinos e bandidos, e viveu com eles durante muito tempo, praticando os mesmos actos condenáveis que eles praticavam.
Beleg, o seu amigo elfo, não o esqueceu, contudo, e pediu permissão ao rei para partir em busca de Túrin. Para isso pediu uma espada, e esta mesma espada era negra e amaldiçoada porque o artesão que a fez nunca se quis separar dela e a entregou contra vontade.
E Beleg chegou a encontrar Túrin e a dizer-lhe para voltar, mas orgulhoso e com a ideia fixa de voltar a procurar a mãe e a irmã, Túrin não voltou para trás. Arrependeu-se, contudo, de derramar sangue que não de Orc, e jurou nunca mais o fazer. (O que se provou jura de pouco valor porque fervia em pouca água.) Beleg, então, deixou-o sozinho com os bandidos.
Pouco depois, já Túrin liderava o bando de homens, assaltaram três Anões que encontraram no caminho. Dois fugiram, um deles ferido de morte, e apenas um conseguiram agarrar. E a proposta que lhe fizeram foi esta: "ou nos pagas um resgate ou acabas aqui os teus dias". Mim era esse Anão, e levou-os para sua casa onde os deixou viver. A casa de um Anão era uma gruta escavada nas montanhas, e muitos homens podiam lá habitar. Mas assim que chegou, Mim viu que um dos seus filhos estava morto. Os dois Anões que fugiram ao assalto eram de facto os filhos de Mim. Mim nunca perdoou a ofensa, embora tivessem vivido juntos por algum tempo. Entretanto, Beleg voltou para a companhia de Túrin e a raiva do Anão por dar abrigo a um Elfo era agora muito maior.
Depois disto, Morwen e Nienor tinham encontrado uma maneira de ir para Doriath, em busca do filho e irmão, mas quando chegaram Túrin já tinha partido e ninguém sabia dele. E Túrin continuava a pensar que a mãe e a irmã eram escravas na sua terra natal. Deste equívoco despontaram males piores.
A co-habitação dos Homens, Elfo e Mim não durou muito. Tal como tinha acontecido antes, Mim foi assaltado por Orcs e, tal como tinha acontecido antes, pediu que lhe poupassem a vida se os levasse à gruta. E assim entregou todo o bando e nenhum escapou. Apenas Túrin foi poupado, pois os Orcs tinham ordens para deixar viver o filho de Húrin em quem pesava a maldição de Morgoth, e levaram-no para Angband. Beleg também sobreviveu e pôs-se logo no encalço do amigo. Chegando a Angband, encontrou um outro elfo, Gwindor, que tinha sido escravizado na grande batalha desastrosa e mesmo agora tinha conseguido fugir. Apesar do seu estado lastimável e envelhecido, Gwindor foi convencido por compaixão a voltar atrás para ajudar Beleg a salvar Túrin.
Conseguiram salvar Túrin, que estava desmaiado. A primeira coisa que fez, assim que acordou e sentiu presenças à sua volta, foi matar o amigo Beleg pensando que era um inimigo, com a própria espada amaldiçoada que era de Beleg. O desgosto foi tão grande por ver o que tinha feito que se deixou cair numa grande apatia e Gwindor levou-o para um dos últimos reinos élficos que resistiam, Nargothrond. Foi também Gwindor, que tinha passado muitos anos como escravo de Morgoth em Angband, quem primeiro informou Túrin de que estava sob uma maldição e a partir daí Túrin evitou usar o seu nome para que a maldição não o perseguisse.
Mas perseguia. E a espada maldita, que era de Beleg, passou a ser dele, e depois de afiada de novo Túrin chamou-lhe Gurthang [Iron of Death].
Com o tempo, a filha do rei de Nargothrond, Finduilas, que tinha amado Gwindor, agora amava Túrin. Mas não era correspondida. E Túrin veio a saber que tinha sido o causador do desgosto de Gwindor e percebia que estava amaldiçoado. No entanto, lutava cada vez mais aguerridamente contra os Orcs e, sendo um grande líder, tornou-se mais obedecido do que o rei. Foi aqui, em Nargothrond, que ganhou a alcunha de Blacksword, Espada Negra, e isto chegou aos ouvidos de Morgoth, que se riu na sua maldade porque todos os seus planos iam bem ou melhor que bem. E a vida de Túrin em Nargothrond também parecia estar a compôr-se. Era agora um grande nobre, amado, respeitado e reconhecido, e o seu orgulho crescia de dia para dia. Não havia inimigo que não perecesse pela sua espada.
Foi então que Morgoth mandou o seu dragão Glaurung contra Nargothrond, porque lá estava Túrin filho de Húrin, e outro grande massacre aconteceu. Nele pereceu Gwindor. Mas o dragão Glaurung, que tinha uma língua venenosa (porque falava, e falava com malvadez e sarcasmo), apareceu a Túrin e pô-lo imóvel sob um feitiço, e disse-lhe: "Olá Túrin, filho de Húrin! Fora da lei, ladrão, assassino, carrasco do teu amigo, ladrão do amor de outro amigo, e desamparador da tua mãe e irmã que são escravas na tua terra! Vai agora, atrás de Finduilas, para a salvares, e abandona o teu próprio sangue mais uma vez!".
Depois das palavras do dragão, Túrin foi deixado ir, mais uma vez para cumprir a vontade de Morgoth, e agora o seu dilema era procurar a mãe ou salvar Finduilas, porque evidentemente tinha acreditado nas palavras do dragão. Deste modo, abandonou Finduilas que tinha sido levado cativa, e foi à sua terra natal. Quando lá chegou e já não encontrou mãe nem irmã, porque ambas tinham partido para Doriath, já era tarde. Ainda tentou voltar atrás, gritando por Finduilas, e é nesta passagem que é descrito como um louco de negro vestido, brandindo a sua espada negra, perto do lago gelado de onde o seu primo Tuor o avistou. (Tuor, sim, é o herói típico de Tolkien mas não interessa nada agora.)
O que Túrin encontrou foi um grupo de homens dos bosques que lhe disseram que Finduilas estava morta, porque os Orcs a tinham espetado com uma lança contra uma árvore. "E como sabem que era ela?", pergunta Túrin. "Porque ela disse", responderam eles, "antes de morrer, 'digam ao Espada Negra de Nargothrond que Finduilas está aqui'".
Cada vez mais convencido de que tinha sido um fantoche nas mãos de Morgoth, Túrin decide esconder-se entre os Homens do bosque e esconder também a sua espada para que ninguém soubesse que ele estava ali, porque a sua presença trazia a morte a todos os que lhe eram próximos. Mas apercebeu-se de que isto era de propósito, e que a sua boa sorte na guerra, que o tinha deixado escapar com vida até ali, não era afinal uma sorte mas um acto propositado de Morgoth. O porquê, ele não sabia.
O pior estava ainda para acontecer.
No reino de Doriath, depois da queda de Nargothrond, chegou ao conhecimento de Morwen que o filho tinha estado na batalha e nada a impediu de partir para saber o que tinha sido feito dele. Contra a vontade da mãe, porque não se queria separar dela, Nienor seguiu-a. E no caminho o grande dragão atacou mãe e filha e elfos que as acompanhavam. Morwen desaparece da vista da companhia e Nienor é confrontada com o dragão que a coloca num estado de amnésia total. Neste estado de amnésia, Nienor assusta-se e foge dos elfos, desatando a correr pelos bosques como um veado, até que todas as suas vestes estavam rasgadas e corria nua só vestida pelos cabelos. (Aqui se cumprem as palavras do elfo trocista que morreu acidentalmente às mãos de Túrin. E muito deste karma é culpa do próprio Túrin.)
Nienor foi levada a correr até à campa onde estava Finduilas, e onde o irmão Túrin a encontrou, mas não sabendo que era a irmã, lhe chamou Niniel [Lágrimas]. E não sabendo que era sua irmã, apaixona-se por ela. (Ele sempre tinha procurado a face de Riso em todas as mulheres que conhecera.)
Brandir era o chefe dos Homens do bosque, e era coxo, e era também apaixonado por Niniel, e sabia quem Túrin era, mas não sabia quem era Niniel, e mesmo assim tem um pressentimento e aconselha-a a não aceitar Túrin. Mas Niniel estava também apaixonada e, sim, casa com Túrin. Por Niniel, Túrin aceita deixar a vida das armas, excepto se o inimigo chegasse tão perto que fosse obrigado a ir buscar a sua espada para defender o seu lar com Niniel. E entretanto Niniel ficou grávida. E entretanto o inimigo chegou tão perto que Túrin foi obrigado a mostrar de novo a sua espada em batalha.
Agora ele sabia o que isso queria dizer, e não se admirou quando o grande dragão Glaurung se dirigiu direitinho aos Homens dos bosques. Mas antes que o dragão chegasse, Túrin fez-lhe uma emboscada. Com ele levou dois homens. Ambos vieram a morrer de forma inglória, e Túrin arrependeu-se de os ter levado. No fim, foi ele sozinho quem espetou a espada maldita chamada Gurthang na barriga do dragão. Ao fazê-lo, o sangue venenoso do dragão atingiu-o na mão e deixou-o desmaiado.
Entretanto, o povo dos Homens dos bosques, liderado por Niniel, que não podia mais esperar quieta pelo resultado que ia ditar o destino da sua vida nessa hora sombria, tinha-se aproximado do lugar da emboscada. Brandir, o rei coxo, foi atrás deles por Niniel. E foi ele a testemunha do que se passou depois. Niniel teve coragem de ir até ao lugar onde jazia o dragão moribundo, e lá encontrou também caído o marido, e julgou-o morto.
Mas Túrin não estava morto, e o dragão ainda vivia. E o dragão abriu os olhos e disse: "Olá, Nienor, filha de Húrin, irmã de Túrin, o teu marido, assassino, ladrão, carrasco de amigos e outros Homens, maldição de todos os que se aproximam dele, e o que ele fez pior sabes bem que está dentro de ti". E só depois o dragão morreu. E ao morrer, libertou Nienor Niniel da sua amnésia e ela recordou-se de tudo e apercebeu-se que tinha casado com o irmão. Enlouquecida, atirou-se da ravina para as águas do rio e assim morreu Nienor Niniel.
Brandir, destroçado, voltou para trás e contou aos outros o que se tinha passado. Também ele pensava que Túrin estava morto, e disse até "e ainda bem que está morto!". Palavras que Túrin ouviu, porque apareceu atrás deles quando todos se preparavam para lhe ir fazer a campa. Foi então que Brandir lhe disse o que o dragão tinha dito, e porque razão Niniel se tinha suicidado. Mas Túrin não acreditou. Julgou-o um mentiroso também e matou-o ali mesmo num ataque de fúria, a um homem coxo, desarmado e agarrado à sua bengala.
Depois fugiu, procurando por Niniel, e surgiu-lhe ao caminho uma companhia de elfos de Doriath que procuravam Nienor sua irmã desde que ela tinha desaparecido misteriosamente. E foram os elfos quem lhe disse, sem saberem as consequências das suas palavras, que Nienor tinha fugido para aquelas bandas, em estado de amnésia, como Túrin a tinha encontrado.
Só nesse momento é que Túrin teve consciência do tamanho da sua tragédia e da sua maldição. E foi nesse momento que fugiu também dos elfos e se dirigiu à ravina de onde Niniel se tinha atirado. Mas para não sujar as águas onde Niniel se tinha purificado, decidiu outro fim.
Desambaínhou a sua espada maldita Gurthang e perguntou-lhe: "Gurthang, tu que não és leal a nenhum dono senão o teu criador, tu que bebes o sangue de todos os que mordes, beberás agora o meu sangue?"
E (coisa insólita no universo de Tolkien) a espada responde: "Sim, pelo sangue inocente do meu dono Beleg, pelo sangue inocente de Brandir, eu beberei o teu sangue."
Então Túrin colocou a espada no chão, virada para cima, e atirou-se sobre ela, e assim morreu o último filho amaldiçoado de Húrin. Sepultaram-no ao lado da sua espada, que finalmente se partiu.



A história não termina aqui. Húrin é enfim libertado por Morgoth, depois de saber de todos os actos hediondos do filho e do triste destino da filha, e libertado, na sua dor, para fins também engendrados para o triunfo do Mal. Morwen também aparece na história mais uma vez, para se despedir do marido na campa de ambos os filhos (embora o corpo de Nienor Niniel não estivesse ali sepultado).
Ao contrário de quase todos os outros heróis de Tolkien, cuja única escolha possível era simplemente entre morrer aqui ou morrer ali, Túrin podia ter feito escolhas diferentes, mas deu ouvidos à soberba. Como, aliás, a sua mãe. E deste orgulho e deste temperamento indomável resultou que a maldição se tornou mais bem sucedida do que o Mal tinha engendrado, e o Mal de facto triunfou. Ou foi Túrin quem o ajudou a triunfar? Até que ponto, apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis e sucessão de tragédias a que era alheio, não teve uma grande parte da responsabilidade nas terríveis escolhas que fez nos seus momentos de raiva e vingança que culminaram no último e mais terrível dos pecados, pondo fim à sua própria vida?
E assim termina a história de Túrin.

11 comentários:

Goldmundo disse...

Grande história. Não quero sequer falar.

katrina a gotika disse...

Fala, Gold, fala.

katrina a gotika disse...

Esqueci-me de dizer que durante a sua educação em Doriath, Túrin foi tratado com todas as honras e possivelmente foi o primeiro rapaz dos Homens que um rei Elfo adoptou como filho. E sendo como filho que era realmente tratado e estimado, não tem a desculpa de ter sido maltratado longe da família. Pareceu-me immportante acrescentar isto.

E também que a cena da espada, no fim, é altamente vampiresca.

Ant disse...

Estás a fazer o quê Gotika?
Passar tempo depreendo

katrina a gotika disse...

Obviamente, ando a ler.

Goldmundo disse...

Hum. Deixa-me defender o Tolkien (a pessoa, não a obra). Os "montes e vales" da mente humana não estão lá pela mesma razão que não estão em nenhuma das antigas sagas ocidentais. Trata-se, exactamente, de fazer compreender que o Bem e Mal são caminhos - e não sentimentos como agora se pensa. Como disse o Schwarzenneger no Total Recall, "um homem vale pelas suas acções, não pelas suas memórias".

O filme (Lord of the Rings) introduziu, por exemplo, o dramazinho do amorzinho pela Arwenzinha. Não sei o que ganhámos com isso.

E sobre esses montes e vales, todos os anos são escritas milhões de pãginas (mais sobre os vales e as colinas: nem montanhas nem abismos abundam. Mas isso sabes melhor que eu).

katrina a gotika disse...

Sim, os montes e vales são a mediania. As montanhas e os abismos não são compreendidos por todos porque são muito altos ou muito profundos.

Dunyazade disse...

Depois de ler isto pergunto-me se consideras a soberba o teu defeito maior.

Porque as coisas qu nos atraiem são, muitas vezes, um reflexo do que somos. Um espelho.

****

Goldmundo disse...

Eu? ... Apesar de tudo, acho que tenho outros bem piores. (não sei se falas comigo ou com a gotika).

Em abstracto, acho que a soberba é má, sempre, para o próprio. Mas para os outros só é má quando apodrece e se faz inveja.

katrina a gotika disse...

Eu acho que a da soberba era para mim, mas eu já disse aqui muitas vezes que o meu pecado é a Soberba. Às vezes também incorro na Ira, mas é sobretudo devido à Soberba.
Mea culpa, mea massima culpa.

A soberba é o pior pecado de todos porque uma pessoa admite o pecado e ainda sente orgulho por ser orgulhosa. É O pecado. É o pecado maior e incurável. Quanto mais se admite, mais se gosta dele. É o pecado de Lúcifer e dos seus "descendentes".

Eu já escrevi um texto sobre a minha interpretação dos 7 pecados mortais mas não tenho paciência agora para ir procurá-lo.

Goldmundo disse...

Lembro-me que era um texto soberbo :)

Vou exumá-lo.