segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Os Canibais, de Álvaro do Carvalhal

http://projectoadamastor.org/antologia-dentro-da-noute-contos-goticos

Na forma de conto fantástico, “Os Canibais” é na verdade uma feroz crítica social. Quer-me parecer que a crítica não é apenas ao óbvio: a importância das aparências e a ganância, mas mais do que isto talvez já me escape nos dias de hoje.
A acção passa-se entre a alta sociedade portuguesa do século XIX. “Suponha o baile — se lhe apraz, mesmo por comodidade ou propriedade — suponha-o em Lisboa”, diz o narrador,  que já tinha começado o conto com uma crítica irónica ao pensamento literário da época: “Disse a crítica pela boca de Boileau: Rien n’est beau que le vrai”, isto é, só o verdadeiro é belo. [E esta já é uma tradição de séculos entre nós --só o realismo interessa-- o que é um dos factores que explica a falta de literatura gótica e fantástica em Portugal. Ainda hoje, note-se, na cabeça de muitos intelectuais, só o realismo é sério. Veja-se até o prémio Nobel, sempre atribuído a autores que retratam sociedade e política. A Fantasia, a Ficção Científica, o Fantástico em geral, são considerados devaneios inferiores. Salva-se o Realismo Mágico quando bem embrulhado em ditaduras. E isto explica porque é que Tolkien nunca ganhou o Nobel. E está tudo dito.]
Álvaro do Carvalhal vai citar a ideia de que “só o verdadeiro é belo” para se lançar num conto que é completamente Fantástico, se bem que nem sempre coerente. Eu fiquei com algumas dúvidas quanto ao que de facto aconteceu.
A jovem Margarida, bela e senhora do seu nariz, apaixona-se pelo misterioso visconde de Aveleda. Margarida é muito cortejada (“Ela era o ídolo acatado de todos os crentes”) mas não corresponde ninguém. Álvaro do Carvalhal bem sublinha que não quer dar a moral da história, mas eu vejo aqui algo do ditado “quem muito escolhe pouco acerta”. O visconde, desde o momento em que aparece, denuncia logo que não é um homem vulgar. Melancólico e desencantado, não diz duas frases seguidas que não sejam góticas: “O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder contemplá-las. Eu sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada.” O visconde adverte Margarida de que não o ame, deixando adivinhar qualquer tragédia que nunca revela, mas por fim até ele cede à sedução de Margarida e acabam por casar.
Entra aqui em cena um outro personagem, D. João, que diz amar Margarida, embora tudo nos leve a perceber que é desejo de conquista e orgulho ferido que o move. D. João queria cortejá-la mas Margarida desdenha-lhe os avanços. D. João é um Don Juan (seja o nome propositado ou não), habituado a ter as mulheres que quer. É através deste personagem que Álvaro do Carvalhal faz a crítica mais severa, descrevendo-o como um produto da sociedade, julgando que são os seus talentos pessoais, em vez da grande fortuna, que lhe abrem todas as portas. “O prostíbulo, voragem que a lei sanciona, foi a arena borrifada com o vinho de suas primeiras proezas. Cansado enfim de se estorcer na crápula, no húmido chão do lupanar, volveu os despertados apetites para a recatada burguesia. Se lhe resistia a inocência, a palavra dinheiro, pronunciada com voz anelante por lábios torpes, abandonava o pudor aos soltos caprichos do mancebo. E muitas foram as envergonhadas pequenas, que lhe venderam a virgindade em beijos frios, em dilúvios de sentidas lágrimas.”
Mas tirando a crítica social, não percebi que papel D. João realmente teve nos acontecimentos. O orgulho ferido leva-o a intentar o assassinato do visconde, nomeadamente no dia do casamento, mas antes de o chegar a fazer já a tragédia se tinha desenrolado.
Eu cheguei a pensar, até devido ao título do conto, que o visconde seria um vampiro ou algo do género. O que o visconde realmente é, prefiro que o autor o descreva: “Fez um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um corpo mutilado, disforme, monstruoso. Pernas, braços, os próprios dentes do visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos tapetes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre, que naturalmente se lhe desprendeu dos ombros. O infeliz era um fenómeno, um aborto estupendo, que em nossos dias valeria muito dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta de mais para isso. A tudo porém dera remédio a civilização de seu tempo. Afortunados tempos!”
Isto acima descrito aconteceu na noite de núpcias, em frente da horrorizada Margarida. Antes, ele tinha-a lembrado da sua promessa: “prometeste seguir-me ao cemitério, se lá fosse minha morada…” Margarida lança-se da janela e morre, de cabeça esmagada num banco do jardim. O visconde, de coração partido, atira-se à fogueira para morrer queimado.
D. João, que entra no quarto neste preciso momento na intenção de matar o visconde (ou o casal?) foge também. Mas, ao descobrir que Margarida tinha morrido, dá um tiro no “coração”, numa intenção de morrer que eu não percebi muito bem. Achei demais para um homem movido pelo orgulho ferido que de facto não amava Margarida mas a ideia de a possuir como a todas as outras. Mas as motivações das personagens não são o aspecto mais trabalhado deste conto. Diria mesmo mais, este é um conto satírico disfarçado de conto de horror, em que as acções das personagens se destinam a realçar a sátira. Nem sei se devíamos mesmo sentir simpatia pelo pobre visconde e pelo seu atrevimento e ingenuidade de julgar que Margarida o podia aceitar como era, ou se o autor estava a gozar connosco também.
Não vou revelar a parte que dá nome ao conto mas asseguro que não é publicidade enganosa. A seguir, acontece aqui uma espécie de piada que de forma nada subtil nos informa de que o dinheiro compra tudo, até a consciência.
Mas fiquei a perguntar-me: seria só isto que o autor queria dizer, que me parece tão óbvio e batido, até para a altura? O problema da escrita satírica, e neste caso o autor chega mesmo a gozar com o próprio conto, é que só faz rir quem está por dentro da piada. Era preciso dizer ou mostrar muito mais para que se entendesse plenamente a piada mais de dois séculos depois. Nunca esperei canibalismo literal deste conto, mas o título fez-me pensar num “canibalismo” simbólico em que os personagens se destroem mutuamente. Afinal, porque é que os pais e irmãos de Margarida são “canibais” a nível simbólico? Porque são iguais aos outros e também teriam prostituído a filha ao D. João ou ao visconde ou a outro qualquer, não fosse ela tão senhora do seu nariz? Era só isto? Já que o objectivo é a sátira, eu esperava mais de um título tão forte. E não gostei mesmo nada da ligeireza do fim, quase uma anedota. O autor é demasiado gozão para o meu gosto. Mas justiça lhe seja feita, o conto consegue cenas verdadeiramente tenebrosas (rebuscadas que sejam). Tudo o resto sou eu que estou mal habituada a um terror mais moderno e consistente.

* * * * *

Já depois de escrever este artigo, tive curiosidade de ir pesquisar o conto e o autor. Descobri que Álvaro do Carvalhal morreu com apenas 24 anos, em 1868. Isto explica tudo o que apontei acima. Não bastando o talento, a escrita é uma arte que se aperfeiçoa durante toda a vida, mas algumas coisas só se adquirem com a maturidade, nomeadamente a construção de personagens tridimensionais e com as devidas motivações. Não posso deixar de lamentar o potencial perdido com o desaparecimento deste jovem autor.


-§-

Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.


Sem comentários: