domingo, 8 de fevereiro de 2009

H. P. Lovecraft - Mestre do Horror I

O primeiro contacto relevante que me levou a ler Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foi referência ao clássico "The Thing on the Doorstep" por Anne Rice, nesse outro clássico que é a aventura do vampiro Lestat em "The Tale of The Body Thief". Curiosa, fui à internet procurar o primeiro conto que tinha inspirado o segundo (as obras de Lovecraft já se encontram disponíveis gratuitamente na web). Encontrei, e dando uma vista de olhos pelo resto da obra, foram-me logo parar os olhos num outro clássico de Lovecraft, "The Cats of Ulthar", quanto mais não fosse por não estar assim à espera de um conto de terror que envolvesse gatos. Como era uma história pequena, li-a também, deliciada, e prometi regressar a Lovecraft assim que pudesse.
Foi este o meu primeiro encontro com o autor americano, mas não com os seus mitos. Há muitos anos que conhecia Cthulhu, dos meus muito preferidos Fields of the Nephilim, mas há mesmo tantos anos que é uma vergonha ter demorado todo este tempo a dedicar-me à sua leitura, da mesma forma que é uma pena que Lovecraft esteja tão pouco divulgado entre nós, não só entre os apreciadores de terror como também entre os amantes de ficção científica. Eis uma tentativa para que a situação mude.
H. P. Lovecraft era daqueles autores que se sentam à secretária para escrever histórias de meter medo. Estes são poucos e, entre eles, menos ainda o conseguem. Lovecraft, contudo, no deserto dos anos 20 e 30, tanto inspirado em Edgar Allan Poe e no folclore da bruxaria de Salem, como em Einstein e nas recentes descobertas científicas do ainda recente século, compôs em histórias relativamente curtas toda uma obra que veio a influenciar autores de todas as áreas e os seus horrores mais básicos ainda inspiram o cinema mais recente. Aliens? Nada de novo. Possessão? Só mudam os mitos. Casas assombradas? Possivelmente ninguém explorou tanto o campo como Lovecraft e o seu fascínio pelos casebres abandonados das florestas em torno da cidade imaginária de Arkham, banhada pelo igualmente inexistente rio Miskatonic, no que os especialistas chamam "Lovecraft Country" (mas situado na verdadeira Nova Inglaterra, Essex County, Massachusetts). Feiticeiras? Das verdadeiras, e bruxos também. Investigadores paranormais? Ninguém foi tão longe como Randolph Carter. Necronomicon? Inventou-o. Pois é, o famoso Necronomicon não existe, mas existem versões disponíveis, geradas pelo que hoje chamamos "fan fic" (ficção feita pelos fãs utilizando os personagens e universo de um autor preferido).
Para começar a pesquisar Lovecraft, aconselho a página da Wikipedia, com vários links relativos ao seu mundo muito particular. Tal como Tolkien, Lovecraft também inventou todo um universo paralelo, metade passado na mundo como o conhecemos, a outra metade passado na terra dos sonhos, mas dividiu-o em pequenos contos de modo que não temos a papinha toda feita como na trilogia d'"O Senhor dos Anéis". Por outro lado, quanto mais se lê mais se deseja ler.
A melhor alusão à parte terrena do universo de Lovecraft vem mesmo do personagem do clássico "The Thing on the Doorstep", por onde comecei, que a certa altura desabafa: "I suppose you think I'm crazy, Dan--but Arkham history ought to hint at things that back up what I've told you--and what I'm going to tell you." Ou, "What he said was not to be believed, even in centuried and legend-haunted Arkham; but he threw out his dark lore with a sincerity and convincingness which made one fear for his sanity. He talked about terrible meetings in lonely places, of cyclopean ruins in the heart of the Maine woods beneath which vast staircases led down to abysses of nighted secrets, of complex angles that led through invisible walls to other regions of space and time, and of hideous exchanges of personality that permitted explorations in remote and forbidden places, on other worlds, and in different space--time continua."
Fora de Arkham, existe também um mundo de cidades escondidas no deserto, submersas no fundo do mar, nas entranhas da terra, nos inacessíveis picos gelados, restos de civilizações colossais, marmóreas, ciclópicas, há muito abandonadas pelos seus construtores e habitantes mais velhos do que o mundo, sejam deuses ou monstros, extraterrestres ou demónios, descritas apenas no misterioso e amaldiçoado Necronomicon do árabe louco Abdul Alhazred.

 
 Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)

E muita atenção! Quando Lovecraft fala em "tráfico com as coisas do mar" não está de todo a referir-se à venda ilegal de pérolas preciosas, mas sim à existência de uma raça híbrida entre o ser humano e os Outros, os Antigos, os habitantes das profundezas.
Uma boa fonte para download da obra de H. P. Lovecraft, em formato .zip, é o Projecto Gutenberg Australia.
Tentarei abordar aqui as melhores histórias e despertar a curiosidade para este autor injustamente ainda tão desconhecido.

The Festival
Desejoso de voltar a participar nas tradições do seu parentesco, um jovem regressa à terra natal (a cidade ficcional de Kingsport) para uma celebração natalícia que nada tem de cristão. Acaba na manhã seguinte numa cama de hospital, convencido de que o seu parentesco nem sequer pertence à raça humana. O que faz dele então?...

The Colour Out of Space
Passada nos arredores da cidade ficcional preferida do autor, Arkham, esta é uma história de ficção científica verdadeiramente arrepiante. Isto é-vos dito e garantido por uma leitora e espectadora assídua de terror, em pleno século XXI. Confesso: a certa altura tive de parar de ler e começar a olhar em volta. Quando isto acontece, meus amigos, é porque estamos perante uma obra genial, que se insinua, que nos perturba, que nos faz considerar a possibilidade de acontecer mesmo. E porquê? No caso da ficção científica até não é muito difícil. Conhecemos tão pouco do universo!
Tudo começa com a queda de um meteorito perto de uma pacata quinta de família honesta. Chamados os peritos, chegam à conclusão que não se consegue determinar em termos científicos conhecidos a espécie de metal (a ser metal) que o compõe. Em questão de dias, o meteorito decompõe-se e desaparece. Mas a terra onde caiu começa a produzir estranhos vegetais que não prestam para consumo humano. Os animais que os comem transformam-se em seres esquisitos. As árvores em volta, por exemplo, brilham no escuro com uma estranha cor indefinível, a cor do metal do meteorito, e abanam-se mesmo quando não há vento, animadas por uma força exterior às leis da Natureza. A população da aldeia mais próxima começa a evitar a quinta e a família fica cada vez mais isolada. Mas nenhum dos habitantes consegue tomar a decisão de abandonar o local, nem quando a mãe fica louca, nem depois da fuga dos cavalos, cães e gatos da quinta, nem mesmo quando se descobre que a água do poço de onde bebem está inquinada e é maligna. Existe algo no poço, algo que vai sugando a energia, a sanidade e a força de vontade de todos eles. Os filhos mais novos atiram-se para dentro do poço, onde mais tarde se vêm a encontrar também esqueletos de pequenos animais. Depois chega a "morte cinzenta". Começa por afectar o gado. Porcos e vacas ficam cinzentos e quebradiços e partem-se aos bocados. O mesmo destino está reservado para o dono da quinta, que também termina assim, como que em cinzas. Os agentes da autoridade que vão investigar são forçados a fugir a meio da noite, quando uma luz sobrenatural começa a penetrar dentro da casa... pelas frestas, enquanto o último cavalo que ficou preso lá fora, e não se conseguiu soltar, se estalava aos bocados como um caco de barro.
Leitura não recomendável à noite.

 
 Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)



The Call Of Cthulhu
Ph'nglui mglw'nafh Cthulhu R'lyeh wgah'nagl fhtagn: "In his house at R'lyeh dead Cthulhu waits dreaming." Na sua casa em R'lyeh, morto, Ktulu espera dormindo. Um investigador persegue o desconhecido culto de Cthulhu (ou Ktulu, ou K'tula), cujos seguidores servem em loucura e bestialidade, praticando inclusive sacrifícios humanos nos pântanos de New Orleans, quando se reunem e dançam à volta do fogo ao som de tambores cuja inspirada descrição me lembra imediatamente do clássico início de "Endemoniada" (mais uma vez, nem podia deixar de ser, dos Fields of the Nephilim). Dizem que Cthulhu é um dos Antigos (the Old Ones), seres vindos das estrelas de onde trouxeram as suas imagens, mais velhos do que o mundo, e que esperam, na submersa cidade de R'lyeh, que os astros se conjuguem para que se libertam e tomem conta do mundo outra vez. Outrora, a sua comunicação com os seres mais sensíveis era feita apenas por pensamentos e sonhos, mas depois do desaparecimento de R'lyeh nas águas profundas a frase acima, que os servidores entoam sem cessar nos seus cânticos e na linguagem original que lhes foi transmitida de geração em geração, é o que resta das palavras dos Antigos.
Foi neste mito que Carl McCoy dos Fields of the Nephilim se inspirou em muitos temas (tal como em Lovecraft em geral), e o melhor exemplo será mesmo "The Watchman":
«You'll see, you'll see her when she starts to form
You'll see, you'll see her when she starts to call
Follow me...
You sleep, you sleep, follow me
It's just another day, remember I am calling you
Just another day, remember she's calling for you
Just another day, Kthulhu I am calling for you
Just another day, An empire has fallen from view
(...)»
Cthulho, "dead but dreaming", citando palavras dos Nephilim, penetra na mente dos homens através de sonhos colectivos e levá-los-à a resgatá-lo quando as estrelas se alinharem... e o mundo será seu de novo. (Também é no mundo dos sonhos que Freddy Kruger, um monstro moderno, contacta as suas vítimas...)
Este é o mito que tem alimentado páginas e páginas de especulação, e até banda desenhada cómica. Um novo filme "Chtulho" foi realizado ainda em 2007. Depois de o conhecer, não há como escapar aos seus "tentáculos", pelos menos aos inconscientes.

 
Cthulhu

Segue a história com uma embarcação de marinheiros que acidentalmente vai parar a uma pequena ilha a descoberto, nada mais do a ponta do iceberg que é a cidade submersa de R'lyeh.
Primeira nota curiosa: "It was Rodriguez the Portuguese who climbed up the foot of the monolith and shouted of what he had found." Não é de admirar que se encontre um português em todos os cantos do mundo, até na cidade de R'lyeh, num livro de Lovecraft.
Segunda nota curiosa: Muitas citações de Lovecraft, em que desconfia claramente de homens mestiços, geralmente designados por escumalha de marginais e malfeitores, como estes seguidores de Chtulhu em New Orleans, são indubitavelmente racistas se analisadas fora do seu tempo.

 Cartoon do site Unspeakable Vault (Of Doom)

É preciso compreender que a época de Lovecraft era outra, e tão distante que se podia sem cair no ridículo imaginar que o recém descoberto planeta Plutão seria uma base avançada dos estraterrestres (como se pode ler noutro conto). Mas não deixa de ser curioso como Lovecraft, fruto do seu tempo, era tão ingenuamente racista nos anos 20 e 30, o que nos permite desvendar outros mistérios bem mais horrendos e nada ficcionais...
De regresso ao relato: "The Thing cannot be described-- there is no language for such abysms of shrieking and immemorial lunacy, such eldritch contradictions of all matter, force, and cosmic order. A mountain walked or stumbled. God! What wonder that across the earth a great architect went mad, and poor Wilcox raved with fever in that telepathic instant? The Thing of the idols, the green, sticky spawn of the stars, had awaked to claim his own. The stars were right again, and what an age-old cult had failed to do by design, a band of innocent sailors had done by accident. After vigintillions of years great Cthulhu was loose again, and ravening for delight."
Então Chtulhu acordou. Mas o que aconteceu ao bravo Rodrigues? Chtulhu papou-o. Safou-se um norueguês, mas não por muito tempo porque os servos do monstro estão em todo o lado.
Quem sonhar com Chtulhu... é melhor não voltar a adormecer.

 



The Dunwich Horror
Os Antigos (the Old Ones) não são as únicas criaturas que aguardam no fundo do mar ou nos subterrâneos das montanhas o momento em que os astros se conjuguem para uma vez mais reinar sobre a Terra e dizimar toda a vida animal e vegetal, inclusive o ser humano. Neste conto aprende-se que Yog-Sototh (um dos Antigos e "primo de Cthulho", se bem que esta relação de parentesco não esteja minimamente explicada), é uma criação destes seres que vieram das estrelas e que habitam nos insterstícios das montanhas de Dunwich (povoação ficcional), onde um velho feiticeiro local o invoca regularmente, especialmente na véspera de Maio (May's Eve) e, como não podia deixar de ser, no Hallowen. Esta criatura, Yog-Sototh, embora desprovido de corpo material terrestre, pode gerar filhos (à semelhança dos demónios da Bíblia), e desta união com uma mulher nasce um ser metade humano -- ou mais de metade humano, para se ser preciso, como se comprova pelos seus restos mortais quando este encontra o seu fim nos dentes de um cão de guarda no momento em que tenta roubar o exemplar do Necronomicon da universidade de Mistatonik -- cujo objectivo é auxiliar os Antigos a regressar e destruir o mundo. Este híbrido termina de forma trágica mas o verdadeiro horror está ainda para se manifestar.
Esta é uma das histórias chave para o leitor que quer conhecer os mitos dos Antigos e seus propósitos. Altamente recomendável.



Continua.

6 comentários:

HornedWolf disse...

Lovecraft é um dos meus mestres literários (apesar de ser melhor a construir as estórias do que a escrever em si). Queimei muitas pestanas, muitos dias da minha vida a ler Lovecraft. Emprestei os meus livros a uma bela desenhadora cujo desenho, mesmo sem que ela conhecese o autor, tinha fortes influências de Lovecraft, e nunca mais os vi (o que deixaria, quem sabe, o Lovecraft contente e a mim indeciso quanto ao meu humor).


Curiosamente, também soube primeiro de Lovecraft pelos Fields of the Nephilim (conheço os fields quase desde que me lembro - tradição de família :P ) e só o li vários anos depois, quando comecei um projecto esotérico (felizmente encerrado) ligado com pessoas do Templo de Set (de Aquino) e da Typhonian OTO (de Kenneth Grant). Estes dois, e as pessoas das suas correntes, trabalham com as deidades ctónicas do Lovecraft, muito ao estilo do que encontras nos contos.

Mas a coisa verdadeira, se queremos Lovecraft à letra, é procurares por ONA, Order of the Nine Angles.

*


PS: Quase me sinto intrometido, tenho sido o único a deixar comentários. Mas não vejo porque não.

HornedWolf disse...

PS: se procurares por "The Esoteric Order of Dagon" vais encontrar uma ordem artistica e de artistas cuja inspiração e a descendência provem desse Inominável Lovecraftiano.

Desde ha cerca de dois anos que estou a pensar criar um núcleo da EOD aqui. Mas acho que implicaria pessoas e esses bichos são autenticos Nyarlathoteps. Que morram no inferno, cof cof.

HornedWolf disse...

Mais um PS para a colecção:

Se gostas de Lovecraft é possivel que venhas a gostar do seu irmãozito literário, Robert E. Howard, que ficou conhecido pelos seus escritos no Conan.

Por mais estranho que pareça, é, já não um dos meus mestres literários (porque veio tarde demais) mas um dos meus mestres políticos.




Not only did [Howard] excel in pictures of strife and slaughter, but he was
almost alone in his ability to create real emotions of spectral fear and
dread suspense…that such a genuine artist should perish while hundreds of
insincere hacks continue to concoct spurious ghosts and vampires and
space-ships and occult detectives is indeed a sorry piece of cosmic
irony…his loss at the age of thirty is a tragedy of the first magnitude, and
a blow from which fantasy fiction will not soon recover.
—H. P. Lovecraft—


“It was Atali, the daughter of Ymir, the frost-giant! To fields of the dead she comes, and shows herself to the dying! Myself when a boy I saw her, when I lay half-slain on the bloody field of Wolraven. I saw her walk among the dead in the snows, her naked body gleaming like ivory and her golden hair unbearably bright in the moonlight. I lay and howled like a dying dog because I could not crawl after her. She lures men from stricken fields into the wastelands to be slain by her brothers, the ice-giants, who lay men’s red hearts smoking on Ymir’s board. The Cimmerian has seen Atali, the frost-giant’s daughter!”
—Robert E. Howard, “The Frost-Giant’s Daughter”—


“Poor devils, they’ll wake up in hell without knowing how they got there.”
—Robert E. Howard, “Black Vulmea’s Vengeance”—

Ruela disse...

Um clássico.

Rita disse...

Em relação a Cthulhu há também um roleplaying game com o mesmo nome, que cria exactamente a ambiência do livro. É um roleplay para ser vivido e experienciado mais do que para ser jogado!

katrina a gotika disse...

Obrigado, Hornedwolf e Rita, pelas dicas. O meu envolvimento com Lovecraft permanecerá literário. Já tenho deuses que cheguem. :P