segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Operador de Call Center, de H.M.S. Pereira

 

Encontrei este livro por acaso, na editora Bubok, já há alguns anos. Na altura estava disponível para fazer download gratuito. Fiz. Olhei para as primeiras páginas, achei a escrita decente, e guardei até ter oportunidade de ler. Actualmente parece-me que o livro só está disponível para venda em papel, mas posso estar enganada.
Admito que o que me atraiu imediatamente foi o título, operadora de hell center que sou também, mas o livro acabou por ser mais interessante do que esperava dele.
Esta é a história das peripécias de Henrique Pissada, jovem que desistiu dos estudos por desilusão com os cursos e que acabou a trabalhar na “LusoCabo” porque foi o que encontrou primeiro. Asseguro que todos os horrores descritos são verdade: os contratos renovados mensalmente pelas empresas de trabalho temporário, os subsídios de férias e Natal incluídos no “ordenado” para parecer às pessoas que ganham mais, o supervisor (único que não é sub-contratado) que passa lá o dia de manhã à noite, a mudança de instalações mês sim mês não, o trabalho em part time porque falar como um robô durante oito horas por dia é de uma violência que só quem já teve a experiência consegue compreender. Óptimo livro para quem nunca trabalhou num call center ficar a conhecer o que se passa com os desgraçados que atendem o telefone.
Mas não se pense que este é um livro “triste”. Pelo contrário, é uma sátira divertida a uma geração entre a minha e a seguinte, a geração dos que tiraram um curso e nunca tiveram oportunidade de trabalhar no que estudaram, dos que moram com os pais ou amigos ou desconhecidos, em quartos alugados, porque trabalham mas não têm independência financeira, dos sonhos acalentados mas inúteis, das noites no Bairro Alto à toa pelas ruas. Toda uma geração completamente à toa.
Henrique Pissada é um protagonista que nos faz rir. Directo, cínico, vai relatando as suas peripécias com uma linguagem autêntica, exactamente como se fala, até mesmo um pouco como se escreve num call center (Existe uma linguagem própria de call center. É como entrar numa realidade paralela.) Henrique Pissada é preguiçoso, indiferente, egoísta, algo desonesto, anti-social, e porco. Daqueles que só toma banho e muda de roupa porque tem de aparecer minimamente apresentável no trabalho. Só mesmo minimamente. Este gajo é tudo o que uma mulher detesta num homem e ainda se pergunta porque é que não tem vida sexual. Mas não é que lhe importe muito, porque acha que tê-la não compensa o trabalho que dá.
Também Henrique Pissada anda à toa, vivendo de dia para dia sem se preocupar com um futuro mais longínquo. E com razão, porque não há futuro longínquo no horizonte. O futuro acaba ao fim do mês, com a renovação ou não do contrato. Depois, não se sabe. Continua-se à toa.
Não julgava que ia gostar tanto deste livro, especialmente considerando o protagonista. Mas admito que também gostei do livro por causa do protagonista. Henrique Pissada despe-se, na primeira pessoa, e mostra-nos quem é, e diz as coisas que se calhar até todos pensamos às vezes sem nunca admitir. Eu admito que Henrique Pissada me fez rir para dentro muitas vezes, e uma ou outra vez até para fora.
Recomendo vivamente a toda a gente que gosta de sátira e não se importa de ler umas verdades.
Não sei se o autor escreveu mais livros, ou até mesmo a continuação das aventuras de Henrique Pissada, mas em caso afirmativo gostava de conhecer mais obras de H. M. S. Pereira.

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