"The Moon Pool” é um livro de 1919 e nota-se. Durante a leitura perguntei-me muitas vezes porque é que tinha ido fazer este download ao Projecto Gutenberg. Foi numa altura em que andava à procura dos clássicos iniciais do vampirismo. "The Moon Pool” é efectivamente um deles, mas na minha opinião um dos piores. Este livro é uma salada de Géneros. Terror, Fantasia, Ficção Científica, Acção, Aventura, e, note-se, até Intriga Internacional e Distopia ele conseguiu lá meter! É obra. O problema é que nenhum dos géneros sai bem feito e o livro acabou por se perder nesta salsada toda.
O início até é promissor, uma típica história de Terror. A linguagem é antiquada e datada, mas suporta-se. (Li o livro em inglês.) Um grupo de cientistas vai estudar umas ruínas numa ilha remota do Pacífico. Durante várias noites, na ilha, começam a desaparecer um por um. Os nativos das ilhas próximas são supersticiosos e recusam-se a passar uma noite na ilha em causa, e quando há Lua Cheia nem se querem aproximar dela. Os cientistas estão por sua conta. Apenas um sobrevive, e consegue fugir antes de “desaparecer” também, na intenção de ir buscar ajuda para resgatar os colegas e a mulher. De volta à civilização, já a bordo do navio que o levará a procurar equipamento e ajuda, encontra o narrador desta história, o Dr. Goodwin, outro cientista, a quem conta tudo o que se passou. Goodwin aceita regressar com o amigo e ajudá-lo a encontrar a expedição perdida. Mas, a meio do oceano, um «ser» brilhante de luz aproxima-se do navio através de um feixe de luar, e leva também, nos seus tentáculos de energia, o cientista sobrevivente. Goodwin ainda fica mais determinado a encontrar as ruínas malditas e salvar o amigo.
No caminho encontra um tenente irlandês, piloto na Primeira Guerra Mundial, e um marinheiro nórdico, a quem o mesmo «ser de luz» tinha igualmente levado a mulher e a filha. A este «ser de luz» chamam o Dweller das ruínas.
E aqui está uma história de terror com bases pseudo-científicas. Mas depois as coisas mudam de tom. Os três salvadores, com o uso de engenhocas, conseguem penetrar no túnel secreto do Dweller, que por sua vez os leva ao mundo subterrâneo de Muria, onde existe uma civilização desconhecida. Aqui já estamos no reino da Fantasia. Mas não foram sozinhos. Com eles entrou também um outro personagem de intenções duvidosas, um cientista russo que não parece estar do lado dos nossos heróis.
Ora, desde Júlio Verne que tudo o que são mundos no centro da Terra me dá urticária. Talvez fosse interessante em 1919, mas actualmente considero isto tudo uma patetice. Mesmo assim alinhei, porque na Fantasia temos de fazer cedências. Neste mundo de Muria há uma Distopia em que as pessoas são escolhidas para a elite ou para as massas só por causa da cor de cabelo. Os de cabelo loiro prateado são sacerdotes do Shining One, nome que eles dão ao Dweller, a quem adoram como a um deus. Uma raça de anões também faz parte desta elite. E a elite são todos uma cambada de malvados. Os desgraçados das massas, além de trabalharem e servirem a elite, ainda são oferecidos como sacrifício ao Shining One. Estes desgraçados vivem aterrorizados. O Shining One é mesmo uma espécie de vampiro que enche as vítimas de êxtase e terror ao mesmo tempo. (Não percebi como, mas avançando.)
Tanto estes sacerdotes louros e belíssimos, como os anões, fizeram-me pensar se Tolkien não leu isto também. Foi como entrar no mundo do Senhor dos Anéis, só que com Elfos e Anões malvados. Aliás, o próprio Merritt usa a palavra “élfico” para descrever os sacerdotes.
Os três salvadores têm de lidar com esta civilização sem serem dados como sacrifício ao Shining One, ao mesmo tempo que procuram os amigos desaparecidos. Mas, e aqui entra a parte da intriga internacional/espionagem, o cientista russo está em Muria para arranjar aliados para a Rússia e, com a ajuda do tenebroso Shining One, tomar conta do mundo.
Perda de tempo
O ambiente de terror inicial perde-se num instante e até os sacrifícios ao Shining One são tratados com tanto distanciamento que não causam impacto ao leitor. A história transforma-se depressa em Aventura, sendo o fim escapar de Muria e/ou combater os maus. As personagens são bidimensionais. Apesar de ser uma história narrada em primeira pessoa nem assim conseguimos estabelecer uma relação com o protagonista que nunca passa do cliché do homem de ciência. Os bons são muito bons e muito heróicos, os maus são muito maus. Tudo a preto e branco. Até o vilão russo é explicado “porque a Rússia já fez tantas atrocidades”. Aqui ri-me um bocadinho. Antes da Segunda Guerra Mundial, antes da Guerra Fria. Malvados dos Russos.
A explicação de todos estes fenómenos (a civilização no centro da terra, o ser de energia, etc) cabe no campo da ficção científica, embora completamente risível. O autor é palavroso, muito palavroso. A Wikipedia diz que Merritt influenciou Lovecraft, e vice-versa, mas se em Lovecraft o excesso de palavras funciona para criar um ambiente de terror, aqui em “The Moon Pool” só serve para encher. Um quarto do livro extirpado e não se perdia nada.
A leitura foi efectivamente aborrecida. O que me trouxe a este livro, o vampirismo, existe de facto, à sua maneira, mas quase como algo de secundário. Pior, nunca faz sentido. É-nos dito que as vítimas do Shining One/Dweller ficam exangues. Mas como? Que necessidade de sangue tem um ser feito de energia? Como é que ele consumia o sangue e onde é que o metia? Para que é que o queria? Mais importante ainda, para que é que ele queria as vítimas, afinal, se não precisava delas para coisa nenhuma? Se isto não faz sentido, nada na história faz sentido.
Obviamente, não gostei nada deste livro, embora reconheça ao autor a imaginação, a criatividade e a originalidade tendo em conta a data em que foi escrito.
Não recomendo “The Moon Pool” a ninguém, excepto àqueles interessados em “arqueologia literária”, como eu, que gostam de descobrir os primórdios dos seus géneros preferidos. De resto, uma descomunal perda de tempo.
Teria muito mais a criticar em “The Moon Pool”, mas só vou gastar um último instante a falar do que detestei mais neste livro. Também há Romance, para ajudar à salsada. Um romance muito mau. Merritt consegue colocar as duas protagonistas femininas, a vilã e a boazinha, a lutar pelo irlandês. Porque uma mulher não pode passar sem um homem, e este irlandês é pintado como a oitava maravilha deste mundo e do mundo subterrâneo. Só que, palavra de honra, o irlandês é irritante até dizer chega. Não só como é descrito por Goodwin, mas também quando abre a boca. Para dizer a verdade, as duas protagonistas também são super-irritantes. E este péssimo romance foi para mim o último prego que selou o caixão.
Tenho mesmo de começar a praticar a arte de abandonar os livros a meio.
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domingo, 29 de novembro de 2020
The Moon Pool, de A. Merritt (Abraham Merritt)
sábado, 14 de fevereiro de 2009
H. P. Lovecraft - Mestre do Horror IV
Herbert West: Reanimator
Este é um dos contos mais populares e popularizados de Lovecraft, mais ainda do que "The Mountains of Madness". Toda a gente já viu a história no cinema, repetida vezes sem conta em filmes igualmente inumeráveis: um cientista descobre um soro que devolve a vida aos mortos. A vida, mas não a personalidade. Estes voltam, mas "alterados" como só o mestre Stephen King descreveu mais tarde. Então o que temos? Zombies. Carradas de zombies. Mortos-vivos. Braços e pernas saltitantes. Cabeças rolantes. Toda essa palhaçada. Agora parece-nos engraçado mas não o seria certamente na época em que Lovecraft o escreveu.
["Reanimator" é também o nome de uma famosa música dos Fields of the Nephilim que, como vimos antes, muito foram buscar ao universo do autor. Um conhecedor de ambas as obras vai encontrar um manancial de referências, em que McCoy mistura o universo onírico e assombrado de Lovecraft com a análise psicológica dos nossos dias.]
O tema já não era novo quando o autor lhe pegou. Aliás, o próprio Lovecraft cita os mestres antigos quando começa esta história -- publicada originalmente em fascículos, razão pela qual é feito um sumário do enredo anterior a cada novo capítulo -- com uma citação do Conde Drácula: "To be dead, to be truly dead, must be glorious. There are far worse things awaiting man than death."
O primeiro "reanimador" famoso foi o cientista "Frankenstein", de Mary Shelley, mas o resultado acaba por ser bem diferente e é isso que interessa salientar. Enquanto o monstro de Frankenstein (que não tem nome) é uma criatura feita de partes de vários mortos mas que almeja uma existência humana e é por isso rejeitado pela sociedade, -- uma perspectiva muito "feminina" capaz de levar o mais sensível às lágrimas -- os zombies de H. P. Lovecraft, numa versão a que nos dias de hoje chamamos "gore", pensam mais em comer a carne dos vivos e voltar a esgravatar na terra do cemitério. Não há aqui nada de "choramingas". São zombies, são maus, e comem criancinhas.
Pior que eles só o seu criador, Herbert West, um verdadeiro monstro digno das experiências nazis mais atrozes (mas antes dos nazis), diametralmente o oposto do torturado cientista Frankenstein, cheio de remorsos pela sua obra blasfema.
Herbert West, que nos é descrito pelo seu assistente, só tem uma preocupação na vida: arranjar cadáveres frescos, muito frescos, para que o soro actue antes que o cérebro perca demasiadas células e comprometa a existência inteligente. Quando lhe faltam os defuntos a tempo e horas, qualquer visitante que bata à porta se torna candidato à experiência. Este médico mata primeiro para ressuscitar depois.
Mas, porque os seus mortos-vivos não são totalmente desprovidos de inteligência, um dia há-de beber o seu próprio veneno.
Delicioso. Imperdível. Satisfação garantida!
Imprisioned with the Pharaohs
Um ilusionista cuja especialidade é o escapismo, como Houdini, vai visitar o Cairo onde a sua "magia" de espectáculo é particularmente testada. Traído por uma armadilha montada pelos beduínos do deserto, é lançado para dentro de um enorme poço que estaria debaixo da Esfinge, amarrado, de mãos e pés atados e olhos vendados. Cabe-lhe primeiro escapar das amarras. Depois... tem de fugir das múmias.
É uma história interessante e exótica mas particularmente indicada para quem gosta do antigo Egipto, pirâmides e mitologia. A ideia é inteligente (a esfinge afinal existe e é real) mas não me convenceu. Certamente haverá quem goste mais do género.
In the Vault
Já esta, é uma história muito mais cómica do que tétrica -- ou ambas as coisas. Parece daqueles contos da avózinha para assustar criancinhas e fazer-lhes perceber os males da preguiça. Senão vejamos. Coveiro de profissão, era um homem habituado a tratar os mortos como se fossem um lixo aborrecido que o seu trabalho tratava de empacotar e enterrar. Não era um coveiro muito competente. Os caixões que fazia eram frágeis. Alguns eram demasiado pequenos para o seu destinatário mas o coveiro lá se encarregava de fazer "caber tudo", nem que para isso tivesse de serrar os pés... Certa vez até enterrou os restos de alguém na sepultura de outrém. Não que o homem fosse má pessoa, mas para ele a missão de enterrar os mortos não passava de um ofício como outro qualquer em que não punha muito brio.
Devido ao seu desleixo, e porventura um copo a mais ao almoço, certa tarde de Sexta Feira Santa ficou preso do lado de dentro de um sepulcro onde estavam alguns dos seus caixões e respectivos "clientes". Negligente, o coveiro tinha deixado que o tempo enferrujasse a fechadura e agora via-se grego para abrir a porta a partir de dentro. Mas não tinha medo da sua situação. De tal modo não tinha medo que se pôs logo a pensar na solução para o contratempo, e esta passava por pegar num martelo que por ali tinha e abrir mais a estreita janela sobre o portão do jazigo. Para lá chegar, empilhou os caixões todos uns sobre os outros (com os respectivos ocupantes lá dentro) e fez deles uma escada. Quando estava quase a conseguir esgueirar-se pela abertura, perto da meia noite, o seu negligente trabalho traiu-o mais uma vez: os caixões eram tão fracos que cederam sobre o seu peso e o pobre diabo ficou pendurado da janela. Mesmo assim, e com muito esforço para levantar todo o peso da sua pança, ia quase a sair do túmulo quando lhe agarraram pelos tornozelos. Alguém que não gostou que lhe serrassem os pés...
Nyarlathotep
Não deixa de ser curioso como tantos escritores e tão distintos apanham no "ar" o vento das trevas e o traduzem em ficção mal sabendo que escrevem profecias. Agitação social e alterações climáticas... e depois vem o fim.
Nyarlathotep ("the crawling chaos"), ou o mensageiro do caos, é uma personagem sinistra e sobrenatural que povoa toda a obra de Lovecraft. Grande e perigoso hipnotizador, leva qualquer pessoa que o ouve a ingressar a grande massa humana que deambula pelo mundo sem norte, uma imensa vaga de "mortos-vivos" ou autómatos, enquanto a civilização se desmorona em ruínas abrindo caminho para o domínio dos Outros Deuses.
Pela sua visionária actualidade, arrepia pensar que este conto foi escrito em 1920.
The Cats of Ulthar
Quando comecei a ler Lovecraft perguntou-me um conhecedor: "E qual é a tua história preferida?". "Tenho de ler mais", respondi. Mas, afinal, já sabia a resposta. Lovecraft tinha um grande amor por gatos. Eu também. E a história é esta e reza assim:
Havia um execrável casal de velhos, que odiava gatos, e que os apanhava e torturava até à morte de formas cruéis. Ouviam-se de noite os gritos arrepiantes dos bichinhos.
Um dia passaram saltimbancos por Ulthar, muito versados em artes mágicas. Um deles era ainda quase uma criança, um pobre rapaz órfão cujo melhor amigo e companhia era um gatinho também de pouca idade. De noite, em Ulthar, o gatinho foi apanhado e torturado e morto pelo casal de velhos malvados.
Na noite seguinte, depois da partida dos saltimbancos, algo aconteceu. Todos os gatos de Ulthar desapareceram. Os habitantes da cidade, que temiam a maldade dos velhos, julgaram o pior e choraram pelos seus amigos de estimação. Mas no outro dia, de manhã, todos os gatos voltaram para casa, gordos, satisfeitos, lambendo os bigodes como se depois de uma boa refeição. Dos velhos, só restavam os ossos. Os gatos de Ulthar comeram-nos.
É por isso que até hoje, em Ulthar, existe uma lei em que é expressamente proibido matar um gato.
The Dream Quest of Unknown Kadath
Esta é uma das histórias em que figura o personagem recorrente Randolph Carter, o grande herói de H. P. Lovecraft, que na sua demanda do sobrenatural terá sido uma espécie de Fox Mulder com os seus Ficheiros Secretos.
Randolph Carter é referido em algumas aventuras mas é neste conto que se aproxima mais dos terríveis deuses (aqui chamados "the Great Ones") que povoam o universo do sonho. Kadath seria a cidade onde os deuses habitam, apenas vislumbrada no sono profundo, e para a alcançar Randolph Carter vai ter de se debater com inúmeros adversários fantásticos, e contar com a ajuda de alguns amigos poderosos no mundo do sonho que também são personagens de outros contos de Lovecraft, como o rei Kuranes de Celepahis, o "ghoul" Richard Pickman ou... o exército dos gatos de Ulthar! Devo confessar que toda esta bizarria me passaria ao lado até ao momento em que Lovecraft invoca, precisamente, o exército dos gatos de Ulthar, que combatem ferozmente para salvar Randolph Carter dos terríveis seres "assapados" do lado oculto da Lua. Mas isto é o quê? Um conto para crianças? Devo dizer que fiquei imensamente decepcionada e não aconselho a ninguém que comece a leitura do autor por esta história excepto se gostar muito, muito, mesmo muito!, de fantasia. Para os iniciados, é uma pequena maravilha conhecer o destino do artista Richard Pickman e do vagabundo Kuranes fora dos limites do mundo físico. Mas, na minha honesta opinião, a única parte realmente à altura de Lovecraft é o encontro final de Carter com Nyarlathotep, "the Crawling Chaos", o mensageiro do caos, que lhe explica que essa cidade porque tanto anseia não é mais do que um reflexo dourado das suas próprias memórias da infância passada em Boston. E dizendo isto, que pode ser verdade ou mais uma artimanha para o desviar do seu objectivo, Nyarlathotep estende-lhe outra armadilha de que o herói tem de se livrar. Nyarlathotep é a personagem que em Lovecraft mais se assemelha ao Diabo: tentador, elegante, eloquente... mas mentiroso e cruel. E esta é a única razão porque a história acaba com algum interesse.
Continua.
Este é um dos contos mais populares e popularizados de Lovecraft, mais ainda do que "The Mountains of Madness". Toda a gente já viu a história no cinema, repetida vezes sem conta em filmes igualmente inumeráveis: um cientista descobre um soro que devolve a vida aos mortos. A vida, mas não a personalidade. Estes voltam, mas "alterados" como só o mestre Stephen King descreveu mais tarde. Então o que temos? Zombies. Carradas de zombies. Mortos-vivos. Braços e pernas saltitantes. Cabeças rolantes. Toda essa palhaçada. Agora parece-nos engraçado mas não o seria certamente na época em que Lovecraft o escreveu.
["Reanimator" é também o nome de uma famosa música dos Fields of the Nephilim que, como vimos antes, muito foram buscar ao universo do autor. Um conhecedor de ambas as obras vai encontrar um manancial de referências, em que McCoy mistura o universo onírico e assombrado de Lovecraft com a análise psicológica dos nossos dias.]
O tema já não era novo quando o autor lhe pegou. Aliás, o próprio Lovecraft cita os mestres antigos quando começa esta história -- publicada originalmente em fascículos, razão pela qual é feito um sumário do enredo anterior a cada novo capítulo -- com uma citação do Conde Drácula: "To be dead, to be truly dead, must be glorious. There are far worse things awaiting man than death."
O primeiro "reanimador" famoso foi o cientista "Frankenstein", de Mary Shelley, mas o resultado acaba por ser bem diferente e é isso que interessa salientar. Enquanto o monstro de Frankenstein (que não tem nome) é uma criatura feita de partes de vários mortos mas que almeja uma existência humana e é por isso rejeitado pela sociedade, -- uma perspectiva muito "feminina" capaz de levar o mais sensível às lágrimas -- os zombies de H. P. Lovecraft, numa versão a que nos dias de hoje chamamos "gore", pensam mais em comer a carne dos vivos e voltar a esgravatar na terra do cemitério. Não há aqui nada de "choramingas". São zombies, são maus, e comem criancinhas.
Pior que eles só o seu criador, Herbert West, um verdadeiro monstro digno das experiências nazis mais atrozes (mas antes dos nazis), diametralmente o oposto do torturado cientista Frankenstein, cheio de remorsos pela sua obra blasfema.
Herbert West, que nos é descrito pelo seu assistente, só tem uma preocupação na vida: arranjar cadáveres frescos, muito frescos, para que o soro actue antes que o cérebro perca demasiadas células e comprometa a existência inteligente. Quando lhe faltam os defuntos a tempo e horas, qualquer visitante que bata à porta se torna candidato à experiência. Este médico mata primeiro para ressuscitar depois.
Mas, porque os seus mortos-vivos não são totalmente desprovidos de inteligência, um dia há-de beber o seu próprio veneno.
Delicioso. Imperdível. Satisfação garantida!
Imprisioned with the Pharaohs
Um ilusionista cuja especialidade é o escapismo, como Houdini, vai visitar o Cairo onde a sua "magia" de espectáculo é particularmente testada. Traído por uma armadilha montada pelos beduínos do deserto, é lançado para dentro de um enorme poço que estaria debaixo da Esfinge, amarrado, de mãos e pés atados e olhos vendados. Cabe-lhe primeiro escapar das amarras. Depois... tem de fugir das múmias.
É uma história interessante e exótica mas particularmente indicada para quem gosta do antigo Egipto, pirâmides e mitologia. A ideia é inteligente (a esfinge afinal existe e é real) mas não me convenceu. Certamente haverá quem goste mais do género.
In the Vault
Já esta, é uma história muito mais cómica do que tétrica -- ou ambas as coisas. Parece daqueles contos da avózinha para assustar criancinhas e fazer-lhes perceber os males da preguiça. Senão vejamos. Coveiro de profissão, era um homem habituado a tratar os mortos como se fossem um lixo aborrecido que o seu trabalho tratava de empacotar e enterrar. Não era um coveiro muito competente. Os caixões que fazia eram frágeis. Alguns eram demasiado pequenos para o seu destinatário mas o coveiro lá se encarregava de fazer "caber tudo", nem que para isso tivesse de serrar os pés... Certa vez até enterrou os restos de alguém na sepultura de outrém. Não que o homem fosse má pessoa, mas para ele a missão de enterrar os mortos não passava de um ofício como outro qualquer em que não punha muito brio.
Devido ao seu desleixo, e porventura um copo a mais ao almoço, certa tarde de Sexta Feira Santa ficou preso do lado de dentro de um sepulcro onde estavam alguns dos seus caixões e respectivos "clientes". Negligente, o coveiro tinha deixado que o tempo enferrujasse a fechadura e agora via-se grego para abrir a porta a partir de dentro. Mas não tinha medo da sua situação. De tal modo não tinha medo que se pôs logo a pensar na solução para o contratempo, e esta passava por pegar num martelo que por ali tinha e abrir mais a estreita janela sobre o portão do jazigo. Para lá chegar, empilhou os caixões todos uns sobre os outros (com os respectivos ocupantes lá dentro) e fez deles uma escada. Quando estava quase a conseguir esgueirar-se pela abertura, perto da meia noite, o seu negligente trabalho traiu-o mais uma vez: os caixões eram tão fracos que cederam sobre o seu peso e o pobre diabo ficou pendurado da janela. Mesmo assim, e com muito esforço para levantar todo o peso da sua pança, ia quase a sair do túmulo quando lhe agarraram pelos tornozelos. Alguém que não gostou que lhe serrassem os pés...
Nyarlathotep
I do not recall distinctly when it began, but it was months ago. The general tension was horrible. To a season of political and social upheaval was added a strange and brooding apprehension of hideous physical danger; a danger widespread and all-embracing, such a danger as may be imagined only in the most terrible phantasms of the night. I recall that the people went about with pale and worried faces, and whispered warnings and prophecies which no one dared consciously repeat or acknowledge to himself that he had heard. A sense of monstrous guilt was upon the land, and out of the abysses between the stars swept chill currents that made men shiver in dark and lonely places. There was a daemoniac alteration in the sequence of the seasons--the autumn heat lingered fearsomely, and everyone felt that the world and perhaps the universe had passed from the control of known gods or forces to that of gods or forces which were unknown.
Não deixa de ser curioso como tantos escritores e tão distintos apanham no "ar" o vento das trevas e o traduzem em ficção mal sabendo que escrevem profecias. Agitação social e alterações climáticas... e depois vem o fim.
Nyarlathotep ("the crawling chaos"), ou o mensageiro do caos, é uma personagem sinistra e sobrenatural que povoa toda a obra de Lovecraft. Grande e perigoso hipnotizador, leva qualquer pessoa que o ouve a ingressar a grande massa humana que deambula pelo mundo sem norte, uma imensa vaga de "mortos-vivos" ou autómatos, enquanto a civilização se desmorona em ruínas abrindo caminho para o domínio dos Outros Deuses.
Pela sua visionária actualidade, arrepia pensar que este conto foi escrito em 1920.
The Cats of Ulthar
Quando comecei a ler Lovecraft perguntou-me um conhecedor: "E qual é a tua história preferida?". "Tenho de ler mais", respondi. Mas, afinal, já sabia a resposta. Lovecraft tinha um grande amor por gatos. Eu também. E a história é esta e reza assim:
Havia um execrável casal de velhos, que odiava gatos, e que os apanhava e torturava até à morte de formas cruéis. Ouviam-se de noite os gritos arrepiantes dos bichinhos.
Um dia passaram saltimbancos por Ulthar, muito versados em artes mágicas. Um deles era ainda quase uma criança, um pobre rapaz órfão cujo melhor amigo e companhia era um gatinho também de pouca idade. De noite, em Ulthar, o gatinho foi apanhado e torturado e morto pelo casal de velhos malvados.
Na noite seguinte, depois da partida dos saltimbancos, algo aconteceu. Todos os gatos de Ulthar desapareceram. Os habitantes da cidade, que temiam a maldade dos velhos, julgaram o pior e choraram pelos seus amigos de estimação. Mas no outro dia, de manhã, todos os gatos voltaram para casa, gordos, satisfeitos, lambendo os bigodes como se depois de uma boa refeição. Dos velhos, só restavam os ossos. Os gatos de Ulthar comeram-nos.
É por isso que até hoje, em Ulthar, existe uma lei em que é expressamente proibido matar um gato.
The Dream Quest of Unknown Kadath
Esta é uma das histórias em que figura o personagem recorrente Randolph Carter, o grande herói de H. P. Lovecraft, que na sua demanda do sobrenatural terá sido uma espécie de Fox Mulder com os seus Ficheiros Secretos.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
Randolph Carter é referido em algumas aventuras mas é neste conto que se aproxima mais dos terríveis deuses (aqui chamados "the Great Ones") que povoam o universo do sonho. Kadath seria a cidade onde os deuses habitam, apenas vislumbrada no sono profundo, e para a alcançar Randolph Carter vai ter de se debater com inúmeros adversários fantásticos, e contar com a ajuda de alguns amigos poderosos no mundo do sonho que também são personagens de outros contos de Lovecraft, como o rei Kuranes de Celepahis, o "ghoul" Richard Pickman ou... o exército dos gatos de Ulthar! Devo confessar que toda esta bizarria me passaria ao lado até ao momento em que Lovecraft invoca, precisamente, o exército dos gatos de Ulthar, que combatem ferozmente para salvar Randolph Carter dos terríveis seres "assapados" do lado oculto da Lua. Mas isto é o quê? Um conto para crianças? Devo dizer que fiquei imensamente decepcionada e não aconselho a ninguém que comece a leitura do autor por esta história excepto se gostar muito, muito, mesmo muito!, de fantasia. Para os iniciados, é uma pequena maravilha conhecer o destino do artista Richard Pickman e do vagabundo Kuranes fora dos limites do mundo físico. Mas, na minha honesta opinião, a única parte realmente à altura de Lovecraft é o encontro final de Carter com Nyarlathotep, "the Crawling Chaos", o mensageiro do caos, que lhe explica que essa cidade porque tanto anseia não é mais do que um reflexo dourado das suas próprias memórias da infância passada em Boston. E dizendo isto, que pode ser verdade ou mais uma artimanha para o desviar do seu objectivo, Nyarlathotep estende-lhe outra armadilha de que o herói tem de se livrar. Nyarlathotep é a personagem que em Lovecraft mais se assemelha ao Diabo: tentador, elegante, eloquente... mas mentiroso e cruel. E esta é a única razão porque a história acaba com algum interesse.
Continua.
domingo, 8 de fevereiro de 2009
H. P. Lovecraft - Mestre do Horror I
O primeiro contacto relevante que me levou a ler Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foi referência ao clássico "The Thing on the Doorstep" por Anne Rice, nesse outro clássico que é a aventura do vampiro Lestat em "The Tale of The Body Thief". Curiosa, fui à internet procurar o primeiro conto que tinha inspirado o segundo (as obras de Lovecraft já se encontram disponíveis gratuitamente na web). Encontrei, e dando uma vista de olhos pelo resto da obra, foram-me logo parar os olhos num outro clássico de Lovecraft, "The Cats of Ulthar", quanto mais não fosse por não estar assim à espera de um conto de terror que envolvesse gatos. Como era uma história pequena, li-a também, deliciada, e prometi regressar a Lovecraft assim que pudesse.
Foi este o meu primeiro encontro com o autor americano, mas não com os seus mitos. Há muitos anos que conhecia Cthulhu, dos meus muito preferidos Fields of the Nephilim, mas há mesmo tantos anos que é uma vergonha ter demorado todo este tempo a dedicar-me à sua leitura, da mesma forma que é uma pena que Lovecraft esteja tão pouco divulgado entre nós, não só entre os apreciadores de terror como também entre os amantes de ficção científica. Eis uma tentativa para que a situação mude.
H. P. Lovecraft era daqueles autores que se sentam à secretária para escrever histórias de meter medo. Estes são poucos e, entre eles, menos ainda o conseguem. Lovecraft, contudo, no deserto dos anos 20 e 30, tanto inspirado em Edgar Allan Poe e no folclore da bruxaria de Salem, como em Einstein e nas recentes descobertas científicas do ainda recente século, compôs em histórias relativamente curtas toda uma obra que veio a influenciar autores de todas as áreas e os seus horrores mais básicos ainda inspiram o cinema mais recente. Aliens? Nada de novo. Possessão? Só mudam os mitos. Casas assombradas? Possivelmente ninguém explorou tanto o campo como Lovecraft e o seu fascínio pelos casebres abandonados das florestas em torno da cidade imaginária de Arkham, banhada pelo igualmente inexistente rio Miskatonic, no que os especialistas chamam "Lovecraft Country" (mas situado na verdadeira Nova Inglaterra, Essex County, Massachusetts). Feiticeiras? Das verdadeiras, e bruxos também. Investigadores paranormais? Ninguém foi tão longe como Randolph Carter. Necronomicon? Inventou-o. Pois é, o famoso Necronomicon não existe, mas existem versões disponíveis, geradas pelo que hoje chamamos "fan fic" (ficção feita pelos fãs utilizando os personagens e universo de um autor preferido).
Para começar a pesquisar Lovecraft, aconselho a página da Wikipedia, com vários links relativos ao seu mundo muito particular. Tal como Tolkien, Lovecraft também inventou todo um universo paralelo, metade passado na mundo como o conhecemos, a outra metade passado na terra dos sonhos, mas dividiu-o em pequenos contos de modo que não temos a papinha toda feita como na trilogia d'"O Senhor dos Anéis". Por outro lado, quanto mais se lê mais se deseja ler.
A melhor alusão à parte terrena do universo de Lovecraft vem mesmo do personagem do clássico "The Thing on the Doorstep", por onde comecei, que a certa altura desabafa: "I suppose you think I'm crazy, Dan--but Arkham history ought to hint at things that back up what I've told you--and what I'm going to tell you." Ou, "What he said was not to be believed, even in centuried and legend-haunted Arkham; but he threw out his dark lore with a sincerity and convincingness which made one fear for his sanity. He talked about terrible meetings in lonely places, of cyclopean ruins in the heart of the Maine woods beneath which vast staircases led down to abysses of nighted secrets, of complex angles that led through invisible walls to other regions of space and time, and of hideous exchanges of personality that permitted explorations in remote and forbidden places, on other worlds, and in different space--time continua."
Fora de Arkham, existe também um mundo de cidades escondidas no deserto, submersas no fundo do mar, nas entranhas da terra, nos inacessíveis picos gelados, restos de civilizações colossais, marmóreas, ciclópicas, há muito abandonadas pelos seus construtores e habitantes mais velhos do que o mundo, sejam deuses ou monstros, extraterrestres ou demónios, descritas apenas no misterioso e amaldiçoado Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred.
E muita atenção! Quando Lovecraft fala em "tráfico com as coisas do mar" não está de todo a referir-se à venda ilegal de pérolas preciosas, mas sim à existência de uma raça híbrida entre o ser humano e os Outros, os Antigos, os habitantes das profundezas.
Uma boa fonte para download da obra de H. P. Lovecraft, em formato .zip, é o Projecto Gutenberg Australia.
Tentarei abordar aqui as melhores histórias e despertar a curiosidade para este autor injustamente ainda tão desconhecido.
The Festival
Desejoso de voltar a participar nas tradições do seu parentesco, um jovem regressa à terra natal (a cidade ficcional de Kingsport) para uma celebração natalícia que nada tem de cristão. Acaba na manhã seguinte numa cama de hospital, convencido de que o seu parentesco nem sequer pertence à raça humana. O que faz dele então?...
The Colour Out of Space
Passada nos arredores da cidade ficcional preferida do autor, Arkham, esta é uma história de ficção científica verdadeiramente arrepiante. Isto é-vos dito e garantido por uma leitora e espectadora assídua de terror, em pleno século XXI. Confesso: a certa altura tive de parar de ler e começar a olhar em volta. Quando isto acontece, meus amigos, é porque estamos perante uma obra genial, que se insinua, que nos perturba, que nos faz considerar a possibilidade de acontecer mesmo. E porquê? No caso da ficção científica até não é muito difícil. Conhecemos tão pouco do universo!
Tudo começa com a queda de um meteorito perto de uma pacata quinta de família honesta. Chamados os peritos, chegam à conclusão que não se consegue determinar em termos científicos conhecidos a espécie de metal (a ser metal) que o compõe. Em questão de dias, o meteorito decompõe-se e desaparece. Mas a terra onde caiu começa a produzir estranhos vegetais que não prestam para consumo humano. Os animais que os comem transformam-se em seres esquisitos. As árvores em volta, por exemplo, brilham no escuro com uma estranha cor indefinível, a cor do metal do meteorito, e abanam-se mesmo quando não há vento, animadas por uma força exterior às leis da Natureza. A população da aldeia mais próxima começa a evitar a quinta e a família fica cada vez mais isolada. Mas nenhum dos habitantes consegue tomar a decisão de abandonar o local, nem quando a mãe fica louca, nem depois da fuga dos cavalos, cães e gatos da quinta, nem mesmo quando se descobre que a água do poço de onde bebem está inquinada e é maligna. Existe algo no poço, algo que vai sugando a energia, a sanidade e a força de vontade de todos eles. Os filhos mais novos atiram-se para dentro do poço, onde mais tarde se vêm a encontrar também esqueletos de pequenos animais. Depois chega a "morte cinzenta". Começa por afectar o gado. Porcos e vacas ficam cinzentos e quebradiços e partem-se aos bocados. O mesmo destino está reservado para o dono da quinta, que também termina assim, como que em cinzas. Os agentes da autoridade que vão investigar são forçados a fugir a meio da noite, quando uma luz sobrenatural começa a penetrar dentro da casa... pelas frestas, enquanto o último cavalo que ficou preso lá fora, e não se conseguiu soltar, se estalava aos bocados como um caco de barro.
Leitura não recomendável à noite.
The Call Of Cthulhu
Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn: "In his house at R'lyeh dead Cthulhu waits dreaming." Na sua casa em R'lyeh, morto, Ktulu espera dormindo. Um investigador persegue o desconhecido culto de Cthulhu (ou Ktulu, ou K'tula), cujos seguidores servem em loucura e bestialidade, praticando inclusive sacrifícios humanos nos pântanos de New Orleans, quando se reunem e dançam à volta do fogo ao som de tambores cuja inspirada descrição me lembra imediatamente do clássico início de "Endemoniada" (mais uma vez, nem podia deixar de ser, dos Fields of the Nephilim). Dizem que Cthulhu é um dos Antigos (the Old Ones), seres vindos das estrelas de onde trouxeram as suas imagens, mais velhos do que o mundo, e que esperam, na submersa cidade de R'lyeh, que os astros se conjuguem para que se libertam e tomem conta do mundo outra vez. Outrora, a sua comunicação com os seres mais sensíveis era feita apenas por pensamentos e sonhos, mas depois do desaparecimento de R'lyeh nas águas profundas a frase acima, que os servidores entoam sem cessar nos seus cânticos e na linguagem original que lhes foi transmitida de geração em geração, é o que resta das palavras dos Antigos.
Foi neste mito que Carl McCoy dos Fields of the Nephilim se inspirou em muitos temas (tal como em Lovecraft em geral), e o melhor exemplo será mesmo "The Watchman":
«You'll see, you'll see her when she starts to form
You'll see, you'll see her when she starts to call
Follow me...
You sleep, you sleep, follow me
It's just another day, remember I am calling you
Just another day, remember she's calling for you
Just another day, Kthulhu I am calling for you
Just another day, An empire has fallen from view
(...)»
Cthulho, "dead but dreaming", citando palavras dos Nephilim, penetra na mente dos homens através de sonhos colectivos e levá-los-à a resgatá-lo quando as estrelas se alinharem... e o mundo será seu de novo. (Também é no mundo dos sonhos que Freddy Kruger, um monstro moderno, contacta as suas vítimas...)
Este é o mito que tem alimentado páginas e páginas de especulação, e até banda desenhada cómica. Um novo filme "Chtulho" foi realizado ainda em 2007. Depois de o conhecer, não há como escapar aos seus "tentáculos", pelos menos aos inconscientes.
Segue a história com uma embarcação de marinheiros que acidentalmente vai parar a uma pequena ilha a descoberto, nada mais do a ponta do iceberg que é a cidade submersa de R'lyeh.
Primeira nota curiosa: "It was Rodriguez the Portuguese who climbed up the foot of the monolith and shouted of what he had found." Não é de admirar que se encontre um português em todos os cantos do mundo, até na cidade de R'lyeh, num livro de Lovecraft.
Segunda nota curiosa: Muitas citações de Lovecraft, em que desconfia claramente de homens mestiços, geralmente designados por escumalha de marginais e malfeitores, como estes seguidores de Chtulhu em New Orleans, são indubitavelmente racistas se analisadas fora do seu tempo.
É preciso compreender que a época de Lovecraft era outra, e tão distante que se podia sem cair no ridículo imaginar que o recém descoberto planeta Plutão seria uma base avançada dos estraterrestres (como se pode ler noutro conto). Mas não deixa de ser curioso como Lovecraft, fruto do seu tempo, era tão ingenuamente racista nos anos 20 e 30, o que nos permite desvendar outros mistérios bem mais horrendos e nada ficcionais...
De regresso ao relato: "The Thing cannot be described-- there is no language for such abysms of shrieking and immemorial lunacy, such eldritch contradictions of all matter, force, and cosmic order. A mountain walked or stumbled. God! What wonder that across the earth a great architect went mad, and poor Wilcox raved with fever in that telepathic instant? The Thing of the idols, the green, sticky spawn of the stars, had awaked to claim his own. The stars were right again, and what an age-old cult had failed to do by design, a band of innocent sailors had done by accident. After vigintillions of years great Cthulhu was loose again, and ravening for delight."
Então Chtulhu acordou. Mas o que aconteceu ao bravo Rodrigues? Chtulhu papou-o. Safou-se um norueguês, mas não por muito tempo porque os servos do monstro estão em todo o lado.
Quem sonhar com Chtulhu... é melhor não voltar a adormecer.
The Dunwich Horror
Os Antigos (the Old Ones) não são as únicas criaturas que aguardam no fundo do mar ou nos subterrâneos das montanhas o momento em que os astros se conjuguem para uma vez mais reinar sobre a Terra e dizimar toda a vida animal e vegetal, inclusive o ser humano. Neste conto aprende-se que Yog-Sototh (um dos Antigos e "primo de Cthulho", se bem que esta relação de parentesco não esteja minimamente explicada), é uma criação destes seres que vieram das estrelas e que habitam nos insterstícios das montanhas de Dunwich (povoação ficcional), onde um velho feiticeiro local o invoca regularmente, especialmente na véspera de Maio (May's Eve) e, como não podia deixar de ser, no Hallowen. Esta criatura, Yog-Sototh, embora desprovido de corpo material terrestre, pode gerar filhos (à semelhança dos demónios da Bíblia), e desta união com uma mulher nasce um ser metade humano -- ou mais de metade humano, para se ser preciso, como se comprova pelos seus restos mortais quando este encontra o seu fim nos dentes de um cão de guarda no momento em que tenta roubar o exemplar do Necronomicon da universidade de Mistatonik -- cujo objectivo é auxiliar os Antigos a regressar e destruir o mundo. Este híbrido termina de forma trágica mas o verdadeiro horror está ainda para se manifestar.
Esta é uma das histórias chave para o leitor que quer conhecer os mitos dos Antigos e seus propósitos. Altamente recomendável.
Continua.
Foi este o meu primeiro encontro com o autor americano, mas não com os seus mitos. Há muitos anos que conhecia Cthulhu, dos meus muito preferidos Fields of the Nephilim, mas há mesmo tantos anos que é uma vergonha ter demorado todo este tempo a dedicar-me à sua leitura, da mesma forma que é uma pena que Lovecraft esteja tão pouco divulgado entre nós, não só entre os apreciadores de terror como também entre os amantes de ficção científica. Eis uma tentativa para que a situação mude.
H. P. Lovecraft era daqueles autores que se sentam à secretária para escrever histórias de meter medo. Estes são poucos e, entre eles, menos ainda o conseguem. Lovecraft, contudo, no deserto dos anos 20 e 30, tanto inspirado em Edgar Allan Poe e no folclore da bruxaria de Salem, como em Einstein e nas recentes descobertas científicas do ainda recente século, compôs em histórias relativamente curtas toda uma obra que veio a influenciar autores de todas as áreas e os seus horrores mais básicos ainda inspiram o cinema mais recente. Aliens? Nada de novo. Possessão? Só mudam os mitos. Casas assombradas? Possivelmente ninguém explorou tanto o campo como Lovecraft e o seu fascínio pelos casebres abandonados das florestas em torno da cidade imaginária de Arkham, banhada pelo igualmente inexistente rio Miskatonic, no que os especialistas chamam "Lovecraft Country" (mas situado na verdadeira Nova Inglaterra, Essex County, Massachusetts). Feiticeiras? Das verdadeiras, e bruxos também. Investigadores paranormais? Ninguém foi tão longe como Randolph Carter. Necronomicon? Inventou-o. Pois é, o famoso Necronomicon não existe, mas existem versões disponíveis, geradas pelo que hoje chamamos "fan fic" (ficção feita pelos fãs utilizando os personagens e universo de um autor preferido).
Para começar a pesquisar Lovecraft, aconselho a página da Wikipedia, com vários links relativos ao seu mundo muito particular. Tal como Tolkien, Lovecraft também inventou todo um universo paralelo, metade passado na mundo como o conhecemos, a outra metade passado na terra dos sonhos, mas dividiu-o em pequenos contos de modo que não temos a papinha toda feita como na trilogia d'"O Senhor dos Anéis". Por outro lado, quanto mais se lê mais se deseja ler.
A melhor alusão à parte terrena do universo de Lovecraft vem mesmo do personagem do clássico "The Thing on the Doorstep", por onde comecei, que a certa altura desabafa: "I suppose you think I'm crazy, Dan--but Arkham history ought to hint at things that back up what I've told you--and what I'm going to tell you." Ou, "What he said was not to be believed, even in centuried and legend-haunted Arkham; but he threw out his dark lore with a sincerity and convincingness which made one fear for his sanity. He talked about terrible meetings in lonely places, of cyclopean ruins in the heart of the Maine woods beneath which vast staircases led down to abysses of nighted secrets, of complex angles that led through invisible walls to other regions of space and time, and of hideous exchanges of personality that permitted explorations in remote and forbidden places, on other worlds, and in different space--time continua."
Fora de Arkham, existe também um mundo de cidades escondidas no deserto, submersas no fundo do mar, nas entranhas da terra, nos inacessíveis picos gelados, restos de civilizações colossais, marmóreas, ciclópicas, há muito abandonadas pelos seus construtores e habitantes mais velhos do que o mundo, sejam deuses ou monstros, extraterrestres ou demónios, descritas apenas no misterioso e amaldiçoado Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
E muita atenção! Quando Lovecraft fala em "tráfico com as coisas do mar" não está de todo a referir-se à venda ilegal de pérolas preciosas, mas sim à existência de uma raça híbrida entre o ser humano e os Outros, os Antigos, os habitantes das profundezas.
Uma boa fonte para download da obra de H. P. Lovecraft, em formato .zip, é o Projecto Gutenberg Australia.
Tentarei abordar aqui as melhores histórias e despertar a curiosidade para este autor injustamente ainda tão desconhecido.
The Festival
Desejoso de voltar a participar nas tradições do seu parentesco, um jovem regressa à terra natal (a cidade ficcional de Kingsport) para uma celebração natalícia que nada tem de cristão. Acaba na manhã seguinte numa cama de hospital, convencido de que o seu parentesco nem sequer pertence à raça humana. O que faz dele então?...
The Colour Out of Space
Passada nos arredores da cidade ficcional preferida do autor, Arkham, esta é uma história de ficção científica verdadeiramente arrepiante. Isto é-vos dito e garantido por uma leitora e espectadora assídua de terror, em pleno século XXI. Confesso: a certa altura tive de parar de ler e começar a olhar em volta. Quando isto acontece, meus amigos, é porque estamos perante uma obra genial, que se insinua, que nos perturba, que nos faz considerar a possibilidade de acontecer mesmo. E porquê? No caso da ficção científica até não é muito difícil. Conhecemos tão pouco do universo!
Tudo começa com a queda de um meteorito perto de uma pacata quinta de família honesta. Chamados os peritos, chegam à conclusão que não se consegue determinar em termos científicos conhecidos a espécie de metal (a ser metal) que o compõe. Em questão de dias, o meteorito decompõe-se e desaparece. Mas a terra onde caiu começa a produzir estranhos vegetais que não prestam para consumo humano. Os animais que os comem transformam-se em seres esquisitos. As árvores em volta, por exemplo, brilham no escuro com uma estranha cor indefinível, a cor do metal do meteorito, e abanam-se mesmo quando não há vento, animadas por uma força exterior às leis da Natureza. A população da aldeia mais próxima começa a evitar a quinta e a família fica cada vez mais isolada. Mas nenhum dos habitantes consegue tomar a decisão de abandonar o local, nem quando a mãe fica louca, nem depois da fuga dos cavalos, cães e gatos da quinta, nem mesmo quando se descobre que a água do poço de onde bebem está inquinada e é maligna. Existe algo no poço, algo que vai sugando a energia, a sanidade e a força de vontade de todos eles. Os filhos mais novos atiram-se para dentro do poço, onde mais tarde se vêm a encontrar também esqueletos de pequenos animais. Depois chega a "morte cinzenta". Começa por afectar o gado. Porcos e vacas ficam cinzentos e quebradiços e partem-se aos bocados. O mesmo destino está reservado para o dono da quinta, que também termina assim, como que em cinzas. Os agentes da autoridade que vão investigar são forçados a fugir a meio da noite, quando uma luz sobrenatural começa a penetrar dentro da casa... pelas frestas, enquanto o último cavalo que ficou preso lá fora, e não se conseguiu soltar, se estalava aos bocados como um caco de barro.
Leitura não recomendável à noite.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
The Call Of Cthulhu
Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn: "In his house at R'lyeh dead Cthulhu waits dreaming." Na sua casa em R'lyeh, morto, Ktulu espera dormindo. Um investigador persegue o desconhecido culto de Cthulhu (ou Ktulu, ou K'tula), cujos seguidores servem em loucura e bestialidade, praticando inclusive sacrifícios humanos nos pântanos de New Orleans, quando se reunem e dançam à volta do fogo ao som de tambores cuja inspirada descrição me lembra imediatamente do clássico início de "Endemoniada" (mais uma vez, nem podia deixar de ser, dos Fields of the Nephilim). Dizem que Cthulhu é um dos Antigos (the Old Ones), seres vindos das estrelas de onde trouxeram as suas imagens, mais velhos do que o mundo, e que esperam, na submersa cidade de R'lyeh, que os astros se conjuguem para que se libertam e tomem conta do mundo outra vez. Outrora, a sua comunicação com os seres mais sensíveis era feita apenas por pensamentos e sonhos, mas depois do desaparecimento de R'lyeh nas águas profundas a frase acima, que os servidores entoam sem cessar nos seus cânticos e na linguagem original que lhes foi transmitida de geração em geração, é o que resta das palavras dos Antigos.
Foi neste mito que Carl McCoy dos Fields of the Nephilim se inspirou em muitos temas (tal como em Lovecraft em geral), e o melhor exemplo será mesmo "The Watchman":
«You'll see, you'll see her when she starts to form
You'll see, you'll see her when she starts to call
Follow me...
You sleep, you sleep, follow me
It's just another day, remember I am calling you
Just another day, remember she's calling for you
Just another day, Kthulhu I am calling for you
Just another day, An empire has fallen from view
(...)»
Cthulho, "dead but dreaming", citando palavras dos Nephilim, penetra na mente dos homens através de sonhos colectivos e levá-los-à a resgatá-lo quando as estrelas se alinharem... e o mundo será seu de novo. (Também é no mundo dos sonhos que Freddy Kruger, um monstro moderno, contacta as suas vítimas...)
Este é o mito que tem alimentado páginas e páginas de especulação, e até banda desenhada cómica. Um novo filme "Chtulho" foi realizado ainda em 2007. Depois de o conhecer, não há como escapar aos seus "tentáculos", pelos menos aos inconscientes.
Cthulhu
Segue a história com uma embarcação de marinheiros que acidentalmente vai parar a uma pequena ilha a descoberto, nada mais do a ponta do iceberg que é a cidade submersa de R'lyeh.
Primeira nota curiosa: "It was Rodriguez the Portuguese who climbed up the foot of the monolith and shouted of what he had found." Não é de admirar que se encontre um português em todos os cantos do mundo, até na cidade de R'lyeh, num livro de Lovecraft.
Segunda nota curiosa: Muitas citações de Lovecraft, em que desconfia claramente de homens mestiços, geralmente designados por escumalha de marginais e malfeitores, como estes seguidores de Chtulhu em New Orleans, são indubitavelmente racistas se analisadas fora do seu tempo.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
É preciso compreender que a época de Lovecraft era outra, e tão distante que se podia sem cair no ridículo imaginar que o recém descoberto planeta Plutão seria uma base avançada dos estraterrestres (como se pode ler noutro conto). Mas não deixa de ser curioso como Lovecraft, fruto do seu tempo, era tão ingenuamente racista nos anos 20 e 30, o que nos permite desvendar outros mistérios bem mais horrendos e nada ficcionais...
De regresso ao relato: "The Thing cannot be described-- there is no language for such abysms of shrieking and immemorial lunacy, such eldritch contradictions of all matter, force, and cosmic order. A mountain walked or stumbled. God! What wonder that across the earth a great architect went mad, and poor Wilcox raved with fever in that telepathic instant? The Thing of the idols, the green, sticky spawn of the stars, had awaked to claim his own. The stars were right again, and what an age-old cult had failed to do by design, a band of innocent sailors had done by accident. After vigintillions of years great Cthulhu was loose again, and ravening for delight."
Então Chtulhu acordou. Mas o que aconteceu ao bravo Rodrigues? Chtulhu papou-o. Safou-se um norueguês, mas não por muito tempo porque os servos do monstro estão em todo o lado.
Quem sonhar com Chtulhu... é melhor não voltar a adormecer.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
The Dunwich Horror
Os Antigos (the Old Ones) não são as únicas criaturas que aguardam no fundo do mar ou nos subterrâneos das montanhas o momento em que os astros se conjuguem para uma vez mais reinar sobre a Terra e dizimar toda a vida animal e vegetal, inclusive o ser humano. Neste conto aprende-se que Yog-Sototh (um dos Antigos e "primo de Cthulho", se bem que esta relação de parentesco não esteja minimamente explicada), é uma criação destes seres que vieram das estrelas e que habitam nos insterstícios das montanhas de Dunwich (povoação ficcional), onde um velho feiticeiro local o invoca regularmente, especialmente na véspera de Maio (May's Eve) e, como não podia deixar de ser, no Hallowen. Esta criatura, Yog-Sototh, embora desprovido de corpo material terrestre, pode gerar filhos (à semelhança dos demónios da Bíblia), e desta união com uma mulher nasce um ser metade humano -- ou mais de metade humano, para se ser preciso, como se comprova pelos seus restos mortais quando este encontra o seu fim nos dentes de um cão de guarda no momento em que tenta roubar o exemplar do Necronomicon da universidade de Mistatonik -- cujo objectivo é auxiliar os Antigos a regressar e destruir o mundo. Este híbrido termina de forma trágica mas o verdadeiro horror está ainda para se manifestar.
Esta é uma das histórias chave para o leitor que quer conhecer os mitos dos Antigos e seus propósitos. Altamente recomendável.
Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)
Continua.
sábado, 6 de setembro de 2008
All alone in her karma
Nunca me senti tão sozinha. Finalmente descobri porquê. Alguém me falta. Falto eu. O mundo devorou-me e agora já não me encontro nem no espelho. Sou uma carcaça oca. Esta, que aqui escreve, é um fantasma. O fantasma de mim. E agora só existo nas palavras.
De Frodo
Frodo carregou o seu fardo pesadíssimo e salvou o mundo, mas destruiu-se no processo. Deitado na escarpa negra de Mount Doom, já sem força, pergunta-lhe o fiel Sam, para o encorajar: "Lembras-te do cheiro da relva verde do Shire?" E Frodo respondeu: "Não, Sam, já não me lembro de cheiro nenhum, nem de nada". Frodo não mentia. Há algo que acontece a quem tem de fazer mais do que as forças permitem. A acção pode concretizar-se, mas o ser nunca mais volta. Frodo quase se destruía e se lançava ao fogo para não perder o Anel do Poder mas, apesar de impedido por outro ainda mais louco, nunca voltou de todo. O corpo não se lhe tornou um espectro como o dos outros escravos do Anel, mas quase. A cicatriz do Mal ficou-lhe para toda a vida e nunca deixou de doer. Quase espectro, um estranho no meio dos outros, recolheu-se a Valinor para o mundo dos não mortais. Poderá aí ter encontrado conforto por fim? A história não diz.
Em aventuras semelhantes há cerca de três anos por esta altura a minha vida levou-me também a Mordor e a partir daí nunca mais fui a mesma. Roubaram-me a alma no processo. Às pessoas digo que não tenho tempo mas devia dizer em vez disso "não está ninguém em casa".
Como de resto explicar que se leia Wilde, Baudelaire e Lovecraft, tudo ao mesmo tempo, se não para garantir que o cérebro permaneça fora da realidade?
Penso mas não existo. Sou um zombie de mim própria. Agora já sei mas demorei algum tempo a perceber este simples facto. O tempo que demorou a alma distanciar-se para tão longe, mas tão longe, que um dia viu o corpo sozinho e à deriva a lamentar-se "que solidão".
E agora já sei para onde fui. Ao fechar esta folha, desapareci. Penso mas não existo. Ainda sou mas já não sou coisa nenhuma, e certamente não tenho grande intesse em voltar a ser mais que isso.
Mais uma palavra... e já cá não estou.
De Frodo
Frodo carregou o seu fardo pesadíssimo e salvou o mundo, mas destruiu-se no processo. Deitado na escarpa negra de Mount Doom, já sem força, pergunta-lhe o fiel Sam, para o encorajar: "Lembras-te do cheiro da relva verde do Shire?" E Frodo respondeu: "Não, Sam, já não me lembro de cheiro nenhum, nem de nada". Frodo não mentia. Há algo que acontece a quem tem de fazer mais do que as forças permitem. A acção pode concretizar-se, mas o ser nunca mais volta. Frodo quase se destruía e se lançava ao fogo para não perder o Anel do Poder mas, apesar de impedido por outro ainda mais louco, nunca voltou de todo. O corpo não se lhe tornou um espectro como o dos outros escravos do Anel, mas quase. A cicatriz do Mal ficou-lhe para toda a vida e nunca deixou de doer. Quase espectro, um estranho no meio dos outros, recolheu-se a Valinor para o mundo dos não mortais. Poderá aí ter encontrado conforto por fim? A história não diz.
Em aventuras semelhantes há cerca de três anos por esta altura a minha vida levou-me também a Mordor e a partir daí nunca mais fui a mesma. Roubaram-me a alma no processo. Às pessoas digo que não tenho tempo mas devia dizer em vez disso "não está ninguém em casa".
Como de resto explicar que se leia Wilde, Baudelaire e Lovecraft, tudo ao mesmo tempo, se não para garantir que o cérebro permaneça fora da realidade?
Penso mas não existo. Sou um zombie de mim própria. Agora já sei mas demorei algum tempo a perceber este simples facto. O tempo que demorou a alma distanciar-se para tão longe, mas tão longe, que um dia viu o corpo sozinho e à deriva a lamentar-se "que solidão".
E agora já sei para onde fui. Ao fechar esta folha, desapareci. Penso mas não existo. Ainda sou mas já não sou coisa nenhuma, e certamente não tenho grande intesse em voltar a ser mais que isso.
Mais uma palavra... e já cá não estou.
sábado, 29 de abril de 2006
"You come at last", she said. "I have waited too long."
"It was a dark road. I have come as I could", he answered.
J.R.R. Tolkien, The Silmarillion

Eu estou bem. Sobrevivi. Estive doente. Agora convalesço.
Para os que acompanharam a situação, estou a trabalhar. Para os que acompanham o meu blog desde o princípio (já deve haver poucos), o ser em metamorfose de 2003 transformou-se finalmente numa crisálida de beleza discutível. Mas cada perda é uma libertação.
Aprendi muitas coisas nestes meses de silêncio. Ouvi medo, desespero, revolta. Vi muitas coisas que não posso contar agora. Sei que acreditariam no que vos digo porque as pessoas que me lêem há muito tempo sabem muito bem de que têmpora é feita esta verdade. Mas o tempo é de silêncio e quis o destino que eu esteja silenciada. Talvez um dia, depois da revolução, eu possa contar as minhas memórias e as atrocidades a que assisto diariamente. Agora não posso. Já fiz o que pude para acordar uns quantos e preocupar uns outros (alguns, gente de bem cujo único defeito é ver demais). Agora que passou o tempo dos oráculos e chegou a escuridão, agora que se calaram as sirenes de alerta, é tempo dos que têm ouvidos ouvirem e dos que têm olhos verem. Todos os dias acorda um, e grita. Mas é tarde para gritar. Agora é tempo de agir. Enquanto isso, durmo. Acordem-me quando acordarem.
E eis que regresso para um país simplex. A medíocridade já não tem medo de se anunciar. E eis que regresso para um mundo cada vez mais complex onde a medíocridade dos que nos governam não tem a menor hipótese de sobrevivência. Hoje termina o ultimato ao Irão. Cabe-nos agora perceber claramente se o mundo islâmico tem afinal razão, se nos tornámos decadentes.
Por falar em decadência... O que foi escrito recentemente num dos comentários do Tapornumporco espelha bem o retrato do nosso país, embora tenha sido escrito, curiosamente, sobre a União Soviética:
A tecnologia era ultrapassadíssmia, os relatórios técnicos não foram respeitados, a fiscalização era ineficaz, a corrupção minava toda a estrutura do Estado, o secretismo impunha uma mentira oficial, a propaganda veiculada era de uma demagogia hoje incompreensível.
Basta substituir o tempo verbal pelo presente do indicativo. Fizeram-me a papinha toda.
Sim, vivemos numa ditadura. Alegremente deixámos que os Belmiros do burgo amordaçassem não só a classe trabalhadora como, pasme-se!, o próprio governo e a oposição por atacado. É por isso que muito dizem "volta Salazar, estás perdoado!". Dizem-no mal, e não sabem porque o dizem, mas não deixam de pôr o dedo na ferida. No regime anterior ainda se sabia quem mandava. Agora a maioria das pessoas já não sabe quem manda, mas ainda pensa que sabe. Aperta-lhe a coleira mas nunca viram o dono.
Neste ambiente nacional e internacional (porque o sintoma é cancerígeno e maligno e, como um polvo venenoso, atrofia o mundo inteiro), germinam os nacionalismos, fundamentalismos e extremismos de toda a ordem. Quando falta a honra a uma nação, quando os homens honestos e de bem têm vergonha de sua própria rectidão por viveram numa sodoma e gomorra de indecência, injustiça e aberrante podridão, a seara está madura para o surgimento dos fungos mais malcheirosos que vão devorar, no fim do dia, toda a colheita de sangue.
Eu não fui feita para isto. Muitas vezes tenho pensado, que raio, mas vou escrever sobre o quê? Gostaria ser, nestes tempos de desespero, como um farol de luz que rompe a escuridão. Mas parece-me que não tenho jeitinho nenhum para a coisa. A minha missão e vocação sempre foi a de mostrar as trevas na luz mas agora que já não há luz resta pouca utilidade para o contraste da minha sombra. Tudo é negro. Tudo é negro. Tudo é negro.
Escreverei então sobre o quê? Sobre o que me apetecer, pois então. Serei mais um entretenimento, mais um programa, mais um canal.
Entretanto, vou dizer mais uma coisa que aprendi sobre o país nestes últimos meses. Pode parecer incrível, posso ser muito estúpida mesmo, mas confesso que só percebi agora.
É proibido dizer "não sei". É preciso saber sempre tudo sobre tudo e quando não se sabe inventa-se. Não importa a atrocidade que se diz desde que se diga. E se parecer bem e soar bem, melhor. É isto que explica o fenómeno Sócrates e aquele telemarketer das Finanças cujo nome não me dei ao trabalho de decorar porque actualmente não interessa muito saber seja o que for. E o nome pode-se sempre descobrir por aí na internet; afinal é um nome efémero porque como todos os vendedores da banha da cobra este também não vai ser lembrado durante muito tempo. Verbo de encher, o ministro das Finanças, tal como os outros todos, vendedores de ilusões que ainda há tansos que compram. Nunca os ouvirão dizer "não sei". Eles sabem sempre tudo. O povinho segue-lhes o exemplo.
Ora isto faz-me imensa confusão porque é a antítese do verdadeiro saber. Não é preciso ter estudado filosofia (mas ajuda), basta um bocadinho de tutano cerebral para perceber o que disse Sócrates (o outro, o verdadeiro): "Só sei que nada sei". Porque quanto mais se sabe mais se tem consciência do pouco que se sabe. Saber tudo significa não saber nada de nada.
Actualmente, o país vive e germina ignorância por todos os poros. Há quem perca a paciência para pregar aos surdos. Algumas lições aprendem-se na pele.
A mim vai sempre dar um gozo do caraças dizer que o rei vai nú. Neste caso, vai estúpido. Tão estúpido como o Freitas do Amaral a pretender solucionar os conflitos do choque civilizacional com um campeonato de futebol. Mas pretenderá mesmo? Eu digo que finge. (Por alguma razão, em inglês, "fingir" diz-se "pretender".)
E fingem os outros. E como ilusionistas, passam os truques mais bacocos perante o público de província que nunca viu melhor. Convém aos ilusionistas que o povo veja cada vez menos. Se vivíamos num salazarismo obscurantista, agora vivemos num obscurantismo mediático. Ou seja: atordoem-nos com luzes de todos os lados até eles ficarem cegos!
E a imagem, o materialismo desmedido, ou como dizia Raul solnado no outro dia nos "Prós e Contras", a nova ideologia, o dinheirismo, lá foi mantendo o povo entretetido até ao dia em que faltou a *massa* para remendar o ídolo podre. (No princípio desde blog eu clamava contra a crescente tendência de privilegiar a quantidade em detrimento da qualidade por isso agora sou insuspeita quando digo que foi de mal a pior. Agora já não há qualidade nem quantidade. Ao contrário da lei da natureza, nada se produz, tudo se destrói.) E o ídolo ruiu mas mantêm-se a fachada de papelão, pintada a tinta dourada, para ninguém perceber. Ora, há sempre aqueles blasfemos que insistem em furar a cartolina e mostrar que do outro lado da imagem só existe o oco.
A sociedade está oca. É por isso que as palavras acertadas se perdem na imensidão silenciosa e não têm resposta excepto o seu próprio eco. É por isso que muitos se cansam de as dizer.
E haveria mais para dizer mas agora vou apreciar a paz que nos resta nos nossos miseráveis lares para me embriagar de inteligência e de álcool. O álcool vende-se. A inteligência, contudo, dá mais trabalho a procurar, e é rara.
Sim, foi uma estrada longa e dura pelo inferno. Para minha surpresa, sou daquelas aberrações a que se chama "sobrevivente".
As if by magic
I have been spared
This stagnant atmosphere has dissolved into
A nebulous vacuum
I am bathed in aromatic perfume
Dream like figures emanate love
And swoon at my glance of seduction
By what magic has fate allowed such bliss?
Insanity you are so sweet.
Raw War (excerto)
Christian Death, "The Scriptures" 1987
Que estranho. Olho para o espelho e já não sei que sou. Um destes dias, pergunto-vos.
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terça-feira, 28 de fevereiro de 2006
"O Silmarillion", resumido e anotado III
Fëanor, filho mais velho de Finwë rei dos Noldor, foi o maior artesão de todos os tempos. Febrilmente absorvido pela ânsia de produzir, foi também fecundo e teve sete filhos, o que era invulgar nas famílias de elfos. Foi ele que desenvolveu as runas da escrita, mas a sua maior realização foi sem sombra de dúvidas as jóias chamadas silmarils. As silmarils eram três gemas de rara beleza e poder que continham dentro delas a luz das árvores de Valinor. A princípio, nos tempos de inocência, Fëanor usava as silmarils em público e todos podiam admirar a perícia do seu trabalho. Mais do que por ser o príncipe herdeiro dos Noldor, Fëanor tornou-se também apreciado e respeitado devido ao seu incalculável talento.
Mas eis que Melkor é libertado, e vê as silmarils. E também as desejou só para si.
[Porque no princípio, antes da criação do mundo, era a Luz que Melkor queria possuir, mas não a encontrou porque a Chama Imperecível pertencia apenas a Ilúvatar. Por isso Melkor amava e fogo e, na sua frustração, refugiava-se nas trevas, exactamente o contrário da Luz.]
Ora, Melkor saiu da sua prisão de três eras ainda mais enraivecido do que antes mas fingiu-se modificado e começou a ensinar muitas coisas aos Noldor. Os elfos de Ingwë não gostavam dele e os Teleri das praias de Alqualondë não lhe pareciam dignos de atenção. Mas já os Noldor não perdiam uma ocasião de aprender mais sobre todos os ofícios em que Melkor era mestre. E Melkor encontrou neles os ouvidos privilegiados para semear o seu mar de mentiras. Porque Melkor odiava os Elfos e culpava-os pelo confronto que o tinha oposto aos outros Valar, e contra eles era especialmente dirigida a sua vingança. E para isso o seu primeiro propósito foi virar os Elfos contra os Valar, e ao mesmo tempo, se possível, os Elfos uns contra os outros. Desse grande mal a terra de Arda jamais se curou e Melkor acabou, no fim, por triunfar.
Não lhe foi muito difícil fazê-lo. Aos filhos de Finwë divulgou rumores de que o filho da primeira esposa, Fëanor, queria afastar Fingolfin e Finarfin, os filhos da segunda, da tomada de decisões do pai, o rei. E a Fëanor fez chegar a mesma desconfiança a respeito de Fingolfin e Finarfin, a ponto de envevenar de tal modo os irmãos uns contra os outros que todos começaram a forjar armas, convencidos de que eram os únicos a fazê-lo. Fëanor tornou-se cioso das suas jóias e meteu-as num cofre, onde ninguém lhes podia pôr em vista em cima e muito menos as mãos.
A todos os Elfos, Melkor fez saber, mas não directamente para que os Valar não desconfiassem dele, que depois dos Elfos viriam ao mundo os Homens, de quem os Valar de facto não tinham falado aos elfos porque não sabiam o dia nem a hora dessa chegada. E começou a criar intriga, fazendo os elfos suspeitar que os Valar lhes tinham escondido a verdade e os mantinham ali em Valinor, prisioneiros, para que os Homens tomassem conta da Terra-Média e suplantassem os Elfos para sempre.
O ambiente em Valinor tornou-se pesado. Fëanor não gostava de Melkor e nunca falava com ele pessoalmente, mas os boatos venenosos tinham-lhe chegado aos ouvidos por outros meios. E certa noite, ao chegar ao palácio do pai, encontrou um dos irmãos a falar baixo com o rei, como quem conspira. Impetuoso como era, pensou que os rumores eram de facto verdade, puxou da espada, apontou-a ao irmão e ameaçou-o de morte.
Por este crime de ter levantado a espada contra o irmão, os Valar chamaram-no a julgamento e foi então que se soube de todas as mentiras que Melkor andava a espalhar em Valinor aos ouvidos dos Elfos. Ao ser descoberto, Melkor fugiu em forma de nuvem, porque nessa altura ainda tinha um ser incorpóreo, e voltou a esconder-se antes que os outros Valar o pudessem deter.
Mas o julgamento também foi pesado para Fëanor. Foi condenado a permanecer doze anos no exílio, fora de Valinor, apesar de o seu próprio irmão o ter perdoado. O rei Finwë, contudo, não abandonou o filho e disse que enquanto este estivesse no exílio também não entraria em Valinor.
Foi por isso que, quando Manwë decidiu organizar um grande festival para reconciliar os Noldor uns com os outros, Fëanor apareceu porque tinha sido convocado, e não levava roupa de festa nem as silmarils, mas o seu pai, orgulhosamente, recusou-se a comparecer.
Eis o princípio da tragédia e o começo da Guerra das Jóias. A partir daqui o destino de Arda ficou para sempre manchado pelas mentiras de Melkor, mas sem o desejar ou sem disso ter conciência, Fëanor, o maior inimigo de Melkor, acabou por ser, ironicamente, e devido à cegueira do seu orgulho, a maior arma para o cumprimento dos desígnios do senhor de Angband.
Outra grande história é a de Melkor e Ungoliant. Melkor finge que foge para a Terra-Média mas em vez disso vai às regiões de Avatar, a sul de Aman, onde habita Ungoliant, outro espírito desencaminhado pela maldade de Melkor que permanecia aí em forma de gigantesca aranha, alimentando-se da luz das Árvores de Valinor e tecendo grandes teias de escuridão. Melkor convence Ungoliant a voltar a Valinor, escondendo ambos nas suas teias tão negras que eram impenetráveis até para os olhos dos Valar, em troca das silmarils e da luz das Árvores. E como Ungoliant tivesse medo de enfrentar os Valar, Melkor tentou-a com a sua palavra de honra: “Sim, com as duas mãos te darei as silmarils”.
E Ungoliant não resistiu. Tecendo grandes teias em volta de ambos, ajudou Melkor a regressar a Valinor sem que os Valar dessem por isso, e chegaram às Árvores, e Ungoliant bebeu-lhes o suco até as mirrar. No momento em que decorria o festival, Valinor ficou às escuras e houve silêncio em toda a terra de Aman. Só se ouvia, ao longe, o cantos dos Teleri, que viviam na costa.
Mas Ungoliant não ficou por aqui. A seiva luminosa das Árvores tinha sido armazenada em grandes tanques. Também esses ela bebeu e tornou-se enorme, tão medonha que o próprio Melkor teve medo.
Mas Melkor também não ficou por aqui. Foi à casa de exílio de Fëanor, assassinou o rei Finwë (o único que não tinha fugido da escuridão e o único valente que se lhe atravessou ao caminho), e roubou as silmarils. Só então fugiu com Ungoliant para a Terra-Média, através do estreito gelado de Helcaraxé, que unia Aman ao outro continente.
Aí, Ungoliant pediu-lhe as jóias. A contra gosto, Melkor abriu uma mão e deu-lhe todas as gemas que estavam no cofre de Fëanor, mas as silmarils guardou na outra, embora o queimassem, porque as silmarils tinham sido abençoadas pelos Valar e não podiam ser tocadas por mãos maléficas. Mas Ungoliant insistiu: “Com as duas mãos. Ainda só me deste com uma mão. Agora dá-me o que tens na outra.”
Foi aqui que Melkor recusou, e Ungoliant, que se tornara tão grande e poderosa que o atemorizava, teceu sobre ele uma grande teia e aprisionou-o, mas Melkor deu um grito que fez tremer toda a terra e chamou a ele os seus balrogs e todas as criaturas que o aguardavam em Angband. Foi assim que os vassalos libertaram o líder e Ungoliant foi forçada a fugir para sul.
De Ungoliant não se sabe mais nada excepto que foi dela que nasceu toda a prole de aranhas gigantes da Terra-Média, e Tolkien sugere que a progenitora de todos esses monstros acabou por chegar a Harad onde, esfomeada, se devorou a si própria.
Melkor voltou para Angband de onde quase nunca mais saiu e fez para si uma coroa onde colocou as três silmarils.
Em plena escuridão, em Valinor, os Valar apercebem-se do mal que tinha sido feito e Yavanna, criadora das árvores, diz que não pode criá-las uma segunda vez, por isso pede a Fëanor que lhes ceda as jóias para tentar “curar” as árvores moribundas. Mas Fëanor não cede, porque para ele as silmarils também eram um trabalho que não podia fazer de novo. E assim que nega o pedido, chegam as notícias da morte de Finwë e do roubo das silmarils. Furioso e desesperado, Fëanor amaldiçoa os Valar por o terem chamado ali enquanto, pensava ele, devia ter estado a proteger o pai. Amaldiçou também Melkor e a partir daí todos os Noldor lhe passaram a chamar Morgoth e o nome Melkor nunca mais foi pronunciado pelos Elfos.
Agora Fëanor era o rei dos Noldor e a sua raiva não conhecia limites. Desrespeitando a proibição, entrou em Tirion e convocou a si todos os Elfos. Disse-lhes palavras tão poderosas que convenceu a maioria de que ali não passavam de escravos dos Valar, aprisionados em Valinor para não terem poder na Terra-Média, e que tinham de perseguir Melkor e partir para a guerra se não eram um povo de cobardes, e que, afinal, também Morgoth era um Valar por isso os outros não deviam ser muito diferentes dele.
Tanta coisa disse, fruto do veneno que Melkor tinha espalhado e da sua própria raiva, que os Noldor decidiram segui-lo imediatamente. E Fëanor e os seus sete filhos fizeram também um juramento, por Manwë e por Ilúvatar, que fariam a guerra a Valar ou Elfo ou Homem que os tentasse impedir de recuperar as silmarils.
Até ali, os filhos de Fingolfin e Finarfin tinham sido como irmãos para com o tio Fëanor, mas eis que o juramento os dividia. Os dois meios irmãos de Fëanor e os seus sobrinhos Turgon, filho de Fingolfin, e Finrod, filho de Finarfin, tentaram demover os Noldor, mas em vão. E mais ainda em vão porque Fingon, também filho de Fingolfin, e Galadriel, filha de Finarfin, apesar de não gostarem particularmente de Fëanor, sentiram crescer em si uma sede do poder que viriam a ter na Terra-Média onde tudo era selvagem e indomado.
E foi assim, convencendo uma parte e obrigando os outros por dever e preocupação a acompanhar os seus entes queridos, que Fëanor persuadiu os Noldor a abandonar Valinor.
Os Valar tinham assistido em silêncio enquanto eram acusados das mais pérfidas intenções de que eram completamente inocentes. Magoados com a ingratidão dos Noldor, compreendiam também que tinha sido tudo obra de Melkor, que de facto era um deles, e lamentavam as perdas dos Elfos. Mas não podiam perdoar tamanha injustiça. Por isso Manwë enviou um mensageiro a avisar os Noldor de que, se saíssem, Valinor lhes seria negado para sempre e nunca mais encontrariam o caminho de volta, mas os elfos, incitados por Fëanor, continuaram a marcha.
E então Fëanor lembrou-se dos Teleri, porque precisava dos seus barcos para atravessar o mar, mas os Teleri não lhos cederam porque não tinham dado ouvidos às mentiras de Morgoth e amavam os Valar, e tinham pelos barcos uma afeição semelhante à dos Noldor pelas silmarils, e porque se apercebiam da loucura que guiava Fëanor.
Foi então que os Noldor puxaram das espadas e deu-se o primeiro fratrícidio de Elfo por Elfo. E Fëanor roubou os barcos aos Teleri.
Nesse momento da jornada, uma figura surgiu no caminho dos elfos, talvez, diz-se, o próprio Mandos, e pronunciou a maldição dos Noldor: que a casa de Fëanor e de todos os que o seguissem seria completamente destruída, que sofreriam e morreriam pela espada na Terra-Média, e que seria a traição a sua ruína.
Nessa altura, Finarfin arrependeu-se e voltou para trás, abandonando os filhos e levando alguma da sua gente com ele.
Mas de todos os que continuaram, nenhum Noldor voltou. Excepto um. Galadriel.*
[*A mesma Galadriel d’”O Senhor dos Anéis”. Em escritos posteriores, como nos “Contos Inacabados”, Tolkien deixa antever que o destino de Galadriel é mais importante do que é descrito na história de Frodo e do Anel e no “Silmarillion”.
Não foi por não ter ido à guerra que Galadriel escapou à maldição dos Noldor. Aredhel, filha de Filgolfin, que também deixou Valinor com Fëanor, tem um fim bastante inglório e trágico apesar de nunca ter pegado em armas.
E o que dizer de Fëanor? Apesar de orgulhoso, às vezes arrogante, mesmo insolente, Fëanor não é tão cego como parece. Talvez não se tenha dado o caso de não se ter apercebido de que Melkor jamais seria derrotado pela força; talvez tenha deixado de se importar desde que morresse a lutar pelo fruto do seu trabalho. A obsessão de Fëanor pelas silmarils não é semelhante à dos portadores do anel do poder. As silmarils eram de facto a sua obra prima. Quando Melkor o visita no exílio, a princípio para mostrar simpatia, dizendo que os Valar não tinham agido bem, e que se calhar até queriam roubar-lhe as silmarils, Fëanor apercebe-se muito bem de que era o próprio Melkor que se traía a si próprio. Diz Tolkien que Fëanor “fechou a porta na cara do ser mais poderoso da terra”. Fëanor talvez tenha sido possuído por uma loucura maior do que a razão que lhe era ditada pelo seu próprio intelecto.
Seja como for, Fëanor foi apenas o primeiro a cair. Outros se lhe seguiram.]
Fëanor faz ainda mais. Como os navios dos Teleri não chegavam para toda a comitiva, embarca consigo os da sua casa e abandona o resto dos Noldor ao frio do gelado Helcaraxé, onde muitos morreram. Mas nem isso deteve os restantes Noldor, exactamente porque lhes tinha sido somada mais uma traição fratricida, e os abandonados clamavam por vingança.
De modo que a maldição de Mandos não era tanto uma maldição como um aviso do que estava para acontecer se o curso dos eventos não se alterasse. Tudo o resto era inevitável.
Ora, na Terra-Média, Morgoth já tinha começado a atacar o reino de Doriath, mesmo antes da chegada dos Noldor. E grandes batalhas foram travadas entre os Noldor e o poder de Angband. Mas só depois da morte de Fëanor (que não demorou muito) é que os Elfos da Terra-Média acabaram por se unir contra o inimigo comum e conseguiram impor um cerco a Morgoth que durou séculos.
Durante todo esse tempo, Valinor esteve escondida e nenhum Elfo conseguiu regressar, embora tal tivesse sido tentado. E foi durante esse longo cerco e tempo de relativa paz que vieram ao mundo os Homens.
Os Homens eram seres semelhantes aos Elfos mas tão estranhos que um dos nomes que lhes foi dado terá sido Os Inescrutáveis.
Mas como o inimigo era comum e a lógica era militar, Homens e Elfos passavam o tempo a combater, não a tecer conjecturas existenciais.
E foi assim até à grande batalha que marcou o início do fim do reino dos Elfos na Terra-Média. Durante o cerco, novos reinados tinham aparecido. Fingolfin, irmão de Fëanor, foi o primeiro dos grandes príncipes a morrer em combate, e chegou mesmo a lutar em duelo com Morgoth, com a mesma espécie de loucura e desespero que tinha acometido o irmão séculos atrás. Claro que Morgoth o despedaçou.
A seguir foi Fingon. E de todos os nobres que ainda restavam, apenas Turgon escapou porque era senhor do reino secreto de Gondolin, cuja localização nem o próprio Morgoth sabia, e foi por isso poupado na grande batalha graças ao sacrifício de dois Homens, Huor e Húrin, que o deixaram viver para guardar o segredo durante mais algum tempo e assim garantir alguma esperança para os Elfos e Homens da Terra-Média.
Aqui dá-se um ponto de viragem. O tempo dos Elfos passava. Por fim, depois de muitas lutas pelas silmarils em que os filhos de Fëanor, obedientes ao juramento, defrontaram os próprios familiares pela posse das jóias, os Elfos acabaram por se aniquilar uns aos outros mesmo sem a ajuda de Morgoth. Mas Morgoth não perdia tempo em “ajudar” sempre que isso lhe era possível, e julgava no seu trono em Angband que era uma questão de tempo até ser senhor da Terra-Média agora que os Valar tinham abandonado os Elfos. Mas Morgoth não tinha contado com os Homens, que morriam depressa e lhe pareciam desprezíveis.
Contudo, nem todos os Valar tinham abandonado o destino dos Elfos e dos Homens na Terra-Média. Ulmo, senhor dos mares e das águas, continuava a velar pelos filhos de Ilúvatar. E escolheu um homem, Tuor, filho de Huor
[e primo de Túrin, aquele cuja história eu gosto muito]
para levar uma mensagem a Turgon em Gondolin: que Turgon não se apegasse às obras do seu trabalho e abandonasse a cidade secreta. Mas Turgon não quis. Talvez pelo mesmo amor à sua obra prima de que fora culpado o seu tio Fëanor, Turgon lembrou-se da maldição e voltou a temer a traição. Durante séculos, ninguém entrava nem saía de Gondolin sem autorização, se de todo, mas agora Turgon endureceu ainda mais a sua guarda e mandou selar a porta para que ninguém entrasse nem saísse mais. E pensou que enquanto conseguisse manter a fortaleza secreta e inacessível todos os sofrimentos do mundo lá fora não o atingiriam e à sua gente. Foi esse o erro mais grave.
Porque a traição acabou por vir de dentro, como tinha sido predito, e Gondolin foi denunciada e devastada num ataque sem precedentes. Diz Tolkien que Turgon pereceu na queda da sua própria torre, que nunca abandonou.
[O que nos lembra o episódio da Torre de Babel.]
Mas a filha de Turgon tinha casado com Tuor, uma união entre Elfos e Homens como não era costume, e ambos conseguiram salvar alguns dos habitantes de Gondolin através de uma passagem secreta.
[Curiosamente, dizem os “Contos Inacabados”, o elfo Glorfindel que luta contra um balrog (e morre no duelo) nessa passagem secreta é precisamente o mesmo Glorfindel que ajuda Frodo a chegar a Rivendell quando este é perseguido pelos Ringswraiths. Como? Muito simplesmente... os elfos reincarnam. Os homens não, porque não é esse o seu destino após a morte. Esse destino é, com já se disse, apenas conhecido a Ilúvatar.]
Dessa união nasceu Eärendil, o marinheiro, que conseguiu finalmente regressar a Valinor e pedir misericórdia e ajuda para os Elfos e Homens da Terra-Média.
E se o conseguiu foi com a ajuda de uma silmaril que o guiou no caminho. Essa silmaril foi resgatada da coroa de Morgoth por mais um casal das duas raças, Beren dos Homens e Lúthien (filha de Melian e do rei Thingol) dos Elfos. Estes deram à luz Elwing, que por sua vez casou com Eärendil, e dessa união nasceram Elros e Elrond.
Mas Eärendil e Elwing, que chegaram juntos a Valinor, nunca mais regressaram. O seu destino foi o de acender uma estrela no céu, Eärendil, a estrela mais brilhante de todas, porque era uma das silamrils de Fëanor.
[A história de Eärendil e Elwing é surrealista que baste, mas nada que equivalha à história de Beren e Lúthien (conhecida até por Sam Gamgee), que se dão ao luxo de morrer e voltar à vida física, já para não falar na parte em que assumem a forma de lobos... De lobos?... E do cão que fala. E como não gosto especialmente da imaginação delirante de Tolkien nessa passagem em particular, fica assim aqui levemente mencionada.]
Foi então que os Valar decidiram intervir, quando Morgoth já se julgava dono do mundo. E foi tal a hoste que veio de Aman, e foi tal a violência do confronto, que toda a parte oeste da Terra-Média foi arrasada e inundada. O espaço onde se situava Angband, Doriath ou a cidade secreta de Gondolin deixou simplesmente de existir. Muito se desfez também na memória dos homens, recém chegados em comparação com os Elfos.
À retribuição dos Valar contra Morgoth chamou-se a Guerra da Ira (War of Wrath). Melkor foi finalmente capturado e ficará aprisionado, diz-se, até ao fim do mundo. Mas Sauron fingiu-se arrependido e ficou-se pela Terra-Média...
Quanto aos filhos de Fëanor, os dois que sobreviveram, mesmo depois da Guerra da Ira e da prisão de Melkor, continuavam eles próprios aprisionados ao juramento porque agora as silmarils, obra do seu pai, voltaram às mãos dos Valar, criadores das Árvores de onde Fëanor retirou a luz. E os Valar recusaram, depois de tudo o que os filhos de Fëanor tinham feito (e não foi pouco), devolver-lhes o que não consideravam deles.
Os dois irmãos discutiram em privado o que seria pior. Perecer a cumprir o juramento ou entregar-se à justiça dos Valar sem o cumprirem. Decidiram-se pela primeira opção. E atacaram o acampamento de Valinor e recuperaram as duas silmarils que restavam. Só que, depois de tudo o que tinham feito, as jóias os queimavam porque tinham sido abençoadas e não podiam ser tocadas por quem praticava o mal. Selaram eles próprios o seu destino. Sem conseguir suportar a queimadura das silmarils, um dos irmãos afogou-se no mar e o outro atirou-se do alto de uma montanha para as profundezas da terra. O juramento seguiu-os até à morte. E assim terminou a Guerra das Jóias.
Com a Guerra da Ira termina também a Primeira Era da Terra-Média e começa a Segunda, mas esta pertence a Numenór.
Esplendor e queda de Numenór
Com os Valar, contra Morgoth, lutaram Homens e Elfos. Aos Elfos foi concedido o perdão e foi-lhes permitido voltar para Valinor se o desejassem.
Aos homens nobres que tinham lutado pelos Elfos foi concedida uma ilha entre Aman e a Terra-Média. Um dos seus nomes era Numenór, outro Westernesse. Outro ainda, Atallantë...
No destino de Numenór e dos Homens, uma vez que o tempo dos Elfos tinha passado, entram os dois irmãos meio-elfos filhos de Eärendil e Elwing: Elros e Elrond. Visto que os irmãos pertenciam a duas raças, foi-lhes permitido pelos Poderes escolherem o seu destino. Elros escolheu o destino dos Homens mortais e tornou-se o primeiro rei de Numenór. Elrond [sim, esse Elrond] escolheu o destino dos Elfos e ficou por muito tempo na Terra-Média para contar a história quando já ninguém se lembrava dela. Com Elrond ficou também Círdan, de que a história não fala muito em parte alguma mas que era um elfo que nunca tinha deixado a Terra-Média desde o príncipio, e só o fez no último momento do tempo dos elfos, depois da Guerra do Anel.
Não há muito para dizer do esplendor de Numenór. A príncipio os homens viviam longos e longos anos e dedicavam-se a todos os ofícios e ciências, em especial à navegação. Uma só lei lhes estava imposta: não podiam viajar para oeste até ao ponto em que perdessem de vista a costa de Numenór. Para leste, na direcção da Terra-Média, podiam viajar, e de facto viajaram e trouxeram muitos conhecimentos e ajuda aos homens que ainda lá viviam nas trevas da ignorância.
Eram também amigos dos elfos de Valinor, que lhes ofereceram as sete palantires e um rebento da árvore que crescia em Tol Eressëa à imagem do perdido Telperion, a que chamaram Nimloth. [Mais uma vez, é a mesma árvore que é plantada em Gondor.]
A proibição imposta pelos Valar tinha por fim que os homens nunca vissem a terra de Valinor, onde nada morria, e não desejassem a imortalidade como a dos Elfos.
Tinham razão, porque foi esta a raiz de todo o mal que se seguiu.
[Até aqui, a história mais interessante de Numenór talvez seja a de Aldarion e de Erendis, relatada nos “Contos Inacabados”. Trata-se do romance do príncipe navegador Aldarion e da sua noiva prometida Erendis, e de como ele não tinha certeza se gostava mais dela ou do mar, e de como ela não tinha a certeza se o havia de aceitar assim dividido e partilhado com tamanho rival. É um romance triste e o casamento de ambos não dura, e enquanto dura não é feliz.]
Talvez porque na Terra-Média os homens estavam demasiado preocupados em sobreviver aos ataques de Morgoth, foi só em Numenór que se preocuparam com a sua mortalidade. E quanto mais se preocupavam com ela, ironicamente, menos duravam as suas vidas. Foi dito que em tempos os Elfos e os Homens escolhiam quando morrer, mas agora os Homens agarravam-se à vida e recusavam a morte, e viam-se reduzidos a uma velhice de debilidade e senilidade que não tinham experimentado antes.
A seguir ao esplendor de Numenór, vem a decadência. Reis cada vez mais tiranos, cada vez mais preocupados com a sua riqueza e a sua imagem, cada vez mais exploradores do que colonizadores da Terra-Média.
[A história é demasiado triste e lembra demais uma outra Terra ou uma Roma qualquer.]
Havia em Numenór uma grande colina chamada Meneltarma onde os habitantes da ilha tinham por costume entregar a Ilúvatar os primeiros frutos do ano, mas com o tempo até essa celebração fora abandonada.
Muitos reis anteriores estavam tão zangados com Valinor que pura e simplemente tinham proibido os súbditos de conviver com os Elfos, e por isso estes deixaram visitar a ilha. Mas havia ainda um pequeno grupo de amigos dos elfos, cada vez mais perseguidos, que se auto-denominavam os Fiéis. A mãe de Ar-Palantir, um dos últimos reis, pertencia aos fiéis e instruiu o filho na história de Valinor e de tudo o que se tinha passado. Mas já ninguém se lembrava. Todos se preocupavam apenas com a sua riqueza e poder.
Ar-Palantir ainda olhava para os mares na esperança de que os Elfos voltassem nos seus navios vindos de Tol Eressëa, mas eles não voltaram. Ar-Palantir (assim chamado porque tinha o dom da clarividência) profetizou então que a sobrevivência de Numenór estava ligada à da árvore dos reis: se a árvore mirrasse, definharia o reino de Numenór.
Depois de ar-Palantir veio o pior de todos os reis, ar-Pharazon, que retornou às antigas ideas e perseguiu cada vez mais os amigos dos Elfos.
A isto tudo não era estranho o que se passava na Terra-Média, onde Sauron crescia de dia para dia. E Sauron, seguindo o exemplo do seu mestre Morgoth, queria para si não só o domínio da Terra-Média como, se possível, a destruição de Numenór também.
Até que chegou aos ouvidos de ar-Pharazon que Sauron se tinha proclamado Senhor da Terra. Imediatamente ar-Pharazon partiu de Numenór com uma grandiosa armada, montou acampamento nas costas da Terra-Média e convocou Sauron a comparecer perante ele.
E Sauron veio. Nessa altura ainda não se julgava capaz de enfrentar a força de Numenór embora o número de orcs e criaturas vis não parasse de aumentar nas suas hostes.
Perante ar-Pharazon, Sauron fingiu-se conquistado e posto na ordem, mas isso não chegava para o soberbo rei. Achava que podia manter Sauron mais controlado se o levasse para Numenór.
[Já dizia Maquiavel, manter os amigos perto e os inimigos ainda mais perto mas, como se pode ver pelo exemplo seguinte, é um conselho que não se deve levar sempre à letra porque o feitiço vira-se contra o feiticeiro.]
Sauron regozijou-se e fingiu que ia contrariado. Porque naquela altura, como Melkor antes dele, Sauron ainda podia fazer para si próprio uma aparência agradável aos olhos humanos. E Sauron não era como Melkor. Em vez de arrogante, fazia-se servil. Em vez de exigir galanteios, cobria deles o rei. Em vez de se enaltecer, humilhava-se. Em vez de dar ordens, manipulava.
E assim que percebeu, já em terras de Numenór, que os Homens tinham um grave problema em aceitar a mortalidade, foi ele que começou a encher os ouvidos do rei com a injustiça que era a morte, e que a imortalidade não era para todos, e que homens nobres como o rei mereciam, não!, deviam exigir a imortalidade!, e foi por ali fora, até chegar ao ponto de dizer que Ilúvatar não existia, que Ilúvatar era uma invenção dos Valar, que o verdadeiro Criador era Melkor, Senhor da Liberdade, e envenenava o espírito do rei contra Valinor. A seguir ao espírito do rei, todos os espíritos do reino que, percebendo a preferência de ar-Pharazon pelos conselhos de Sauron, não se atreviam a contradizê-lo para não caírem em desgraça aos olhos do monarca.
E Sauron chegou ao ponto de mandar tanto em Numenór que fez erigir um templo, uma torre, semelhante ao posterior Barad-dur mas com uma cúpula em vez do olho, onde ardia um fogo noite e dia, e depressa a cúpula se tornou negra, e ali se faziam sacrifícios humanos a Melkor. E foi assim que Sauron pôs toda aquela boa gente a adorar o inimigo dos filhos de Ilúvatar.
Os escolhidos para esses sacrifícios eram escravos trazidos da Terra-Média, ou os Fiéis, amigos dos elfos, que não eram acusados por essa razão mas sim por alegadamente fomentarem a traição ao rei. Ar-Pharazon tinha-se tornado no tirano mais terrível e impiedoso de toda a história dos Homens e Elfos.
Ora, havia ainda um conselheiro do rei que pertencia aos Fiéis e que era também descendente de Elros, de nome Amandil, que tinha sobrevivido tanto tempo por ter mantido as suas ideias em profundo segredo. E Amandil percebeu que o tempo era negro e não havia esperança para os homens de bem. Chamou a si o seu filho Elendil [sim, esse mesmo Elendil] e informou-o de que tencionava partir no seu navio para oeste, quebrando a proibição dos Valar e tentando chegar a Valinor para implorar a intervenção dos Poderes antes do desastre final, porque o rei preparava-se para declarar guerra a Valinor e já tinha preparada a armada que não tardava em largar.
A Elendil, o pai ordenou que abastecesse navios e recolhesse neles todos os Fiéis que ainda existiam e que ficasse ao largo da ilha e esperasse um sinal. A bordo, Elendil levaria as palantires e um rebento da árvore dos Reis. O seu filho Isildur [sim, esse mesmo Isildur] tinha-lhe colhido o último fruto antes de Sauron queimar a própria árvore no altar do templo.
Da viagem de Amandil não se sabe nada. Apenas que uma segunda embaixada como a de Eärendil não funcionaria outra vez e que para a maldade dos homens de Numenór não havia misericórdia.
[Tudo indica, por exemplos anteriores, que Amandil não foi deixado perecer e que deve ter sido acolhido em Valinor, mas não se sabe ao certo. Nunca ninguém da raça dos Homens voltou de Valinor, embora alguns lá tivessem chegado, pois essa era a lei de que Valinor estava reservada apenas aos Elfos.]
E ar-Pharazon partiu em toda a pompa para Valinor, e quebrou a proibição e chegou mesmo a Valinor. Aí, desembarcando, encontrou a terra vazia, e os seus homens entraram em Tirion e encontrarama cidade deserta. E ar-Pharazon desafiou os Poderes a virem lutar pela terra se a queriam manter.
Diz Tolkien que pela primeira vez os Valar abandonaram o domínio de Arda e entregaram a Justiça ao próprio Ilúvatar. E o que aconteceu de seguida foi uma espécie de Apocalipse e Dilúvio.
Ilúvatar fendeu um grande abismo no meio do mar, entre Aman e Numenór, e todas as águas e navios foram sugados para dentro dele.
[O que lembra o destino do exército do Faraó no Mar Vermelho.]
Ar-Pharazon e os seus homens ficaram sepultados debaixo das pedras da colina de Tirion que lhes desabou em cima.
As fundações de Numenór quebraram-se e a ilha afundou. Depois veio uma onda gigante que varreu a ilha para o fundo do mar. Os barcos de Elendil e Isildur e Anárion, seus filhos, que estavam do lado leste de Numenór, escaparam ao abismo do mar, mas foram levados em ondas do tamanho de montanhas até às costas da Terra-Média, onde chegaram como náufragos.
Aí foram acolhidos por Gil-Galad, filho de Fingon, que vivia na companhia de Círdan e de Elrond e era agora o último rei Elfo da Terra-Média.
Mas Sauron teve mais do que esperava. Quando as fundações da ilha se partiram ele estava dentro do templo, a rir-se de ar-Pharazon. Sauron apenas queria que o rei levasse a guerra a Valinor e encontrasse a morte. Nunca esperou que a própria Numenór fosse destruída. Mas Sauron era um espírito. Perdeu, nessa grande derrota, a possibilidade de se apresentar com uma forma agradável aos olhos dos homens e quando voltou à Terra-Média era uma figura temível de se ver, mas sobreviveu a tudo.
Não se sabe, porque Tolkien não diz no “Silmarillion”, se Sauron levou o Anel do Poder com ele para Numenór. Porque o Anel do Poder, o Um, tinha sido forjado na Terra-Média pelo próprio Sauron antes da chegada de ar-Pharazon. Seria muito estranho que o tivesse deixado ficar para trás porque quando partiu a guerra pela posse dos anéis já tinha começado. Os Elfos que restavam na Terra-Média tinham sido enganados pelas aparentes boas intenções de Sauron logo após a Guerra da Ira e tinham sido levados a forjar os três anéis de que muito se fala depois, mas depressa descobriram que em segredo Sauron tinha também fabricado um anel a que os outros obedeciam.
[Nos “Contos Inacabados” é dito que Gil-Galad chega a pedir ajuda a Aldarion, o tal que teve um casamento infeliz, no tempo em que os reis de Numenór ainda mantinham a sua nobreza de carácter.]
E Sauron também já tinha corrompido os Ringwraiths, que eram nada mais nada menos do que homens de Numenór do época em que a ilha perdida estava à beira do declínio.
Como é mais ou menos do conhecimento geral, por essa altura do regresso de Sauron e de Elendil à Terra-Média, formou-se a Última Aliança entre Elfos e Homens e Sauron foi derrotado. Mas Elendil e Gil-Galad pereceram. E também o Irmão de Isildur, Anárion, que durante um tempo teve a missão de proteger Gondor da ameaça antes da Aliança ser formada, como mais tarde fez Faramir enquanto a Companhia do Anel cumpria a sua missão.
[Injustamente, não se fala de Anárion o suficiente, apenas porque foi Isildur a plantar a famosa White Tree em Gondor. Mas fê-lo, antes de partir para aquela que seria a sua emboscada mortal, em memória do irmão.]
Do sucedido a partir daqui pouco há a dizer. Sauron foi afastado por mais algum tempo mas não completamente porque Isildur adquiriu o Anel do Poder e não teve força de vontade para o destruir. Ao contrário do que é sugerido por um certo filme, não é apenas Elrond que o aconselha a atirar o Anel ao fogo de Mount Doom, mas também Círdan, e sempre Círdan, que está presente desde o princípio das coisas desde que os Elfos as recordam.
E como se sabe tudo foi esquecido. Como é que todo este passado foi varrido da memória dos homens da Terra-Média, como é que o reino de Gondor foi apenas um fogo-fátuo do esplendor que tinha sido Numenór, como é que no Shire se chama por Elbereth mas não se sabe quem ela é... ao contrário do que parece, é muito fácil de compreender. Os homens esquecem. Ponto final. E esquecem ainda mais depressa o que não querem lembrar porque traz más memórias. Ao contrário dos Elfos, os Homens são vítimas dos contínuos erros do passado.
Os últimos parágrafos do “Silmarillion” são dedicados àqueles que, no príncipio da Quarta Era, já depois de Aragorn, o rei Elessar, restituir o poder de Gondor, regressam a Valinor. Acaba em Valinor como começa em Valinor.
Frodo e Bilbo são hobbits, e os hobbits são da raça dos Homens dos filhos de Ilúvatar, e como foi dito todos os Homens que chegam a Valinor já não regressam porque é essa a lei. E acompanhou-os Galadriel, que já tinha visto Valinor no tempo das Árvores e no tempo das Trevas e na Guerra das Jóias. (Mas não Celeborn, o seu marido, nem Legolas o elfo. Esses ficam durante mais algum tempo.) E com eles vai também Círdan, que nunca tinha visto Valinor, mas cuja missão na Terra-Média chega ao fim, e Elrond, praticamente uma criança nascida há poucos anos. Mas com eles regressa também Gandalf.
Gandalf... Estive aqui a pensar se havia de o dizer ou não. Advirto que para mim conhecer a verdadeira natureza de Gandalf retirou um pouco da magia do mistério que a personagem inspira.
Gandalf é um Maiar. Como Melian, como Sauron. O que lhe torna a vida muito mais fácil. E que explica que tenha “morrido” em Moria para reaparecer em Fangorn. É difícil respeitar um Maiar, um espírito incorpóreo que desconhece a verdadeira morte, como se respeita um venerável velho sábio. Gandalf é Olórin, e já passeava nos jardins de Lórien, em Valinor, muito antes de o primeiro Elfo acordar e ver as estrelas na penumbra dos céus de Arda.
Talvez Ilúvatar tenha razão e a mortalidade dos homens seja uma dádiva difícil de compreender. E ao mesmo tempo um dom, mas só invejado por aqueles que o não experimentam. Como, aliás, é da natureza de todos os dons.
Mas eis que Melkor é libertado, e vê as silmarils. E também as desejou só para si.
[Porque no princípio, antes da criação do mundo, era a Luz que Melkor queria possuir, mas não a encontrou porque a Chama Imperecível pertencia apenas a Ilúvatar. Por isso Melkor amava e fogo e, na sua frustração, refugiava-se nas trevas, exactamente o contrário da Luz.]
Ora, Melkor saiu da sua prisão de três eras ainda mais enraivecido do que antes mas fingiu-se modificado e começou a ensinar muitas coisas aos Noldor. Os elfos de Ingwë não gostavam dele e os Teleri das praias de Alqualondë não lhe pareciam dignos de atenção. Mas já os Noldor não perdiam uma ocasião de aprender mais sobre todos os ofícios em que Melkor era mestre. E Melkor encontrou neles os ouvidos privilegiados para semear o seu mar de mentiras. Porque Melkor odiava os Elfos e culpava-os pelo confronto que o tinha oposto aos outros Valar, e contra eles era especialmente dirigida a sua vingança. E para isso o seu primeiro propósito foi virar os Elfos contra os Valar, e ao mesmo tempo, se possível, os Elfos uns contra os outros. Desse grande mal a terra de Arda jamais se curou e Melkor acabou, no fim, por triunfar.
Não lhe foi muito difícil fazê-lo. Aos filhos de Finwë divulgou rumores de que o filho da primeira esposa, Fëanor, queria afastar Fingolfin e Finarfin, os filhos da segunda, da tomada de decisões do pai, o rei. E a Fëanor fez chegar a mesma desconfiança a respeito de Fingolfin e Finarfin, a ponto de envevenar de tal modo os irmãos uns contra os outros que todos começaram a forjar armas, convencidos de que eram os únicos a fazê-lo. Fëanor tornou-se cioso das suas jóias e meteu-as num cofre, onde ninguém lhes podia pôr em vista em cima e muito menos as mãos.
A todos os Elfos, Melkor fez saber, mas não directamente para que os Valar não desconfiassem dele, que depois dos Elfos viriam ao mundo os Homens, de quem os Valar de facto não tinham falado aos elfos porque não sabiam o dia nem a hora dessa chegada. E começou a criar intriga, fazendo os elfos suspeitar que os Valar lhes tinham escondido a verdade e os mantinham ali em Valinor, prisioneiros, para que os Homens tomassem conta da Terra-Média e suplantassem os Elfos para sempre.
O ambiente em Valinor tornou-se pesado. Fëanor não gostava de Melkor e nunca falava com ele pessoalmente, mas os boatos venenosos tinham-lhe chegado aos ouvidos por outros meios. E certa noite, ao chegar ao palácio do pai, encontrou um dos irmãos a falar baixo com o rei, como quem conspira. Impetuoso como era, pensou que os rumores eram de facto verdade, puxou da espada, apontou-a ao irmão e ameaçou-o de morte.
Por este crime de ter levantado a espada contra o irmão, os Valar chamaram-no a julgamento e foi então que se soube de todas as mentiras que Melkor andava a espalhar em Valinor aos ouvidos dos Elfos. Ao ser descoberto, Melkor fugiu em forma de nuvem, porque nessa altura ainda tinha um ser incorpóreo, e voltou a esconder-se antes que os outros Valar o pudessem deter.
Mas o julgamento também foi pesado para Fëanor. Foi condenado a permanecer doze anos no exílio, fora de Valinor, apesar de o seu próprio irmão o ter perdoado. O rei Finwë, contudo, não abandonou o filho e disse que enquanto este estivesse no exílio também não entraria em Valinor.
Foi por isso que, quando Manwë decidiu organizar um grande festival para reconciliar os Noldor uns com os outros, Fëanor apareceu porque tinha sido convocado, e não levava roupa de festa nem as silmarils, mas o seu pai, orgulhosamente, recusou-se a comparecer.
Eis o princípio da tragédia e o começo da Guerra das Jóias. A partir daqui o destino de Arda ficou para sempre manchado pelas mentiras de Melkor, mas sem o desejar ou sem disso ter conciência, Fëanor, o maior inimigo de Melkor, acabou por ser, ironicamente, e devido à cegueira do seu orgulho, a maior arma para o cumprimento dos desígnios do senhor de Angband.
Outra grande história é a de Melkor e Ungoliant. Melkor finge que foge para a Terra-Média mas em vez disso vai às regiões de Avatar, a sul de Aman, onde habita Ungoliant, outro espírito desencaminhado pela maldade de Melkor que permanecia aí em forma de gigantesca aranha, alimentando-se da luz das Árvores de Valinor e tecendo grandes teias de escuridão. Melkor convence Ungoliant a voltar a Valinor, escondendo ambos nas suas teias tão negras que eram impenetráveis até para os olhos dos Valar, em troca das silmarils e da luz das Árvores. E como Ungoliant tivesse medo de enfrentar os Valar, Melkor tentou-a com a sua palavra de honra: “Sim, com as duas mãos te darei as silmarils”.
E Ungoliant não resistiu. Tecendo grandes teias em volta de ambos, ajudou Melkor a regressar a Valinor sem que os Valar dessem por isso, e chegaram às Árvores, e Ungoliant bebeu-lhes o suco até as mirrar. No momento em que decorria o festival, Valinor ficou às escuras e houve silêncio em toda a terra de Aman. Só se ouvia, ao longe, o cantos dos Teleri, que viviam na costa.
Mas Ungoliant não ficou por aqui. A seiva luminosa das Árvores tinha sido armazenada em grandes tanques. Também esses ela bebeu e tornou-se enorme, tão medonha que o próprio Melkor teve medo.
Mas Melkor também não ficou por aqui. Foi à casa de exílio de Fëanor, assassinou o rei Finwë (o único que não tinha fugido da escuridão e o único valente que se lhe atravessou ao caminho), e roubou as silmarils. Só então fugiu com Ungoliant para a Terra-Média, através do estreito gelado de Helcaraxé, que unia Aman ao outro continente.
Aí, Ungoliant pediu-lhe as jóias. A contra gosto, Melkor abriu uma mão e deu-lhe todas as gemas que estavam no cofre de Fëanor, mas as silmarils guardou na outra, embora o queimassem, porque as silmarils tinham sido abençoadas pelos Valar e não podiam ser tocadas por mãos maléficas. Mas Ungoliant insistiu: “Com as duas mãos. Ainda só me deste com uma mão. Agora dá-me o que tens na outra.”
Foi aqui que Melkor recusou, e Ungoliant, que se tornara tão grande e poderosa que o atemorizava, teceu sobre ele uma grande teia e aprisionou-o, mas Melkor deu um grito que fez tremer toda a terra e chamou a ele os seus balrogs e todas as criaturas que o aguardavam em Angband. Foi assim que os vassalos libertaram o líder e Ungoliant foi forçada a fugir para sul.
De Ungoliant não se sabe mais nada excepto que foi dela que nasceu toda a prole de aranhas gigantes da Terra-Média, e Tolkien sugere que a progenitora de todos esses monstros acabou por chegar a Harad onde, esfomeada, se devorou a si própria.
Melkor voltou para Angband de onde quase nunca mais saiu e fez para si uma coroa onde colocou as três silmarils.
Em plena escuridão, em Valinor, os Valar apercebem-se do mal que tinha sido feito e Yavanna, criadora das árvores, diz que não pode criá-las uma segunda vez, por isso pede a Fëanor que lhes ceda as jóias para tentar “curar” as árvores moribundas. Mas Fëanor não cede, porque para ele as silmarils também eram um trabalho que não podia fazer de novo. E assim que nega o pedido, chegam as notícias da morte de Finwë e do roubo das silmarils. Furioso e desesperado, Fëanor amaldiçoa os Valar por o terem chamado ali enquanto, pensava ele, devia ter estado a proteger o pai. Amaldiçou também Melkor e a partir daí todos os Noldor lhe passaram a chamar Morgoth e o nome Melkor nunca mais foi pronunciado pelos Elfos.
Agora Fëanor era o rei dos Noldor e a sua raiva não conhecia limites. Desrespeitando a proibição, entrou em Tirion e convocou a si todos os Elfos. Disse-lhes palavras tão poderosas que convenceu a maioria de que ali não passavam de escravos dos Valar, aprisionados em Valinor para não terem poder na Terra-Média, e que tinham de perseguir Melkor e partir para a guerra se não eram um povo de cobardes, e que, afinal, também Morgoth era um Valar por isso os outros não deviam ser muito diferentes dele.
Tanta coisa disse, fruto do veneno que Melkor tinha espalhado e da sua própria raiva, que os Noldor decidiram segui-lo imediatamente. E Fëanor e os seus sete filhos fizeram também um juramento, por Manwë e por Ilúvatar, que fariam a guerra a Valar ou Elfo ou Homem que os tentasse impedir de recuperar as silmarils.
Até ali, os filhos de Fingolfin e Finarfin tinham sido como irmãos para com o tio Fëanor, mas eis que o juramento os dividia. Os dois meios irmãos de Fëanor e os seus sobrinhos Turgon, filho de Fingolfin, e Finrod, filho de Finarfin, tentaram demover os Noldor, mas em vão. E mais ainda em vão porque Fingon, também filho de Fingolfin, e Galadriel, filha de Finarfin, apesar de não gostarem particularmente de Fëanor, sentiram crescer em si uma sede do poder que viriam a ter na Terra-Média onde tudo era selvagem e indomado.
E foi assim, convencendo uma parte e obrigando os outros por dever e preocupação a acompanhar os seus entes queridos, que Fëanor persuadiu os Noldor a abandonar Valinor.
Os Valar tinham assistido em silêncio enquanto eram acusados das mais pérfidas intenções de que eram completamente inocentes. Magoados com a ingratidão dos Noldor, compreendiam também que tinha sido tudo obra de Melkor, que de facto era um deles, e lamentavam as perdas dos Elfos. Mas não podiam perdoar tamanha injustiça. Por isso Manwë enviou um mensageiro a avisar os Noldor de que, se saíssem, Valinor lhes seria negado para sempre e nunca mais encontrariam o caminho de volta, mas os elfos, incitados por Fëanor, continuaram a marcha.
E então Fëanor lembrou-se dos Teleri, porque precisava dos seus barcos para atravessar o mar, mas os Teleri não lhos cederam porque não tinham dado ouvidos às mentiras de Morgoth e amavam os Valar, e tinham pelos barcos uma afeição semelhante à dos Noldor pelas silmarils, e porque se apercebiam da loucura que guiava Fëanor.
Foi então que os Noldor puxaram das espadas e deu-se o primeiro fratrícidio de Elfo por Elfo. E Fëanor roubou os barcos aos Teleri.
Nesse momento da jornada, uma figura surgiu no caminho dos elfos, talvez, diz-se, o próprio Mandos, e pronunciou a maldição dos Noldor: que a casa de Fëanor e de todos os que o seguissem seria completamente destruída, que sofreriam e morreriam pela espada na Terra-Média, e que seria a traição a sua ruína.
Nessa altura, Finarfin arrependeu-se e voltou para trás, abandonando os filhos e levando alguma da sua gente com ele.
Mas de todos os que continuaram, nenhum Noldor voltou. Excepto um. Galadriel.*
[*A mesma Galadriel d’”O Senhor dos Anéis”. Em escritos posteriores, como nos “Contos Inacabados”, Tolkien deixa antever que o destino de Galadriel é mais importante do que é descrito na história de Frodo e do Anel e no “Silmarillion”.
Não foi por não ter ido à guerra que Galadriel escapou à maldição dos Noldor. Aredhel, filha de Filgolfin, que também deixou Valinor com Fëanor, tem um fim bastante inglório e trágico apesar de nunca ter pegado em armas.
E o que dizer de Fëanor? Apesar de orgulhoso, às vezes arrogante, mesmo insolente, Fëanor não é tão cego como parece. Talvez não se tenha dado o caso de não se ter apercebido de que Melkor jamais seria derrotado pela força; talvez tenha deixado de se importar desde que morresse a lutar pelo fruto do seu trabalho. A obsessão de Fëanor pelas silmarils não é semelhante à dos portadores do anel do poder. As silmarils eram de facto a sua obra prima. Quando Melkor o visita no exílio, a princípio para mostrar simpatia, dizendo que os Valar não tinham agido bem, e que se calhar até queriam roubar-lhe as silmarils, Fëanor apercebe-se muito bem de que era o próprio Melkor que se traía a si próprio. Diz Tolkien que Fëanor “fechou a porta na cara do ser mais poderoso da terra”. Fëanor talvez tenha sido possuído por uma loucura maior do que a razão que lhe era ditada pelo seu próprio intelecto.
Seja como for, Fëanor foi apenas o primeiro a cair. Outros se lhe seguiram.]
Fëanor faz ainda mais. Como os navios dos Teleri não chegavam para toda a comitiva, embarca consigo os da sua casa e abandona o resto dos Noldor ao frio do gelado Helcaraxé, onde muitos morreram. Mas nem isso deteve os restantes Noldor, exactamente porque lhes tinha sido somada mais uma traição fratricida, e os abandonados clamavam por vingança.
De modo que a maldição de Mandos não era tanto uma maldição como um aviso do que estava para acontecer se o curso dos eventos não se alterasse. Tudo o resto era inevitável.
Ora, na Terra-Média, Morgoth já tinha começado a atacar o reino de Doriath, mesmo antes da chegada dos Noldor. E grandes batalhas foram travadas entre os Noldor e o poder de Angband. Mas só depois da morte de Fëanor (que não demorou muito) é que os Elfos da Terra-Média acabaram por se unir contra o inimigo comum e conseguiram impor um cerco a Morgoth que durou séculos.
Durante todo esse tempo, Valinor esteve escondida e nenhum Elfo conseguiu regressar, embora tal tivesse sido tentado. E foi durante esse longo cerco e tempo de relativa paz que vieram ao mundo os Homens.
Os Homens eram seres semelhantes aos Elfos mas tão estranhos que um dos nomes que lhes foi dado terá sido Os Inescrutáveis.
Mas como o inimigo era comum e a lógica era militar, Homens e Elfos passavam o tempo a combater, não a tecer conjecturas existenciais.
E foi assim até à grande batalha que marcou o início do fim do reino dos Elfos na Terra-Média. Durante o cerco, novos reinados tinham aparecido. Fingolfin, irmão de Fëanor, foi o primeiro dos grandes príncipes a morrer em combate, e chegou mesmo a lutar em duelo com Morgoth, com a mesma espécie de loucura e desespero que tinha acometido o irmão séculos atrás. Claro que Morgoth o despedaçou.
A seguir foi Fingon. E de todos os nobres que ainda restavam, apenas Turgon escapou porque era senhor do reino secreto de Gondolin, cuja localização nem o próprio Morgoth sabia, e foi por isso poupado na grande batalha graças ao sacrifício de dois Homens, Huor e Húrin, que o deixaram viver para guardar o segredo durante mais algum tempo e assim garantir alguma esperança para os Elfos e Homens da Terra-Média.
Aqui dá-se um ponto de viragem. O tempo dos Elfos passava. Por fim, depois de muitas lutas pelas silmarils em que os filhos de Fëanor, obedientes ao juramento, defrontaram os próprios familiares pela posse das jóias, os Elfos acabaram por se aniquilar uns aos outros mesmo sem a ajuda de Morgoth. Mas Morgoth não perdia tempo em “ajudar” sempre que isso lhe era possível, e julgava no seu trono em Angband que era uma questão de tempo até ser senhor da Terra-Média agora que os Valar tinham abandonado os Elfos. Mas Morgoth não tinha contado com os Homens, que morriam depressa e lhe pareciam desprezíveis.
Contudo, nem todos os Valar tinham abandonado o destino dos Elfos e dos Homens na Terra-Média. Ulmo, senhor dos mares e das águas, continuava a velar pelos filhos de Ilúvatar. E escolheu um homem, Tuor, filho de Huor
[e primo de Túrin, aquele cuja história eu gosto muito]
para levar uma mensagem a Turgon em Gondolin: que Turgon não se apegasse às obras do seu trabalho e abandonasse a cidade secreta. Mas Turgon não quis. Talvez pelo mesmo amor à sua obra prima de que fora culpado o seu tio Fëanor, Turgon lembrou-se da maldição e voltou a temer a traição. Durante séculos, ninguém entrava nem saía de Gondolin sem autorização, se de todo, mas agora Turgon endureceu ainda mais a sua guarda e mandou selar a porta para que ninguém entrasse nem saísse mais. E pensou que enquanto conseguisse manter a fortaleza secreta e inacessível todos os sofrimentos do mundo lá fora não o atingiriam e à sua gente. Foi esse o erro mais grave.
Porque a traição acabou por vir de dentro, como tinha sido predito, e Gondolin foi denunciada e devastada num ataque sem precedentes. Diz Tolkien que Turgon pereceu na queda da sua própria torre, que nunca abandonou.
[O que nos lembra o episódio da Torre de Babel.]
Mas a filha de Turgon tinha casado com Tuor, uma união entre Elfos e Homens como não era costume, e ambos conseguiram salvar alguns dos habitantes de Gondolin através de uma passagem secreta.
[Curiosamente, dizem os “Contos Inacabados”, o elfo Glorfindel que luta contra um balrog (e morre no duelo) nessa passagem secreta é precisamente o mesmo Glorfindel que ajuda Frodo a chegar a Rivendell quando este é perseguido pelos Ringswraiths. Como? Muito simplesmente... os elfos reincarnam. Os homens não, porque não é esse o seu destino após a morte. Esse destino é, com já se disse, apenas conhecido a Ilúvatar.]
Dessa união nasceu Eärendil, o marinheiro, que conseguiu finalmente regressar a Valinor e pedir misericórdia e ajuda para os Elfos e Homens da Terra-Média.
E se o conseguiu foi com a ajuda de uma silmaril que o guiou no caminho. Essa silmaril foi resgatada da coroa de Morgoth por mais um casal das duas raças, Beren dos Homens e Lúthien (filha de Melian e do rei Thingol) dos Elfos. Estes deram à luz Elwing, que por sua vez casou com Eärendil, e dessa união nasceram Elros e Elrond.
Mas Eärendil e Elwing, que chegaram juntos a Valinor, nunca mais regressaram. O seu destino foi o de acender uma estrela no céu, Eärendil, a estrela mais brilhante de todas, porque era uma das silamrils de Fëanor.
[A história de Eärendil e Elwing é surrealista que baste, mas nada que equivalha à história de Beren e Lúthien (conhecida até por Sam Gamgee), que se dão ao luxo de morrer e voltar à vida física, já para não falar na parte em que assumem a forma de lobos... De lobos?... E do cão que fala. E como não gosto especialmente da imaginação delirante de Tolkien nessa passagem em particular, fica assim aqui levemente mencionada.]
Foi então que os Valar decidiram intervir, quando Morgoth já se julgava dono do mundo. E foi tal a hoste que veio de Aman, e foi tal a violência do confronto, que toda a parte oeste da Terra-Média foi arrasada e inundada. O espaço onde se situava Angband, Doriath ou a cidade secreta de Gondolin deixou simplesmente de existir. Muito se desfez também na memória dos homens, recém chegados em comparação com os Elfos.
À retribuição dos Valar contra Morgoth chamou-se a Guerra da Ira (War of Wrath). Melkor foi finalmente capturado e ficará aprisionado, diz-se, até ao fim do mundo. Mas Sauron fingiu-se arrependido e ficou-se pela Terra-Média...
Quanto aos filhos de Fëanor, os dois que sobreviveram, mesmo depois da Guerra da Ira e da prisão de Melkor, continuavam eles próprios aprisionados ao juramento porque agora as silmarils, obra do seu pai, voltaram às mãos dos Valar, criadores das Árvores de onde Fëanor retirou a luz. E os Valar recusaram, depois de tudo o que os filhos de Fëanor tinham feito (e não foi pouco), devolver-lhes o que não consideravam deles.
Os dois irmãos discutiram em privado o que seria pior. Perecer a cumprir o juramento ou entregar-se à justiça dos Valar sem o cumprirem. Decidiram-se pela primeira opção. E atacaram o acampamento de Valinor e recuperaram as duas silmarils que restavam. Só que, depois de tudo o que tinham feito, as jóias os queimavam porque tinham sido abençoadas e não podiam ser tocadas por quem praticava o mal. Selaram eles próprios o seu destino. Sem conseguir suportar a queimadura das silmarils, um dos irmãos afogou-se no mar e o outro atirou-se do alto de uma montanha para as profundezas da terra. O juramento seguiu-os até à morte. E assim terminou a Guerra das Jóias.
Com a Guerra da Ira termina também a Primeira Era da Terra-Média e começa a Segunda, mas esta pertence a Numenór.
Esplendor e queda de Numenór
Com os Valar, contra Morgoth, lutaram Homens e Elfos. Aos Elfos foi concedido o perdão e foi-lhes permitido voltar para Valinor se o desejassem.
Aos homens nobres que tinham lutado pelos Elfos foi concedida uma ilha entre Aman e a Terra-Média. Um dos seus nomes era Numenór, outro Westernesse. Outro ainda, Atallantë...
No destino de Numenór e dos Homens, uma vez que o tempo dos Elfos tinha passado, entram os dois irmãos meio-elfos filhos de Eärendil e Elwing: Elros e Elrond. Visto que os irmãos pertenciam a duas raças, foi-lhes permitido pelos Poderes escolherem o seu destino. Elros escolheu o destino dos Homens mortais e tornou-se o primeiro rei de Numenór. Elrond [sim, esse Elrond] escolheu o destino dos Elfos e ficou por muito tempo na Terra-Média para contar a história quando já ninguém se lembrava dela. Com Elrond ficou também Círdan, de que a história não fala muito em parte alguma mas que era um elfo que nunca tinha deixado a Terra-Média desde o príncipio, e só o fez no último momento do tempo dos elfos, depois da Guerra do Anel.
Não há muito para dizer do esplendor de Numenór. A príncipio os homens viviam longos e longos anos e dedicavam-se a todos os ofícios e ciências, em especial à navegação. Uma só lei lhes estava imposta: não podiam viajar para oeste até ao ponto em que perdessem de vista a costa de Numenór. Para leste, na direcção da Terra-Média, podiam viajar, e de facto viajaram e trouxeram muitos conhecimentos e ajuda aos homens que ainda lá viviam nas trevas da ignorância.
Eram também amigos dos elfos de Valinor, que lhes ofereceram as sete palantires e um rebento da árvore que crescia em Tol Eressëa à imagem do perdido Telperion, a que chamaram Nimloth. [Mais uma vez, é a mesma árvore que é plantada em Gondor.]
A proibição imposta pelos Valar tinha por fim que os homens nunca vissem a terra de Valinor, onde nada morria, e não desejassem a imortalidade como a dos Elfos.
Tinham razão, porque foi esta a raiz de todo o mal que se seguiu.
[Até aqui, a história mais interessante de Numenór talvez seja a de Aldarion e de Erendis, relatada nos “Contos Inacabados”. Trata-se do romance do príncipe navegador Aldarion e da sua noiva prometida Erendis, e de como ele não tinha certeza se gostava mais dela ou do mar, e de como ela não tinha a certeza se o havia de aceitar assim dividido e partilhado com tamanho rival. É um romance triste e o casamento de ambos não dura, e enquanto dura não é feliz.]
Talvez porque na Terra-Média os homens estavam demasiado preocupados em sobreviver aos ataques de Morgoth, foi só em Numenór que se preocuparam com a sua mortalidade. E quanto mais se preocupavam com ela, ironicamente, menos duravam as suas vidas. Foi dito que em tempos os Elfos e os Homens escolhiam quando morrer, mas agora os Homens agarravam-se à vida e recusavam a morte, e viam-se reduzidos a uma velhice de debilidade e senilidade que não tinham experimentado antes.
A seguir ao esplendor de Numenór, vem a decadência. Reis cada vez mais tiranos, cada vez mais preocupados com a sua riqueza e a sua imagem, cada vez mais exploradores do que colonizadores da Terra-Média.
[A história é demasiado triste e lembra demais uma outra Terra ou uma Roma qualquer.]
Havia em Numenór uma grande colina chamada Meneltarma onde os habitantes da ilha tinham por costume entregar a Ilúvatar os primeiros frutos do ano, mas com o tempo até essa celebração fora abandonada.
Muitos reis anteriores estavam tão zangados com Valinor que pura e simplemente tinham proibido os súbditos de conviver com os Elfos, e por isso estes deixaram visitar a ilha. Mas havia ainda um pequeno grupo de amigos dos elfos, cada vez mais perseguidos, que se auto-denominavam os Fiéis. A mãe de Ar-Palantir, um dos últimos reis, pertencia aos fiéis e instruiu o filho na história de Valinor e de tudo o que se tinha passado. Mas já ninguém se lembrava. Todos se preocupavam apenas com a sua riqueza e poder.
Ar-Palantir ainda olhava para os mares na esperança de que os Elfos voltassem nos seus navios vindos de Tol Eressëa, mas eles não voltaram. Ar-Palantir (assim chamado porque tinha o dom da clarividência) profetizou então que a sobrevivência de Numenór estava ligada à da árvore dos reis: se a árvore mirrasse, definharia o reino de Numenór.
Depois de ar-Palantir veio o pior de todos os reis, ar-Pharazon, que retornou às antigas ideas e perseguiu cada vez mais os amigos dos Elfos.
A isto tudo não era estranho o que se passava na Terra-Média, onde Sauron crescia de dia para dia. E Sauron, seguindo o exemplo do seu mestre Morgoth, queria para si não só o domínio da Terra-Média como, se possível, a destruição de Numenór também.
Até que chegou aos ouvidos de ar-Pharazon que Sauron se tinha proclamado Senhor da Terra. Imediatamente ar-Pharazon partiu de Numenór com uma grandiosa armada, montou acampamento nas costas da Terra-Média e convocou Sauron a comparecer perante ele.
E Sauron veio. Nessa altura ainda não se julgava capaz de enfrentar a força de Numenór embora o número de orcs e criaturas vis não parasse de aumentar nas suas hostes.
Perante ar-Pharazon, Sauron fingiu-se conquistado e posto na ordem, mas isso não chegava para o soberbo rei. Achava que podia manter Sauron mais controlado se o levasse para Numenór.
[Já dizia Maquiavel, manter os amigos perto e os inimigos ainda mais perto mas, como se pode ver pelo exemplo seguinte, é um conselho que não se deve levar sempre à letra porque o feitiço vira-se contra o feiticeiro.]
Sauron regozijou-se e fingiu que ia contrariado. Porque naquela altura, como Melkor antes dele, Sauron ainda podia fazer para si próprio uma aparência agradável aos olhos humanos. E Sauron não era como Melkor. Em vez de arrogante, fazia-se servil. Em vez de exigir galanteios, cobria deles o rei. Em vez de se enaltecer, humilhava-se. Em vez de dar ordens, manipulava.
E assim que percebeu, já em terras de Numenór, que os Homens tinham um grave problema em aceitar a mortalidade, foi ele que começou a encher os ouvidos do rei com a injustiça que era a morte, e que a imortalidade não era para todos, e que homens nobres como o rei mereciam, não!, deviam exigir a imortalidade!, e foi por ali fora, até chegar ao ponto de dizer que Ilúvatar não existia, que Ilúvatar era uma invenção dos Valar, que o verdadeiro Criador era Melkor, Senhor da Liberdade, e envenenava o espírito do rei contra Valinor. A seguir ao espírito do rei, todos os espíritos do reino que, percebendo a preferência de ar-Pharazon pelos conselhos de Sauron, não se atreviam a contradizê-lo para não caírem em desgraça aos olhos do monarca.
E Sauron chegou ao ponto de mandar tanto em Numenór que fez erigir um templo, uma torre, semelhante ao posterior Barad-dur mas com uma cúpula em vez do olho, onde ardia um fogo noite e dia, e depressa a cúpula se tornou negra, e ali se faziam sacrifícios humanos a Melkor. E foi assim que Sauron pôs toda aquela boa gente a adorar o inimigo dos filhos de Ilúvatar.
Os escolhidos para esses sacrifícios eram escravos trazidos da Terra-Média, ou os Fiéis, amigos dos elfos, que não eram acusados por essa razão mas sim por alegadamente fomentarem a traição ao rei. Ar-Pharazon tinha-se tornado no tirano mais terrível e impiedoso de toda a história dos Homens e Elfos.
Ora, havia ainda um conselheiro do rei que pertencia aos Fiéis e que era também descendente de Elros, de nome Amandil, que tinha sobrevivido tanto tempo por ter mantido as suas ideias em profundo segredo. E Amandil percebeu que o tempo era negro e não havia esperança para os homens de bem. Chamou a si o seu filho Elendil [sim, esse mesmo Elendil] e informou-o de que tencionava partir no seu navio para oeste, quebrando a proibição dos Valar e tentando chegar a Valinor para implorar a intervenção dos Poderes antes do desastre final, porque o rei preparava-se para declarar guerra a Valinor e já tinha preparada a armada que não tardava em largar.
A Elendil, o pai ordenou que abastecesse navios e recolhesse neles todos os Fiéis que ainda existiam e que ficasse ao largo da ilha e esperasse um sinal. A bordo, Elendil levaria as palantires e um rebento da árvore dos Reis. O seu filho Isildur [sim, esse mesmo Isildur] tinha-lhe colhido o último fruto antes de Sauron queimar a própria árvore no altar do templo.
Da viagem de Amandil não se sabe nada. Apenas que uma segunda embaixada como a de Eärendil não funcionaria outra vez e que para a maldade dos homens de Numenór não havia misericórdia.
[Tudo indica, por exemplos anteriores, que Amandil não foi deixado perecer e que deve ter sido acolhido em Valinor, mas não se sabe ao certo. Nunca ninguém da raça dos Homens voltou de Valinor, embora alguns lá tivessem chegado, pois essa era a lei de que Valinor estava reservada apenas aos Elfos.]
E ar-Pharazon partiu em toda a pompa para Valinor, e quebrou a proibição e chegou mesmo a Valinor. Aí, desembarcando, encontrou a terra vazia, e os seus homens entraram em Tirion e encontrarama cidade deserta. E ar-Pharazon desafiou os Poderes a virem lutar pela terra se a queriam manter.
Diz Tolkien que pela primeira vez os Valar abandonaram o domínio de Arda e entregaram a Justiça ao próprio Ilúvatar. E o que aconteceu de seguida foi uma espécie de Apocalipse e Dilúvio.
Ilúvatar fendeu um grande abismo no meio do mar, entre Aman e Numenór, e todas as águas e navios foram sugados para dentro dele.
[O que lembra o destino do exército do Faraó no Mar Vermelho.]
Ar-Pharazon e os seus homens ficaram sepultados debaixo das pedras da colina de Tirion que lhes desabou em cima.
As fundações de Numenór quebraram-se e a ilha afundou. Depois veio uma onda gigante que varreu a ilha para o fundo do mar. Os barcos de Elendil e Isildur e Anárion, seus filhos, que estavam do lado leste de Numenór, escaparam ao abismo do mar, mas foram levados em ondas do tamanho de montanhas até às costas da Terra-Média, onde chegaram como náufragos.
Aí foram acolhidos por Gil-Galad, filho de Fingon, que vivia na companhia de Círdan e de Elrond e era agora o último rei Elfo da Terra-Média.
Mas Sauron teve mais do que esperava. Quando as fundações da ilha se partiram ele estava dentro do templo, a rir-se de ar-Pharazon. Sauron apenas queria que o rei levasse a guerra a Valinor e encontrasse a morte. Nunca esperou que a própria Numenór fosse destruída. Mas Sauron era um espírito. Perdeu, nessa grande derrota, a possibilidade de se apresentar com uma forma agradável aos olhos dos homens e quando voltou à Terra-Média era uma figura temível de se ver, mas sobreviveu a tudo.
Não se sabe, porque Tolkien não diz no “Silmarillion”, se Sauron levou o Anel do Poder com ele para Numenór. Porque o Anel do Poder, o Um, tinha sido forjado na Terra-Média pelo próprio Sauron antes da chegada de ar-Pharazon. Seria muito estranho que o tivesse deixado ficar para trás porque quando partiu a guerra pela posse dos anéis já tinha começado. Os Elfos que restavam na Terra-Média tinham sido enganados pelas aparentes boas intenções de Sauron logo após a Guerra da Ira e tinham sido levados a forjar os três anéis de que muito se fala depois, mas depressa descobriram que em segredo Sauron tinha também fabricado um anel a que os outros obedeciam.
[Nos “Contos Inacabados” é dito que Gil-Galad chega a pedir ajuda a Aldarion, o tal que teve um casamento infeliz, no tempo em que os reis de Numenór ainda mantinham a sua nobreza de carácter.]
E Sauron também já tinha corrompido os Ringwraiths, que eram nada mais nada menos do que homens de Numenór do época em que a ilha perdida estava à beira do declínio.
Como é mais ou menos do conhecimento geral, por essa altura do regresso de Sauron e de Elendil à Terra-Média, formou-se a Última Aliança entre Elfos e Homens e Sauron foi derrotado. Mas Elendil e Gil-Galad pereceram. E também o Irmão de Isildur, Anárion, que durante um tempo teve a missão de proteger Gondor da ameaça antes da Aliança ser formada, como mais tarde fez Faramir enquanto a Companhia do Anel cumpria a sua missão.
[Injustamente, não se fala de Anárion o suficiente, apenas porque foi Isildur a plantar a famosa White Tree em Gondor. Mas fê-lo, antes de partir para aquela que seria a sua emboscada mortal, em memória do irmão.]
Do sucedido a partir daqui pouco há a dizer. Sauron foi afastado por mais algum tempo mas não completamente porque Isildur adquiriu o Anel do Poder e não teve força de vontade para o destruir. Ao contrário do que é sugerido por um certo filme, não é apenas Elrond que o aconselha a atirar o Anel ao fogo de Mount Doom, mas também Círdan, e sempre Círdan, que está presente desde o princípio das coisas desde que os Elfos as recordam.
E como se sabe tudo foi esquecido. Como é que todo este passado foi varrido da memória dos homens da Terra-Média, como é que o reino de Gondor foi apenas um fogo-fátuo do esplendor que tinha sido Numenór, como é que no Shire se chama por Elbereth mas não se sabe quem ela é... ao contrário do que parece, é muito fácil de compreender. Os homens esquecem. Ponto final. E esquecem ainda mais depressa o que não querem lembrar porque traz más memórias. Ao contrário dos Elfos, os Homens são vítimas dos contínuos erros do passado.
Os últimos parágrafos do “Silmarillion” são dedicados àqueles que, no príncipio da Quarta Era, já depois de Aragorn, o rei Elessar, restituir o poder de Gondor, regressam a Valinor. Acaba em Valinor como começa em Valinor.
Frodo e Bilbo são hobbits, e os hobbits são da raça dos Homens dos filhos de Ilúvatar, e como foi dito todos os Homens que chegam a Valinor já não regressam porque é essa a lei. E acompanhou-os Galadriel, que já tinha visto Valinor no tempo das Árvores e no tempo das Trevas e na Guerra das Jóias. (Mas não Celeborn, o seu marido, nem Legolas o elfo. Esses ficam durante mais algum tempo.) E com eles vai também Círdan, que nunca tinha visto Valinor, mas cuja missão na Terra-Média chega ao fim, e Elrond, praticamente uma criança nascida há poucos anos. Mas com eles regressa também Gandalf.
Gandalf... Estive aqui a pensar se havia de o dizer ou não. Advirto que para mim conhecer a verdadeira natureza de Gandalf retirou um pouco da magia do mistério que a personagem inspira.
Gandalf é um Maiar. Como Melian, como Sauron. O que lhe torna a vida muito mais fácil. E que explica que tenha “morrido” em Moria para reaparecer em Fangorn. É difícil respeitar um Maiar, um espírito incorpóreo que desconhece a verdadeira morte, como se respeita um venerável velho sábio. Gandalf é Olórin, e já passeava nos jardins de Lórien, em Valinor, muito antes de o primeiro Elfo acordar e ver as estrelas na penumbra dos céus de Arda.
Talvez Ilúvatar tenha razão e a mortalidade dos homens seja uma dádiva difícil de compreender. E ao mesmo tempo um dom, mas só invejado por aqueles que o não experimentam. Como, aliás, é da natureza de todos os dons.
domingo, 26 de fevereiro de 2006
"O Silmarillion", resumido e anotado II
As estrelas foram criadas pela Valar companheira de Manwë, Varda, a quem os Elfos mais veneram e também chamam Elbereth.
[Quando Frodo diz o seu nome na escuridão de Cirith Ungol, não sabia a que entidade estava a invocar. Por alturas da Guerra do Anel toda esta mitologia tinha já sido perdida na Terra-Média e no Shire em particular.]
Yavanna é a Valar senhora da natureza, dos animais, das plantas e da terra fértil. Foi também a criadora das árvores que iluminavam Aman. Preocupada com o abate de árvores inevitável pelos Elfos e Homens que haviam de habitar a terra, foram para ela criados os guardadores de árvores. E é assim que os Entes aparecem na Terra-Média.
Na hora devida, os Elfos acordam no leste da Terra-Média. Foi Oromë, o Caçador, o Valar que os encontrou primeiro. Mas por esta altura os Elfos já temiam os Valar porque Melkor tinha-se estabelecido a norte da Terra-Média, no seu refúgio subterrâneo em Utumno, e tinha já começado a maltratar os Elfos porque serem a criação de Ilúvatar. Os Elfos temiam o Dark Lord que existia a norte porque este levava os que se perdiam e nunca mais ninguém os via. Nas suas masmorras, Melkor transformou Elfos em Orcs, porque já não era capaz de fazer nada que não fosse uma abominável imitação da obra dos outros Valar. E criou também animais pavorosos: dragões, lobos e monstros. Mas, de tudo o que fez, a acção mais odiosa para o Criador foi mesmo e para sempre a de ter criado os Orcs a partir dos nobres Elfos. E Melkor não estava sozinho nos seus trabalhos. Atraíu para si muitos outros espíritos divinos, de natureza semelhante à dos Valar mas de hierarquia inferior, os Maiar. Alguns destes assumiram a forma de Balrogs, demónios de fogo e escuridão. Sauron era também um Maiar e serviu a Melkor desde o início.
[Diz Tolkien de Sauron que "era menos perverso do que o seu mestre porque serviu outro e não a si próprio durante muito tempo". Tenho de discordar veementemente. Tolkien - e muitos como Tolkien - confunde humildade com servilismo. Sauron não servia Melkor por dever ou lealdade mas apenas pela mesma razão servilista e oportunista com que muitos carreiristas, quais sanguessugas, se empoleiram nas costas do hospedeiro até ao momento de incharem a ponto de servirem apenas os seus interesses. Tolkien era um ingénuo quando escreveu esta frase. Se há alguma nobreza e honestidade em Melkor, a Potestade rebelde, apesar de toda a sua arrogância, maldade e egoísmo, delas não tem nada o seu cão de fila Sauron. (Como se demonstrará mais à frente, no episódio de Numenór.)
Foi uma opinião.]
Até agora, à espera de que os filhos de Ilúvatar acordassem, os Valar tinham tido medo de procurar Melkor e confrontá-lo em batalha, porque dessa guerra de Titãs [mais uma referência mitológica em Tolkien] resultaria a ruína da própria forma de Arda e nestas convulsões gigantescas os filhos de Ilúvatar poderiam perder-se para sempre.
Mas agora que sabiam que Melkor não estava quieto e continuava a perverter a criação, não só aprisionando os Elfos como envenando toda a terra e água e ar com os seus fumos venenosos, os Valar reuniram e decidiram trazer os Elfos para Valinor, a sua morada, no continente de Aman, a oeste da Terra-Média.
Antes, fizeram guerra a Melkor e aprisionaram-no na casa de Mandos (Halls of Mandos, morada impenetrável dos mortos) durante o período de três eras, altura em que seria de novo libertado e poderia de novo pedir perdão.
Mas muitos subterrâneos de Utumno ficaram por explorar, e Melkor já tinha construído outra fortaleza, também parcialmente subterrânea, em Angband, e aí os Valar não procuraram, e aí ainda ficaram muitos dos vassalos de Melkor, à espera do regresso do líder.
Entretanto, Oromë, que como todos os Valar e Maiar podia aparecer aos filhos de Ilúvatar em forma magnífica mas semelhante à deles, propôs aos elfos que se juntassem aos Valar em Valinor. Mas os elfos tinham medo dos Valar devido às más acções de Melkor. Muitos fugiram. Outros ouviram-no mas mesmo assim temiam segui-lo. Foi-lhes então proposto que enviassem três embaixadores a Valinor, para que pudessem ver e contar ao seu povo o que tinham visto. Ingwë, Finwë e Elwë acederam, visitaram Valinor e regressaram cheios de vontade de partir para sempre da Terra-Média. As gentes de Ingwë e Finwë foram as menos relutantes em partir, por isso chegaram primeiro ao mar. Mas o povo de Elwë atrasou-se pelo caminho. Destes, um grupo chegou ao Anduin e preferiu abandonar a marcha, seguindo antes pelas margens do grande rio onde se foram estabelecendo e nunca chegaram a ver Valinor.
O próprio Elwë perdeu-se por acaso e conheceu, em Beleriand*, a bela Melian.
[*Todas os lugares da Terra-Média citados durante esta época já não existem no tempo da Guerra do Anel porque entretanto a face da terra foi completamente alterada e tudo indica que grandes porções de solo tenham sido perdidas no mar aquando da Guerra da Ira (War of Wrath) mais à frente.]
Melian era uma Maiar de Valinor, onde tinha vivido nos jardins de Lórien*, cuidando deles e ensinando as suas canções a todas as aves.
[*Lórien em Valinor, não Lothlórien da Terra-Média.]
Elwë apaxonou-se por ela e ficou preso ao seu encantamento durante tanto tempo que anos se passaram antes que ele pudesse dizer uma única palavra. Por isso, Elwë acabou por desposar Melian e tornou-se no rei Thingol do reino de Doriath da Terra-Média, sem nunca mais voltar a ver Valinor.
O povo de Elwë procurou pelo seu rei mas como não o achavam acabaram por colocar no seu lugar o irmão de Elwë, Olwë, e foi este quem os guiou no resto do caminho.
Por terem perdido muito tempo, estes Elfos ficaram conhecidos como os Teleri.
Quando chegaram ao mar, já as outras duas tribos tinham partido para Valinor, numa imensa ilha flutuante. Por isso os Teleri viveram muito tempo perto do mar, e dedicaram-se à construção de barcos e à vida marítima, e nunca mais quiseram viver longe da costa. A ilha que por sua vez os transportou para Valinor ficou, a seu pedido, ao largo de Aman. Chamou-se Tol Eressëa e nela construiram a cidade de Avallonë. Só mais tarde é que os Teleri se juntaram aos outros Elfos em Valinor.
Entretanto, os primeiros Elfos a chegar tinham construído uma espantosa e resplandescente cidade, Tirion, na colina de Túna, e era aí que viviam, perto de Valimar, a cidade dos Valar.
Ingwë e a sua gente acabou por se afastar completamente de Tirion e foram viver para a cidade dos Valar. Ingwë tornou-se no Rei Supremo de todos os Elfos e habitou para sempre junto de Manwë. A sua parte na história termina aqui.
Às gentes de Finwë chamou-se Noldor e, estes sim, são os protagonistas da Guerra das Jóias.
Os Teleri, cuja importância é também decisiva, continuaram a viver na costa, em Alqualondë, onde se dedicavam à construção de barcos.
Durante uns tempos, todos viveram em harmonia. Os Elfos construíram uma civilização avançada, aprendendo muito com os próprios Valar que amavam a companhia dos elfos, e tornaram-se peritos em muitas artes e ofícios.
Finwë, rei dos Noldor, teve três filhos. O mais velho, Fëanor, que era tão genial como impetuoso, da primeira esposa, e os seguintes, Fingolfin e Finarfin, da segunda.
Foi mau augúrio, mas a mãe de Fëanor foi o primeiro Elfo a morrer de cansaço do mundo logo após dar à luz o primeiro filho*. Foi por isso que Finwë se voltou a casar.
[*Os Elfos, e até certa altura também os homens de Numenór, podiam simplesmente decidir o momento em que abandonavam o corpo físico, pelo que por vezes a morte era desejada. Foi o caso da mãe de Fëanor.]
Três eras das Duas Árvores se passaram até ao momento em que Melkor foi de novo libertado. Melkor pediu perdão, alegou em consideração pelo seu caso que passara muito tempo a pensar no que tinha feito mal e que se ia regenerar dali para a frente. Os Valar não acreditaram muito mas deram-lhe o benefício da dúvida. E Melkor foi solto, primeiro só em Valimar, mas como se mostrava tão útil e gentil, depressa por toda a terra de Aman.
Continua
[Quando Frodo diz o seu nome na escuridão de Cirith Ungol, não sabia a que entidade estava a invocar. Por alturas da Guerra do Anel toda esta mitologia tinha já sido perdida na Terra-Média e no Shire em particular.]
Yavanna é a Valar senhora da natureza, dos animais, das plantas e da terra fértil. Foi também a criadora das árvores que iluminavam Aman. Preocupada com o abate de árvores inevitável pelos Elfos e Homens que haviam de habitar a terra, foram para ela criados os guardadores de árvores. E é assim que os Entes aparecem na Terra-Média.
Na hora devida, os Elfos acordam no leste da Terra-Média. Foi Oromë, o Caçador, o Valar que os encontrou primeiro. Mas por esta altura os Elfos já temiam os Valar porque Melkor tinha-se estabelecido a norte da Terra-Média, no seu refúgio subterrâneo em Utumno, e tinha já começado a maltratar os Elfos porque serem a criação de Ilúvatar. Os Elfos temiam o Dark Lord que existia a norte porque este levava os que se perdiam e nunca mais ninguém os via. Nas suas masmorras, Melkor transformou Elfos em Orcs, porque já não era capaz de fazer nada que não fosse uma abominável imitação da obra dos outros Valar. E criou também animais pavorosos: dragões, lobos e monstros. Mas, de tudo o que fez, a acção mais odiosa para o Criador foi mesmo e para sempre a de ter criado os Orcs a partir dos nobres Elfos. E Melkor não estava sozinho nos seus trabalhos. Atraíu para si muitos outros espíritos divinos, de natureza semelhante à dos Valar mas de hierarquia inferior, os Maiar. Alguns destes assumiram a forma de Balrogs, demónios de fogo e escuridão. Sauron era também um Maiar e serviu a Melkor desde o início.
[Diz Tolkien de Sauron que "era menos perverso do que o seu mestre porque serviu outro e não a si próprio durante muito tempo". Tenho de discordar veementemente. Tolkien - e muitos como Tolkien - confunde humildade com servilismo. Sauron não servia Melkor por dever ou lealdade mas apenas pela mesma razão servilista e oportunista com que muitos carreiristas, quais sanguessugas, se empoleiram nas costas do hospedeiro até ao momento de incharem a ponto de servirem apenas os seus interesses. Tolkien era um ingénuo quando escreveu esta frase. Se há alguma nobreza e honestidade em Melkor, a Potestade rebelde, apesar de toda a sua arrogância, maldade e egoísmo, delas não tem nada o seu cão de fila Sauron. (Como se demonstrará mais à frente, no episódio de Numenór.)
Foi uma opinião.]
Até agora, à espera de que os filhos de Ilúvatar acordassem, os Valar tinham tido medo de procurar Melkor e confrontá-lo em batalha, porque dessa guerra de Titãs [mais uma referência mitológica em Tolkien] resultaria a ruína da própria forma de Arda e nestas convulsões gigantescas os filhos de Ilúvatar poderiam perder-se para sempre.
Mas agora que sabiam que Melkor não estava quieto e continuava a perverter a criação, não só aprisionando os Elfos como envenando toda a terra e água e ar com os seus fumos venenosos, os Valar reuniram e decidiram trazer os Elfos para Valinor, a sua morada, no continente de Aman, a oeste da Terra-Média.
Antes, fizeram guerra a Melkor e aprisionaram-no na casa de Mandos (Halls of Mandos, morada impenetrável dos mortos) durante o período de três eras, altura em que seria de novo libertado e poderia de novo pedir perdão.
Mas muitos subterrâneos de Utumno ficaram por explorar, e Melkor já tinha construído outra fortaleza, também parcialmente subterrânea, em Angband, e aí os Valar não procuraram, e aí ainda ficaram muitos dos vassalos de Melkor, à espera do regresso do líder.
Entretanto, Oromë, que como todos os Valar e Maiar podia aparecer aos filhos de Ilúvatar em forma magnífica mas semelhante à deles, propôs aos elfos que se juntassem aos Valar em Valinor. Mas os elfos tinham medo dos Valar devido às más acções de Melkor. Muitos fugiram. Outros ouviram-no mas mesmo assim temiam segui-lo. Foi-lhes então proposto que enviassem três embaixadores a Valinor, para que pudessem ver e contar ao seu povo o que tinham visto. Ingwë, Finwë e Elwë acederam, visitaram Valinor e regressaram cheios de vontade de partir para sempre da Terra-Média. As gentes de Ingwë e Finwë foram as menos relutantes em partir, por isso chegaram primeiro ao mar. Mas o povo de Elwë atrasou-se pelo caminho. Destes, um grupo chegou ao Anduin e preferiu abandonar a marcha, seguindo antes pelas margens do grande rio onde se foram estabelecendo e nunca chegaram a ver Valinor.
O próprio Elwë perdeu-se por acaso e conheceu, em Beleriand*, a bela Melian.
[*Todas os lugares da Terra-Média citados durante esta época já não existem no tempo da Guerra do Anel porque entretanto a face da terra foi completamente alterada e tudo indica que grandes porções de solo tenham sido perdidas no mar aquando da Guerra da Ira (War of Wrath) mais à frente.]
Melian era uma Maiar de Valinor, onde tinha vivido nos jardins de Lórien*, cuidando deles e ensinando as suas canções a todas as aves.
[*Lórien em Valinor, não Lothlórien da Terra-Média.]
Elwë apaxonou-se por ela e ficou preso ao seu encantamento durante tanto tempo que anos se passaram antes que ele pudesse dizer uma única palavra. Por isso, Elwë acabou por desposar Melian e tornou-se no rei Thingol do reino de Doriath da Terra-Média, sem nunca mais voltar a ver Valinor.
O povo de Elwë procurou pelo seu rei mas como não o achavam acabaram por colocar no seu lugar o irmão de Elwë, Olwë, e foi este quem os guiou no resto do caminho.
Por terem perdido muito tempo, estes Elfos ficaram conhecidos como os Teleri.
Quando chegaram ao mar, já as outras duas tribos tinham partido para Valinor, numa imensa ilha flutuante. Por isso os Teleri viveram muito tempo perto do mar, e dedicaram-se à construção de barcos e à vida marítima, e nunca mais quiseram viver longe da costa. A ilha que por sua vez os transportou para Valinor ficou, a seu pedido, ao largo de Aman. Chamou-se Tol Eressëa e nela construiram a cidade de Avallonë. Só mais tarde é que os Teleri se juntaram aos outros Elfos em Valinor.
Entretanto, os primeiros Elfos a chegar tinham construído uma espantosa e resplandescente cidade, Tirion, na colina de Túna, e era aí que viviam, perto de Valimar, a cidade dos Valar.
Ingwë e a sua gente acabou por se afastar completamente de Tirion e foram viver para a cidade dos Valar. Ingwë tornou-se no Rei Supremo de todos os Elfos e habitou para sempre junto de Manwë. A sua parte na história termina aqui.
Às gentes de Finwë chamou-se Noldor e, estes sim, são os protagonistas da Guerra das Jóias.
Os Teleri, cuja importância é também decisiva, continuaram a viver na costa, em Alqualondë, onde se dedicavam à construção de barcos.
Durante uns tempos, todos viveram em harmonia. Os Elfos construíram uma civilização avançada, aprendendo muito com os próprios Valar que amavam a companhia dos elfos, e tornaram-se peritos em muitas artes e ofícios.
Finwë, rei dos Noldor, teve três filhos. O mais velho, Fëanor, que era tão genial como impetuoso, da primeira esposa, e os seguintes, Fingolfin e Finarfin, da segunda.
Foi mau augúrio, mas a mãe de Fëanor foi o primeiro Elfo a morrer de cansaço do mundo logo após dar à luz o primeiro filho*. Foi por isso que Finwë se voltou a casar.
[*Os Elfos, e até certa altura também os homens de Numenór, podiam simplesmente decidir o momento em que abandonavam o corpo físico, pelo que por vezes a morte era desejada. Foi o caso da mãe de Fëanor.]
Três eras das Duas Árvores se passaram até ao momento em que Melkor foi de novo libertado. Melkor pediu perdão, alegou em consideração pelo seu caso que passara muito tempo a pensar no que tinha feito mal e que se ia regenerar dali para a frente. Os Valar não acreditaram muito mas deram-lhe o benefício da dúvida. E Melkor foi solto, primeiro só em Valimar, mas como se mostrava tão útil e gentil, depressa por toda a terra de Aman.
Continua
sábado, 25 de fevereiro de 2006
"O Silmarillion", resumido e anotado I
Sim, eu sabia que ainda faltava qualquer coisa.
(Para aqueles que nunca vão ler o "Silmarillion", não digam que nunca vos dei nada; Para os outros, pode ser que este aperitivo vos leve a ler.)
O que vou descrever não é apenas, inteiramente e tecnicamente, o "Silmarillion", mas é o que está na minha versão do livro. O "Silmarillion" propriamente dito relata apenas a Guerra das Jóias. Mas a história começa muito antes e começa assim:
No princípio... era o vazio.
Deus, Ilúvatar, tinha consigo os seus Anjos* e convidou-os a compor música em conjunto.
[*O termo correcto para estes seres divinos filhos de Deus não é Anjos mas sim Ainur, Valar ou mesmo Poderes. Mais tarde falarei deles como Valar ou Poderes ou mesmo Potestades mas por agora chamo-lhes Anjos para que a compreensão seja mais rápida.
Porque é que Tolkien decidiu reescrever o Velho Testamento, ninguém sabe.]
Esta composição teve três temas. Em cada tema, Deus mostrou aos Anjos a visão de [como resistir, como resistir?, é irresistível] uns "novos céus e uma nova terra". Um novo planeta cheio de luz, uma natureza verdejante, animais, plantas, e duas novas raças de filhos de Ilúvatar: os Elfos e os Homens. Aos Elfos, Ilúvatar concedeu vida imortal excepto por morte acidental ou em razão de ferimentos. Mas após a Morte, a alma dos Elfos iria para o lugar chamado a Casa de Mandos*, onde ficaria para sempre ou reincarnaria. A existência dos Elfos estava intimamente ligada à terra e não podia sair dela.
[*Mandos é o equivalente ao deus grego Hades, dos mortos e dos mundos subterrâneos. Mandos acumula a função com a de "deus do destino".]
Já aos Homens, Ilúvatar concedeu a dádiva da mortalidade. Isto significava que morreriam, de velhice se a doença nem a espada os levasse primeiro, mas para onde a sua alma ia depois da morte, ninguém sabia senão Ilúvatar. O último tema da música divina foi apresentado por Ilúvatar sozinho e nem os seus Anjos saberiam interpretar a visão completa do seu desígnio.
Manwë e Melkor eram os filhos de Ilúvatar mais poderosos de todos, e Ilúvatar tinha-os como irmãos. Mas eis que durante a música, Melkor começa a introduzir notas dissonantes que desarmonizavam a melodia de Ilúvatar e se tentavam sobrepôr a ela.
E à medida que Melkor se apercebia da Visão, uma outra tinha para ele, a de governar e ser Rei Supremo na nova terra que acabara de ser concebida em pensamento.
É aqui que as coisas entre Manwë, o fiel e mais poderoso de todos os Valar, azedam com Melkor. Mas tudo podia ter ficado por aí, se Melkor não tem decidido portar-se como um menino mimado a quem roubam o brinquedo.
Assim que os Poderes (chamados Poderes porque são poderes da nova Terra, denominada Arda) começaram a trabalhá-la para a transformarem no paraíso idealizado pela música de Ilúvatar, Melkor começou a destruir. Interessava-se pelo gelo e pelo fogo e queria toda a terra feita à imagem da sua visão. Os que os outros faziam, ele destruía. Se levantavam uma montanha, Melkor deitava-a abaixo. Se criavam um vale, Melkor inundava-o. E por esta altura nenhum dos Valar já queria a sua companhia e Melkor não se importava nada com isso.
[Talvez não se possa dizer que Melkor (mais tarde chamado Morgoth) fosse o Anjo Rebelde da Bíblia. Melkor não apresentava razão alguma para a sua maldade e para provocar uma guerra com os outros, a não ser o capricho infantil de fazer as coisas à sua maneira.]
Manwë, Valar dos céus, dos ventos e das águias, tornou-se o líder dos outros Valar e Melkor acabou por deixar de ser considerado como um deles. Mas Melkor, auto proclamado Senhor da Terra, conseguiu levar outros espíritos para o seu lado, entre eles o mais infame, de nome Sauron, que nessa altura era um lacaio de Melkor.
E quando os Poderes criaram duas lâmpadas para iluminar a Terra, Melkor partiu-as. Furiosos, os outros Valar perseguiram-no e Melkor foi-se esconder na Terra-Média, um continente criado entre Aman (onde era Valinor, a morada dos Valar) e o resto do mundo desconhecido. Entre a Terra-Média e Aman existia um oceano profundo e os dois continentes, Aman e Terra-Média, estavam apenas unidos a norte por uma região de gelos eternos (obra de Melkor) onde nada podia viver.
Então, para compensar as lâmpadas destruídas, os Valar criaram duas árvores, Telperion e Laurelin. A primeira dava luz prateada e a segunda luz dourada.
[Sim, estas árvores têm muito remotamente a ver com a árvore branca de Gondor.]
Eram estas árvores que iluminavam Aman, terra de Valinor, e nunca era noite nem se fazia escuridão, porque todos os dias, simultaneamente, enquanto uma delas minguava a outra crescia. Por momentos ambas as luzes se misturavam, a prateado e a dourada, criando um espectáculo nunca antes visto em Arda. Na Terra-Média, no entanto, a única iluminação vinha das estrelas também criadas pelos Valar, por isso se diz que quando os Elfos acordaram a primeira coisa que viram foi as estrelas e ficaram para sempre conhecidos como os Filhos das Estrelas.
Antes disso, porém, Aulë, o Valar que se interessava por todos os ofícios relacionados com os minérios, a pedra, o metal e as gemas, apressou-se e criou ele próprio uma raça que não estava prevista na canção de Ilúvatar. E assim surgiram na Terra-Média os Anões, muito antes dos Elfos. Mas Ilúvatar não aceitou que outra raça existisse antes dos Elfos e ordenou que os Anões dormissem até ao tempo designado para a chegada dos Elfos, data essa que só Ilúvatar conhecia. E só depois dos Elfos, os Homens.
Continua
(Para aqueles que nunca vão ler o "Silmarillion", não digam que nunca vos dei nada; Para os outros, pode ser que este aperitivo vos leve a ler.)
O que vou descrever não é apenas, inteiramente e tecnicamente, o "Silmarillion", mas é o que está na minha versão do livro. O "Silmarillion" propriamente dito relata apenas a Guerra das Jóias. Mas a história começa muito antes e começa assim:
No princípio... era o vazio.
Deus, Ilúvatar, tinha consigo os seus Anjos* e convidou-os a compor música em conjunto.
[*O termo correcto para estes seres divinos filhos de Deus não é Anjos mas sim Ainur, Valar ou mesmo Poderes. Mais tarde falarei deles como Valar ou Poderes ou mesmo Potestades mas por agora chamo-lhes Anjos para que a compreensão seja mais rápida.
Porque é que Tolkien decidiu reescrever o Velho Testamento, ninguém sabe.]
Esta composição teve três temas. Em cada tema, Deus mostrou aos Anjos a visão de [como resistir, como resistir?, é irresistível] uns "novos céus e uma nova terra". Um novo planeta cheio de luz, uma natureza verdejante, animais, plantas, e duas novas raças de filhos de Ilúvatar: os Elfos e os Homens. Aos Elfos, Ilúvatar concedeu vida imortal excepto por morte acidental ou em razão de ferimentos. Mas após a Morte, a alma dos Elfos iria para o lugar chamado a Casa de Mandos*, onde ficaria para sempre ou reincarnaria. A existência dos Elfos estava intimamente ligada à terra e não podia sair dela.
[*Mandos é o equivalente ao deus grego Hades, dos mortos e dos mundos subterrâneos. Mandos acumula a função com a de "deus do destino".]
Já aos Homens, Ilúvatar concedeu a dádiva da mortalidade. Isto significava que morreriam, de velhice se a doença nem a espada os levasse primeiro, mas para onde a sua alma ia depois da morte, ninguém sabia senão Ilúvatar. O último tema da música divina foi apresentado por Ilúvatar sozinho e nem os seus Anjos saberiam interpretar a visão completa do seu desígnio.
Manwë e Melkor eram os filhos de Ilúvatar mais poderosos de todos, e Ilúvatar tinha-os como irmãos. Mas eis que durante a música, Melkor começa a introduzir notas dissonantes que desarmonizavam a melodia de Ilúvatar e se tentavam sobrepôr a ela.
E à medida que Melkor se apercebia da Visão, uma outra tinha para ele, a de governar e ser Rei Supremo na nova terra que acabara de ser concebida em pensamento.
É aqui que as coisas entre Manwë, o fiel e mais poderoso de todos os Valar, azedam com Melkor. Mas tudo podia ter ficado por aí, se Melkor não tem decidido portar-se como um menino mimado a quem roubam o brinquedo.
Assim que os Poderes (chamados Poderes porque são poderes da nova Terra, denominada Arda) começaram a trabalhá-la para a transformarem no paraíso idealizado pela música de Ilúvatar, Melkor começou a destruir. Interessava-se pelo gelo e pelo fogo e queria toda a terra feita à imagem da sua visão. Os que os outros faziam, ele destruía. Se levantavam uma montanha, Melkor deitava-a abaixo. Se criavam um vale, Melkor inundava-o. E por esta altura nenhum dos Valar já queria a sua companhia e Melkor não se importava nada com isso.
[Talvez não se possa dizer que Melkor (mais tarde chamado Morgoth) fosse o Anjo Rebelde da Bíblia. Melkor não apresentava razão alguma para a sua maldade e para provocar uma guerra com os outros, a não ser o capricho infantil de fazer as coisas à sua maneira.]
Manwë, Valar dos céus, dos ventos e das águias, tornou-se o líder dos outros Valar e Melkor acabou por deixar de ser considerado como um deles. Mas Melkor, auto proclamado Senhor da Terra, conseguiu levar outros espíritos para o seu lado, entre eles o mais infame, de nome Sauron, que nessa altura era um lacaio de Melkor.
E quando os Poderes criaram duas lâmpadas para iluminar a Terra, Melkor partiu-as. Furiosos, os outros Valar perseguiram-no e Melkor foi-se esconder na Terra-Média, um continente criado entre Aman (onde era Valinor, a morada dos Valar) e o resto do mundo desconhecido. Entre a Terra-Média e Aman existia um oceano profundo e os dois continentes, Aman e Terra-Média, estavam apenas unidos a norte por uma região de gelos eternos (obra de Melkor) onde nada podia viver.
Então, para compensar as lâmpadas destruídas, os Valar criaram duas árvores, Telperion e Laurelin. A primeira dava luz prateada e a segunda luz dourada.
[Sim, estas árvores têm muito remotamente a ver com a árvore branca de Gondor.]
Eram estas árvores que iluminavam Aman, terra de Valinor, e nunca era noite nem se fazia escuridão, porque todos os dias, simultaneamente, enquanto uma delas minguava a outra crescia. Por momentos ambas as luzes se misturavam, a prateado e a dourada, criando um espectáculo nunca antes visto em Arda. Na Terra-Média, no entanto, a única iluminação vinha das estrelas também criadas pelos Valar, por isso se diz que quando os Elfos acordaram a primeira coisa que viram foi as estrelas e ficaram para sempre conhecidos como os Filhos das Estrelas.
Antes disso, porém, Aulë, o Valar que se interessava por todos os ofícios relacionados com os minérios, a pedra, o metal e as gemas, apressou-se e criou ele próprio uma raça que não estava prevista na canção de Ilúvatar. E assim surgiram na Terra-Média os Anões, muito antes dos Elfos. Mas Ilúvatar não aceitou que outra raça existisse antes dos Elfos e ordenou que os Anões dormissem até ao tempo designado para a chegada dos Elfos, data essa que só Ilúvatar conhecia. E só depois dos Elfos, os Homens.
Continua
quarta-feira, 18 de janeiro de 2006
Já cá faltava
Já que me perguntaram o que ando a fazer, lembrei-me de que no domingo, se me levantar da cama a horas, tenciono votar no Manuel Alegre porque não gosto dos outros.
Mas neste momento estou muito mais interessada na história de Túrin e da Terra Média do que nas histórias desta Terra Medíocre.
Gostaram da chalaça? Eu gostei.
Mas neste momento estou muito mais interessada na história de Túrin e da Terra Média do que nas histórias desta Terra Medíocre.
Gostaram da chalaça? Eu gostei.
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