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domingo, 18 de junho de 2023

The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood

Não é costume dizer isto, mas a série estragou-me o livro. Não consegui ler sem imaginar “The Handmaid’s Tale” (a série) na minha cabeça a todos os instantes. Isto significa duas coisas: que a série respeita perfeitamente o material original, e que o livro publicado em 1985 foi o bastante para incendiar imaginações e perturbar consciências até aos dias de hoje.
Não estou a dizer com isto que não adianta ler o livro se já se viu a série, nem que a série é melhor do que o livro, mas depois de ter uma visualização de todo este mundo com personagens tão fortes como June (na série, porque no livro nunca é revelado o nome de Offred, a protagonista) não me foi possível dissociar as duas coisas. A maior parte das vezes dei por mim a reconhecer as cenas e a apontar mentalmente os monólogos de Offfred: “Olha, a June disse isto exactamente assim”; “Olha, a June disse isto mas deixou parte de fora”; “Olha, aqui está dito de forma diferente”. Também não ajuda que eu esteja completamente viciada na série.
Em suma, preferia ter lido o livro primeiro, mas agora já está. Atwood foi ousada em apresentar-nos Gilead tão intimamente sem grande exposição, como se o leitor conhecesse perfeitamente a distopia em que Offred estava aprisionada e porquê. Só posso imaginar o choque que isto tenha causado aos leitores que não sabiam para o que iam (como me costuma acontecer a mim), e que se calhar tiveram de ler duas ou três vezes para perceber todo o horror que Offred, muitas vezes veladamente, lhes ia revelando nos seus diários.
No entanto, existem pequenos pormenores de diferença. Como aquelas crianças a quem é repetidamente contado um conto de certa maneira até o ouvirem de forma diferente e que dizem “a história não é assim”, obviamente que reparei neles. Outros ajudam-nos a perceber melhor certas relações e acontecimentos que a série não aprofundou. Por exemplo, a origem da frase “nolite te bastardes carborundorum” está aqui muito melhor explicada.
E depois há a cena da gata…

Spoilers
No livro, June (vou usar o nome da série) e Luke têm uma gata. Quando Gilead faz com que June e todas as mulheres percam o emprego, June conforta-se abraçando a gata contra o peito. Comovente, não é? Mas na hora de fugir para o Canadá com Hannah, Luke e June apercebem-se de que não podem “levar um gato com eles a cruzar a fronteira”, que deixar a gata para trás os podia denunciar (se a deixassem à solta ela miava em volta da casa) e que não a podiam oferecer a ninguém que os pudesse trair de seguida. Então o que é que fazem? A gata está escondida debaixo da cama e June até diz “eles sabem sempre”. Luke leva a gata para a garagem e mata-a. Assim mesmo. Mais tarde, quando de facto são traídos, June pergunta-se que género de maldade leva outros seres humanos a traírem os vizinhos. June, filha, e o que terá pensado o animalzinho nos seus últimos momentos naquela garagem, traído pela única família que conheceu, a quem amava e por quem se julgava tão amado que era abraçado contra o peito, que últimos momentos foram esses, cheios de medo, confusão, dor e amargura? Pensaste nisso?
Felizmente, os criadores da série perceberam que isto não ia cair nada bem no público actual e não incluíram essa cena. Afinal, o livro foi publicado em 1985, quando os animais não eram considerados parte da família. Que lhes fazer? Matá-los, afogá-los à nascença, fazia-se tudo isso quando eram incómodos e já não davam jeito. Actualmente é impensável deixar um animal para trás (por exemplo, os refugiados da Ucrânia levaram cães e gatos com eles), e não daria tanto nas vistas porque muita gente leva os animais de estimação quando vai de férias. Na altura talvez não.
Não é que eu não acredite que a June da série não seja capaz de matar um gato, dois gatos, mil gatos. Pelo contrário. O que acho é que a June da série é monstruosa a um ponto que a Offred do livro nunca chega a ser e mesmo assim não me apeteceu torcer por ela. Perturbou-me, revoltou-me. Isto não é dizer pouco quando se fala de “The Handmaid’s Tale”, mas para tudo o resto eu já ia preparada.
Ainda por cima, na série, quando fogem, June e Luke passam por imensos matagais desertos onde podiam muito bem ter deixado a gata e assim esta sempre tinha uma oportunidade de caçar ou encontrar um novo lar. Na garagem é que não teve oportunidade nenhuma.
A acção do livro só cobre as primeiras duas temporadas da série e a própria Margaret Atwood faz parte da equipa, o que poderá explicar o sucesso da expansão do mundo de Gilead. O livro termina quando Offred é levada para parte incerta pela polícia do regime, sem saber o que lhe vai acontecer. Acredito que este fim em aberto tenha causado pesadelos a inúmeras gerações de leitores.
Por fim, o livro deixa-nos uma nota de esperança. Muitos anos no futuro, durante um simpósio sobre Gilead, os diários de Offred (aparentemente gravados em cassete, como em certa passagem da série) são analisados e debatidos, sendo mesmo posta em causa a sua veracidade e de que modo Offred os poderia ter gravado e escondido. Mas Gilead é sempre referida como uma sociedade do passado, algo de extinto que merece a pena ser estudado. O que nos diz, também não disfarçadamente, que Gilead não ganhou no fim.
Margaret Atwood escreveu uma distopia magnífica, um sucessor perfeito dos gigantes “Farenheit 451” e “1984”, e ainda por cima com um contexto muito actual.
Recomendo a toda a gente que não faça o que eu fiz: leiam o livro primeiro, até porque é curto. E depois, sim, devorem a série.
Quanto à cena da gata… vou fingir que não li. Já me perturbou mais do que o bastante.

 

domingo, 12 de março de 2023

The Handmaid’s Tale [quarta e quinta temporadas]

[contém spoilers]

[Primeiras duas temporadas]

[Terceira temporada]

“O pânico é um desperdício de energia.”
Assistir a “The Handmaid’s Tale” é difícil. Das quatro pessoas que faziam críticas que eu lia desde o início da série, só uma delas não desistiu. Pior do que a violência física talvez seja mesmo a violência psicológica que o espectador tem de suportar tal como os personagens. Eu, no entanto, considero esta série educativa e até mesmo inspiradora, um abre-olhos, um kit de sobrevivência para quem não gosta de enterrar a cabeça na areia. Por exemplo, quando June e Luke são capturados e muito possivelmente vão ser executados, e June lhe diz quando ele se está a passar: “O pânico é um desperdício de energia.” June tem experiência com situações extremas e já percebeu que em Gilead o importante é manter sempre a cabeça fria (“keep your shit together”, como Moira lhe diz) para poder agir no caso de surgir uma mínima hipótese de fuga. Não adianta entrar em pânico. Acontecerá o que tiver de acontecer.
“O pânico é um desperdício de energia.” Vou assimilar esta lição de vida e não me esquecer dela.
“We only wanted to make the world better. Better never means better for everyone. It always means worse for some.”, diz Fred logo na primeira temporada. Nos regimes totalitários, a primeira coisa a ser proibida são os livros. Gilead não é excepção. Chamo a atenção para o nº da porta de Emily em Toronto: 451, o que certamente também não é um detalhe inocente.
No último episódio da terceira temporada, num flashback, June recorda o início de Gilead. Vemos mulheres serem presas e separadas. Vemos doentes e deficientes mentais serem levados para parte incerta. Vemos mulheres nuas a serem examinadas em contentores, recordando os campos de concentração nazis. A partir da terceira temporada (que já ultrapassa o livro de Margaret Atwood) a série começou a estabelecer cada vez mais paralelos deste tipo, a começar com o símbolo de Gilead, que não sei bem o que é mas dá a entender que é uma pomba de asas abertas. Parece mais a águia nazi, especialmente nas longas faixas negras que acompanham os procedimentos oficiais. A presença constante dos soldados a falar indistintamente ao rádio, os cães a ladrar, os adornos subliminares em forma de suástica nas portas das Jezebels e até nos canteiros da escola de Hannah, acentuam esta imagética da 2ª Guerra Mundial. Custa-me menos ver “The Handmaid’s Tale”, porque afinal é ficção, do que a assistir a documentários do que aconteceu na realidade.

Com esta ninguém contava
Mais uma vez, não esperava voltar a escrever sobre “The Handmaid’s Tale” tão cedo mas os acontecimentos no enredo já começam a ser demais para a crítica final.
A grande “bomba” da quarta temporada é sem dúvida a gravidez de Serena Joy. Como eu dizia, o casamento dos Waterfords já estava de pantanas antes da chegada de Offred e eles simplesmente já não tentavam. Ambos julgavam que o outro era estéril. Na última noite que passaram juntos, quando Serena o ia entregar aos americanos, aconteceu o improvável. A gravidez de Serena vem acentuar ainda mais que tudo o que Offred passou foi em vão.
Mas finalmente conseguimos ter uma certeza sobre a personagem: a maior ambição na vida de Serena era mesmo ser mãe, isso não era fachada. Vemo-la ajoelhada na capela do estabelecimento prisional do Tribunal Criminal Internacional, a agradecer a Deus por mais uma semana de gravidez sem perder o bebé. Isto é sincero. Serena faria tudo para ter uma criança, inclusive roubá-la à mãe. E não seria a única. Ainda antes de Gilead, quando June dá à luz Hannah, uma estranha entra na maternidade e tenta roubar o bebé. É preciso ter em mente que foi esta crise de natalidade que esteve na origem do regime de Gilead. Com esta gravidez, Serena consegue esquecer a sua obsessão com Nichole (o que já era doentio).
A quarta temporada é também aquela em que vimos June transformar-se num monstro. Depois de uma tentativa de fuga falhada, June é recapturada e desta vez a Tia Lydia propõe uma inovação para as Servas mais insubmissas, uma “Colónia de Madalenas” onde estas podem trabalhar no campo e receber os Comandantes para a Cerimónia mensal. Ou seja, uma quinta de procriação. As servas em causa não chegam a ir para lá porque conseguem fugir de vez (ou morrer pelo caminho). June é resgatada no cenário de guerra de Chicago (que me recordou o mundo apocalíptico de “The Walking Dead”) por Moira, que ali se encontrava com uma ONG humanitária. “Resgatada” não é bem o termo. Moira quase teve de a arrastar dali para fora porque June continuava a recusar sair de Gilead sem Hannah.
Enfim, June está no Canadá, junto de Luke, Moira e Nichole, mas é uma estranha que eles já não reconhecem. Na sua deposição ao representante do governo americano no exílio, Mark Tuello, June acusa Serena Joy de ser um monstro, uma sociopata narcisista e uma grande actriz. Pergunto-me se neste caso não estará a chamar roto ao nu. Sim, compreendo muito bem que June tenha regressado de Gilead um monstro de raiva e fúria, com a culpa de ter falhado (não ter conseguido libertar Hannah) e a culpa de todo o sangue nas suas mãos (por esta altura June já foi a causadora de tantas mortes como o número de pessoas que salvou, o que é um balanço complicado, mas por outro lado quem se mete na Resistência já sabe ao que se arrisca) a acrescer à frustração. E sim, acredito que Serena Joy seja um monstro, mas um outro tipo de flor venenosa: a fanática religiosa. Ainda não estou convencida da sua sociopatia porque quando Eden foi executada (temporadas atrás) Serena ficou tão impressionada que decidiu tomar uma posição pelas mulheres e raparigas de Gilead, o que lhe custou um dedo. Isto demonstra empatia.
June, por outro lado, está completamente descontrolada. Depois de uma magnífica cena em que June depõe contra Fred em tribunal (aconselho a reparar em como a câmara se vai movendo na direcção dela, tão devagar que nem se nota), com toda a compostura e coerência, Fred faz um acordo com o governo americano para revelar os segredos de Gilead em troca da sua liberdade. June perde a cabeça. Ou ganha-a, é difícil tecer julgamentos, e consegue aliciar as mulheres do seu grupo de terapia a darem vazão a toda a raiva que tentam ultrapassar. June não quer ultrapassar a raiva, quer usá-la. E com alguma sorte que a pôs no caminho das pessoas certas, consegue o que quer.
Ao primeiro visionamento, pensei que o que acontece a Fred é um barbarismo sádico, mas ao segundo visionamento mudei de ideias. Temporadas atrás, Fred dá uma tareia de cinto a Serena que não era obrigado a dar (pela lei de Gilead, isto é). No meio de tantas atrocidades em “The Handmaid’s Tale” aquilo passou-me quase despercebido (e Serena até merecia levar uma tareia, se bem que não do marido nem naquelas circunstâncias). Detestei Fred, e descobri que era possível detestá-lo ainda mais. E agora temos a confirmação de Serena de que Fred não era assim mas mudou quando o poder lhe subiu à cabeça. Como eu desconfiava. Logo, Fred não passa de um homem desprezível e só teve aquilo que mereceu.
Da primeira vez que conseguiu fugir, June quase rompeu a orelha para arrancar a etiqueta vermelha de “mulher fértil” que lhe foi colocada como se fosse gado. É curioso e intrigante que após chegar ao Canadá June não tire a etiqueta e continue a usar a cor vermelha típica das servas. Interpreto esse comportamento como o de alguém que desta vez não está disposto a deixar Gilead para trás, que quer usar a raiva contra Gilead para continuar a lutar.

Rita
Não cheguei a falar muito das Marthas. As Marthas são as criadas (escravas) de Gilead. Rita Blue é uma delas e consegue escapar. Não ter sido uma Serva não significa que esteja menos traumatizada. Tudo o que quer é esquecer um passado em que era considerada propriedade, “registada e tudo”, como ela diz. No meio de tantos horrores, foi um prazer vê-la sozinha a deliciar-se com um sushi que não teve de cozinhar ela própria no seu apartamento em Toronto. Rita é das personagens mais simpáticas e teve um fim feliz. Bem, esperemos.

Pactos com o Diabo
Também não falei muito das Tias. As Tias são a Gestapo no feminino, basicamente. São elas que determinam a vida de todas as outras mulheres, até as das Esposas. A Tia Lydia é um monstro de sadismo com muitos traumas pessoais a transformarem-na noutra fanática religiosa com um bastão de electrocutar gado na mão. Duvido que esta personagem consiga alguma vez redimir-se. Mas há progressos. Lydia desenvolveu um carinho especial pela Serva Janine e decide tratar as mulheres sob sua guarda com maior compaixão. As definições de “carinho” e “compaixão” de Lydia não são iguais às nossas, mas é melhor do que nada.
Quase afastada devido a um ataque contra si (Emily espetou-lhe uma faca nas costas, e bem merecida), Lydia encontra-se na necessidade de fazer uma aliança com alguém que antes desprezava, o Comandante Lawrence. Também a situação dele é periclitante, mas neste pacto improvável ambos decidem “corrigir Gilead” no que está mal. Finalmente percebemos que Lawrence foi vítima das utopias que escreveu e que nunca deviam ter passado de ficção. Lawrence odeia Gilead. A sua última invenção é a ilha de New Bethlehem, sem as regras de Gilead, sem Servas nem enforcamentos e sem proibição de ler, para atrair os refugiados de volta. Curiosamente, a ideia quase consegue convencer June (aliciada pela proximidade de Hannah), que abre os olhos a tempo.

Por esta altura, dois movimentos curiosos começam a desenvolver-se no Canadá sem que estejam aparentemente relacionados. Um deles é religioso e apoia os Waterfords. Em suma, as pessoas ficam fascinadas com Serena e a sua gravidez miraculosa. Não é de espantar. A crise de natalidade é real. Serena é uma mulher bonita, alta, carismática, boa oradora quando a deixam abrir a boca, uma Grace Kelly encantadora. Os casais inférteis podem naturalmente pensar, em desespero de causa, que se Gilead consegue uma gravidez de uma “mulher estéril” eles também deviam fazer o mesmo, fechando os olhos a todas as atrocidades. O imperativo biológico de procriar é muito forte.
O outro movimento é talvez ainda mais preocupante. Se a princípio os refugiados de Gilead eram bem-vindos, agora uma contra-corrente de canadianos começa a querê-los fora do país.
Sabendo isto tudo, Serena dirige-se a Gilead onde se sente em casa para fazer propostas, e leva patadas atrás de patadas. Mas uma fanática não desiste, e Serena ajudou a conceber Gilead, excepto quando…

Pacto de duas diabas
O episódio mais marcante da quinta temporada, se não da série toda, no entanto, é “No Man's Land”. June e Luke fazem uma incursão por terras de ninguém (em busca de informação sobre Hannah) onde June é capturada para ser executada em Gilead ou pelo caminho. Entretanto, Serena é enviada para um Centro de Informação de Gilead em Toronto, tipo uma embaixadora informal, mas o Centro é depressa fechado. Ficamos a saber que Gilead tem gente rica e poderosa do seu lado no Canadá, e Serena vê-se “refugiada” na casa dos Wheelers. É um paralelo com os Waterfords, porque Mrs. Wheeler prende Serena na propriedade e tenciona roubar-lhe o bebé. Pela primeira vez, Serena sabe o que é ser uma Serva, e não gosta nada.
Conseguindo convencer Mr. Wheeler de que quer ser ela a matar June, consegue fugir da mansão, já em trabalho de parto. E assim as duas inimigas confrontam-se em pleno matagal, sozinhas. Muito contra a sua vontade, June ajuda Serena a ter o filho. A solidariedade feminina sobrepõe-se ao ódio. Esta série não é sobre a infertilidade; pelo contrário, o tema principal é a maternidade.
Este foi um dos melhores episódios que eu já vi na vida, por todas as razões e mais alguma, e especialmente pelo realismo com que se desenrola o parto. Se Elisabeth Moss faz um papelão quando teve de dar à luz Nichole sozinha, Yvonne Strahovski não lhe fica atrás. Se Serena Joy merecia ajuda? Talvez não, mas June é incapaz de virar as costas a outra mulher em dificuldades. Talvez agora, que Serena está em muito maus lençóis, June consiga seguir em frente e dar a vingança por terminada.

O fim está próximo
O que podemos esperar da última temporada? Eu gostava de ver a redenção de alguns personagens. Mas não quero, NÃO QUERO, ver o apaixonado Nick Blaine na Parede, nem Luke, ou, pior ainda, a pobre Janine (a quem saiu a sorte grande ao ser colocada na casa de Lawrence e não percebeu a oportunidade que deitou fora. Se ao menos June lhe tivesse contado mais coisas…) Lawrence e Lydia podem muito bem acabar na Parede, se bem que eu preferisse uma redenção. Mas é possível redimir Lydia? Duvido. E Serena Joy, terá finalmente a epifania de perceber que o seu papel é ajudar a derrubar Gilead, da mesma forma que derrubou o governo dos Estados Unidos? E o desgraçado Mark Tuello, que tem um fraquinho romântico por Serena, terá alguma sorte?
Por último, e June? Esta é uma mulher capaz de tudo para resgatar a filha Hannah. Será que vamos ter um final feliz… ou não? Isto é “The Handmais’s Tale”, não esqueçamos. June já gastou toda a sorte que tinha.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 3 vezes

domingo, 4 de dezembro de 2022

The Handmaid’s Tale (2017-?)


[crítica à primeira e segunda temporadas]

Uma das séries mais chocantes dos últimos tempos, esta é a adaptação do livro homónimo de Margaret Atwood.
Antes de entrarmos na crítica propriamente dita, tenho duas coisas a dizer.
A primeira, é que fiquei chocada por haver mulheres que ficaram chocadas por esta série mostrar o quanto as mulheres podem ser más umas para as outras. Não percebo, sinceramente. Que existências resguardadas devem estas “chocadas” ter experimentado a vida toda ou, pelo contrário, o “choque” é fingido. Custa-me a acreditar que uma mulher não conheça a perfídia (e o fingimento) de que outra mulher é capaz.
Segundo, embora não seja grande apologista de leituras obrigatórias, penso que este livro (e/ou a série), tal como outros clássicos distópicos como “1984” de George Orwell e “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, deviam fazer parte de um kit de leitura de sobrevivência e prevenção contra todos os totalitarismos.
Acho muito curioso que o livro tenha sido publicado em “1985” (embora todos os livros sejam escritos muito antes), como se uma sequência natural de “1984”. Terá sido apenas uma coincidência, mas não deixa de ser interessante.
Uma vez que não estou a escrever um livro, posso dar-me ao luxo de um pequeno info dump para situar a história. A Terra está tão poluída que isso se reflectiu nas taxas de fertilidade e natalidade. Muito poucas mulheres conseguem engravidar e levar a gravidez a termo, ou mesmo dar à luz bebés saudáveis. (Isto recorda outro clássico distópico, “Children of Men” de P. D. James, mas muito mais chocante.) Na América, uma facção de fanáticos religiosos chamados Sons of Jacob tomam o poder pela propaganda e pela força, entrando em guerra com o governo americano (que perde) e estabelecendo o regime do novo país Gilead. Mulheres férteis são escravizadas como Handmaidens (Servas) para darem à luz os filhos dos governantes de Gilead.
Pauso novamente para explicar de onde os Sons of Jacob tiraram a ideia. É possível que os Sons of Jacob tenham sido uma seita evangélica antes do regime, mas os pressupostos bíblicos em que se baseiam e a nova religião que inventam não têm nada a ver com qualquer cristianismo que conheçamos hoje. A ideia das Servas vem do episódio bíblico em que Raquel, sendo estéril, “oferece” a sua serva (escrava) Bila a Jacó (a Bíblia está cheia destes exemplos edificantes) para que este tivesse relações sexuais com ela e Bila “parisse sobre os joelhos” de Raquel, como se o filho fosse desta. (Génesis 30, 1-5) Basicamente, Bila é uma barriga de aluguer à força, tal como o são estas novas Servas de Gilead.
A nova religião leva este “sobre os joelhos” completamente à letra e inventa um ritual em que a Serva é violada no meio das pernas da esposa enquanto o marido a penetra sem lhe tocar. Isto não é só doentio e repugnante e criminoso, acho-o mesmo escabroso e até um pouco badalhoco (em todos os sentidos). Mas segundo a doutrina do ritual em que marido e mulher participam, a Serva é apenas o receptáculo entre eles.
Da mesma forma, quando a Serva dá à luz, a esposa finge que também está a dar à luz, fazendo a respiração e tudo. Dito assim, até parece cómico. Foi mesmo por achar cómico que uma das futuras Servas, ainda em “formação”, perdeu um olho.
Quando as Servas têm filhos, as crianças são-lhes tiradas e as Servas são enviadas para um novo “destacamento”. Uma vida de inferno.

Offred / June
Offred é a Serva do Comandante Fred Waterford (daí o nome OfFred) e da sua esposa Serena Joy. Na “outra vida” Offred chamava-se June, casada com Luke e mãe de Hannah. Quando o regime de Gilead começou a exercer poder, como a própria June explica, estavam “adormecidos”, incapazes de acreditar que as coisas chegassem tão longe. Mas então começa a guerra e o totalitarismo impõe-se de forma brutal e sangrenta. June e Luke ainda tentam fugir para o Canadá, mas são apanhados. Luke consegue escapar, com ajuda de estranhos. Hannah é retirada à mãe e entregue a um casal de dirigentes do novo regime. June, por ser fértil, é “recondicionada” para ser Serva, o que implica tortura, lavagem cerebral, mutilação e até morte para as mais rebeldes.
Demorei um bocado a perceber que nem todas as mulheres férteis iam para Servas. June não escapou porque é considerada adúltera. Descobrimos depois que June e Luke começaram por ter um caso enquanto ele ainda era casado com outra mulher, de quem se divorciou para casar com June. Basta isto para ser pecado, ou desculpa, para arrebanharem mais uma Serva. Mães solteiras, lésbicas, “pecadoras” várias, desde que férteis, vão para Servas. Outras mulheres vão para Marthas (criadas domésticas). Em Gilead tudo está previsto, até as cores com que todas se vestem: as Esposas vestem verde, as Servas vermelho, as Marthas cinzento. Assim não há confusões quanto ao lugar de cada qual na sociedade. Para além da violação ritualizada uma vez por mês, chamada a Cerimónia, as Servas também podem ir às compras, duas a duas, por ruas cheias de enforcados: homossexuais, médicos que fazem abortos, até padres. Gilead não gosta da religião antiga porque tem a sua.
As mulheres são proibidas de ler, até mesmo a Bíblia. A pena por ler é o corte de um dedo ou da mão toda. (Pergunto-me como é que eles pensam continuar a fazer isto no futuro. Para uma sociedade que passa o tempo a declamar salmos e outras passagens bíblicas memorizadas, vai tornar-se difícil que as mulheres memorizem o que não conseguem ler… Mas se calhar bastará um ”ámen”, como na Idade Média em que o povo também não lia.)
Como desculpa para todos estes horrores, os dirigentes de Gilead proclamam que estão a criar um mundo sem poluição (à excepção dos carros e aviões deles). Isto justifica também regressar a hábitos “tradicionais”, como andar 300 anos para trás.
Não há nada em “The Handmaid’s Tale” que não se tenha passado algures na História, como diz a própria autora, mas admito que aquela violação escabrosa e institucional a dois possa ser um elemento realmente original.
Nesta sociedade santarrona, apesar de tudo, o vício tem lugar nos bastidores. Quando uma mulher é considerada “irredimível” é enviada para bordéis secretos onde é chamada Jezebel. A Jezebel é igualmente uma escrava, mas não institucional. As mulheres, até mesmo as Esposas, perderam todo e qualquer poder. Se sabem, fecham os olhos.
Finalmente, quando a mulher já não tem qualquer valor reprodutivo ou sexual, ou é demasiado rebelde, é enviada para as sinistras Colónias (ainda não percebi onde são) encher sacos de lixo radioactivo até à morte. Estas são chamadas Unwomen, o que lembra a “non-person” de Orwell (quem era morto pelo regime). Aliás, o que não falta aqui é “new-speak”, como em qualquer totalitarismo. “Bendito Seja o Fruto”, “Que o Senhor Abra”, é a saudação entre Servas. Cada classe tem a sua.
Offred tem momentos de grande desespero, mas não pode desistir porque não perde a esperança de salvar a filha Hannah. Isto é um grande motivador. Outras mulheres perdem a cabeça (como Janine) ou recorrem à violência em desespero de causa (como Emily, que já não julga escapar com vida). Offred tem dois grandes trunfos para além da motivação de encontrar a filha: é uma manipuladora nata, e está (sempre esteve) muito à vontade com a sua sexualidade. Isto permite-lhe, por exemplo, seduzir o Comandante Fred e fingir-se sua amante (chega a fazer sexo com ele fora da obrigação da Cerimónia) de modo a obter mais margem de manobra e protecção. Não imagino uma Emily a conseguir fingir isto, mesmo que quisesse. Numa forma de reclamar o seu corpo e a sua sexualidade, June envolve-se numa relação romântica (e consensual) com o guarda/motorista dos Waterford, Nick, o que se vai revelar fulcral para o desenvolvimento do enredo.
June tem a perfeita consciência de que pisa demasiado o risco. É necessário resistir, mas não ser estúpida a ponto de ser enforcada: morta, não conseguirá ajudar a filha. Mas June não é a personagem perfeita, longe disso. Tal como alguém lhe diz, já na terceira temporada, muitas vezes é egoísta e age apenas no seu interesse, não importando quem tenha de sacrificar. E é verdade, por exemplo, quando quase obriga um casal a ajudá-la a fugir, o que estes fazem por decência, com resultados funestos. (Curiosamente, esta é uma família muçulmana que esconde o Corão debaixo da cama, o que leva June a meditar que podia ter sido a família dela, se tivessem sabido jogar o jogo, se soubessem que o estavam a jogar, e se tivessem frequentado “a igreja certa”. As famílias medianas em Gilead não têm Servas e Marthas ao dispor, são apenas gente normal a tentar sobreviver mesmo que tenham de esconder a sua religião, o que nos leva imediatamente para um paralelo com o Nazismo.)
Noutra situação, Offred incita as outras Servas à revolta, sabendo que por estar grávida se tornou “intocável”, mas as outras são barbaramente castigadas e June tem de viver com essa culpa. Mas eu gosto de personagens realistas, complexas e atormentadas. O que nos leva aos verdadeiros vilões.

Fred e Serena Joy Waterford
“The Handmaid’s Tale” recorre bastante aos flashbacks para nos mostrar como as coisas evoluíram até Gilead. Fred e Serena eram dois fanáticos fundamentalistas que já na altura acreditavam que a humanidade estava à beira da extinção e que era preciso tomar todas as medidas necessárias para o evitar, drásticas que fossem. Serena foi mesmo uma das arquitectas do regime ao escrever o livro “O lugar de uma mulher” onde expôs o seu conceito de “feminismo doméstico” , remetendo a mulher ao seu papel de esposa e mãe. Sim, ironicamente, foi ideia dela. Isto ainda era no tempo em que Fred e Serena se olhavam como iguais e Serena escrevia livros e dava palestras. Depois de Gilead, tudo mudou. Agora Serena não pode sequer ler o seu próprio livro, e aceitou tudo isto voluntariamente por acreditar na “causa maior”. Mas quando Offred chega a casa dos Waterfords, o casamento deles já está de pantanas. Já não dormem juntos, já quase nem se falam. Serena Joy é a personagem mais complexa nisto tudo. Apesar de ter tido parte bastante activa no estado de coisas, tenta afogar todas as frustrações no objectivo (ou obsessão) de ter um filho através de uma Serva, mas cá para mim não há nada que sacie Serena Joy porque todo o seu intelecto e brilhantismo foram apagados na sociedade que ela própria criou. Não admira que tenha dores de consciência ocasionais, e ataques de raiva que descarrega na Serva e nos criados. Serena Joy poderá nunca ser absolvida perante a sociedade pelos crimes que cometeu, mas também não encontrará paz de espírito enquanto não aceitar os seus erros.
Fred é o personagem menos explicado. Nos flashbacks de “antes” vemos claramente que não era o monstro em que Gilead o tornou, nem Serena Joy teria casado com ele se o fosse, mas não percebemos exactamente como é que ocorreu a transformação de homem que apoia e admira a mulher que escreve livros e discursa em público para marido capaz de a castigar com tareias de cinto. É uma grande diferença e só posso concluir, sem outros motivos, que o poder lhe subiu à cabeça. Mas o estatuto de pai de família é importante e não lhe corre bem alienar ainda mais Serena Joy. Não conseguimos empatizar com estes monstros, mas salta à vista que ninguém é feliz em Gilead, nem os mais poderosos do regime.

Uma série mais actual do que a própria Margaret Atwood poderá ter julgado em 1985
Haverá mais a dizer com as temporadas seguintes, mas para já decidi ficar por aqui. “The Handmaid’s Tale” é uma história cada vez mais actual. Basta recordar que em alguns estados americanos, muito recentemente, o aborto foi proibido. Tal como nos diz a própria série, “não aconteceu da noite para o dia”. Foi progressivo, de perda de liberdade em perda de liberdade até à submissão total.
Destaco ainda a belíssima cinematografia que contrasta propositadamente com as atrocidades a que temos de assistir. Neste aspecto, e pelo tema, “The Handmaid’s Tale” lembra-me “The Man in the High Castle”, mas muito mais realista e acutilante.
Esta é uma série difícil de ver pela tortura e pela barbaridade, mas que aconselho a toda a gente, especialmente àqueles que preferem enterrar a cabeça na areia até ser demasiado tarde (como June e Luke) e não gostam de ver estas coisas. Dois olhinhos bem abertos evitam muitos males. Há que pará-los antes de começarem.

ESTA SÉRIE MERECE SER VISTA: 2 vezes