“O Vampiro Armand” - o livro
Pois é. O rapazinho foi violado.
Até que ponto o abuso sexual na infância ou na adolescência pode justificar o (mau) comportamento da vítima depois de adulta?
Por exemplo, até que ponto pesa na defesa de um pedófilo o facto de ele próprio ter sido vítima de abuso?
Sei que estou a afastar-me do “caso Armand” propriamente dito, mas dentro em breve esta temática estará a ferver na comunicação social cá da terra.
A leitura da autobiografia de Armand não me fez mudar de ideias em relação à personagem. De origem russa, Armand era em vida um talentoso pintor de ícones religiosos cuja ambição se resumia a ser admitido no mosteiro para o qual trabalhava. Durante uma viagem que teve de fazer por imposição do pai, é raptado e acaba por ser vendido como escravo sexual a um bordel da Veneza renascentista. Teria uns 14, 15 anos e uma beleza invulgar que o levava a ser confundido com uma rapariga. Inconformado com o seu destino, recusa-se a colaborar com os seus novos donos e entra no que hoje chamamos greve de fome.
Por alguma razão que o livro não explica muito bem, chama a atenção de Marius, um vampiro muito antigo que, assumindo plenamente a sua vida de homem da Renascença, se dedicava à pintura, à leitura e às artes em geral. É Marius que o resgata e o leva para o seu palácio onde criava e educava outros aprendizes a quem estava destinada uma vida de fausto e importância.
No entanto, Armand é especial. Torna-se amante de Marius e apercebe-se facilmente que o seu amo possuía poderes inexplicáveis que não tencionava partilhar. De facto, Marius foi coerente e recusou sempre transformar Armand num vampiro até ao momento em que o jovem é ferido de morte numa briga. É assim que Armand se torna num ser das trevas.
Mas Armand nunca apreciou a educação que recebia. Não via o interesse da filosofia e da história, era um aluno tão preguiçoso antes como depois de perder a mortalidade. E a chama da fé, que antes lhe dera uma razão para viver, estava também extinta debaixo do sofrimento.
Mesmo assim, esses dias em Veneza são tempos de felicidade. Até à noite em que o palácio de Marius é destruído por uma seita de vampiros que se acreditam servos do diabo ao serviço do plano divino. Tinham por missão, com que justificavam a sua existência no mundo, aplicar na terra os castigos infernais, para glória de deus. Viviam nas sombras, debaixo dos cemitérios em terreno “impuro”, vestidos de trapos e cobertos de sujidade, obedecendo a regras muito específicas sobre as vítimas que podiam fazer (por exemplo, não atacar quem usasse um crucifixo) e a criação de novos vampiros. Aos olhos da seita, Marius era um herege, um fora-da-lei, que merecia a destruição por se atrever a viver no meio da Humanidade. Por pouco não conseguiram o seu intento (Marius é bastante mutilado mas sobrevive). Os aprendizes são assassinados. Apenas Armand é poupado, sob pena de se converter às regras da seita. Pensando que o seu amo estava morto, Armand acaba por ir viver em Paris, como líder do coven do Cemitério dos Inocentes, durante uma longa noite de três séculos. A sua personalidade torna-se cada vez mais fria à medida que se entrega à amargura da sua existência.
Quando Lestat, outro “herege”, chega a Paris na sua exuberante inocência - porque Lestat não conhece as regras - provoca escândalo entre a seita e Armand faz o que pode para o eliminar. Mas não é bem sucedido. Pelo contrário, é Lestat quem consegue subverter as mentes dos vampiros da seita e dispersar os seus membros pelo novo mundo das Luzes.
É a partir daqui que se forma o célebre Teatro dos Vampiros, em que Armand, o mais velho, assume também uma liderança hesitante. O seu coração já não conhecia o amor, nem pelos outros nem por ele próprio.
No fim do livro, Armand tenta aproximar-se de Deus mas volta a não ser bem sucedido. Os amigos questionam-se e questionam-no. Duvidam da sua fé. Não faz sentido. O próprio não consegue explicar a sua ânsia, a sua necessidade do divino. E desta vez é uma Sede que Armand não consegue extinguir, provavelmente porque não sabe onde ir beber.
O “dossier Cláudia”
Conheci uma pessoa que dizia que não há uma verdade mas várias verdades. Cada um tem a sua verdade.
Tretas. A verdade é só uma. As mentiras é que podem ser muitas.
Afinal, quem é que matou a vampira Cláudia? Louis acusa Lestat. Lestat diz “Não fui eu, foi Armand”. O que diz Armand? “Não fui eu, foram os meus seguidores, esses malandros”. Uma vez que esses seguidores já foram, muito convenientemente, reduzidos a cinzas pelo fogo da vingança de Louis, já não podem dizer nada em sua defesa. Arquiva-se a investigação por falta de provas? Não me parece.
Louis estava fechado no calabouço. Não podia ser o autor do crime. Lestat remete a culpa para Armand e Armand nunca a devolve. Chega até a confessar a Louis que de facto, sim, tinha sido ele a ordenar a morte de Cláudia.
Penso que as contradições são suficientes para decretar a prisão preventiva e deitar fora a chave. Não contente com isso, na sua autobiografia Armand aparece com uma história ainda mais estapafúrdia. Que sim, que tinha tentado ajudar Cláudia. A pedido desta, que ambicionava acima de tudo ter o corpo da mulher que jamais tinha sido, tentou proceder a uma operação cirúrgica de transplante da cabeça de Cláudia para o corpo de uma vampira adulta. O resultado foi previsivelmente desastroso e mantido em segredo até este momento em que Armand descreve como, enfiado no seu laboratório qual Frankenstein, se pôs a brincar aos médicos:
Ah, que grande desastre, a mulher monstruosa com cabeça de criança, incapaz de falar, dançando num círculo frenético, o sangue a golfar da sua boca a estremecer, os olhos revirados, os braços a bater como ossos partidos de asas invisíveis.
Como se não bastasse ter sido assada ao sol...
Aliás, Anne Rice já havia avisado, n’”A Rainha dos Vampiros”, que Armand se dedicava a experiências que envolviam ratos e microondas. Um doce de pessoa.
Quer-me parecer que só em “Merrick”, livro em que o fantasma de Cláudia é invocado, é que vamos saber ao certo, pela própria, quem é que raio matou a vampira Cláudia. De outro modo, ficamos como em relação a Laura Palmer, outro dos grandes mistérios da ficção do século XX.
Optimismo evanescente
A escrita de Anne Rice começa a pintar um quadro cada vez mais pessimista ao longo dos anos 90. Recorde-se que nos anos 80 se vivia uma onda de optimismo e esperança, talvez mesmo de euforia, hipoteticamente comparável à dos anos 60 - mas não sei, não sou desse tempo. O mundo assistia, maravilhado, à queda do muro de Berlin, à extinção da URSS e ao fim da guerra fria. Parecia ter saído de cima das nossas cabeças a ameaça constante da aniquilação nuclear. Deu-se início a programas de desarmamento multilateral. Parecia que o mundo só podia caminhar na boa direcção, que todos os medos do século XX estavam definitivamente enterrados e que a Humanidade ia entrar no terceiro milénio num clima de paz e harmonia.
A ilusão durou pouco, apenas o tempo de as novas potências militares medirem forças. Logo no princípio dos anos 90 se percebeu que os problemas a leste tinham acabado de começar e no Iraque ninguém via o barril de pólvora que ia dar resultados ainda mais tarde. A crise económica fez-se sentir, os mercados ficaram deprimidos, a exploração aumentou e a qualidade de vida degradou-se. Esperava-se uma nova vaga cíclica de optimismo na alvorada desta década de 2000 mas os atentados de 11 de Setembro atiraram o mundo para as brumas de um novo e desconhecido negrume na figura da ameaça terrorista. O mundo retrocedeu em vez de avançar. Só o futuro dirá o quanto.
É interessante como em 1988, nas palavras do vampiro Marius a Akasha, Rainha dos Vampiros, este defende veementemente a sua inabalável confiança na evolução da Humanidade como um todo. Em 1998, o mesmo Marius está convencido que esta mesma confiança não passava de mais uma ilusão, de uma fé tão irracional como qualquer religião:
Armand, eu disse essas coisas porque tinha de me agarrar a essa verdade. Eram um credo, o credo do racional, o credo do ateu, o credo do lógico, o credo do sofisticado senador romano que tem de fechar os olhos à realidade nauseabunda do mundo à sua volta porque se fosse a admitir o que via na maldade dos seus irmãos e irmãs, enlouqueceria.
(...)
Mas eu estava enganado no meu optimismo, estava a ser ignorante, tão ignorante quanto acusava os outros de serem, e recusava-me a ver os verdadeiros horrores que me rodeavam, o pior deste século, este século de racionalidade, que foi o pior que alguma vez existiu no mundo.
Marius, o grande humanista, torna-se mais pessimista que eu. (Desconfio do homem mas acredito na Humanidade.)
Estou ansiosa por ler a escrita de Anne Rice depois do 11 de Setembro de 2001, e sinto que ficarei decepcionada se, das duas uma, o pessimismo não se tornar em desespero ou, pelo contrário, a necessidade de refúgio na consolação divina não se tornar omnipresente. Ficarei decepcionada se a escrita for igual. Mas será que o pode ser?
Pensamentos
A escrita pela mão de Armand (embora tecnicamente a autobiografia tenha sido ditada ao vampiro David) é bastante diferente do discurso a que Lestat nos habituou. Muito mais seco e objectivo, resume alguns pensamentos dignos de reflexão nas seguintes palavras:
Os vampiros não querem verdadeiramente companhia. Querem o amor de outros imortais, sim, sempre, e precisam dele, e precisam dos profundos laços de lealdade que inevitavelmente crescem entre aqueles que se recusam a tornar-se inimigos. Mas não desejam companhia.
Faz-me pensar até que ponto os seres humanos não deviam copiar-lhes o exemplo a fim de darem o verdadeiro valor às pessoas que os rodeiam. Não pela companhia, que qualquer um pode fazer a qualquer outro, mas pela especial amizade, quando existe, que é tão rara de encontrar.
Publicado por _gotika_ em 11:04 PM | Comentários: (7)
abril 28, 2004
Anne Rice é uma ganda tia
Vem isto a propósito do comentário de Goldmundo:
Há qualquer coisa de narcisico no amor dos vampiros que me não deixa admirá-lo muito (talvez mais no Lestat: tão cedo não esquecerei a cena em que ele, aterrorizado pelo primeiro encontro com Memnoch, encontra os seus pares para pensar, antes de mais, em como eles estavam elegantes...).
Hehehe!
Não sei se a culpa será tanto de Lestat como da sua autora. É verdade que esta é a mais vaidosa de todas as personagens das vampire chronicles mas Anne Rice insiste em descrever as roupagens das criaturas até à mais nauseabunda exaustão. Confesso que desatino com isso, até porque é nada mais nada menos que o reflexo de uma certa literatura americana à Jackie Collins, em que todos são ricos, todos são bonitos, todos se vestem “muito bem” (por “muito bem” entenda-se roupas caras de lojas para a classe alta-alta).
Da mesma forma, são descritos todos os pormenores das belas mansões, castelos, palácios, cruzeiros, hotéis, e respectivos quadros, obras de arte, candeeiros, carpetes (quase sempre persas), mobiliário antigo ou moderno, e uma carrada de outras futilidades que não têm nenhum interesse excepto o comercial.
Acontece que na sociedade americana vende-se melhor a “literatura” que descreve a vida dos ricos. É um pouco como as telenovelas brasileiras (e infelizmente também as portuguesas) que vão enchendo os olhos do povão com um estilo de vida que parece tão ficcional como a própria existência do vampiro Lestat. E devia ser, devia ser ficcional. Num mundo onde morre tanta gente de fome é um crime dar 40 contos por uma camisa como eu vi nas Amoreiras já há uns 15 anos. Bem, devem ser camisas para vampiros.
Acontece que Anne Rice é uma grande espertalhona, uma espécie de Paula Bobone da literatura de terror, e recorde-se que a senhora até já escreveu literatura erótica sob o pseudónimo de A. N. Roquelaure. É uma senhora que se sabe vender. E se o povão prefere ler histórias sobre vampiros ricos, não os façamos pobres!
Deste modo, acontecem descrições como a clássico episódio em que Lestat acorda, levanta-se do seu caixão forrado a cetim (caixão, no século XX?...), veste ao espelho um fato de cor x ou y e coloca uma gravata a combinar. Ora, coloca uma gravata para quê?! Acaso trabalha num banco? É daquelas coisas que não cabem na cabeça de ninguém. Do ponto de vista pura e simplesmente literário, a dor ainda é maior. Lestat é um artista. Se vestisse plumas e lantejoulas e uma peruca ruiva era mais normal que o fato e gravata. Já ao vampiro David, que viveu toda a sua existência no século XX e sempre se vestiu assim, compreende-se a predilecção por fatos tradicionais.
Louis acaba por ser a única personagem que faz sentido por não ligar ao luxo e Armand também não faz grande questão, embora Anne Rice o ponha a descrever as botas e o casaco de veludo e a camisa de renda. Mas nem Louis nem Armand são os heróis. O herói, de facto, veste-se nas lojas mais caras de Nova Iorque.
E o novo-riquismo destes livros? Aqui, todas as pulseiras e anéis são de ouro e as pedras são mesmo preciosas. São diamantes, esmeraldas, rubis... Bem, uma bimbalhice de bradar aos céus. Era mesmo preciso pôr estes vampiros a usar carradas de anéis de ouro como as varinas e os patos-bravos da construção civil? Não percebo que necessidade têm os americanos em particular de imaginar estilos de vida tão falhos de criatividade.
E sim, aborrece-me este chafurdar num luxo bacoco que tem tanta importância para um vampiro como para uma mosca pousar em merda servida em bandeja de prata.
Questiono-me se Anne Rice será uma “tia” em versão americana ou se só o faz por uma questão de lucro. Ainda havia mais por onde sugar. Por exemplo, arranjar patrocínios para as personagens: “Armand é vestido por Hugo Boss”; “O vampiro Lestat tem o patrocínio do seguro DentAll - a saúde dos seus dentes”; “Maharet (que usa olhos falsos) tem o patrocínio das Multiópticas”; “Chicco veste a vampira Cláudia - Chicco, onde há um bebé”.
É por isso que me escandaliza que a literatura tenha de absorver estes insultos... Mas é como digo, a senhora sabe vender-se.
Publicado por _gotika_ em 06:57 PM | Comentários: (8)
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