terça-feira, 24 de outubro de 2023

The Book of Eli / O Livro de Eli (2010)

Contém MUITOS spoilers. Quem gosta de filmes pós-apocalípticos e ainda não viu este deve parar de ler imediatamente e voltar depois. O aviso está feito.

O filme até começa bem. No género “pós-apocalíptico”, um viajante solitário é obrigado a sobreviver como puder. Trinta anos depois de uma guerra nuclear que destruiu o planeta (a palavra “nuclear” nunca é dita mas aquelas crateras e os fumos radioactivos não terão outra explicação…?) a água potável é rara e valiosa e já se acabaram os produtos de higiene como champô e sabonete. A cinematografia é espantosa e coloca-nos imediatamente neste mundo devastado, o que teria muito mais impacto se o género “pós-apocalíptico” não se tivesse tornado uma moda que vimos todos os dias…
Logo nos primeiros minutos do filme percebemos que este Eli é um durão. (Na verdade não temos a certeza se ele se chama Eli, apenas que tem um crachá na mochila a dizer “Olá, eu sou o Eli”, por isso vamos chamar-lhe assim.) Neste mundo há canibais e salteadores, e Eli é atacado por um gangue de 5 ou 6 que o querem roubar e possivelmente comer. Eli, armado apenas com uma catana, dá cabo deles todos, mesmo tendo um deles uma serra eléctrica a funcionar! (Vai ser importante mais à frente.)
Como acontece neste tipo de história, Eli sobrevive do que caça e do que encontra em locais abandonados. À noite, depois de procurar abrigo, gosta de ler um livro “misterioso” e de ouvir música num dispositivo electrónico. É este último “vício”, quando a bateria descarrega, que leva o solitário Eli a procurar uma povoação do tipo faroeste onde a recarregar. (Nota curiosa: o dono da loja de engenhocas é Tom Waits, o músico!)
É aqui também que aparece o vilão, o chefão lá do sítio, que tem todos os capangas à procura de um livro “misterioso”. Obviamente, este é o livro raro que Eli traz na mochila.

Último aviso: SPOILERS!!!
O chefão diz que este não é apenas um livro mas uma arma. Que com as palavras deste livro, que ele recorda de antes do apocalipse mas não lembra de cor, vai conseguir controlar toda a gente desesperada que ainda resta no mundo.
É aqui que está o “spoiler”. O filme quer fazer disto uma grande revelação. Que livro “misterioso” é este? Vou dar umas pistas. Logo nos primeiros minutos do filme, Eli faz citações bíblicas. O livro é grosso. Tem uma capa preta. Na capa tem uma cruz dourada. Qual livro será, qual será? Eu, sinceramente, tive esperança de que fosse o Necromicon de H. P. Lovecraft ou algo ainda mais obscuro. Mas não, é apenas a Bíblia. Acontece que após a guerra apocalíptica os sobreviventes queimaram todas as Bíblias por acharem que esta tinha contribuído para a guerra, ou que tinha sido mesmo a sua causa (e não podemos dizer que estivessem muito enganados…). As poucas Bíblias que escaparam são raras, e Eli tem uma. Assim que se apercebe disto, o chefão decide fazer tudo para lhe deitar as mãos, a bem ou a mal.
Cá está a metáfora, senhores e senhoras: a Bíblia é uma arma porque a religião é uma arma. Nem sequer é uma metáfora implícita porque o chefão verbaliza estas palavras aos capangas: este livro não é só um livro; é uma arma.
Aqui, comecei a ficar apreensiva. Estávamos num filme apocalíptico que de repente começa a virar no sentido evangélico. Mas vamos lá ver no que vai dar.
Bem, vai de mal a pior. Eli recusa entregar o livro, e diz mesmo a uma aliada que faz pelo caminho que ouviu “uma voz”, uma voz que o mandou ir para Oeste e proteger o livro até encontrar um lugar onde o possa deixar em segurança. Voz de Deus, alucinação? Preferi acreditar na alucinação porque já não estava a gostar nada da direcção em que o filme teimava em ir.
Perseguido pelo chefão e os capangas, mas auxiliado pela nova aliada, Eli continua a dirigir-se para Oeste. Entretanto temos umas cenas de porrada e tiroteio na estrada, à Mad Max, e Eli acaba por perder o livro. Mas, aleluia!, o final é tipo “Farenheit 451” e Eli, afinal, não precisava da Bíblia porque a tinha decorado toda! Assim, quando encontra novamente a civilização, exactamente onde a Voz lhe disse para ir, consegue recitar todas as palavras, versículo a versículo, qual Moisés apocalíptico.
Sim, leram bem, o objectivo deste filme é salvar a Bíblia, dê por onde der.
Mas há pior!



O pior
Ainda bem que não me apercebi disto. Quando li as críticas até me caiu o queixo. Então não é que Eli é supostamente cego? E não é que eu não dei por nada? E não dei por nada porque o filme quer fazer disto uma outra “revelação” chocante, e tenta por todos os meios enganar-nos para não o percebermos até à “grande revelação” de que a Bíblia de Eli sobreviveu à queima porque… está em Braille! Logo, Eli é cego.
Este é o gajo que dá conta de 5 ou 6 marmanjos, um deles com uma serra eléctrica. Este é o gajo que anda a direito numa estrada sem precisar de bengala. (Como é que ele sabe se não há um buraco no asfalto?) Sim, reparei que Eli dá muita importância à audição e ao cheiro, mas também o fazem todas as personagens de “The Walking Dead”. Certas vezes Eli segue algo com o olhar, e até espreita por uma janela, algo que nenhum cego precisa de fazer. E quanto à Bíblia em Braille, há pessoas não cegas que sabem ler Braille. Por exemplo, professores ou pessoas que têm invisuais na família. A Bíblia em Braille não quer dizer nada.
Até encontrei comentários sobre isto mais papistas do que o Papa (indo para além do filme), especulando que Deus teria dado visão a Eli enquanto este cumpria a sua missão e retirando-lha quando já não era necessária. Tudo isto para explicar porque é que Eli, sendo cego, era tão durão e eficiente. Sim, bem seria preciso intervenção divina porque não há maneira nenhuma de que alguém cego conseguisse fazer o que Eli faz. Ainda bem que não percebi que o homem era supostamente invisual (o filme não me convenceu da cegueira) ou teria achado isto tudo uma palhaçada descomunal.
Só faltou pregarem o Evangelho abertamente, mas implicitamente até o fazem à mesma. Eu pensava que estava a ver uma história sobre um sobrevivente pós-apocalíptico e saiu-me um super-Moisés da ala Republicana americana e religiosa, um filme cheio de armas e Bíblia como eles gostam. Oh, que desperdício de efeitos especiais e cinematografia! Que desperdício de actores! Que desperdício de ideias e cenários pós-apocalípticos!
Volta Mad Max, estás perdoado!
(Mas pelo menos percebi onde foram buscar a ideia do super-Morgan e das bombas nucleares em “Fear the Walking Dead”. Ah! Aquilo sempre me pareceu que caiu do céu aos trambolhões. Agora já sei.)

12 em 20

 

Sem comentários: