domingo, 18 de junho de 2023

The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood

Não é costume dizer isto, mas a série estragou-me o livro. Não consegui ler sem imaginar “The Handmaid’s Tale” (a série) na minha cabeça a todos os instantes. Isto significa duas coisas: que a série respeita perfeitamente o material original, e que o livro publicado em 1985 foi o bastante para incendiar imaginações e perturbar consciências até aos dias de hoje.
Não estou a dizer com isto que não adianta ler o livro se já se viu a série, nem que a série é melhor do que o livro, mas depois de ter uma visualização de todo este mundo com personagens tão fortes como June (na série, porque no livro nunca é revelado o nome de Offred, a protagonista) não me foi possível dissociar as duas coisas. A maior parte das vezes dei por mim a reconhecer as cenas e a apontar mentalmente os monólogos de Offfred: “Olha, a June disse isto exactamente assim”; “Olha, a June disse isto mas deixou parte de fora”; “Olha, aqui está dito de forma diferente”. Também não ajuda que eu esteja completamente viciada na série.
Em suma, preferia ter lido o livro primeiro, mas agora já está. Atwood foi ousada em apresentar-nos Gilead tão intimamente sem grande exposição, como se o leitor conhecesse perfeitamente a distopia em que Offred estava aprisionada e porquê. Só posso imaginar o choque que isto tenha causado aos leitores que não sabiam para o que iam (como me costuma acontecer a mim), e que se calhar tiveram de ler duas ou três vezes para perceber todo o horror que Offred, muitas vezes veladamente, lhes ia revelando nos seus diários.
No entanto, existem pequenos pormenores de diferença. Como aquelas crianças a quem é repetidamente contado um conto de certa maneira até o ouvirem de forma diferente e que dizem “a história não é assim”, obviamente que reparei neles. Outros ajudam-nos a perceber melhor certas relações e acontecimentos que a série não aprofundou. Por exemplo, a origem da frase “nolite te bastardes carborundorum” está aqui muito melhor explicada.
E depois há a cena da gata…

Spoilers
No livro, June (vou usar o nome da série) e Luke têm uma gata. Quando Gilead faz com que June e todas as mulheres percam o emprego, June conforta-se abraçando a gata contra o peito. Comovente, não é? Mas na hora de fugir para o Canadá com Hannah, Luke e June apercebem-se de que não podem “levar um gato com eles a cruzar a fronteira”, que deixar a gata para trás os podia denunciar (se a deixassem à solta ela miava em volta da casa) e que não a podiam oferecer a ninguém que os pudesse trair de seguida. Então o que é que fazem? A gata está escondida debaixo da cama e June até diz “eles sabem sempre”. Luke leva a gata para a garagem e mata-a. Assim mesmo. Mais tarde, quando de facto são traídos, June pergunta-se que género de maldade leva outros seres humanos a traírem os vizinhos. June, filha, e o que terá pensado o animalzinho nos seus últimos momentos naquela garagem, traído pela única família que conheceu, a quem amava e por quem se julgava tão amado que era abraçado contra o peito, que últimos momentos foram esses, cheios de medo, confusão, dor e amargura? Pensaste nisso?
Felizmente, os criadores da série perceberam que isto não ia cair nada bem no público actual e não incluíram essa cena. Afinal, o livro foi publicado em 1985, quando os animais não eram considerados parte da família. Que lhes fazer? Matá-los, afogá-los à nascença, fazia-se tudo isso quando eram incómodos e já não davam jeito. Actualmente é impensável deixar um animal para trás (por exemplo, os refugiados da Ucrânia levaram cães e gatos com eles), e não daria tanto nas vistas porque muita gente leva os animais de estimação quando vai de férias. Na altura talvez não.
Não é que eu não acredite que a June da série não seja capaz de matar um gato, dois gatos, mil gatos. Pelo contrário. O que acho é que a June da série é monstruosa a um ponto que a Offred do livro nunca chega a ser e mesmo assim não me apeteceu torcer por ela. Perturbou-me, revoltou-me. Isto não é dizer pouco quando se fala de “The Handmaid’s Tale”, mas para tudo o resto eu já ia preparada.
Ainda por cima, na série, quando fogem, June e Luke passam por imensos matagais desertos onde podiam muito bem ter deixado a gata e assim esta sempre tinha uma oportunidade de caçar ou encontrar um novo lar. Na garagem é que não teve oportunidade nenhuma.
A acção do livro só cobre as primeiras duas temporadas da série e a própria Margaret Atwood faz parte da equipa, o que poderá explicar o sucesso da expansão do mundo de Gilead. O livro termina quando Offred é levada para parte incerta pela polícia do regime, sem saber o que lhe vai acontecer. Acredito que este fim em aberto tenha causado pesadelos a inúmeras gerações de leitores.
Por fim, o livro deixa-nos uma nota de esperança. Muitos anos no futuro, durante um simpósio sobre Gilead, os diários de Offred (aparentemente gravados em cassete, como em certa passagem da série) são analisados e debatidos, sendo mesmo posta em causa a sua veracidade e de que modo Offred os poderia ter gravado e escondido. Mas Gilead é sempre referida como uma sociedade do passado, algo de extinto que merece a pena ser estudado. O que nos diz, também não disfarçadamente, que Gilead não ganhou no fim.
Margaret Atwood escreveu uma distopia magnífica, um sucessor perfeito dos gigantes “Farenheit 451” e “1984”, e ainda por cima com um contexto muito actual.
Recomendo a toda a gente que não faça o que eu fiz: leiam o livro primeiro, até porque é curto. E depois, sim, devorem a série.
Quanto à cena da gata… vou fingir que não li. Já me perturbou mais do que o bastante.

 

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Gotikka.

Nunca vi a série mas pelas resenhas que tenho lido aqui no blog fiquei com vontade de ver. Obrigada de uma leitora silenciosa :)

Margaret Atwood publicou uma sequela em 2019, Os Testamentos:
https://www.goodreads.com/book/show/42975172-the-testaments

Ainda que tenha gostado mais do primeiro vale a pena ler para ver como a autora decide fazer ruir Gilead.

Mariana

katrina a gotika disse...

Olá!
Obrigada por leres e pelo comentário.
Não conhecia essa “sequela”, sinceramente, e vou já pôr-me à procura. Do que vi é de 2019? Isso explica que ainda não seja muito conhecida.
Por outro lado, já que comecei mal (pela série) agora também não quero que o livro me estrague o fim da série, prevista para Setembro.
Mas sim, vou ler de certeza!
Muito obrigada pela dica e passa por aqui mais vezes! ;)