sábado, 20 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 05, 2004


“Blood and Gold” - a história de Marius

Venus and Mars
Painter: Sandro Botticelli
(1445-1510)


“Blood and Gold” (“Sangue e Ouro”, Anne Rice) é a história do vampiro Marius, um ser tão antigo quanto Cristo, ou mais ainda.
O livro percorre os últimos 2000 anos pela perspectiva de Marius. É uma leitura extremamente excitante para quem gosta de História (quem não gosta pode sempre passar à frente...). E por ser a história de um dos patriarcas dos vampiros, um Filho dos Milénios (“Child of the Millenia” no original), “Blood and Gold” pode servir também como um excelente resumo das Vampire Chronicles no seu todo, uma espécie de sumário das origens da maioria das personagens que a seu tempo se vão cruzando na vida de Marius e compondo a inesperada teia de relações que percorre a saga.
Disse eu aqui, quando comentei “Merrick”: “É o melhor livro de Anne Rice que já li”. OK, risquem. Actualizem. As mesmas palavras vão agora para “Blood and Gold”. É mesmo verdade que os escritores envelhecem como o vinho do Porto. Gostei de ter demorado a ler “Blood and Gold”, gostei de ser obrigada a parar para reflectir, gostei da profundidade dos diálogos e das emoções das personagens.
E ainda não li nada de Anne Rice escrito depois do 11 de Setembro... A curiosidade mata-me.


A data precisa do nascimento de Marius não nos é revelada, apenas que nasceu no reinado do Imperador Augusto - que durou nada mais nada menos do que 44 anos (de 31 Antes de Cristo a 14 Depois de Cristo).
Por esta altura nasceu Marius, um rico Senador da Roma Imperial, um intelectual do seu tempo, um estudioso que se dedicava às viagens e à escrita de volumes e volumes de História. Não havia em Marius a mais pequena sombra de escuridão ou perversidade. Nada poderia fazer supor que fosse subitamente arrancado à vida para uma existência que lhe era completamente alheia só porque falava línguas, conhecia o Egipto e era elegível para a missão de resgatar os primeiros pais de todos os vampiros.
A sua existência tornou-se no balanço entre o sangue que tirava e o ouro que dava de volta (o título é eloquente), numa tentativa constante de preservar os inocentes e satisfazer as suas necessidades assassinas apenas através do sacrifício do Malfeitor. Como o próprio Marius reconhece, alimentar-se apenas daqueles que julga piores que ele próprio é a sua desculpa para manter uma consciência limpa.
Apesar desta tragédia, desta injustiça que lhe foi imposta contra a sua vontade, deste pesadelo que se abateu eternamente sobre ele, Marius nunca se revolta contra a existência, nunca desespera, nunca perde o gosto pela vida. Nem depois dos golpes mais dolorosos dos seus inimigos, nem da perda sucessiva de todos os que ama, nem da mais completa solidão.
Admiro Marius e as pessoas como Marius, que nunca se apaixonam pela morte por mais terrível que se torne a vida. Onde poderá Marius ter ido buscar tanta força, tanta resistência? Ao incorruptível sentido de Justiça, à sua inabalável confiança no progresso da Humanidade, à inalienável Bondade do seu carácter?
Como é que Marius nunca enlouquece, nem nos momentos mais negros? Qual é o segredo desse equilíbrio? Nas antípodas, temos um Louis depressivo para quem a crueldade da natureza é por si só motivo de sofrimento insuportável. Pelo meio, temos um Lestat maníaco-depressivo que, como a doença indica, oscila entre períodos de profunda depressão e de perigosa euforia. Qual é, então, o segredo de Marius?


Pensamento do dia: quem são os teus deuses?
Marius começa a contar a sua história quando encontra um outro vampiro antigo, o viking Thorne, que tinha estado adormecido e afastado do avanço da civilização durante séculos e séculos.
“Quais eram os teus deuses?”, pergunta-lhe Thorne.

---------- Imaginem agora o mesmo diálogo daqui por uns mil, dois mil anos. A mesma pergunta da mesma criatura viking. A resposta de um ser do século XX deste lado do mundo: “Não existem deuses mas um só Deus, Absoluto, Único, e o Seu filho Jesus Cristo”. Pergunta alguém do ano 3000/4000: “O que é deus?” ------------


The evil doer, the little drink e a consciência pesada
Quando se é um vampiro e se procura o que Marius chama uma “paz com o mundo”, uma consciência tranquila, é preciso elaborar um esquema de moralidade em que o sacrifício da vida humana seja justificado. Para Marius, isto significava dar caça apenas ao Malfeitor (o famoso “evil doer” no original). Thorne preferia a “pequena bebida” (“little drink”), pousando sobre mortais como um colibri de flor em flor mas sem lhes tirar a vida. Marius e Thorne vão juntos a um night club - penso que é um night club porque é um local onde os casais dançam agarrados - e alimentam-se dos presentes sem lhes causar a morte. Mas esta proeza requer já uma perícia de séculos. No mínimo, requer que o vampiro se disponha a esse trabalho. E requer o tal sistema moral que, por exemplo, Louis subverte completamente.
Para Louis, exactamente ao contrário de Marius, o imoral é escolher as vítimas, é julgar este ou aquele como “pior que eu”, é decidir quem vive ou quem morre. Por isso a própria Rainha dos Malditos, Akasha, o acusou de ser o mais predatório de todos os vampiros por não fazer distinção entre velhos e crianças, homens e mulheres, bons e maus. Louis simplesmente tomava para si o primeiro que se atravessasse no seu caminho. Mas não todos. Só os estranhos. Mesmo na sua recusa de julgar, era incapaz de suportar na consciência a morte de alguém que o tinha como amigo.
De Louis, diz Lestat em “The Tale of the Body Thief”:
“For a long moment, I spied upon him. I loved to do this. Often I followed him went he went hunting, simply to watch him feed. The modern world doesn’t mean anything to Louis. He walks the streets like a phantom, soundlessly, drawn slowly to those who welcome death, or seem to welcome it. (I’m not sure people really ever welcome death.) And when he feeds, it is painless and delicate and swift. He must take life when he feeds. He does not know how to spare the victim. He was never strong enough for the “little drink” which carries me through so many nights; or did before I became the ravenous god.”

-------- À parte, um poema de amor:
(Lestat)
His face, quite thin and finely drawn by nature, an exquisitely delicate face for all its obvious strength, was gorgeously flushed. He had hunted early, I’d missed it. I was for one second completely crushed.
Nevertheless it was tantalizing to see him so enlivened by the low throb of human blood. I could smell the blood too, which gave a curious dimension to being near him. His beauty has always maddened me. I think I idealize him in my mind when I’m not with him; but then when I see again I’m overcome.
Of course it was his beauty which drew me to him, in my first nights here in Louisiana, when it was a savage, lawless colony, and he was a reckless, drunken fool, gambling and picking fights in taverns, and doing what he could to bring about his own death. Well, he got what he thought he wanted, more or less.
-------- Peço desculpa pela interrupção. O artigo segue dentro de momentos. Continuo a recusar-me a traduzir “The Tale of the Body Thief”. Gosto demasiado do original.

Lestat, como o próprio diz, não acredita que alguém realmente deseje a morte. As suas vítimas são delicadamente escolhidas por serem perversas... ou por serem boas. Ou por outra amoral razão qualquer que se prende mais com uma escolha estética ou um puro capricho do momento. Lestat é sempre imprevisível, até quando mata.
Armand, por outro lado, e ao contrário do que pensa, sempre conseguiu ensinar a Louis o seu método de procurar levar a morte aos que desejam morrer - o que não deixa de ser uma infernal doçura. Em “Merrick”, Louis chega mesmo a escutar as preces dos mortais e atendê-las. Por isso lhe chamam também “Merciful Death” (morte misericordiosa).
David, mais poderoso embora mais novo no Sangue, entretêm-se com a lendária “little drink”.

------- Tenho para mim, apesar de toda a minha hipócrita moralidade cristã, que se fosse um vampiro acabava por fazer como Lestat: a vitória do capricho. Qual moralidade, qual Malfeitor. Nada de caçar ratos, como Louis fazia no princípio, antes de conseguir suportar a morte humana. Nada de me armar em Anjo Exterminador do Juízo Final, como Marius. Mas pouparia as crianças. As crianças merecem uma hipótese de me provar que estou errada, que o ser humano não é pior do que os animais. --------


Os segredos de Marius
Infelizmente para mim, Anne Rice prefere descrever as antigas civilizações de esplendor, progresso e espalhafato. Roma Antiga, Bizâncio, Egipto, o Renascimento, o Barroco. Da negra Idade Média, ou até do negro século XX durante a guerra, Anne Rice não gosta de falar. É pena.
E assim Marius salta toda a sua existência na Idade Média, queixando-se da Peste Negra e das mentalidades atrasadas desse tempo, até da arte medieval - sem deixar de mencionar que o Gótico era algo de novo e fascinante - até chegar ao Renascimento. Os artistas voltaram-se para o seu tempo, o tempo de Marius, em busca de inspiração. As deusas e deuses da Grécia e Roma antigas voltaram a embelezar os palácios da Europa. Era apenas natural que Marius ficasse irremediavelmente perdido de amores pela arte da época. E por Boticelli. De facto, Boticelli entra na história, conversa com Marius, e é para Boticelli que Marius inventa o sobrenome “de Romanus”. Sandro para aqui, Sandro para ali, foi por muito pouco que Marius, apaixonado pelo homem e pela sua arte, não transformou Boticelli num vampiro. E hoje teríamos uma Vénus a nascer das ondas com dentinhos de vampira - o que não deixava de ser muito mais interessante do que a monotonia do quadro original. (Mas aqui perdoem-me a blasfémia de uma mentalidade do século XX!...)
Marius volta a entrar no mundo dos mortais ao comprar um palácio em Veneza onde abriga jovens rapazes aprendizes da pintura e das outras artes, e onde conhece Amadeo (Armand) e Bianca.
Marius, Amadeo e Bianca são protagonistas das cenas mais quentes de todas as Vampire Chronicles. Há até um episódio a três, quando os dois homens já são vampiros e Bianca é apenas mortal, que... Não. Este é um blog decente. E por ser um blog depressivo, passemos para o episódio em que os vampiros satânicos de Roma destroem a casa e a vida de Marius por o considerarem um herege sem Deus - será uma piada ao Vaticano? Não é o coven de Roma que obriga os seus vampiros a viverem uma vida de eterna penitência e sacrifício? Não é o coven de Roma que canta incessantemente o Dies Irae? Não é o coven de Roma que corrompe a fé do inocente Amadeo e a converte no fanatismo do monstro Armand?

(Marius, no Renascimento)
“De facto, eu estava a desfruir de um Tempo Perfeito. Perguntava-me se para cada imortal haveria um Tempo Perfeito. Perguntava-me se corresponderia ao auge da vida dos mortais - aqueles anos quando se é mais forte e se vê as coisas com a maior clareza, aqueles anos em que uma pessoa pode mais fielmente confiar nos outros, e procurar alcançar uma felicidade perfeita para si próprio.
Boticelli, Bianca, Amadeo - estes eram os amores do meu Tempo Perfeito.”

------- Melhor do que viver um Tempo Perfeito é ter a consciência de que ele está a acontecer, diria eu. Nada mais triste do que só dar por ele quando já passou. --------

Marius seria muito provavelmente um grande homem de Estado ou das Artes ou do Saber se não tivesse sido subitamente levado para as trevas. Mesmo do Outro Lado, continua a ser respeitado como uma espécie de Senador do mundo dos vampiros, um sábio, o antigo guardião dos Primeiros Pais, um ser digno de confiança pela sua noção de Honra e Justiça.
Mas não perfeito. Conhecido pelas suas fúrias memoráveis, por ser demasiado controlador e demasiado orgulhoso, Marius perde todos os que ama exactamente porque a sua possessividade acaba por asfixiá-los.
Não se pode ser bom a tudo.
Marius termina sozinho, no fim do século XX, tirando as ocasionais e breves visitas da sua eterna Pandora e do seu anjo de Boticelli, Armand (Amadeo). Mas nunca mais juntos. Talvez a relação entre eles já seja tão íntima que não permite a harmonia. É sabido que a proximidade arruina o amor mais depressa do que a distância...
Na sua casa, Marius recolheu o vampiro Daniel, o mesmo rapaz da “Entrevista” a Louis, o mesmo que Armand trouxe para os vampiros, porque Daniel está pura e simplesmente louco e não pode ficar sozinho - diz-se que foi do alcoolismo da sua vida mortal. Mais uma vez, Marius é o bom samaritano, o santo, o anfitrião. O eterno solitário.
Tal como as pessoas não conseguem compreender a melancolia de Louis, eu não percebo o amor que Marius tem pela vida. Nunca desejou a morte? Porquê? Qual é o seu segredo?
O segredo de Marius está-me vedado.

Publicado por _gotika_ em 09:58 PM | Comentários: (46)

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