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domingo, 28 de abril de 2013

Gotika: arquivos Junho 2004

junho 09, 2004

"Amélie", por Klatuu Niktos
Klatuu, bem conhecido dos comentadores habituais do blog, pediu-me que publicasse este conto (ou episódio?) da sua autoria. Espero que gostem.

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Um conjunto destes relatos só poderia ter por título "Diário De Um Vampiro", a este relato isolado só posso intitular "Amélie".


[Tradução. Original em francês.]


França, 8 de Maio de 1704, condado de … … … .

Há três noites enviei Amélie à cidade por causa do livro que mandei vir da Holanda sobre construção de lunetas. Ontem Amélie não voltou e quando saí para a noite encontrei-a na floresta, assassinada, violada e com o corpo já meio devorado pelos lobos. Não pude deixar de sorrir da inevitabilidade do destino e do meu capricho. Faz um ano que Amélie se tornou a minha serviçal, deparei-me com ela junto ao regato, cercada pela alcateia, tentando defender-se com um ramo verde, mal ferida num ombro e numa perna e, na altura, salvei-a, nem sei bem porquê. A verdade é que odeio lobos e, depois de ter morto dois deles e os restantes terem debandado, seria ilógico tornar-me eu o carrasco daquela criança que tinha roubado à morte, mesmo que o seu sangue fresco e doce me inebriasse a vontade. Além do mais não preciso de disputar carne aos lobos!
Ergui-a nos braços e ela agarrou-se muito a mim. Não chorava, apenas tremia e murmurava sem nexo. Era uma criança do povo com doze anos de corpo mirrado por uma ascendência de alcoolismo, fome e promiscuidade. O seu rosto era uma caricatura da miséria. Magro, de nariz esborrachado, as maçãs do rosto salientes e sempre avermelhadas, os dentes mal implantados, com uns olhos pequenos sempre perplexos. Amélie não passava de comida para lobos e o mundo tinha decidido o seu destino logo ao nascimento, mas levei-a para o pavilhão. Deitei-a, e procurei entre as coisas do alquimista e nos seus preciosos livros os sais e a sabedoria com que lhe tratei as feridas. As feridas cicatrizaram depressa e sem pus e Amélie ficou ao meu serviço. O Conde achou natural que eu tivesse uma mulher à mercê dos meus vícios, ainda que feia e sem malícia. Ele mesmo me teria dado as mulheres todas da aldeia, se eu assim o desejasse. O Conde tinha em mim um aliado que valia bem o seu peso em ouro.
Amélie passou a habitar esta lúgubre casa comigo, esta casa que tinha assistido à morte do seu último hóspede, apunhalado pelos esbirros do Conde, que atribuiu umas febres que teve à magia do seu anterior protegido neste pavilhão decadente. A criança feia era demasiado ignorante para entender que coabitava com uma sombra, depressa se acostumou aos meus hábitos, predestinada por uma linhagem nascida para obedecer, mas passou a chamar-me "Rei dos Lobos". Nem achei isso insólito, ela era como um gato, um ser inútil com quem eu partilhava displicentemente esta toca de pedra. Os gatos produzem estranhos e incompreensíveis sons e também Amélie, que diz coisas tontas e canta, sem motivo, canções camponesas.
Nunca a vi triste. Dizia que era muito feliz ao lado do Seu Senhor Rei dos Lobos, que a tratava muito bem, como uma filha, e que, quando ela casasse, lhe daria um dote. Era uma criatura singular, fazia parte das pequeníssimas e insignificantes coisas do mundo, como as moscas que se acumulavam nas janelas ou as mínimas flores silvestres que ela apanhava nos campos, que juntava em ramos e espalhava pelas duas salas e a antecâmara do pavilhão. Raramente a via, a não ser ao crepúsculo, quando precisava de lhe falar, mas muitas noites Amélie esperava-me, quase vencida pelo sono e beijava-me as mãos e dizia-me para eu punir todos os lobos maus e chamava os seus patéticos deuses em minha protecção. Por vezes o sono derrotava-a e dava com ela aninhada no tapete junto à lareira e, nem sei porquê, levantava-a e estendia-a no seu leito e era então que a fome de provar o seu sangue era mais forte, olhava-a por um momento e depois saía para a noite.
Hoje o Conde organizou uma batida na floresta e encontrou os assassinos de Amélie. O bando de salteadores há semanas que aterrorizava as aldeias. Um foi morto na refrega e aos três que foram capturados ordenou o Conde que fossem esfolados vivos e depois mandou cortar a cabeça aos quatro, que fez espetar em postes, e os corpos foram esquartejados e dados aos cães. Dos dois que escaparam coube-me a mim persegui-los, não fosse eu o cão de caça preferido do Conde! Tinham fugido em direcção às colinas e por todo o trajecto senti o seu cheiro fétido, mescla de suor, sangue e medo. Quando um valado os separou lancei-me sobre o último, o outro não veio em sua ajuda, antes incitou a montada com gritos e bastonadas da espada. Aquele caiu de bruços e vendo que já não conseguia montar de novo, porque o cavalo se afastava em pânico, virou-se para mim e decidiu enfrentar-me, resolutamente, como só os néscios podem.
Era um brutamontes com mãos e ombros de lenhador e nem por um instante lhe ocorreu render-se, o seu parco entendimento privava-o de perceber o que tinha pela frente e com um urro desferiu uma estocada que me atravessou um braço. Permaneci imóvel a olhá-lo. Por estranho que pareça não me importo de ser ferido. Apesar de imortal eu posso sentir a dor física, a única dor que posso sentir, e a dor traz-me memórias. O homem tinha mais ímpeto que engenho e a segunda estocada mal me roçou. Parti-lhe o pescoço, soçobrou a meus pés como um capote atirado para o chão, e alimentei-me dele.
O sangue não é apenas vida, é também alma. A podridão, a crueldade cega e ávida, a sujidade do seu corpo em cima do corpo moribundo de Amélie, a escuridão de toda uma vida sem desígnio, os crimes, os roubos, os lugares, as vítimas, as emoções elementares, comer, fornicar, rir, invadiram o meu ser. Mesmo sabendo que estou mais próximo das feras que dos homens, como não poderia sentir-me superior a ambos? Se eu mato é porque faço parte do códice do mundo e pertenço ao ministério superior da morte, é em mim que terminam todas as ilusões de poderio e a majestade do tempo afirma o seu reino, nunca me sinto perverso, nunca me deleito ou regozijo, sou o decreto vivo que lembra às criaturas que o pó as exige e refreia e é tudo.
A sombra rápida no encalce de um homem, não era mais um vampiro, era o Rei dos Lobos, o vingador de Amélie! O escuro da noite era como um rio sobre cujas águas eu corria. O foragido tinha-se apeado no sopé das colinas e tentava escapar por entre a vegetação densa. Rodeei-o e a noite rodou comigo. Dentro do antiquíssimo silêncio que liga o caçador e a presa o homem deteve-se, ergueu a espada e virou-se de repente para mim. Nesse olhar todas as suas convicções se desfizeram como fumo, a vida era um inferno premeditado e tudo era falso. O seu rosto começou a transfigurar-se e abanava a cabeça, incrédulo e demente. Já estava morto e sabia-o. O Conde tinha-me informado que o chefe do bando era versado na arte da guerra e um exímio esgrimista, sabia ler e tinha viajado, um burguês caído em desgraça.
Fez menção de se defender, mas todo o seu corpo tremia e o rosto, cada vez mais transtornado, revelava agora a caveira oculta que sempre tinha espreitado aquele dia, o último, o dia do horror absoluto em que o nada abriria as mandíbulas por sobre o saco de fel que era a sua alma. Com um gemido largou a espada e ajoelhou-se, uivava e chorava e pedia perdão e pedia à Virgem! Aquele triste e nojento pedaço de carne, que nada tinha visto de sagrado na inocência de Amélie, invocava agora um folhetim de judeus devorado pelas eras. Com as garras da mão esquerda ceguei-o de um golpe.
O homem tombou e soluçava alto, abençoava-se e maldizia-se, ora erguia o tronco ora rastejava de lado como uma cobra espezinhada e com os dedos rasgava a terra. Porque chorava sem olhos acreditaria que uma qualquer eternidade o esperava em vez do tenebroso vazio sem fim? Com a boca cheia de sangue e de lama sentou-se e a língua saiu-lhe para fora num ululo sem nome. Que patética espécie é a humanidade! Agarrei a espada do chão e trespassei-lhe o peito.
Deixei-o ali, para que as feras esfaimadas construíssem a sua eternidade, e trouxe comigo, pela rédea, a montada de Amélie, um presente do Conde que eu tinha posto ao seu dispor. Nunca me sento num cavalo, a farsa de partilhar o mundo com os homens não me leva a tanto, nenhum propósito teria montar um animal que é menos veloz do que eu. A noite corria a meu lado e parecia contente. Amélie estava vingada.
Pelo caminho os lobos e os mochos espreitavam-me e mais de uma vez tive vontade de atacar aquele alazão branco, de sentir-me invadido pela inconsciência dos brutos e a sua vida mortal. Acho as bestas superiores aos homens, têm uma pureza de pedra e não conhecem a culpa. Entre os livros do alquimista há um de que gosto particularmente, um com gravuras de animais do país dos cafres, para além do oceano. Gostaria de ser um leopardo e não haver nada em mim que entendesse o homem, essa doença de pele do mundo que espalha a guerra pelas terras e pelos mares. A sua única utilidade é justificar a minha existência e confirmar o meu destino.
Pensava no sangue do cavalo, mas também no sangue de Amélie. O sangue de Amélie a ensinar-me a cantar canções camponesas e a vaguear pelos prados, leve como a brisa, e achar isso belo. Quando cheguei ao pavilhão sentei-me no alpendre, virado para o sol nascente. O dia fechava-se para mim e o tempo fechava-se sobre estes ferozes eventos. A morte estende o seu domínio sobre todos os sonhos e eu, seu servo, só poderia aquiescer. Tudo seria devorado, este pavilhão lúgubre, estes dias azedos, este Conde cruel amado pelo povo. Eu continuaria e só dentro de mim a lembrança do que se passou aqui teria o seu epitáfio, nos infindos rolos da minha memória qual vasto cemitério, onde, por entre os crânios, um pobre ramo seco de flores silvestres seria a breve vida de Amélie.
Nos escritos que deixou, o alquimista delira que os orbes acima de mim são as raízes de múltiplos seres. Se assim fosse, que terrores infindos esconderia a escuridão dos céus?

Klatuu Niktos

Publicado por _gotika_ em 11:40 PM | Comentários: (28)


“You could call me a Goth, I think”

(Lestat:) “My longing for the microphone is gone, but I won’t give up the fancy clothes. I can’t give them up. I’m the prisoner of capricious fashion and am actually quite plain tonight. I think nothing of piling on the lace and the diamond cuff links, and I envy Quinn that snappy leather coat he’s wearing. You could call me a Goth, I think” He glanced at me very naturally, as though we were both simple humans. “Don’t they call us snappy antique dresses Goth now, Quinn?”
“I think they do”, I said, trying to catch up.

“Blackwood Farm”, Anne Rice


^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ . ^§^ ...


Queridíssimo Lestat, ser gótico não está na roupa que se veste. É certo que o visual é muito importante para nós góticos - e não preciso de lhe explicar porque sei que nos compreende perfeitamente - mas não há nada mais blasfemo que uma criatura insegura e solitária começar a vestir-se “assim” para se sentir integrada durante os anos de caça à queca.
Bem sei, Monsieur de Lioncourt, que a sua caça é outra. Quem sou eu para criticar as necessidades alheias?... E compreendo que só no meio de nós a sua estranheza de aparência passe despercebida aos simples mortais, e que isso lhe deva ser muito conveniente.
Mas não esqueça, senhor Lestat, que os verdadeiros góticos - um pouco à semelhança da sua “gente” - também se reconhecem uns aos outros à distância. Parece que estão sempre distraídos, mas garanto-lhe que estão a controlar tudo e mais alguma coisa.
Não serão as rendas e os botões de punho que o salvarão, Lestat de Lioncourt. Está avisado: pode parecer igual a nós para os outros todos, mas nós sabemos quem é quem. Não passará despercebido. O verdadeiro gótico sabe o que é pó de arroz branco e o que é pele. Tenha cuidado. Use o pó de arroz. Não custa nada.
Mas não desista já! Apesar da nossa inegável frieza para com estranhos, nunca o movimento gótico deixou de acolher um irmão espiritual. O caminho é árduo e implica duras provas... Anos e anos de música e noite, de noite e música. Muito dinheiro gasto em roupinha. Muitos acessórios, muitos sapatos, muito verniz. Muitas horas à frente do espelho a pintar a cara e a arranjar o cabelo. Mas tempo é o que não lhe falta, deveras? Insista. Não desista. Uma destas noites alguém falará consigo. Se tiver sorte, talvez até um verdadeiro gótico lhe dirija mais do que três palavras e dois olhares furtivos.
Não espere que lá por ser um verdadeiro vampiro os góticos o acolham de braços abertos. Era só o que faltava. No movimento gótico são todos iguais: brancos e pretos, homens e mulheres, bruxas e vampiros. São muitos anos a bater à porta para entrar. É muito eyeliner.
E lembre-se, senhor “eu sou o vampiro Lestat”, gótico a sério é o Corvo porque está morto. Gótico a sério é o seu amigo Louis, que nunca disse que é gótico e se vai chorando da vida entre duas dentadas.
O tempo só recompensa os perseverantes. E a recompensa também não é nada de jeito. Por isso é que a maioria dos candidatos a gótico acaba por ir parar às Docas.
A recompensa é apenas uma noite atrás da outra. Poucos são os chamados e menos ainda os escolhidos. Só se sente em casa quem está em casa.
Se é a sua casa, entre à vontade e sente-se onde quiser.
O Gótico abraça quem abraça o Gótico.

Publicado por _gotika_ em 12:32 AM | Comentários: (16)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Gotika: arquivos Maio 2004

maio 01, 2004

Sou tão gótica, tão gótica...

O resultado de uma semana de pensamentos ociosos. Deliciem-se a descobrir a verdade da mentira.


Sou uma gótica tão precoce que nasci ao pôr-do-sol num dia de tempestade.
Sou uma gótica tão precoce que a minha amiga imaginária era uma fada.
Sou uma gótica tão precoce que na escola primária coloria todos os bonecos de preto e roxo e achava muito bonito.
Sou uma gótica tão precoce que tenho olheiras desde os 7 anos.
Sou uma gótica tão precoce que aos 3 anos pensava na morte.
Sou uma gótica tão precoce que aos 6 anos perguntava aos meninos da escola se pensavam na morte.
Sou uma gótica tão precoce que deixava de falar aos meninos que não sabiam o que era a morte.
Sou uma gótica tão precoce que antes fazia questão de lhes explicar que iam acabar debaixo da terra comidos por vermes.
Sou tão gótica que no liceu perguntava aos professores se pensavam na morte.
Sou tão gótica que pergunto a toda a gente.
Sou tão gótica que os professores do liceu tinham medo de ficar sozinhos comigo.
Sou tão gótica que os os colegas também.

Sou tão gótica que a Morte foi à Polícia fazer queixa de mim por assédio.
Sou tão gótica que sei de cor poemas da Florbela Espanca.
Sou tão gótica que nos dias em que não penso em suicidar-me penso na morte natural.
Sou tão gótica que quando morrer não vou dar pela diferença.
Sou tão gótica que quando morrer ninguém vai dar pela diferença.
Sou tão gótica que quando me rio as pessoas pensam que já bebi demais.
Sou tão gótica que quando não me rio as pessoas pensam que estou a planear o suicídio.
Sou tão gótica que um enfermeiro tentou medir-me o pulso e pensou que a máquina estava avariada.

Sou tão gótica que todos os dias faço mesmo algo que assusta as pessoas. Geralmente, é uma boa acção.
Sou tão gótica que respeito os góticos mais velhos.
Sou uma gótica tão velha que os jovens góticos já me respeitam...
Sou tão gótica que me olho ao espelho em horror quando não me posso vestir de preto.
Sou tão gótica que quando abro o roupeiro a minha roupa preta grita de horror por estar junto à "roupa de dia".
Sou tão gótica que nunca fui racista porque "black is beautiful".
Sou tão gótica que consigo passar uma noite inteira num bar sem falar com ninguém.
Sou tão gótica que fico aborrecida quando falam comigo e estragam o meu recorde de "horas sem falar com ninguém".
Sou tão gótica que posso conhecer outro gótico há 20 anos e só lhe falar para pedir lume.

Sou tão gótica que os vampiros se cruzam comigo na rua e se sentem saudáveis.
Sou tão gótica que se me transformassem em vampiro eu não dava pela diferença.
Sou uma gótica tão fútil que amo o vampiro Lestat mas preferia andar com o vampiro Louis porque tem mais estilo.
Sou tão gótica que as crianças me perguntam se sou vampira e respondo que sim, mas não precisam de ter medo porque já jantei.
Sou tão gótica que as crianças acreditam.

Sou tão gótica que sou católica.
Sou tão gótica que fui excomungada.
Sou tão gótica que corro o risco de ser excomungada outra vez.
Sou tão gótica que sexta feira 13 é o meu dia de sorte.
Sou tão gótica que só deixei de ter medo dos lobisomens quando comprei um pentagrama... aos 18 anos.
Sou tão gótica que só comprei um pentagrama aos 18 anos porque não me deixavam comprá-lo antes.
Sou uma gótica tão fútil que não quero ser freira porque os hábitos têm uma orla branca.
Sou tão gótica que não vou para o Inferno porque aquilo tem muita luz.
Sou uma gótica tão fútil que não vou para o Céu se me obrigarem a usar asinhas brancas.
Sou uma gótica tão fútil que o diabo veio tentar-me vestido de vermelho e o ignorei porque não falo a bimbos.
Sou tão gótica que as velhinhas olham para mim e benzem-se.
Sou tão gótica que me benzo também para retribuir o elogio.

Sou tão gótica que o meu telemóvel tocava mesmo a Tocatta e Fuga e eu achava demasiado pretencioso. Agora toca Sisters of Mercy.
Sou tão gótica que já fui passear ao cemitério.
Sou tão gótica que já marquei encontros no cemitério.
Sou tão gótica que a minha roupa de ginástica é preta e só preta.
Sou uma gótica tão fútil que na ginástica não agarro a bola para não estragar as unhas.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo de me passar a bola.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo de pôr o colchão ao pé do meu.
Sou tão gótica que os outros da ginástica têm medo.

Sou uma gótica tão fútil que vou à praia mas o bikini tem de ser preto.
Sou tão gótica que nunca fiz uma tatuagem porque conheço demasiados símbolos para me decidir por um.
Sou tão gótica que nunca fiz um piercing porque em mim tudo infecta automaticamente.
Sou tão gótica que não uso relógio. Sinto quando a madrugada se aproxima e acordo naturalmente ao pôr-do-sol.
Sou tão gótica que acho os morcegos amorosos.
Sou tão gótica que os morcegos me acham amorosa.
Sou tão gótica que tive um canário branco e lhe arranjei uma canária escura para os filhos não saírem muito claros.
Sou tão gótica que os meus gatos pretos acham lhes dou azar.
Sou tão gótica que os meus gatos pretos me evitam à sexta feira 13.

Sou uma gótica tão velha que os jovens góticos estremecem de medo na minha presença.
Sou uma gótica tão velha que já não peço música ao DJ porque ele sabe melhor do que eu aquilo que eu gosto.
Sou uma gótica tão velha que já estava no movimento quando vocês chegaram.
Sou uma gótica tão velha que já estava no movimento quando os vossos pais chegaram.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo o Robert Smith era magro.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo a Siouxie era magra.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo o Kremlin passava Cure e não tinha tiroteios à porta.
Sou uma gótica tão velha que no meu tempo um vodka custava 300 escudos e era caro.
Sou uma gótica tão velha que já não uso bengala só como acessório.
Sou uma gótica tão velha que mandei fazer a dentadura com dentes à Drácula.
Sou uma gótica tão velha que ainda me lembro dos primeiros góticos dos anos 80.
Sou uma gótica tão velha que já morreram todos.

Publicado por _gotika_ em 07:29 PM | Comentários: (17)


Comentários

Vou arriscar e voltar a comentar no sítio adequado.

Mas como estes comentários são importantes, a resposta continua aqui:

Diz Goldmundo:

E para falar de outras coisas falando disto, exactamente a diferença entre os que pensam e os que existem é o tema forte da Entrevista, e é sempre o Louis que dá o "mote". Desconfio que ele se vai "apagando" ao longo da saga, se não for "assassinado" também por depoimentos malandros.

Não se vai apagando. :) Espera pelo comentário ao "Merrick". Acho que vais gostar tanto como eu.


Mas é o Louis que força os outros a olhar (rasgar a luz, como uma vez se disse aqui), mesmo que o faça desajeitadamente, ou fracamente.

Sim. Foi ele que pôs a boca no trombone, disso não há dúvidas. Mas quem o foi buscar à vida foi o Lestat. Mais uma vez, o responsável é o nosso vampiro louro... O nosso vampiro louro e louco.


Algures no séc. XIX (ao mesmo tempo que a noite dos poetas passou de negro a azul, ao mesmo tempo que os abismos da montanha, do mar e da alma entraram na literatura) houve duas espécies que se tornaram mutantes: os anjos deixaram de ser aqueles bébés inchados da pintura barroca e das talhas douradas das igrejas e passaram a ser os anjos negros perdidos e vadios do Wim Wenders e do Cave; e os vampiros deixaram de ser subdemónios para serem o que antigamente era o Prometeu ou o Tristão.

Aqui não sei se concorde. O vampiro ainda é o Mal e o anjo ainda é o Bem. A partir destes padrões é que se criam personagens mais ou menos desviantes.


De modo que a literatura "gótica" só por acaso é herdeira das catedrais: os primeiros escritores usaram o "ambiente gótico" como no séc. XX se usou a ficção científica: livramo-nos do mundo actual para causar medo, horror, adrenalina. Os fantasmas e os vampiros começaram por ser os bisavós dos marcianos de 1950.

Touché!
Espero que o Mefistofeles tenha ficado esclarecido porque em relação ao Romantismo e ao conceito de gótico do século XIX está tudo dito.

Publicado por _gotika_ em 06:57 PM | Comentários: (0)


~~§~~


Comentário:
Já não me lembrava mas aqueles "sou tão gótica que..." são da minha autoria. :)

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Gotika: arquivos Abril 2004

abril 30, 2004

Anne Rice é uma ganda tia II

Palavras de Golmundo:

Bom, eu tenho uma teoria diferente: a Anne só escreveu a Entrevista (talvez também a Hora das Bruxas, mas ainda não a li). Depois foi assassinada, a soldo das editoras multinacionais. Um bando (um coven?) de imberbes formados em marketing escreve, depois, a saga do macho anglo-saxónico (o tal Lestat).

Não é anglo-saxónico. Começa por ser francês mas depois torna-se definitivamente new-orleano, seja lá isso o que for.
E quanto ao "macho"... Bem... Tem dias. Por acaso no "Memnoch", que leste, estava numa fase masculina. Seja lá isso o que for.

Leram a Entrevista, mas retiveram dos vampiros que não há sexo, andam de noite, são ricos e gostam do "oculto". E pronto, há um "produto". Mais tarde ainda (num dos livros que ainda não li) um dos imberbes foi, por sua vez, assassinado a soldo da Marvel (cujas vendas iam a pique porque ninguem comprava aventuras de super-herois em cuecas) e substituido por outro rapazola com uma missão: o Lestat tem de ganhar super-poderes...

Vejo onde queres chegar. Muitas vezes parece o Super Vampiro. Mas guardemos as devidas distâncias da Marvel. Afinal, os vampiros têm tradicionalmente poderes sobrenaturais, de outro modo não constituíam um verdadeiro perigo para o ser humano. O mito do vampiro é mais uma representação humana do Mal, como o demónio ou o lobisomem.
Por outro lado, do ponto de vista literário, o escritor é livre de pegar no mito e dar-lhe os contornos que entender.
(You could be a goth if... You argue on whether Poppy Z. Brite or Anne Rice has the more realistic view on vampires. You can debate both sides of that argument. É agora!)
A referida Poppy Z. Brite tem uns vampiros semelhantes mas que já nascem vampiros - são mesmo uma espécie - e reproduzem-se através do sexo, como nós. Também podem comer e conseguem passar sem sangue embora o desejem intensamente.
Pessoalmente, não tenho preferência. Tenho pena dos vampiros da Anne Rice porque não podem... comer. Nem beber. Segundo Armand, nem sequer podem fumar. Isso é que eu chamo uma tragédia!

Ao contrário do que me parece que tu (e o Klatuu?) entendem - mas leram mais do que eu - há uma diferença abissal entre a Entrevista e o resto: é que, nesta, Louis somos todos nós, ou podemos sê-lo (será por isso que não gostas tanto dele?). "Madame Bovary c'est moi!" como disse Flaubert... Todos nós queremos saber se somos filhos de deus, do diabo ou de um macaco, mesmo sem sermos imortais e sem sermos inegavelmente malditos. Por isso a Entrevista é uma obra-prima da literatura moderna.

Se eu falo tanto dos livros de Anne Rice, e porque falo, é mesmo porque são um motivo para falar de outras coisas. Todos sabemos que aquilo acaba por ser sobre nós. Nós é que somos os imortais. E depois, no nosso meio, há alguns mais satisfeitos e outros menos. Há os que prezam a carne e os que não. Há os que pensam e os que existem.
Não me parece que haja uma diferença assim tão grande entre a "Entrevista" e o resto. Todos os livros falam da demanda pela razão de estarmos aqui.
Não, não é por ser igual a nós que não gosto "tanto" de Louis. Aqui entre nós que ninguém está a ouvir, é por uma razão muito mais egocêntrica: identifico-me mais com a personagem de Lestat, o que não é, de todo, uma coisa boa.

Publicado por _gotika_ em 08:18 PM | Comentários: (6)


Provocações...

Por acaso, uma merda que nunca entendi é como é que uma coisa como o gótico que é esteticamente um movimento estético de júbilo e euforia pós medieval se transforma numa exaltação da negritude e da depressão. És capaz de me explicar isto Gotika Mefistófeles Enviado por em abril 29, 2004 02:51 PM

Espero que o artigo anterior tenha esclarecido essas dúvidas - diria mesmo que o artigo está tão simples e bem escrito que deve provir de uma inside source - pelo menos no que toca ao movimento que se conhece actualmente como gótico.
Quanto à passagem do conceito de gótico medieval ao gótico romântico, bem, esse deu-se por um movimento de nostalgia que contagiou escritores e poetas e músicos que se inspiraram no tal momento histórico "estético de júbilo e euforia". É preciso não esquecer que, à luz do século XIX, o gótico medieval é obscuro. A ciência galopava em direcção ao século XX e os artistas procuravam na literatura fantástica o oposto da racionalidade que esmagava o pensamento da altura.
Porque é que esses artistas se foram precisamente inspirar no gótico medieval?... Porque era um movimento de excesso (basta olhar para aquelas catedrais) e de re-aproximação ao divino, não através do austero romântico nem do racional romano, mas da glorificação da beleza. No entanto, este momento histórico ainda não era o momento barroco a seguir ao Renascimento. E no barroco, o excesso "excedeu-se", tornou-se fútil. Talvez o gótico medieval conseguisse reunir, aos olhos do século XIX, o misto de sublime e doloroso que a arte precisava naquele momento.

Agora vou fazer poesia. O que pode ser mais sublime e doloroso do que estender os pináculos das catedrais até ao céu, cada vez mais alto, como para tentar alcançar Deus, mas sem nunca o conseguir? E apesar de saber que não o conseguia, continuar a tentar à mesma? Foi isso que representou o movimento gótico medieval. O românico era atarracado, o renascimento foi atarracado, o racionalismo foi atarracado. Só no século XIX é que houve uns loucos que se lembraram de achar aquilo bonito e reconstruir ao estilo gótico. Mas aí o conceito de gótico já estava impregnado do romantismo mórbido como o conhecemos hoje.
Actualmente, do conceito de gótico medieval resta o aproveitamento de uma certa estética. De resto, está tão perdido na memória como o povo de onde provém a palavra "gótico", os Godos.

Publicado por _gotika_ em 05:01 AM | Comentários: (5)

quinta-feira, 14 de março de 2013

Gotika: arquivos Abril 2004

abril 08, 2004

Memnoch the Devil - o livro

De Anne Rice.

Foi difícil sair do estado de choque. Não é todos os dias que nos fazem pensar. “Memnoch the Devil” fez-me pensar porque o tema - agora tenho a certeza absoluta! - é de uma importância fundamental para a minha existência.
Contemplei o horror. Não o medo. Pior do que medo, o choque, depois o horror, e por fim a repugnância. Questionei, ah! pois questionei, porque não pude deixar de o fazer.
Há duas teorias que me arrepiam. Uma, a de que Deus não existe porque não há provas. Como se a electricidade não existisse antes de haver provas de que existia. Essa posição só revela a mesma atitude de avestruz da outra atitude que diz “Deus existe porque sim”.
E a verdade é que ninguém tem provas de que Deus existe e ninguém tem provas de que Deus não existe. Facto.
Logo, ateístas e fundamentalistas são avestruzes de cabeça enterrada na areia. COBARDES. Ambos têm medo de questionar, e se?... E se?... E eu questiono-me, todos os dias, questiono-me. Prefiro a horrível verdade à doce certeza.

Aqui há tempos, dizia-me o Mangas, do Tapor: “Deus tem mais em que pensar do que no teu gato”.
É interessante como as coisas vêm e vão.
E se for pior que isso? Muito pior que isso?

Afinal, o que diz Memnoch? Memnoch é o verdadeiro nome do Diabo, e é o Diabo que conta a história. E nesta história, o Diabo é o bom da fita. Mas esse facto é irrelevante. A teoria é de Anne Rice ou, pelo menos, foi exposta por ela. É a teoria que me perturba.
E o que diz o livro de tão assustador? Diz isto:

1, Deus existe.
2, Deus não quer saber de nós para nada.

Vou contar, para que se perceba. Deus existe e criou a Matéria. Foi uma experiência. A Criação foi uma experiência. E a Terra transformou-se num bonito jardim, e Deus e os anjos observavam e gostavam do que viam. Dos vegetais a evolução passou aos animais, e a Natureza mostrou o seu ciclo de vida e morte, de presas e predadores, e de sofrimento. Mas de repente os seres viventes tinham rosto, como os Anjos (as criaturas foram criadas à imagem de Deus), e as criaturas morriam e os Anjos inquietavam-se. E Deus observava o resultado da experiência. Por fim, as criaturas evoluíram ao ponto que nós chamamos homo sapiens sapiens - nós - e as criaturas continuavam a sofrer e a morrer. E Deus observava o resultado da experiência.
Os Anjos começavam a ficar perturbados com o sofrimento que testemunhavam na Terra. Mas de repente aperceberam-se de algo pior. A matéria tinha gerado algo de invisível que era a alma. Os seres humanos tinham desenvolvido uma alma. E quando morriam na carne, essa alma recusava-se a morrer e ficava a pairar em torno da Terra. Algumas almas não sabiam que estavam mortas. Outras sabiam, e sofriam. Outras arranjavam maneira de voltar a comunicar com os vivos, através de seres humanos mais dotados para o espiritual, que falavam por elas.
Outras ainda, conseguiam voltar a nascer, matando o espírito da criança em quem reencarnavam - Alan Kardec deve estar a dar voltas no túmulo como eu estou a dar voltas à cabeça...
Outras almas pura e simplesmente se desvaneciam e desapareciam para sempre.
Foi Memnoch, o anjo que mais tarde se tornou o Diabo, quem chamou a atenção de Deus para o assunto, de que haviam almas a sofrer à volta da Terra. Resposta de Deus: “E porque é que eu me havia de importar com isso?” Para Deus, tudo o que evoluía da sua Criação fazia parte da Natureza. Até as almas. E a Natureza é cruel mas o importante é o efeito geral, a beleza de toda a Criação.
Na Terra, os seres humanos sentiam que havia um Deus, e adoravam-no. E pediam-lhe misericórdia através de sacrifícios. Sacrifícios de carneiros, sacrifícios de crianças... Sacrifícios para adorar a um Deus de quem não sabiam nada excepto que o sentiam. Sacrifícios para o apaziguar. E Deus observava os resultados da sua experiência.
Os Anjos observavam com horror o acumular das almas dos mortos em redor da Terra, almas perdidas, desesperadas, sem rumo. Mas a magnificência da Criação sobrepunha-se a tudo o resto. E continuavam a adorar o Criador de todas aquelas maravilhas.
Alguns anjos, contudo, vieram mais à Terra e aperceberam-se do sofrimento dos homens que morriam e não tinham nenhuma esperança excepto vaguear em torno da Terra, na escuridão, quando eles, os Anjos, tinham o Paraíso para onde voltar. E tiveram pena das almas. E puseram o caso perante Deus.
Deus tomou o pleito como um desafio, e chamou ao Anjo que tinha mais pena das almas o seu Acusador (Satanás), o próprio Memnoch. Mas autorizou-lhe que fosse buscar algumas almas desses mortos para o Céu. Mais uma experiência.
Memnoch encontrou almas tão dilaceradas pelo sofrimento que amaldiçoavam o dia em que tinham nascido. E algumas outras almas em pura contemplação e desespero. Mas quem é que ele escolheu para convencer Deus a levar as almas dos humanos para o Paraíso? As almas dos mortos que contemplavam a Criação com gratidão, sem pedir nada, sem questionar nada, simplesmente as almas que estavam felizes por terem o privilégio de ter vivido alguns anos na Terra e se darem por contentes.
Ou seja, as almas dóceis e gratas, as almas que não questionavam, as almas que aceitavam o estado de coisas e davam graças pela Criação. Essas almas foram admitidas no Paraíso.
Quem é Deus aqui? Um Ser arrogante, despótico, regalado com a contemplação da sua Obra como um desses pintores que se acha um génio e corre a pontapés quem o critica.
Mas, calma, há pior!... Depois de ter aberto as portas do Céu a essas primeiras almas, Deus aceitou o desafio do diabo (porque nessa altura já tinha expulso Memnoch do Céu porque “não confias em mim, meu anjo”) e veio à Terra feito homem, o Cristo.

(Belo tema pascal, não?)

Mas mesmo no seu martírio, Deus nunca esqueceu que era Deus. Deus nunca percebeu como o ser humano vive e morre sem esperança. Deus sabia que após a morte voltaria a ser o Todo-Poderoso.
Pior. Deus aproveitou toda a mitologia humana do deus que era morto e renascia na primavera para a incarnar Ele próprio. Tal como o babilónio Marduk, o egípcio Osiris e o romano Dionísio, Deus foi morto e ressuscitou. Deus alimentou-se dos mitos humanos para provar a sua teoria. E a Sua teoria é que o sofrimento é bonito como um pôr-do-sol e que o homem só chega a ele - só se aperfeiçoa - através do sofrimento. E pôs ali o exemplo, em Cristo.
Mas Memnoch contesta. E contesta porquê? Porque muitas das almas dilaceradas pelo sofrimento estão demasiado revoltadas no momento da morte para apreciarem a Criação Divina. E, o que é mais grave, este Deus não é justo. Entram no Paraíso aqueles que lhe derem graças pela sua magnífica Criação, independentemente das suas acções aqui na Terra.
O assassino e a vítima, o explorador e o escravo, entram aqueles que o bajularem e se curvarem diante dele.
Não há Justiça. Não há Justiça absolutamente nenhuma.


Descobri a minha natureza
Foi aqui que me passei. Foi aqui que o vampiro Lestat começou a enlouquecer. Porque ele próprio esperava o castigo. O vampiro Lestat era um descrente que no fim do livro continua a dizer que tudo o que viu foi uma ilusão, apesar de não ter a total certeza... Imaginem o que isto faz a um crente!
Não há Justiça? De repente isto atingiu-me como uma faca na barriga.
É uma possibilidade. E agora percebo que aquilo de que tenho fome e sede é de Justiça.

Voltemos ao livro. Anne Rice foi criada católica desde pequena. Como muitos intelectuais educados no Catolicismo - sei lá o que fazem às crianças na catequese! - algo ali correu mal.
Primeiro, Anne Rice, como um bom católico, não distingue Deus de Jesus Cristo. Anne Rice fala de ter imaginado, em pequena (pela voz de Lestat), serem-lhe cravados os pregos nas mãos e nos pés, como a Jesus. E isto bateu-me forte. Bateu-me forte porque tive uma amiga - ok, namoradita - que me disse, quando eu lhe perguntei porque é que ela acreditava em Deus, “Imaginas o que é pegarem num prego e espetarem-to nas mão direita, e depois na mão esquerda, e depois nos pés juntos, assim...?” - e fez a posição dos pés de Cristo na cruz. Lembro-me de ter ficado estupefacta. Não, nunca tinha pensado nisso. Ela fez-me pensar. E de repente, anos, mas muitos anos depois, volto a ler o mesmo no livro de uma americana muito mais velha do que a minha amiga.
Mas que raio? O que raio dizem às crianças na catequese?... Estou horrorizada! Mas evidentemente que essas pessoas só podem crescer a odiar Deus!
Porque raio a minha amiga e Anne Rice imaginaram que os pregos eram cravados nas mãos delas? Eu já imaginei muitas formas de morte, também, mas nunca a de Cristo!
E agora acredito - no sentido de concordar - que as crianças não devem ser carregadas com religião. Têm tempo de a descobrir por si se assim quiserem, depois de adultos. A religião é uma coisa de adultos. Jamais admitirei que impinjam religião às crianças, jamais!
Se bem que há crianças como eu que pedi aos meus pais para ter aulas de Moral e Religião na escola primária, porque EU queria. Assim é outra história. Deixaram-me tê-las, e ainda bem. Porque eu tinha curiosidade. Porque, como já devem ter percebido, o sobrenatural atrai-me como o íman atrai o ferro. Mas isso sou eu. Eu entro e saio da religião quando quero. Sempre foi assim. Cuidado com as vossas crianças. A religião não é para todos!

Por esta altura devem estar a pensar “mas no que raio é que esta gaja acredita?”...
E agora percebo que acredito em tudo. OK, é uma forma de falar. Quero com isto dizer que tenho a mente aberta. Admito todas as possibilidades. Admito que depois da morte possa não haver nada. Absolutamente NADA. Admito que depois da vida possa haver outra vida. Admito a hipótese neste livro, e daí o choque, a revolta, o murro na barriga que me pôs a ver estrelas.
Claro que tenho as minhas suspeitas. E digo “suspeitas” porque nesta matéria ninguém pode ter certezas. Escusam de vir para os comentários dizer que Deus não existe e que Deus existe porque perdem o vosso tempo.
NÃO HÁ PROVAS. Admitam e poupem-me aos argumentos batidos.
As minhas suspeitas estendem-se no sentido da teoria da reencarnação. Adorava dizer-vos porquê. Acontece que tem sido um acumular de leituras e experiências ao longo da vida - e nessa altura não tinha um blog, logo, não registei... :)
No entanto, sou Católica, baptizei-me depois de adulta, e não penso que a teoria da reencarnação colida de alguma forma com a doutrina católica. Quando dizem, no Credo, “acredito na ressurreição da carne”, o que é isso senão a reencarnação?... Quem é que ressuscita na carne? Quantos ressuscitados na carne já viram? Jesus? Mas Jesus é um caso especial. E mesmo assim, não sabemos se ressuscitou na carne, nem importa. De outra forma, estamos a falar de quê? Do Dia do Juízo Final? Quando todos os mortos se levantaram das campas? (Oh, o horror!)
Por acaso tenho muitas dúvidas aqui atravessadas quanto ao Dia do Juízo Final, o Armagedão e a Segunda Vinda de Cristo. Dúvidas que a Igreja Católica diz que são Mistérios. O que não me satisfaz. Porque eu questiono. Podem excomungar-me à vontade. Continuarei a questionar.
Isto interessa-me. Falem-me de modo racional. Continuam a falar-me em Mistérios e eu continuo a sorrir para mim mesma, pensando “Sabem tanto ou menos do que eu”. Acontece que eu quero mesmo saber. Toda a vida quis saber.
Mas a teoria da reencarnação, faz sentido. Faz mesmo TODO o sentido.
De resto, a religião em que se adora Deus, é irrelevante.
E é nisto que eu acredito - acreditar no sentido de “concordar”.


De volta ao livro
Posso dizer-vos que quando acabei de ler - e foi uma leitura frenética, obcecada (já deu para ver que eu sou de obsessões), ininterrupta, febril, até dolorosa - só pensava em tudo de contrário que tinha lido na Bíblia. Aliás, durante a leitura, por minutos parava, de olhar perdido na parede e alma violentada, e dizia a mim própria: “Não pode ser. Não é isto que diz a Bíblia.” E ao mesmo tempo, toda a minha inteligência me dizia que a Bíblia foi escrita por homens, homens supostamente sob inspiração divina, mas que nada me garantia que não fossem apenas homens alucinados a tentar acreditar num Deus Bom, no Deus em que eu acredito. E se fosse tudo imaginação? E se eu também imagino?
“Quem beber de Mim terá a Vida Eterna”. “Venham a mim os que têm sede de Justiça”.
O pior não é Deus não existir. O pior é Deus existir e não querer saber da sua Criação. Porque nós, humanos, amamos a nossa descendência, os nossos filhos. Não nos passa pela cabeça a ideia de um Deus que não ama os seus filhos. E no entanto... quem nos garante? Deus nem sequer é humano!
Aí está o horror, o grande horror! “Feitos à semelhança de Deus”, mas até que ponto? E se for, como diz o livro, “feitos à semelhança de Deus” no sentido antropomórfico, de ter cabeça, corpo e quatro membros? E de resto, mais nada?...
E se Deus for mais insensível do que eu? Do que nós?... E se Deus for um Deus como sugere o Mangas, que não só tem mais que fazer do que pensar no meu gato mas também em nós todos... E nós somos para ele como o meu gato é para a maioria das pessoas... É a Natureza.
Todos nós, abandonados, criados e abandonados pelo Criador.
Quem nos garante?... Nada nos garante. Facto.
Estou a disposta a lutar pelos factos. Não pelas quimeras, por isso nem tiro o cu do sofá, mas pelos factos.
E se a Criatura ultrapassou Deus em Ética? E se a Criatura tem mais Moral do que o Criador?


Anne Rice e o Deus Louco
Voltemos à “Rainha dos Malditos”. Como em qualquer saga, só se compreende o todo se se ler o princípio e o fim. E o meio.
Tal como já disse, é difícil perceber “A Rainha dos Malditos” sem ler os primeiros dois livros. Mas lendo este livro é ainda mais fácil.
Imaginem que são vampiros. Como tal, a vossa existência está dependente do primeiro vampiro. Se esse vampiro morrer, vocês morrem. Imaginam agora que esse primeiro vampiro quer destruir-vos. Têm duas escolhas: destrui-lo e morrer ou não o destruir e morrer também. Akasha, a Rainha dos Malditos, é uma criatura estúpida, que quer utilizar a mitologia humana para se fazer passar pela Rainha dos Céus, a Deusa pagã, a Maria cristã, para ser adorada, quando ela não passa de um assassina hipócrita que quer fazer crer que a sua violência é um meio de impor o Bem. Para isso, é preciso eliminar 99% dos seres humanos de sexo masculino para pôr termo à violência. Mas ela esquece-se de uma coisa: não há paz imposta pela guerra. Ela é uma espécie de George Bush e de Al-Quaeda ao mesmo tempo. A personificação de todos os pesadelos. Quem manda em nós é estúpido que nem uma porta.
Não há escolha. Há aceitação. Há uma deusa poderosa e destruidora à solta e apenas podem aceitar o vosso destino. É a vossa história de terror.

Com este Deus louco e insensível de Memnoch, Anne Rice coloca-nos a todos debaixo da mesma história de terror. E se?... Quem é que vai garantir que não?
Poupem-me, já vos disse, os comentários batidos. Não me torturem com os argumentos que já toda a gente ouviu.
E se Deus for um cientista genial mas avesso às críticas ao Seu trabalho? Deus nos livre! Deus nos livre de Deus! Porque nesse caso, como diz Lestat, “estamos entregues a seres loucos!”.
Lestat que acaba perdido de doido no fim do livro. Nem sequer é um crente. Mas é como vos digo. Se isto é inferno para os descrentes, é o rasgar ao meio do coração dos crentes.
Um Deus que não se importa? Que se importa menos com o sofrimento da sua Criação do que nós choramos pelos nosso filhos? Não é humano! Mas Deus não é humano. E tudo isto pode bem ser verdade. E tudo isto é demasiado horrendo para acreditar, e no entanto, antes a verdade que a doce ilusão.
Não gosto de ser surpreendida, muito menos gosto de ter surpresas desagradáveis. Deste modo, terei muito mais prazer em qualquer coisinha melhor do que eu imaginava. Mas jamais imaginei tamanho horror. E vai-me levar um tempo a lembrar porque tenho fé em Deus.
Hoje fui ao meu jardim ver o pôr-do-sol, contemplar a Criação, e acabei por rezar. Conhecem melhor sítio? Não pedi sinais. Tal como não corri para a Igreja, nem voltei a ler os evangelhos como me apeteceu. Como vos disse, foi tudo escrito por homens. Não é por aí que serei convencida. Nem foi isso que me convenceu. Vai demorar algum tempo a lembrar-me do que me fez ter fé.
Este livro abalou a minha fé. Este livro abalou-me.
Por isso, é certamente um bom livro. E viva o Jardim Selvagem de Lestat onde só a Beleza e a Arte são leis indiscutíveis. Se ao menos eu pudesse acreditar nisso... Mas eu quero Justiça. Tenho sede de Justiça. Se não acreditasse na Justiça, seria um monstro como Lestat é um monstro. É por isso que gosto tanto dele e me identifico tanto com o personagem? Pobre de mim!... É mesmo por isso! Sem fé, eu seria mais um monstro neste Jardim Selvagem.
Mas não me conformo. Não, não me conformo. Mesmo que nós seres humanos, por ironia do Destino que Anne Rice tenha exposto a Verdade sem querer, não passemos de fantasmas revoltados, estou disposta a lutar pela Justiça Aqui e Depois, e Sempre, não porque isso dê sentido à minha vida, mas porque é o correcto a fazer.
As leis éticas que me regem estão dentro de mim, não fora. Não em qualquer credo ou religião. Mas dentro de mim. Nasci para o Bem. Ponto final.


É verdade... No fim do livro, a nossa hárpiazinha, Armand, e apesar de saber tudo que aqui expus, Armand converte-se a Cristo. Era uma consciência demasiado pesada. Eram demasiados crimes e demasiado Mal para ele carregar - até ele! Fico feliz por ele ter admitido. Não fico feliz pela forma como se converteu. Como eu disse, eu nasci para o Bem. Acho que aprendi a amar um inimigo.
E não posso dizer mais nada sem revelar o fim do livro. Se fosse uma obra muito conhecida, poderia dizê-lo. Sendo assim, não faço aos outros o que não gostaria que me fizessem a mim.

Enfim, acho que já perceberam, é um livro que aconselho a ler.

Publicado por _gotika_ em 09:07 AM | Comentários: (11)


Comentários: filmes e livros e livrarias

Mas diz-me uma coisa em relação ao "Queen of The Damned": suponho que o argumento do filme tenha fugido imenso ao livro, verdade? (...)Enviado por jesusrocks em abril 7, 2004 02:33 PM

Não vi o filme. Pelo que vi do trailer, no site do filme (link no post anterior), e pelos comentários do produtor posso dizer que sim, que o filme é uma pálida imagem do livro. Mas compreendo que tenha que ser assim. “A Rainha dos Malditos” é um livro muito extenso, que explora a vida de muitos personagens em grandes espaços de tempo. Era preciso resumir. É claro que se cometeram erros imperdoáveis. Não havia necessidade de atribuir a criação do vampiro Lestat ao vampiro Marius. Quiseram cobrir também um pouco do livro “O Vampiro Lestat” e falharam. Ou melhor, atabalhoaram. E também não era necessário construir uma história de amor entre Jesse e Lestat quando a grande paixão de Lestat é por Louis... Ah, pois é!
Continuo a pensar que quem não leu os dois livros anteriores não percebe nada do que se passa na “Rainha dos Malditos”. As vampire chronicles são uma saga, como “As Brumas de Avalon”. Acho que isto diz tudo.
E eu tenho uma certa queda por sagas...

Geralmente não gosto das traduções (por exemplo a do "Dracula" de Bram Stoker não está nada bem conseguida) e encontrar livros na língua inglesa por aqui é complicado. Enviado por jesusrocks em abril 7, 2004 02:33 PM

Não sei onde moras mas em Lisboa tens a Livraria Buchholz e a Livraria Britânica. (Se alguém conhece sítios onde encontrar livros na língua original - de preferência baratos ou em segunda mão - faz favor de dizer nos comentários) Mesmo por causa disso, resolvi pedir um cartão de crédito (nunca na vida tinha tido necessidade dele) para encomendar compras do estrangeiro através da internet. Parece estranho mas acaba por sair mais barato, o que não deixa de ser sintomático...

Publicado por _gotika_ em 04:29 AM | Comentários: (3)

domingo, 10 de março de 2013

Gotika: arquivos Abril 2004

abril 07, 2004

“Queen of the Damned”

De Anne Rice.

É um livro pateta. Pensei-o da primeira vez que o li e confirmei-o da segunda.
Salva-se a história de Armand e Daniel. O resto é absolutamente demasiado confuso. Muitas personagens. Demasiadas personagens.
Nem vou comentar.

Cena do filme ”Queen of the Damned”: Lestat e Akasha, Rainha dos Malditos. (Nota: a cena não existe no livro)


Depois vem “The Tale of the Body Thief”. E depois vem o livro que acabei de ler, “Memnoch the Devil”. E esta não é uma história de vampiros. É uma história sobre Deus e o Diabo, a vida e a morte. A nossa vida e a nossa morte.
Há muito tempo que nada me atingia assim. Sinto-me fulminada. Perplexa em terror. Não tinha dito aqui algures que uma história de terror tem de ter uma base de verdade para ser verosímil?... Fiquei sem palavras. Dei hoje por mim a olhar no vácuo, absorvida pelo choque de questionar tudo aquilo em que acredito por causa de um livro, porque pode bem ser verdade, percebem?... Pode muito bem ser a verdade. Por mais horrenda que seja.
De modo que não faço a mínima ideia de quando e como vou conseguir comentar o conteúdo do livro, e contar a história, e debatê-la, e...
Talvez um copo faça desbloquear as lágrimas.

Por alguma razão, no fim do livro, Lestat está completamente louco. É caso para isso.

Publicado por _gotika_ em 01:54 AM | Comentários: (7)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Gotika: arquivos Março 2004

março 27, 2004

“O Vampiro Lestat” - o livro

O segundo livro das “Vampire Chronicles” de Anne Rice, escrito em 1985, nove anos após a publicação de “Entrevista com o vampiro”, vem explicar os mistérios deixados no ar pelo relato de Louis e preparar os leitores para a explosão cósmica de “A Rainha dos Malditos”. Nenhum dos livros esgota o tema, pelo contrário, até lança pistas para a sua continuação, de uma forma tão natural e pouco comercial que se diria que as “Vampire Chronicles” não podem acabar enquanto os protagonistas existirem.
A rede de relações entre todos e uns e outros em particular é tão intricada e misteriosa como só a vida pode ser. Muitos dos personagens que falam na primeira pessoa não fazem ideia do que os outros tramam e escondem nas suas costas. Mas nem só de traições e segredos se faz a vida destes vampiros. Os amores falsos e os amores verdadeiros e os amores não correspondidos também lá estão.

Lestat é um jovem fidalgo de uma família aristocrática mas falida do século XVIII, em França, pouco antes da Revolução. Propositadamente ou não, Anne Rice diz-nos que ele foi o 7º filho do marquês, mas é o irmão mais novo dos três sobreviventes. A mãe, Gabrielle, é uma mulher fria que se refugia na leitura, mais uma vítima do seu tempo e de um casamento arranjado e de uma vida que odeia mas da qual não se pode libertar. Num castelo pobre e frio, o jovem Lestat mostra desde cedo uma personalidade invulgar e extraordinária. Sai à mãe e tem jeito para os estudos mas o poder paterno não o deixa ingressar num mosteiro porque ser um humilde monge não é digno da sua condição social. Por exemplo, Gabrielle nem perde tempo a ensinar os filhos a ler. E Lestat ressente-se de ser preterido pelos livros. Na adolescência, alimenta o sonho de ser actor. Chega a fugir com uma companhia de saltimbancos italianos e actuar pelas feiras da região. É apanhado pelos irmãos e obrigado a voltar ao castelo porque ser actor nesse tempo era uma vergonha inconcebível. Na sua frustração e infelicidade, Lestat remete-se a ser o caçador que mais tarde se torna na única fonte de sustento de toda a família.
O seu destino é traçado quando enfrenta um alcateia de oito lobos e consegue matá-los todos. Finalmente conquista o respeito da família e da aldeia, mas este acontecimento é apenas o princípio de tudo. É assim que conhece Nicholas, um jovem violinista que, tal como Lestat, tem sonhos artísticos irrealizáveis. Mas agora estão juntos e conseguem gerar força um no outro para fugirem para Paris e dedicarem-se ao teatro. Gabrielle sabe que está a morrer de tuberculose e num dos seus raros gestos de ternura, incentiva o filho a fugir.
Os dois rapazes de vinte anos partem para Paris e dão asas ao seu sonho. Nicholas toca violino e Lestat consegue um papel principal num pequeno teatro para gente pobre. Nessa altura são felizes.
Aqui termina a curta vida humana do vampiro Lestat. A sua fama de caçador, a sua beleza e o seu talento atraem um velho vampiro que quer fazer dele seu herdeiro. É contra a sua vontade que Lestat é obrigado a tomar a Dádiva Negra. De seguida, o seu criador suicida-se e deixa-o entregue a si próprio, sem fazer ideia das leis que regem o submundo onde acabara de entrar.
Mais uma vez, Lestat é obrigado a desistir dos seus sonhos, a viver nas sombras, longe do palco onde brilhava. É prisioneiro da sua condição.
Mas algo mudou: o seu criador deixou-lhe uma enorme fortuna. Subitamente rico, rodeia-se de todos os luxos que o seu castelo arruinado nunca conheceu e reparte o dinheiro com a família e os amigos. Uma coisa lhe é proibida: o contacto com eles. Até ao dia em que Lestat não suporta a solidão e acaba por voltar, mas Nicholas nunca lhe perdoará ter desaparecido de um momento para o outro. É assim que perde o maior amigo.
Quando Lestat fala da insuportável sede de sangue, não será esta também uma ânsia da vida que o Destino não o deixa viver?
E depois Gabrielle está às portas da morte. E Lestat, que não acredita em Deus, tem tanto pavor da morte como da solidão. Com o consentimento de Gabrielle, transforma-a noutra vampira. Torna-se no criador da sua mãe.
Mas assim que Gabrielle se liberta das condições restritivas da vida, transforma-se no que chamamos agora uma “exploradora de terras desconhecidas”. Tinham em comum, ela o filho, serem prisioneiros de um século feudal e demasiado atrasado para duas pessoas extraordinárias que não se conformavam com a mediocridade das suas existências e com as convenções que lhes eram impostas. Atraída pelos desertos, pelas montanhas, pelo desconhecido, pelos povos primitivos e exóticos, Gabrielle não suporta a sociedade moderna do século XVIII. Aliás, Gabrielle não suporta nenhuma sociedade. Livre como um animal selvagem, é no espaço bravio e desabitado que encontra o seu lugar. Lestat, apaixonado pela vida e pelo amor, jamais a poderia seguir. O próprio admite que espera da mãe o que ela não lhe pode dar. E no entanto, existe amor entre os dois. E no entanto, não podem ficar juntos.
Lestat ainda tenta redimir-se perante Nicholas transformando-o também num vampiro, mas é tarde demais para reconquistar o seu amor. Pior, Nicholas é uma espécie de Louis ainda mais atormentado e acaba por se suicidar numa pira de fogo.
A família aristocrática de Lestat é assassinada durante a revolução, sobrevivendo apenas o velho pai, que se refugia na colónia americana da Louisiana. Confrontado com a necessidade de tomar conta do pai, é Lestat quem se sacrifica. Gabrielle nunca mais quis ver os outros filhos, quanto mais o marido. É a separação definitiva.
Mais uma vez sozinho e sem rumo, Lestat entra na sua primeira depressão vampírica: debaixo da terra, permanece vivo, mas sem vontade de viver. A visita de Marius ensina-lhe alguns segredos que o fazem reagir, mas mais tarde volta a procurar esta hibernação, depois de perder Cláudia e Louis, e como Marius lhe disse, se não fosse esta fuga do mundo muitos imortais não teriam coragem de continuar a viver.


Vampiros muito humanos
É interessante notar a evolução do vampiro Lestat da “Entrevista” para este Lestat que escreve a sua autobigrafia e mais tarde ainda para o Lestat pós-“Queen of the Damned” em “The Tale of the Body Thief”. É o cidadão do século XX que nos fala, como não podia deixar de ser, e já não o aristocrata francês, contemporâneo de Maria Antonieta, que não sabia ler nem escrever, que usava tricórnio e fatos de “todas as cores do arco-íris” (citação) - Consegue-se imaginar um homem elegante de tricórnio cor-de-rosa?... Dificilmente. Grande inteligência, a de Anne Rice, e ao mesmo tempo pergunto-me se o interregno de 9 anos entre o início das crónicas em 76 e a sua continuação nos anos 80 não teve também importância nesse salto qualitativo das personagens.
Como já aqui disse, Louis é que é o gótico mas é de Lestat que eu gosto mais. Lestat é aquela criatura que ninguém nunca conhece completamente, tal é a sua complexidade, e as suas aparentes incoerências só se desfazem quando o próprio explica, com uma inocência mais que convincente, aquele pormenorzinho que os outros ignoravam porque nunca perguntaram, porque Lestat pensava que eles sabiam, ou porque Lestat não podia ou não teve coragem de contar antes.
Por exemplo, a morte de Cláudia. Quem viu o filme e quem leu o primeiro livro, pela perspectiva de Louis, não imagina o que realmente se passou. Só um século depois, quando Lestat lê a interpretação que Louis faz dos factos e da sua personagem (o tal ignorante, cruel, egoísta e vaidoso aristocrata que não tem muitos escrúpulos) é que se revolta e decide contar a sua versão da história. Aliás, como qualquer um de nós faria.
Então, seguir o percurso destas personagens torna-se apaixonante. É preciso, como no jornalismo, ir ouvir a versão de cada um e, como na justiça, não esquecer que todos são inocentes até se provarem culpados. Inevitavelmente, criam-se amores e ódios de estimação.
Já tenho o meu ódio pessoal a Armand. Sedutor e carismático, Armand tem a moral de um tubarão. Não ama ninguém a não ser ele mesmo, isto é, e duvido muito, se é que se ama a ele mesmo. Às vezes a falta de auto-estima leva certas criaturas a encontrarem compensação na sensação de poder que é liderar alguma coisa, manipular as pessoas para benefício próprio, sentir-se importantes aos olhos dos outros mesmo que não gostem deles próprios. (Mal posso esperar por ler “Armand”)
Armand engana Louis, deixando-o pensar durante quase um século que Lestat morreu e, mesmo quando confessa que Lestat está afinal vivo e que foi ele, Armand, a ordenar a morte de Cláudia, não conta que Lestat nunca pediu que o fizesse. A Lestat, Armand também engana e também diz que Louis morreu pouco depois de Cláudia. Chama-se “dividir para reinar”. Graças a isto, manteve os dois afastados até ao século XX e privou da companhia de Louis enquanto lhe apeteceu.
Todos nós conhecemos Armands. O mundo está cheio de Armands. Se calhar por isso o meu ódio de estimação à personagem. Quem não conhece essa personagem intriguista e manipuladora, da família, do escritório, do círculo de amigos?
Só a verdade pode expor a criatura, e é isso que faz Lestat na sua biografia, como a luz que dissipa as trevas. Basicamente é isso que Lestat representa, a luz, e já lhe perguntava o seu amigo Nicholas, “para que serve um monstro cheio de luz”?
O amor de Lestat e Nicholas, por outro lado, lembra-nos que quando o amor se torna em ódio é dos ódios mais fortes que existem. E todos também já vimos isso todos os dias.
O que não vemos todos os dias é uma personagem brilhante e honesta como Lestat, que procura pelo amor. E quem é que pode amar um ser como Lestat? Talvez ninguém. Talvez apenas Louis, à sua maneira, porque partilham da mesma inocência e do mesmo desespero. E mesmo assim, nenhum se consegue adaptar à forma de viver do outro. Este já é o grande problema do século XXI, consciente ou inconscientemente antecipado aqui por Anne Rice. A extrema individualidade e independência dos anos 90, a mesma razão porque Mulder e Scully dos “Ficheiros Secretos” nunca assumem a sua ligação romântica.
Na mãe, Lestat tem uma amiga mas não uma alma gémea. E em relação ao pai, Lestat é implacável. Nada está perdoado. Existe apenas um vago sentimento de obrigação que o faz ficar com ele até ao fim. Os pedidos de desculpa do velho marquês, no leito de morte, já vêm tarde demais. Lestat pede a Louis: “Mata-o!”. Louis responde: “Não posso, é o teu pai!” Ao que Lestat responde: “Eu sei. Por isso não o posso matar eu”. (in “Entrevista com o vampiro”)
Até que ponto a falta de sentir amor na infância pode moldar as pessoas? E se não há almas gémeas, pode haver amor? Como é que os familiares de Lestat poderiam imaginar como este se sentia preso ao destino imposto pela família? A frieza de Lestat no leito de morte do pai, portanto, é completamente natural. Estranho seria se chorasse o homem que o fez tão infeliz. Não havia nada, mesmo nada, em comum entre os dois excepto a casualidade estranha de um ser pai do outro. E viver entre almas estranhas é o inferno da incompreensão. Já dizia Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
Mas não todos os outros. O inferno aumenta na medida em que as almas são diferentes. Porque Lestat e Gabrielle tinham muito em comum mas se ela não compreendia a necessidade de Lestat viver entre as pessoas, muito menos ele poderia compreender que ela preferisse viver entre rochas inacessíveis. Eram almas mais gémeas do que Lestat e o velho marquês, mas ainda não suficientemente gémeas.
Lestat procura desesperadamente reconstruir a família. Ao saber da morte dos irmãos e cunhadas e sobrinhos, sonha que voltou a casa e os transformou a todos em vampiros, desde o pai, passando pelas crianças, até ao bebé de colo - a primeira visão de Cláudia? - porque para Lestat tudo e qualquer coisa é melhor do que a morte.


Vampiro vs anticristo
Nos anos 80, Lestat volta a sair de uma depressão de 50 anos e dedica-se à música. Quer ser, nem mais nem menos, uma estrela rock.
Aqui tenho de sorrir e ser condescendente para com Anne Rice. Nem vou transcrever as letras que ela escreveu para Lestat. Não, são piores que “Black #1” dos Type O Negative. Mas muito piores!!!
Digamos que Anne Rice queria dizer que Lestat se tornou um ídolo internacional à escala de Marilyn Manson, mas sem a polémica de Marilyn Manson porque ninguém acreditava que ele fosse mesmo um vampiro. Pobre Anne Rice, que em 1985 não acreditava que certas pessoas fossem tão estúpidas que pensassem que um cantor rock pudesse mesmo ser um vampiro - ou o Anticristo!!! E, no entanto, em pleno século XXI, ainda há quem veja o Demónio em Brian Warner.

O que é que aprendemos daqui?

1, Que Anne Rice é uma optimista e que as pessoas podem ser mais estúpidas do que nós imaginamos, ou
2, Que nos anos 80 se vivia uma euforia artística e cultural que não deixava antever a regressão dos anos 90?

Aposto na segunda hipótese porque o progresso é mesmo feito de avanços e recuos.


De volta ao vampiro
Na sua existência vampírica, o destino de Lestat repete-se. O próprio acaba por perceber isto não só em relação a ele próprio como aos outros que o rodeiam. Mortais ou imortais, parece que todas as voltas vão dar ao mesmo fim. Ao tentar brilhar de novo num palco e fazer aquilo para que nasceu... a nova “família” insurge-se. Não pode expor-se assim dessa maneira, não lhe é permitido expor os outros. É preciso remeter-se às sombras e ao anonimato. Não admira que Lestat venha a ter um comportamento suicida e auto-destrutivo. Está tão aprisionado pelo destino como mais tarde se vê aprisionado num corpo humano, já em “The Tale of the Body Thief”.
Sozinho, frustrado... e a precisar de muita terapia.
Mal posso esperar por ler “Memnoch, o diabo”.

Mas, antes, vou reler “Queen of the Damned”. Acontece que já li em português e se há pensamentos de Anne Rice que não se percebem em inglês, muito menos noutra língua. Não me queixo dos tradutores nem da escritora. Pelo contrário, muitas vezes a grandiosidade de um escritor está na dificuldade em interpretar e traduzir as suas frases que evocam toda uma corrente de pensamentos e sentimentos associados aos sons, às sílabas, aos jogos de palavras... Isso fica “lost in translation”. É um pouco como traduzir Fernando Pessoa para outra língua sem lhe assassinar a poesia. É daqueles casos em que não basta traduzir mas re-escrever. Não se pode pedir tanto a um tradutor. (Não se pode pedir tanto a ninguém.)

“O Vampiro Lestat” só termina na introdução da “Rainha dos Malditos” Diz ele: “É uma verdade horrível que o sofrimento nos pode tornar mais profundos, dar mais brilho às nossas cores, uma ressonância mais rica às nossas vozes. Isto é, se não nos destrói, se não nos queima o optimismo e abate o espírito, a capacidade de sonhar, e o respeito pelas coisas simples mas indispensáveis. Por favor perdoem-me se vos soo amargo”.

Como não? Afinal, é apenas a destruição da humanidade que Lestat quase provoca com a Rainha dos Malditos... E só queria voltar a ser o jovem actor que fugiu de casa para andar de feira em feira com saltibancos italianos... É lixado sermos nós próprios.


Notas de humor
“Todas as noites quando regressava a Carmel Valley eu pegava nos sacos de correio dos fãs (...) e procurava neles escrita de vampiros (...) mas não havia nada excepto a devoção fervorosa dos mortais.
‘Querido Lestat, eu e a minha amiga Sheryl adoramos-te, e não conseguimos bilhetes para San Fransciso embora tenhamos estado na bicha durante seis horas. Por favor manda-nos dois bilhetes. Nós seremos tuas vítimas. Podes beber o nosso sangue.’”

Delicioso!
Fantástico!
E eu queixava-me do preço dos bilhetes para o Nick Cave.

E há aquela parte em que Louis fala dos bares onde os vampiros se encontram, e de uma certa fauna humana que também por lá anda... Esta, confesso, foi dolorosa. Diz Louis:
“Os mortais que lá vão são um autêntico circo de tipos teatrais - jovens punks, artistas, aqueles que vestem capas negras e dentes de vampiro de plástico. Eles mal dão por nós! Comparados com eles, somos ofuscados!”

Senhor Louis, já é suficientemente mau ter nascido numa época de trajes elegantes - nada de tricórnios e fatos brilhantes cor de malva que são coisas do seu ilustre amigo - e não poder apontar um dedo ao seu bom gosto, e ainda por cima ser um vampiro famoso e quase antigo e aos antigos não se falta ao respeito, não pela hierarquia gótica porque o senhor não é gótico nem percebe nada do assunto (faz de conta!), mas com a respectiva vénia: beba-nos o sangue mas não critique as nossas roupas!

Publicado por _gotika_ em 02:59 AM | Comentários: (6)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Gotika: arquivos Fevereiro 2004

fevereiro 24, 2004

A minha última paixão

Procurei refúgio nas últimas páginas de “The Tale of the Body Thief”. Oh, que decepção, Lestat! Estou tão danada também contigo, agora que já te amava tanto! Se o soubesses, também me transformavas num dos teus, contra a minha vontade? É essa a tua gratidão? Saberás o significado da palavra respeito? Egoísta infantil! Sabes que vais arder no inferno do teu arrependimento, não sabes? Pobre estúpido! Não negues! Negas agora por orgulho. Ainda me vais dar razão.
Tu não és Mau! A tua “maldade demoníaca” não passa de capricho de menino mimado! “Old demon” my ass! Spoiled, idiot, stupid, poor little idiot you!
Ainda tens muito que aprender. Que os teus amigos tenham paciência para te aturar. É difícil não te amar, Lestat. Sim, eu sei que te custa a crer. Debaixo de um grande complexo de superioridade está sempre o reverso da medalha. Tens medo da solidão e da morte. Por essa ordem. Mas o que mais temes é o vazio que encontras dentro da tua alma egoísta quando te vês sozinho e a morte te tenta. A morte que não consegues aceitar e tanto temes, torna-se sedutora. Sem amor não vale a pena, pois não, Lestat?
Talvez Anne Rice ponha no teu caminho a pessoa certa no momento certo para perceberes que não deves temer a solidão. Talvez assim não temas tanto a morte. E já to disseram tantas vezes, Lestat, e tu não ouves!

Oh! Todos os outros me devem condenar pelo meu temperamento, pela minha impetuosidade, pela minha determinação! Eles gostam de ver. Mas quando eu mostro a minha própria fraqueza, eles afastam-me. É isso? Sou deveras forte?
Respondeu-te o Body Thief: Oh, sim, nunca te faltou a força! E é por isso que eles te invejam e desprezam e se zangam contigo.

Mas tu não acreditas. Quando viste o teu corpo passar, com alma de outro dentro dele, quais foram os teus pensamentos? Mesmo no meu medo, pensei subitamente que [a figura dele] era de partir o coração de tão trágico. E questionei-me se não teria parecido aos outros o mesmo fracasso maçador quando estava naquele corpo. Não teria parecido o mesmo triste?

Achas mesmo que sim?
E quando dizes: Claro que os fiéis e zelosos leitores dos meus livros viram-me aqui de vez em quando. Os leitores das memórias de Louis, se tivessem encontrado o apartamento em que morávamos, seguramente reconheceriam a casa.
Não interessa. Eles acreditaram nisso, o que é diferente de acreditar. E não podia ser outro jovem de faces louras, a sorrir-lhes da alta varanda, com os braços apoiados no corrimão? Eu nunca me alimentaria destes ternos inocentes - mesmo quando eles mostram as suas gargantas e me dizem “Lestat, aqui!” (Isto aconteceu, leitor, em Jackson Square, e mais do que uma vez.)


Como podes dizer que não és amado? A tua sorte é que ainda tens muito, muito tempo para aprender. Ainda bem, porque precisas de aprender muito.
Por enquanto, tenta este pequeno passo: não descarregar nos teus amigos o mal que outros te fizeram. Não só estás a ser injusto como também os estás a perder.
Oh, Lestat, que lição tão básica, Lestat!

Publicado por _gotika_ em 10:22 AM | Comentários: (3)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Gotika: arquivos Fevereiro 2004

fevereiro 18, 2004

No Top 25 do Blogómetro



Finalmente!
E sem falar de sexo!
Agora já posso começar a falar de política.

Publicado por _gotika_ em 06:53 AM | Comentários: (5)


Os vampiros também não prestam

Lestat é o vampiro protagonista dos livros de Anne Rice. Em “The Tale of The Body Thief”, Lestat entra no corpo de um jovem mortal falecido, perdendo os seus poderes vampíricos mas ganhando, em contrapartida, a possibilidade de se aproximar mais dos humanos que conhece ou já conhecia. E desenrola-se uma história verdadeiramente humana.
Volta a sentir na pele todas as nossas limitações, relata-nos o que sente, e como se arrepende amargamente da experiência. Nos seus dois séculos de vida, já não se lembrava da sua juventude na forma humana.
A forma como Lestat descreve as suas paixões por Gretchen, mulher, e David, homem, não implica nenhum problema de consciência. Simplesmente sente. Não há nada a explicar. Quando se tenta aproximar de David, este recusa a aproximação com muita mágoa. Diz Lestat:

I knew I was to blame for this. I knew it, and that it was useless to say apologetic words. I also sensed something else. I was an evil being, and even when I was in this body, David could sense that evil. He could sense the powerful vampiric greed. It was an old evil, brooding and terrible. Gretchen hadn’t sense it. I had deceived her with this warm and smiling body. But when David looked at me, he saw that blond blue-eyed devil demon whom he knew very well.

E depois um maravilhoso momento gótico que não resisto a transcrever:

I said nothing. I merely looked out over the sea. Give me back my body. Let me be that devil, I thought. Take me away from this paltry brand of desire and this weakness. Take me back into the dark heavens where I belong. And it seemed suddenly that my loneliness and my misery were as terrible as they had been before this experiment (…)

Em resposta a estes pensamentos, David responde que o ama, e que tem medo desse amor. É que David é um velho de 74 anos e sente-se esse velho. É-lhe inconcebível tocar num corpo mais jovem, mesmo habitado por um vampiro de 200 anos, porque o recorda da sua juventude perdida e nada poderá ser mais doloroso do que voltar a uma vida passada e recordar o vigor, a alegria desses dias. David prefere viver com dignidade os dias que lhe restam, assumindo completamente a sua condição de mortal no fim do seu tempo (David tem uma doença fatal).

Lestat, no fundo não passa de um ser infeliz que passa a vida a meter-se em confusões para se distrair do tédio da existência. Esta troca de corpo, por exemplo, é precedida por uma tentativa falhada de suicídio. Mas Lestat não quer de facto morrer. Simplesmente está farto da vida. Mal amado por Louis e Claudia, que dizem amá-lo mas mostram absolutamente o contrário, encontra no seu amigo mortal, David, a verdadeira amizade. Claudia já morreu mas ainda o atormenta. Louis (o mesmo de “Entrevista com o Vampiro”) não lhe perdoa as extravagâncias, condena-o por gostar demasiado de si próprio e não quer assumir que o ama e que precisa dele. Na hora de desespero, todos os outros vampiros lhe voltam as costas. Menos David. E o cão.

Do cão, diz Lestat:

After all, the old cliché was true. This great hunk of dog flesh was my only friend! Did Satan have a dog when they hurled him down into hell? Well, the dog would probably have gone with him, that much I knew.

Uma lição para Lestat?

Publicado por _gotika_ em 04:52 AM | Comentários: (0)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Gotika: arquivos Fevereiro 2004

fevereiro 04, 2004

Fangs

I drew back my lips and showed him my fangs for a second. They are very small, actually, nothing compared to the leopard and the tiger, with which he kept company so obviously by choice. But this grimace always frighthens mortals. It does more than frighthen them. It actually shocks them. I think it sends some primal message of alarm through the organism which has little to do with its conscious courage or sophistication.

Lestat, in "The Tale of the Body Thief", Anne Rice

Bem observado.



Publicado por _gotika_ em 06:16 PM | Comentários: (3)



Apanhada nas malhas do vampiro...

E completamente hipnotizada por "The Tale of the Body Thief"*, volto assim que beber a última gota.

Como os livros estão caros, vou tentar reproduzir algumas frases interessantes. Later...

* Anne Rice, as aventuras de Lestat a seguir a "Queen of the Damned"

Publicado por _gotika_ em 01:50 AM | Comentários: (5)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

True Blood


(Na versão portuguesa "Sangue Fresco", em exibição na RTP1)

Qual é o problema desta série? Um dos problemas, reparo agora, é por onde começar a enumerar os problemas, que não são poucos.
Comecemos pelo mais imediato. A princípio (digo primeira temporada) dá a sensação de que os autores não sabem se querem fazer uma série de vampiros ou uma série dramática sobre os usos e mentalidades do sul dos Estados Unidos. Atenção, nada tenho contra séries dramáticas, antes pelo contrário. Tenho tudo contra misturas mal feitas. E esta mistura não podia ter saído pior. Pergunto-me mesmo se, depois de cada episódio, os autores não faziam uma sondagem às preferências dos espectadores e lá iam "navegando" a série à mercê das audiências.
O que não era preciso. A série tem excelentes pernas para andar: depois da descoberta científica de um produto substituto do sangue humano, os vampiros já podem "sair do armário" e reivindicar os seus "direitos". Depois de séculos nas sombras, decidem finalmente viver integrados em sociedade. É muito gay mas é mesmo assim.
A ideia é original e ousada. Não era preciso mais nada. Não era preciso, por exemplo, misturá-la com os dramas de uma mãe alcoólica e ultra-evangélica que negligencia a filha. Isso é outro argumento. No máximo, a questão seria abordada, sem nunca perder de vista o coluna vertebral da história "principal". A certa altura, pelo contrário, a série já nem tem coluna vertebral, de tão (mal) fragmentada.
Volto a insistir que nada tenho contra séries dramáticas. Veja-se o caso de Anne Rice, que tão bem faz nos seus livros o casamento entre os vampiros e a mesmíssima cultura do sul dos Estados Unidos. (Olha a série a perder originalidade... e pontos!) Para quem tem preguiça de ler os livros, o filme "Entrevista com um vampiro" exemplifica muito bem do que falo. Os livros fazem-no ainda melhor, prova de que a mistura pode ser feita... se bem feita. "True Blood" faz mal.
A par destas duas linhas directoras, vampiros + drama, surge a terceira, vampiros + drama + soft porno. Se calhar nem é tanto a questão de os vampiros terem apetite sexual o que me desgosta (por repulsiva que me seja a ideia de um vampiro a fazer sexo, não se a subtileza do vampiro romântico, desde os tempos de Lord Ruthven, em "The Vampyre" de Jonh Polidori, é exactamente a metáfora do desejo, metáfora que "True Blood" transforma em minha opinião em blasfémia -- por pouco que a minha opinião valha), mas o facto de não se perder nenhuma oportunidade de meter toda a gente a fazer sexo. Pretos com brancos, brancos com brancos, pretos com pretos, vampiros com mulheres, vampiros com homens, vampiros com vampiros, e só falta alguém fazê-lo com o cão. Sim, precisamente esse cão, em forma de cão. Olha o que se poupa em downloads porno!
Entretanto estávamos a falar de quê, que já me esqueci? Ah, sim, a série de vampiros. Pois a série de vampiros, no meio de toda esta fodenguice, torna-se um bocado difícil de acompanhar. Pergunto-me mesmo se existe...
Concedo que existem boas cenas (de vampiros, esclareça-se), e uma das notas positivas vai para o vampiro Eric Northman, um vampiro sueco e medieval, que assim que aparece na série lhe dá logo uma inesperada pica (falo de adrenalina):


Isto sim, é um senhor vampiro, antigo e ameaçador, envolto nas sombras do bar Fangtasia, que nos arrepia a espinha por muitas razões. Aqui está a metáfora, um digno representante de Lord Ruthven, de Drácula, de Lestat, de todos os vampiros perigosos e sedutores de que se possam lembrar na história da literatura e do cinema. Nem quando aparece a pintar o cabelo perde o carisma. Afinal, quem disse que um vampiro não pode ser vaidoso? Infelizmente, tinham de estragar, e na segunda temporada põem o senhor da fotografia vestido de fato de treino, a fazer compras num supermercado. Já tem o cabelo curto, e para compor o ramalhete só falta estar também oleoso. Um cachecol do Benfica ao pescoço e tornar-se-ia um digno candidato para as recentes séries portuguesas. "Liedson, marca-me essa merda ou chupo-te o sangue todo, caralho!", podia ser uma das suas falas. (O quê, Liedson não é do Benfica? Então mudem o cachecol.)
Fica o desgosto, e a fotografia para lembrar a primeira temporada.

Voltando a "True Blood", que é difícil dada a dispersão em que a própria série se perde, tanta que como disse a princípio se torna difícil (e maçudo) apontar-lhe os defeitos todos, não contentes com esta mistura intragável os autores ainda decidiram juntar-lhe shape shifters, deusas gregas, e o diabo a sete, porque sabe-se lá mais o que pode aparecer. Sim, porque entretanto o próprio shape shifter já "avisou" os espectadores de que não é um lobisomem, porque "os lobisomens são uma coisa completamente diferente". Boa. E uns zombies também, porque não? Falando em seres sobrenaturais, a série tornou-se tão sem pés nem cabeça que mais valia dar-lhe o tiro de misericórdia. Na minha opinião entravam por aquela terra de Bonstemps os irmãos Winchester (sim, esses mesmos, do "Sobrenatural") e matavam à caçadeira aquela bicharada toda: vampiros xungas, deusas gregas de mau feitio, homens-cão... e todos os seres humanos patéticos que por lá pululam. Evangélicos e "Jesus people" à cabeça.