[contém spoilers]
[Primeiras duas temporadas]
[Terceira temporada]
“O pânico é um desperdício de energia.”
Assistir a “The Handmaid’s Tale” é difícil. Das quatro pessoas que faziam críticas que eu lia desde o início da série, só uma delas não desistiu. Pior do que a violência física talvez seja mesmo a violência psicológica que o espectador tem de suportar tal como os personagens. Eu, no entanto, considero esta série educativa e até mesmo inspiradora, um abre-olhos, um kit de sobrevivência para quem não gosta de enterrar a cabeça na areia. Por exemplo, quando June e Luke são capturados e muito possivelmente vão ser executados, e June lhe diz quando ele se está a passar: “O pânico é um desperdício de energia.” June tem experiência com situações extremas e já percebeu que em Gilead o importante é manter sempre a cabeça fria (“keep your shit together”, como Moira lhe diz) para poder agir no caso de surgir uma mínima hipótese de fuga. Não adianta entrar em pânico. Acontecerá o que tiver de acontecer.
“O pânico é um desperdício de energia.” Vou assimilar esta lição de vida e não me esquecer dela.
“We only wanted to make the world better. Better never means better for everyone. It always means worse for some.”, diz Fred logo na primeira temporada. Nos regimes totalitários, a primeira coisa a ser proibida são os livros. Gilead não é excepção. Chamo a atenção para o nº da porta de Emily em Toronto: 451, o que certamente também não é um detalhe inocente.
No último episódio da terceira temporada, num flashback, June recorda o início de Gilead. Vemos mulheres serem presas e separadas. Vemos doentes e deficientes mentais serem levados para parte incerta. Vemos mulheres nuas a serem examinadas em contentores, recordando os campos de concentração nazis. A partir da terceira temporada (que já ultrapassa o livro de Margaret Atwood) a série começou a estabelecer cada vez mais paralelos deste tipo, a começar com o símbolo de Gilead, que não sei bem o que é mas dá a entender que é uma pomba de asas abertas. Parece mais a águia nazi, especialmente nas longas faixas negras que acompanham os procedimentos oficiais. A presença constante dos soldados a falar indistintamente ao rádio, os cães a ladrar, os adornos subliminares em forma de suástica nas portas das Jezebels e até nos canteiros da escola de Hannah, acentuam esta imagética da 2ª Guerra Mundial. Custa-me menos ver “The Handmaid’s Tale”, porque afinal é ficção, do que a assistir a documentários do que aconteceu na realidade.
Com esta ninguém contava
Mais uma vez, não esperava voltar a escrever sobre “The Handmaid’s Tale” tão cedo mas os acontecimentos no enredo já começam a ser demais para a crítica final.
A grande “bomba” da quarta temporada é sem dúvida a gravidez de Serena Joy. Como eu dizia, o casamento dos Waterfords já estava de pantanas antes da chegada de Offred e eles simplesmente já não tentavam. Ambos julgavam que o outro era estéril. Na última noite que passaram juntos, quando Serena o ia entregar aos americanos, aconteceu o improvável. A gravidez de Serena vem acentuar ainda mais que tudo o que Offred passou foi em vão.
Mas finalmente conseguimos ter uma certeza sobre a personagem: a maior ambição na vida de Serena era mesmo ser mãe, isso não era fachada. Vemo-la ajoelhada na capela do estabelecimento prisional do Tribunal Criminal Internacional, a agradecer a Deus por mais uma semana de gravidez sem perder o bebé. Isto é sincero. Serena faria tudo para ter uma criança, inclusive roubá-la à mãe. E não seria a única. Ainda antes de Gilead, quando June dá à luz Hannah, uma estranha entra na maternidade e tenta roubar o bebé. É preciso ter em mente que foi esta crise de natalidade que esteve na origem do regime de Gilead. Com esta gravidez, Serena consegue esquecer a sua obsessão com Nichole (o que já era doentio).
A quarta temporada é também aquela em que vimos June transformar-se num monstro. Depois de uma tentativa de fuga falhada, June é recapturada e desta vez a Tia Lydia propõe uma inovação para as Servas mais insubmissas, uma “Colónia de Madalenas” onde estas podem trabalhar no campo e receber os Comandantes para a Cerimónia mensal. Ou seja, uma quinta de procriação. As servas em causa não chegam a ir para lá porque conseguem fugir de vez (ou morrer pelo caminho). June é resgatada no cenário de guerra de Chicago (que me recordou o mundo apocalíptico de “The Walking Dead”) por Moira, que ali se encontrava com uma ONG humanitária. “Resgatada” não é bem o termo. Moira quase teve de a arrastar dali para fora porque June continuava a recusar sair de Gilead sem Hannah.
Enfim, June está no Canadá, junto de Luke, Moira e Nichole, mas é uma estranha que eles já não reconhecem. Na sua deposição ao representante do governo americano no exílio, Mark Tuello, June acusa Serena Joy de ser um monstro, uma sociopata narcisista e uma grande actriz. Pergunto-me se neste caso não estará a chamar roto ao nu. Sim, compreendo muito bem que June tenha regressado de Gilead um monstro de raiva e fúria, com a culpa de ter falhado (não ter conseguido libertar Hannah) e a culpa de todo o sangue nas suas mãos (por esta altura June já foi a causadora de tantas mortes como o número de pessoas que salvou, o que é um balanço complicado, mas por outro lado quem se mete na Resistência já sabe ao que se arrisca) a acrescer à frustração. E sim, acredito que Serena Joy seja um monstro, mas um outro tipo de flor venenosa: a fanática religiosa. Ainda não estou convencida da sua sociopatia porque quando Eden foi executada (temporadas atrás) Serena ficou tão impressionada que decidiu tomar uma posição pelas mulheres e raparigas de Gilead, o que lhe custou um dedo. Isto demonstra empatia.
June, por outro lado, está completamente descontrolada. Depois de uma magnífica cena em que June depõe contra Fred em tribunal (aconselho a reparar em como a câmara se vai movendo na direcção dela, tão devagar que nem se nota), com toda a compostura e coerência, Fred faz um acordo com o governo americano para revelar os segredos de Gilead em troca da sua liberdade. June perde a cabeça. Ou ganha-a, é difícil tecer julgamentos, e consegue aliciar as mulheres do seu grupo de terapia a darem vazão a toda a raiva que tentam ultrapassar. June não quer ultrapassar a raiva, quer usá-la. E com alguma sorte que a pôs no caminho das pessoas certas, consegue o que quer.
Ao primeiro visionamento, pensei que o que acontece a Fred é um barbarismo sádico, mas ao segundo visionamento mudei de ideias. Temporadas atrás, Fred dá uma tareia de cinto a Serena que não era obrigado a dar (pela lei de Gilead, isto é). No meio de tantas atrocidades em “The Handmaid’s Tale” aquilo passou-me quase despercebido (e Serena até merecia levar uma tareia, se bem que não do marido nem naquelas circunstâncias). Detestei Fred, e descobri que era possível detestá-lo ainda mais. E agora temos a confirmação de Serena de que Fred não era assim mas mudou quando o poder lhe subiu à cabeça. Como eu desconfiava. Logo, Fred não passa de um homem desprezível e só teve aquilo que mereceu.
Da primeira vez que conseguiu fugir, June quase rompeu a orelha para arrancar a etiqueta vermelha de “mulher fértil” que lhe foi colocada como se fosse gado. É curioso e intrigante que após chegar ao Canadá June não tire a etiqueta e continue a usar a cor vermelha típica das servas. Interpreto esse comportamento como o de alguém que desta vez não está disposto a deixar Gilead para trás, que quer usar a raiva contra Gilead para continuar a lutar.
Rita
Não cheguei a falar muito das Marthas. As Marthas são as criadas (escravas) de Gilead. Rita Blue é uma delas e consegue escapar. Não ter sido uma Serva não significa que esteja menos traumatizada. Tudo o que quer é esquecer um passado em que era considerada propriedade, “registada e tudo”, como ela diz. No meio de tantos horrores, foi um prazer vê-la sozinha a deliciar-se com um sushi que não teve de cozinhar ela própria no seu apartamento em Toronto. Rita é das personagens mais simpáticas e teve um fim feliz. Bem, esperemos.
Pactos com o Diabo
Também não falei muito das Tias. As Tias são a Gestapo no feminino, basicamente. São elas que determinam a vida de todas as outras mulheres, até as das Esposas. A Tia Lydia é um monstro de sadismo com muitos traumas pessoais a transformarem-na noutra fanática religiosa com um bastão de electrocutar gado na mão. Duvido que esta personagem consiga alguma vez redimir-se. Mas há progressos. Lydia desenvolveu um carinho especial pela Serva Janine e decide tratar as mulheres sob sua guarda com maior compaixão. As definições de “carinho” e “compaixão” de Lydia não são iguais às nossas, mas é melhor do que nada.
Quase afastada devido a um ataque contra si (Emily espetou-lhe uma faca nas costas, e bem merecida), Lydia encontra-se na necessidade de fazer uma aliança com alguém que antes desprezava, o Comandante Lawrence. Também a situação dele é periclitante, mas neste pacto improvável ambos decidem “corrigir Gilead” no que está mal. Finalmente percebemos que Lawrence foi vítima das utopias que escreveu e que nunca deviam ter passado de ficção. Lawrence odeia Gilead. A sua última invenção é a ilha de New Bethlehem, sem as regras de Gilead, sem Servas nem enforcamentos e sem proibição de ler, para atrair os refugiados de volta. Curiosamente, a ideia quase consegue convencer June (aliciada pela proximidade de Hannah), que abre os olhos a tempo.
Por esta altura, dois movimentos curiosos começam a desenvolver-se no Canadá sem que estejam aparentemente relacionados. Um deles é religioso e apoia os Waterfords. Em suma, as pessoas ficam fascinadas com Serena e a sua gravidez miraculosa. Não é de espantar. A crise de natalidade é real. Serena é uma mulher bonita, alta, carismática, boa oradora quando a deixam abrir a boca, uma Grace Kelly encantadora. Os casais inférteis podem naturalmente pensar, em desespero de causa, que se Gilead consegue uma gravidez de uma “mulher estéril” eles também deviam fazer o mesmo, fechando os olhos a todas as atrocidades. O imperativo biológico de procriar é muito forte.
O outro movimento é talvez ainda mais preocupante. Se a princípio os refugiados de Gilead eram bem-vindos, agora uma contra-corrente de canadianos começa a querê-los fora do país.
Sabendo isto tudo, Serena dirige-se a Gilead onde se sente em casa para fazer propostas, e leva patadas atrás de patadas. Mas uma fanática não desiste, e Serena ajudou a conceber Gilead, excepto quando…
Pacto de duas diabas
O episódio mais marcante da quinta temporada, se não da série toda, no entanto, é “No Man's Land”. June e Luke fazem uma incursão por terras de ninguém (em busca de informação sobre Hannah) onde June é capturada para ser executada em Gilead ou pelo caminho. Entretanto, Serena é enviada para um Centro de Informação de Gilead em Toronto, tipo uma embaixadora informal, mas o Centro é depressa fechado. Ficamos a saber que Gilead tem gente rica e poderosa do seu lado no Canadá, e Serena vê-se “refugiada” na casa dos Wheelers. É um paralelo com os Waterfords, porque Mrs. Wheeler prende Serena na propriedade e tenciona roubar-lhe o bebé. Pela primeira vez, Serena sabe o que é ser uma Serva, e não gosta nada.
Conseguindo convencer Mr. Wheeler de que quer ser ela a matar June, consegue fugir da mansão, já em trabalho de parto. E assim as duas inimigas confrontam-se em pleno matagal, sozinhas. Muito contra a sua vontade, June ajuda Serena a ter o filho. A solidariedade feminina sobrepõe-se ao ódio. Esta série não é sobre a infertilidade; pelo contrário, o tema principal é a maternidade.
Este foi um dos melhores episódios que eu já vi na vida, por todas as razões e mais alguma, e especialmente pelo realismo com que se desenrola o parto. Se Elisabeth Moss faz um papelão quando teve de dar à luz Nichole sozinha, Yvonne Strahovski não lhe fica atrás. Se Serena Joy merecia ajuda? Talvez não, mas June é incapaz de virar as costas a outra mulher em dificuldades. Talvez agora, que Serena está em muito maus lençóis, June consiga seguir em frente e dar a vingança por terminada.
O fim está próximo
O que podemos esperar da última temporada? Eu gostava de ver a redenção de alguns personagens. Mas não quero, NÃO QUERO, ver o apaixonado Nick Blaine na Parede, nem Luke, ou, pior ainda, a pobre Janine (a quem saiu a sorte grande ao ser colocada na casa de Lawrence e não percebeu a oportunidade que deitou fora. Se ao menos June lhe tivesse contado mais coisas…) Lawrence e Lydia podem muito bem acabar na Parede, se bem que eu preferisse uma redenção. Mas é possível redimir Lydia? Duvido. E Serena Joy, terá finalmente a epifania de perceber que o seu papel é ajudar a derrubar Gilead, da mesma forma que derrubou o governo dos Estados Unidos? E o desgraçado Mark Tuello, que tem um fraquinho romântico por Serena, terá alguma sorte?
Por último, e June? Esta é uma mulher capaz de tudo para resgatar a filha Hannah. Será que vamos ter um final feliz… ou não? Isto é “The Handmais’s Tale”, não esqueçamos. June já gastou toda a sorte que tinha.
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