Comecei a ver o filme porque prometia um desastre de avião e o súbito desaparecimento de milhões de pessoas da face da Terra. Fã de enredos apocalípticos, deixei-me levar com ingenuidade, mas este Apocalipse é muito literal.
Rayford Steele é um piloto de linhas comerciais afastado da esposa desde que ela se tornou uma fanática religiosa que não pára de o tentar tornar tão devoto como ela. A filha de ambos, Chloe, também se queixa do zelo religioso da mãe, percebendo que isso está a afastar os pais um do outro. A própria Chloe, uma agnóstica, não está contente com tanta religiosidade, sendo igualmente alvo de tentativas de conversão.
Quando o avião de Rayford já ia no ar, grande parte dos passageiros desaparece de repente, deixando para trás as roupas e pertences. Todas as crianças desapareceram. O que Rayford e os passageiros não sabem é que o mesmo aconteceu por todo o mundo, o que criou algumas cenas apocalípticas de carros sem condutor e aviões sem tripulação a despenharem-se, ao mesmo tempo que as pessoas aproveitavam para pilhar centros comerciais. Foi a melhor parte do filme, à “The Walking Dead”.
Entretanto, no avião, Rayford percebe que o seu co-piloto e uma hospedeira de bordo desapareceram também, ao mesmo tempo que perde as comunicações. Depois de embater noutro avião não tripulado, o avião começa a perder combustível e não consegue entrar em contacto com nenhum aeroporto. Começa aqui a parte do desastre de aviação.
Então o que é que aconteceu às pessoas? Enquanto os passageiros especulam, inclusivamente sugerindo que os desaparecidos foram abduzidos por extraterrestres, cada vez mais pessoas chegam à conclusão de que o que aconteceu foi nada mais nada menos do que o Rapture. Ora, o que é o Rapture? Não temos uma palavra em português para isto porque é um suposto acto de Deus nos Dias do Fim, em que Deus arrebata os seus fiéis vivos para o Céu, e que não está em lado nenhum na Bíblia porque o Rapture foi uma invenção de algumas igrejas evangélicas americanas do séc. XIX. Em português acho que já ouvi a palavra Arrebatamento para descrever isto, mas podem procurar à vontadinha que não o encontram na Bíblia, nem sequer no Apocalipse (aliás, isto contradiz a maior parte do Apocalipse). No entanto, há muito boa gente que acredita nisto piamente, e este filme foi feito para estes crentes, naquilo que só posso interpretar como a tentativa de converter mais uns quantos espectadores. Por aqui já se compreende o nível da “obra prima” em questão.
Todavia, mesmo à parte a religiosidade toda, o filme é de 2014 mas parece ser dos anos 80 ou 90. As mulheres são representadas como inúteis e histéricas, incluindo a hospedeira de bordo, sempre a precisarem da liderança e conforto masculinos. Um jornalista é deixado entrar no cockpit, ficando sentado ao lado do piloto mesmo sem ter qualquer experiência de voo, mas é homem, logo, deve ter mais competências do que a hospedeira…
Por último, apesar da fachada de filme-catástrofe, percebemos que nos estão a tentar impingir a religião para arrependimento dos nossos pecados, principalmente quando o avião consegue aterrar e vemos que o mundo todo está a arder porque começou a Grande Tribulação (que esta, sim, está na Bíblia). Do que percebi, a intenção era fazer sequelas, Deus nos valha!
Enfim, estes filmes deviam trazer uma bolinha especial a dizer “propaganda religiosa”. Não há aqui nada que se aproveite, nem o desastre de avião, que é resolvido de maneira tão idiota que só um milagre o explicaria, mas parece que Deus não gosta das pessoas que não “arrebatou”, logo, não foi obra Dele. Um não-crente pode mesmo sair deste filme ainda mais ateu do que já era, tendo em conta as pessoas “piedosas” que são levadas e as que são deixadas.
Não aconselho este filme a ninguém excepto como curiosidade de uma certa cinematografia religiosa americana que pode explicar muito do que se passa presentemente.
10 em 10 (porque detesto que me tentem evangelizar, especialmente com teorias pseudo-bíblicas, mas o filme também não é grande coisa em si próprio)
terça-feira, 19 de agosto de 2025
Left Behind / A Última Profecia (2014)
domingo, 17 de agosto de 2025
Rabo de Peixe / Turn of the Tide (2023 - ?) [primeira temporada]
"O diabo tem de sair por algum lado" - Carlinhos, em "Rabo de Peixe"
Em 2001, centenas de quilos de cocaína deram à costa em Rabo de Peixe. O que se passou depois poderia ter sido esta série. Quatro amigos da vila piscatória, um dos lugares mais pobres da Europa, decidem que esta é a sua única oportunidade de conseguirem uma vida melhor.
Lembro-me de ler sobre o incidente caricato na altura e lembro-me de pensar o que faria se fosse comigo. Bem, não fazia nada, exactamente por causa da polícia e dos traficantes. Vender cocaína aos quilos atrai demasiada atenção, algo que os protagonistas descobrem num instante.
Mas convenhamos. A droga dá 23 milhões e 820 mil euros. Põem este valor à frente de um pobre muito pobre, e o pobre não pensa duas vezes. Não por ganância ou desejo de luxos, mas porque "com esse dinheiro posso comprar uma casa à minha mãe". Eduardo, jovem pescador, o melhor aluno da sua turma, teve de deixar a escola para ir para o mar. O pai dele precisa de uma operação às cataratas e o Serviço Nacional de Saúde não dá resposta. É esta a sua motivação principal. Com o tempo, se tivesse conseguido chegar longe, daria mais em mau, como Walter White?
Sim, esta é quase a premissa de "Breaking Bad", um génio injustiçado que se mete no negócio da droga porque precisa do dinheiro para pagar as despesas médicas do filho. Eduardo não é um doutorado em Química como Walter White, mas também não precisa de ser. O seu conhecimento do mar, da geografia, do lugar, já o colocam à frente dos traficantes e da polícia. Depois é só preciso ter alguns dedos de testa, sangue frio, e um grande motivo de bom filho a ajudar o pai.
O enredo também segue a fórmula de sucesso drama/acção/humor/thriller que me recorda tanto de "Breaking Bad". Curiosamente, as críticas comparam mais a série a "Narcos", que eu não vi, mas "Narcos" é posterior. Da mesma forma, também encontrei aqui vestígios de "The Wire", mas podem ter chegado igualmente via "Breaking Bad" porque são séries que se foram influenciando umas às outras, e ainda bem. Já as influências de "Pulp Fiction", também comuns a estas séries todas, devem ter vindo directamente do original.
"Rabo de Peixe" (título em inglês "Turn of the Tide") esteve no Top 10 de séries mais vistas da Netflix e compreende-se porquê. Adorei a adaptação deste tipo de enredo a uma realidade portuguesa (e até fiquei com inveja de não se passar em Lisboa). Não temos os cartéis sul-americanos? Temos melhor e mais original, a máfia. Não temos o Tuco Salamanca? Temos o traficante de bairro, Arruda, com a fachada da oficina de mecânico. Não temos Jesse Pinkman a vender Blue Sky aos putos da esquina? Temos o playboy Ian a traficar com os nórdicos que conheceu quando viveu por lá. Não temos as mães de família dos bairros sociais norte-americanos? Temos as mães de família que vão à missa e competem entre elas para levar a imagem de Nossa Senhora para casa. Está tão bom, tão realista, tão bem feito, que não se consegue parar de ver episódio após episódio.
Disse que fiquei com inveja de não se passar em Lisboa, mas é só dor de cotovelo. As paisagens são tão deslumbrantes, tão fantásticas, e funcionam tão bem na história que não imagino isto noutro lado, e com certeza que as paisagens também contribuíram para o sucesso da série.
Por falar em paisagens, foi aqui que a credibilidade foi desafiada. Os Açores não são o deserto do Novo México. É preciso querer acreditar que tudo aquilo podia acontecer sem que aparecesse um pescador, um turista, um guardador de vacas, ou que qualquer pessoa pode subir por um farol acima, por exemplo. As testemunhas incautas que surgiam em lugares inesperados, até no meio do deserto, tornaram-se mesmo num dos elementos mais dramáticos de "Breaking Bad". Também não fiquei convencida com aquela troca de carro. É muito estranho que numa ilha, naquele ambiente de pobreza, conseguissem arranjar duas carrinhas precisamente iguais em tão pouco tempo, e com a mesma capota e com o mesmo crucifixo. Já nem falo da matrícula, porque algumas pessoas topam logo pela matrícula que não é o carro que elas conhecem. (Seria mais credível terem ali dois ou três populares a trocar o que ia na carrinha.)
"Rabo de Peixe" foi renovado para uma segunda temporada, e confesso que estou apreensiva. Esta foi uma grande história, bem contada, e, na minha opinião, bem resolvida. Receio muito a "maldição" da segunda temporada.
Agora uma nota sobre a banda sonora. Ganda bosta de banda sonora. Mas não culpo quem a escolheu. Isto era efectivamente a música que se ouvia na rádio na altura (na sua maioria). Compare-se com a banda sonora de "Yellowjackets", tudo êxitos dos anos 90, e temos aqui um bom exemplo do declínio da música mainstream a partir do ano 2000. (E não estou a falar de cenas alternativas, estou mesmo a falar da música dos tops de vendas, da música de massas.) Mas a série não tem culpa disto.
"Rabo de Peixe" é uma série de qualidade acima da média que merece o sucesso que teve e que nos pode deixar muito esperançosos quanto ao futuro da ficção televisiva.
(Para quando algo do tipo "Midnight Mass" à portuguesa? É que depois de ver isto, até dava, é que dava mesmo. Não estou a sugerir uma cópia, estou só a dar ideias.)
E aprendi quatro ou cinco palavrões que não conhecia, entre eles blica e naião, para não me esquecer.
E outra que eu também não sabia: rapexinho, natural de Rabo de Peixe.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes
PARA QUEM GOSTA DE: acção, drama, policial, Breaking Bad, Pulp Fiction
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Brahms: The Boy II / The Boy: A Maldição de Brahms (2020)
Não gosto de ver uma sequela sem ver o original, mas neste caso aconteceu. Daquilo que li nas críticas, no entanto, também me parece que uma história não tem nada a ver com a outra.
Depois de um assalto em casa, o casal Liza e Sean e o filho Jude decidem mudar-se para o campo, arrendando um anexo numa propriedade antiga (onde se passou o filme original). Jude ficou tão traumatizado que deixou de falar, mas, ao descobrir o boneco a que dá o nome de Brahms (o boneco sinistro na imagem), começa a conseguir falar com ele, para alegria dos pais. Mas, de seguida, Brahms começa por ditar uma série de “regras”, como, por exemplo, não ter visitas e comer sempre com a família à mesa. A princípio Liza pensa que estas regras vêm de Jude, mais uma forma que ele tem de expressar o trauma, mas à medida que o tempo passa começa a desconfiar cada vez mais do boneco que o filho encontrou enterrado no chão, como se lá tivesse sido posto de propósito, e que parece estar a apossar-se de Jude a ponto de o miúdo se querer vestir como Brahms. É então que Liza decide investigar a história da propriedade, e faz descobertas inquietantes: em todas as famílias que tiveram o boneco Brahms, o filho matou os pais.
As críticas foram muito más para este “Brahms: The Boy II”, acusando-o de ser apenas um filme com um boneco sinistro. Pois foi mesmo disso que eu gostei, apenas um filme com um boneco sinistro sem os desvarios dos efeitos especiais do costume, e mesmo assim conseguindo manter uma atmosfera tensa até ao fim.
Também penso que este Brahms daria um óptimo namorado para Annabelle. Foram feitos um para o outro.
12 em 20
domingo, 10 de agosto de 2025
47 Meters Down: Uncaged / 47 Metros: Medo Profundo (2019)
Quatro amigas adolescentes decidem mergulhar nas ruínas de uma cidade Maia submersa pela subida do oceano, só para se verem encurraladas e rodeadas de tubarões-brancos.
Este filme vem na sequência de “47 Meters Down” mas a história é completamente diferente. Em comum, apenas duas irmãs, como no original, e mais um pormenorzinho de que falarei à frente. O pai destas duas irmãs é um mergulhador que anda precisamente a preparar as grutas inundadas da cidade Maia, no México, para uma exploração arqueológica. Aliás, ele não é o único, faz parte de uma equipa de mergulhadores (vai ser importante depois). Esta equipa não é muito cuidadosa com o sítio onde deixa o equipamento de mergulho, e as quatro amigas encontram-no na lagoa onde vão nadar. Ao ver o equipamento, uma delas convence as outras a visitarem as ruínas submersas, onde um dos membros da equipa já a tinha levado antes. A ideia é entrarem na primeira câmara e apenas nessa, mas uma vez nas ruínas uma das raparigas assusta-se com um peixe cego que se assanha a ela (sim, o peixe assanha-se*), vai de encontro a uma coluna, a coluna cai, e ao que parece isto causa a abertura de uma nova passagem. Desta nova passagem aparece um tubarão-branco dos grandalhões, mas cego como o peixe, que ao investir contra as raparigas provoca o desabamento da entrada por onde elas vieram. Agora elas estão encurraladas, as botijas de oxigénio estão a esgotar-se, aparecem mais tubarões, e as raparigas têm de descobrir uma outra saída no labirinto que são as ruínas Maias. O pormenor semelhante ao do filme anterior, em que as irmãs acreditavam que os tubarões tinham medo dos very lights (não têm), é que a certa altura as raparigas pensam que os tubarões têm medo de um localizador de mergulho que emite um sinal sonoro e luminoso (mas aparentemente também estão enganadas).
O resto é o que se espera de um filme de tubarões, mas há aqui muita coisa sem pés nem cabeça. Para começar, as raparigas teorizam (têm equipamento de mergulho que lhes permite comunicar, ou permitiria se o equipamento fosse realista…) que os tubarões evoluíram nas grutas e que por isso são cegos. Ora, eu não estava à espera que as raparigas, naquela situação aflitiva, se pusessem a conferenciar sobre a evolução dos tubarões, mas isto não faz sentido nenhum. Mesmo que os tubarões tivessem perdido a visão em centenas de anos (os Maias não são assim tão longínquos), o ecossistema das grutas não tinha alimento que chegasse. Estas ruínas foram escavadas na rocha e serviam de catacumbas (embora os personagens se tenham referido a elas antes como “cidade”). Que tamanho poderiam ter estas catacumbas subterrâneas que permitissem a subsistência e movimentação de tubarões de 6 metros, que exigem tanto espaço? Um campo de futebol, dois, três, quatro? E, mais importante de tudo, como é que a equipa de mergulhadores, que já andava a trabalhar nas grutas há bastante tempo, nunca se apercebeu da presença de tubarões de 6 metros mesmo ali ao lado, e não descobriu antes a passagem que parecia afinal tão fácil de derrubar? Sobre os tubarões propriamente ditos, se eram cegos e caçavam por ouvido e por vibrações na água, porque é que tinham tanta dificuldade em localizar as raparigas que não paravam de gritar a torto e a direito e faziam tanto estardalhaço? Estes pobres tubarões já deviam ter morrido de fome a tentar apanhar os peixes assanhados, que ainda assim eram mais silenciosos.
Como se vê, este é daqueles filmes que criaram um cenário sem preocupações com o realismo só para lá porem as raparigas e os tubarões. O fim, então, é para achar ridículo ou para rir às gargalhadas, o que acontecer primeiro. Filmes de tubarões não precisam de muito enredo mas “47 Meters Down: Uncaged” exagerou um bocadinho. Não há aqui nada para ver excepto tubarões a comer pessoas (mas isso já era de esperar) num cenário delirante. Personagens, enredo, drama, lógica, nada disso pesou em consideração. Mas se querem ver um peixe assanhado, é aqui.
Por último, o CGI dos tubarões é tão mauzinho que não consegui arranjar uma imagem decente para ilustrar o post sem que eles parecessem bonecos de plástico, o que já diz tudo.
* Sim, o peixe assanha-se e grita com a rapariga. Eu nem reparei nisto, pensei que tinha sido ela a gritar, como efectivamente grita, mas depois de ler algumas críticas que salientam este pormenor fui ver de novo e de facto o peixe grita. Já os tubarões estão caladinhos para não fazerem figuras tristes. O grito do peixe lembra-me aquela música dos Trovante: Onde as bruxas dançam, / quando os mochos amam / E as pedras choram. E os peixes gritam.
12 em 20 (mais um ponto porque o peixe grita)
terça-feira, 5 de agosto de 2025
Crise, qual crise - habitação
Há muito tempo que não falava de política/sociedade. Ora cá vai um apontamento da actualidade.
Eu devo ser mais lenta do que pensava. Finalmente consegui perceber o que é afinal a Puta da Crise Crónica - Crise, Qual Crise?, sobre a qual ando aqui a escrever há anos.
Tenho ficado muito perplexa com a "crise da habitação". Mas qual crise? As casas estão caras, não se consegue arrendar? E onde é que está a novidade? Qual é a diferença agora? Nos anos 60 e 70 a minha tia arrendava um apartamento de várias assoalhadas em Lisboa com os quartos todos "alugados". Um estivador aqui vizinho "arrendava" uma despensa de pátio onde só cabia uma cama de molas e um fogão de campismo. Outro vizinho vivia num armazém de refugo de madeira (antigo palheiro para animais de manjedoura), exíguo, de uma fábrica quando havia fábricas em Lisboa. Vivia-se assim, sempre foi normal. E havia barracas, sim havia, nos arredores. O palheiro sempre era mais perto do local de trabalho.
De repente, fez-se um clique, um momento EUREKA. Só se chama crise quando afecta a classe média. Quando (ainda só) afecta os pobres não faz mal, é normal, "não estudaram/não querem trabalhar". Mas quando toca nos filhos daqueles que conseguem arrendar e pagar empréstimos, aí já é crise. Percebi.
Isto já aconteceu com a crise do emprego precário, nos últimos 20 anos, quando os filhos da classe média saíram das faculdades e não conseguiam arranjar nada sem ser a recibos verdes (hoje recebem o ordenado mínimo). Pensei que, sei lá, as pessoas tivessem aberto a pestana. Afinal não.
Não é crise quando só afecta os filhos dos pobres. Está esclarecido.
domingo, 3 de agosto de 2025
Finisterra (2025)
No barlavento algarvio, em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, um avião aliado despenha-se e a neutralidade de Portugal é questionada.
Isto é muito interessante, mas, lamento, isto não tem quase relevância nenhuma para o enredo. O aviador inglês (ou seria americano, já não sei) é devolvido, fim da história da guerra. Tirando alguém que é espião, mas isto também não tem relevância nenhuma, é só pano de fundo.
"Finisterra" é a história de Celeste, que é considerada bruxa pela superstição local, a ponto de ela própria se questionar se tem o "mal". Isto também é interessante, mas a série foi-me vendida como sobrenatural. Ora, lamento, de sobrenatural isto não tem nada. O que se passa aqui é uma bruxa/vidente de província, aparentemente com um livro de São Cipriano e veneno de formigas, a liderar um culto daquilo que na altura se apelidava de satânico, com orgias e bebidas perigosas, mas de verdadeiro satânico também não tem nada. O problema das pessoas deste tempo é que não tinham televisão, nem sequer rádio, nem sabiam ler, e inventavam estas coisas para se entreterem, e quem os pode censurar.
Não estou a dizer que não gostei da série. "Finisterra" criou toda uma atmosfera do que a representação da realidade podia ter sido, sem ser exactamente realista. O fim também foi inesperado, não estava nada à espera daquilo. As cenas da gruta foram um bocadinho "isto deve ter caído aqui de outro filme", mas aceito. No final de cada episódio temos um testemunho verdadeiro de pessoas que viveram na época. Penso que os criadores tentaram inventar uma história que englobasse esses testemunhos.
Os meus problemas com a série não têm a ver com o enredo mas com a execução. Aconteceu-me muitas vezes não perceber o que estava a acontecer. Antes que me venham com desculpas, ter clareza de narrativa não é "guiar o espectador pela mão", é mesmo clareza de narrativa. Por exemplo, ouvimos bombas a cair mas não as vemos, e custou-me perceber que a casa do monte tinha sido atingida. Também não parecia uma casa atingida por uma bomba, para ser franca. Parecia mais chamuscada pela queima de lenha ou algo assim. Isto pode ser por questões de orçamento, e compreendo, mas nesse caso talvez fosse boa ideia ter alguém a verbalizar que a casa foi atingida. Como isso me escapou completamente, perdi partes importantes da lógica das consequências e tive de voltar atrás para ver de novo. Outras coisas não percebi mesmo. Por exemplo, naquele monte algarvio não crescia nada e Celeste era acusada de ser a causadora disso, por ser bruxa. Mas a certa altura vemos a madrinha dela a pôr qualquer coisa no chão, seria sal? Ou seria apenas a viúva a demonstrar o seu ódio pela terra? Sinceramente, não percebi e desisti de perceber. A relação de parentesco também é esquisita. Há aqui muitos pais e muitas mães desaparecidos, e quem era mesmo o pai da outra e do outro afinal, etc.
Mas o que me chateou a sério foram os diálogos que não consegui perceber. Depois de ponderar muito se seria problema de som ou de dicção, uma vez que consegui perceber perfeitamente as palavras de Salazar na rádio, e que até consegui perceber melhor os testemunhos com sotaque e com mau português, e que percebi tudo o que diziam alguns actores, como Miguel Guilherme, tenho de concluir que o problema é mesmo a dicção dos outros actores. Estou a dizer isto como crítica construtiva, a dicção é importante. A naturalidade das falas não as pode tornar incompreensíveis. Já não é a primeira vez que bato nesta tecla, mas faço isto com boas intenções. Afinal, quem beneficia de boas séries sou eu, a espectadora. Custou-me muito acompanhar os diálogos dos actores principais e tenho a certeza de que isto contribuiu para perder o fio à meada da narrativa (isto, e as deficiências da narrativa).
Outro exemplo foi quando os homens andavam a fazer a mó. Desculpem a ignorância, mas só percebi o que eles estavam a fazer no testemunho do final. Durante a cena, porque nunca tinha visto nada semelhante, passou-me pela cabeça se andavam a colocar ou a tirar uma mina (por causa da guerra) ou se estavam a fazer um altar ritual (por causa da bruxaria). Enquanto tentava decifrar o que eles andavam a fazer, e porquê, e como é que se relacionava com o resto, entretanto já tinham passado 10 minutos e mais enredo a que não consegui prestar a atenção devida. Uma vez que isto é uma coisa antiga, talvez pudesse ter sido explicada a espectadores mais novos e citadinos. Por falar nisso, também me custou perceber o que é que o padrinho de Celeste lá andava a fazer com eles, porque não era o trabalho dele. Se bem compreendi, ele andava a tentar ganhar dinheiro em biscates porque o campo dele não produzia. Ora, juntando a minha ignorância quanto à mó, os diálogos que não percebi, à tentativa de estabelecer ligações entre o enredo da guerra e das bruxas, fiquei ali à nora.
Até aconteceu uma coisa um pouco cómica. Existe um personagem, penso que chamado o Parvo (lá está, custou-me perceber o que lhe chamavam), que vive como maluco selvagem nas grutas da praia. Quando ele apareceu, logo de início, pensei que era outro aviador naufragado antes e afectado das ideias. Quando Celeste o manda ir embora, pensei que estava a mandá-lo esconder-se de alguém que andasse à procura dele para o entregar aos alemães. Inventei isto tudo, admito, porque estava a tentar encontrar um fio condutor entre a história da guerra e a história da protagonista (mas não há fio condutor). Este personagem desaparece completamente e volta a aparecer no fim, quando já não me lembrava dele. Mas ainda estava convencida de que era um aviador naufragado. O Parvo é o único que tem desculpa para não falar como deve ser, mas a parte engraçada é que pensei que ele estava a falar inglês (e eu também não compreendia). Na realidade ele estava a dizer "o mar bate na terra". Mas isto fez-me rir. Esta coisa do aviador escondido também pode ter vindo do "Alô Alô" e de filmes de náufragos, confesso.
A série podia ter sido mais agradável de ver se não fosse isto tudo. Vou ser muito honesta, "Finisterra" pareceu-me, para o bem e para o mal, um daqueles filmes experimentais do cinema português em que o valor artístico é mais importante do que a lógica. Mesmo assim, gostei dos temas principais, da ambiência da época, das partes bem feitas, e acho que vale muito a pena.
ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 1 vez
PARA QUEM GOSTA DE: drama, bruxas, séries de época