segunda-feira, 22 de julho de 2019

A Feiticeira, de Ana de Castro Osório

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Esta é uma história de aldeia com personagens a condizer. Num cenário muito rural, existe um rapagão considerado o melhor partido da terra, o Manel da Clara, que “tem alguma coisa de seu, e no fundo não é mau rapaz”.
Este tal Manel está dividido entre duas pretendentes, a pálida e frágil Teresinha, que “era afilhada da fidalga e lá pelo palácio se tinha criado com mimos e delicadezas que as outras não conheciam. Era com uma graça toda senhoril que punha os olhos no chão e enrubescia como romã bem madura quando ele a fitava de frente, bem de frente, como fazia às mais, sem conseguir com isso chamar-lhes o sangue ao rosto, mas fazê-las explodir em jucundas gargalhadas. O seu andar lento e ondulado dava um realce de elegância exótica ao seu corpo delgado de anémica, flor tristemente desabrochada entre paredes sombrias e velhas coisas impregnadas da melancolia dos tempos passados. Como era a única que na terra sabia ler, eram também os seus os únicos olhos que na missa se não levantavam do livro para andarem em leilão pela igreja à procura dos rapazes, que lá de longe, e de soslaio, não perdiam o grupo buliçoso da raparigada”, e a robusta Maria do Próspero, que “era alta e desempenada! A sua tez, dum moreno intenso, fora brunida pelas soalheiras ardentes e curtida pelas ventanias agrestes. A boca, sempre aberta em riso, era vermelha e fresca como cerejas maduras, e os dentes brancos e agudos cravavam-se com delícia no pão de milho, sua única escova. As saias, rodadas em balão, faziam-lhe mais altas as ancas já de si redondas e fortes; o cabelo, em duas tranças pregadas, enchia-lhe a cabeça como uma touca de veludo negro. Quando punha o cachené vermelho e amarelo de grandes ramagens verdes, o xale em bico traçado deixando livre o braço esquerdo, a chinela branca pespontada na ponta do pé, nenhuma como a Maria do Próspero para arrebanhar admiradores. Depois, sempre satisfeita, radiava em plena expansão dos seus vinte anos sadios, vividos em plena natureza.”
Esta tal Maria, mais extrovertida, está a conseguir avanços no coração do Manel que a tímida Teresinha não alcança. A tia da Teresinha, que faz muito gosto no casamento, queixa-se à Gertrudes Zarolha que o Manel não se decide a declarar-se à Teresinha. A Gertrudes Zarolha oferece ajuda através de umas mezinhas de bruxa de aldeia:
“— Deixe estar, deixe estar... Eu sei cá umas coisinhas que hão-de voltar o Manel, oh se hão-de!... Assim eu tivesse uma coisa que lhe pertencesse... Coisa de vestir era melhor... Punha-lhe a pedra de ara e dizia a oração... É coisa certa.”
O Manel, em noite que vinha da feira, depara-se então com um Sabat onde nem faltava “o Diabo passeando altivo, vestido de encarnado e de chapéu guizalhante, poisando os pés de forquilha sobre as cabeças das feiticeiras, que riam sarcasticamente”. Entre as feiticeiras, Manel vê a Maria do Próspero, e “E quando a viu chegar ao pé do homem vermelho, estender-lhe os fortes braços roliços e trigueiros, abraçá-lo com ardor, não pôde reter um surdo grito de raiva.” Horrorizado, nunca mais lhe fala e casa antes com a Teresinha.
Mas aqui é que está a parte mais difícil de perceber. Parece que ele não viu a Maria do Próspero. Esta nega tudo quando é confrontada. Mas, caída em desgraça, perde o gosto pela vida e torna-se um fantasma de si própria, questionando-se mesmo se afinal é de facto a bruxa que a acusam de ser.
Este conto peca pela falta de desenvolvimento. Havia aqui o suficiente para um romance, com personagens bem desenvolvidas, maior imersão no pano de fundo da vida na aldeia, maior aprofundamento psicológico dos protagonistas, pistas que nos levassem a perceber que se passa mesmo algo de sobrenatural. Afinal, esta Gertrudes Zarolha tem pacto com o demo, ou, no mínimo, tem poderes suficientes para invocar a imagem de um Sabat na mente do Manel, e até de o fazer ver a Maria no Sabat, e isto é tratado como se nada fosse?... Assim parece um conto escrito a correr, sem ter o desenvolvimento que merece. No pior dos casos, soa-me a coisa escrita por senhora da alta sociedade a gozar com as superstições (e a linguagem, e o modo de pensar, e a “vidinha”) do povo ignorante, porque é “himalaias de giro” observar a gentinha. E isto irrita-me muito. Se calhar não era a intenção da autora (raramente é) mas foi o que chegou até mim.
O conto tem uma temática gótica o bastante mas falha na execução.


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Este conto encontra-se na compilação “Dentro da Noute – Contos Góticos”, do Projecto Adamastor. O download gratuito pode ser feito AQUI.




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