segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Confissão de Lúcio, Mário de Sá Carneiro

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Para quem está a ler a antologia “Dentro da Noute”, chegar a este conto (que encerra a colectânea de contos portugueses) é chegar à modernidade.
“É que, em realidade, as horas não podem mais ter acção sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou — apenas — os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.
Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem, têm a paz — pode ser. Entretanto não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido."
Tirando algumas expressões muito datadas, especialmente de inspiração francesa, “Lúcio” continua a fazer sentido hoje (ou, neste caso, a não fazer sentido). Na primeira pessoa, o personagem Lúcio confessa, ou melhor, não confessa, um crime que não cometeu mas que o manteve na prisão durante dez anos. Uma verdade inverosímil, como o próprio diz, uma sequência de acontecimentos impossíveis, inacreditáveis.
A história passa-se mesmo no final do século XIX, início do XX, numa alta sociedade de artistas portugueses apaixonados por Paris, a cidade venerada de todo o vanguardismo à época. Lúcio, dramaturgo, convive com outros artistas e escritores, todos eles atingidos dessa doença dos ricos chamada “ennui” que se contrai por não se fazer nada na vida senão passear pelos boulevards, viver em hotéis e jantar em restaurantes chiques. Lúcio conhece o poeta Ricardo de Loureiro, com quem estabelece uma íntima amizade. Muitas coisas são ditas entre os dois (o poeta tem ideias muito “estrambóticas”, como diz o conto), mas talvez a mais importante seja a maneira como o poeta declara só ser capaz de amar se “possuir”, logo, como é que pode amar um amigo se não consegue possuir alguém do mesmo sexo? Isto vai causar uma materialização da alma de Ricardo numa figura feminina que se torna amante de Lúcio. Ou seja, pelo menos é esta a “verdade” de que o narrador nos tenta convencer, sabendo ao mesmo tempo que qualquer plausibilidade é impossível.
“Mas ponhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de factos. E para a clareza, vou-me lançando em mau caminho — parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará — estou certo — a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.
Uma coisa garanto porém: Durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer duma grande soma de factos. E são apenas factos que eu relatarei. Desses factos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não me importa que me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo quando ela é inverosímil.”
O próprio narrador nos avisa, pelo excesso, de que não é de confiança. Até que ponto é que o autor não nos quer revelar o tema que o conto trata (a homossexualidade), ou até que ponto o autor não admite que trata este tema, deixo a outro tipo de análise. Um século depois, esta temática “chocante” perdeu-se e o leitor moderno sente-se atraído pelo mistério que Lúcio nos vai relatando, duvidando aqui e ali dos tais pormenores que o narrador prometeu descrever fielmente, questionando a sua sanidade mental (tal como ele nos advertiu), questionando a relevância deste ou daquele acontecimento no total da narrativa. Tive muitas vezes a sensação (e a desconfiança) de estar a ler o relato de um sonho. O que de certa forma me recorda de Kafka, pese embora a diferença de temáticas. Se tantas vezes as histórias pecam por incoerência e falta de sentido, quando é bem feito e apoiado num todo surrealista resulta muito bem. Este é um desses casos e uma leitura que recomendo a toda a gente que ama a literatura.




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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


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