março 27, 2004
“O Vampiro Lestat” - o livro
O segundo livro das “Vampire Chronicles” de Anne Rice, escrito em 1985, nove anos após a publicação de “Entrevista com o vampiro”, vem explicar os mistérios deixados no ar pelo relato de Louis e preparar os leitores para a explosão cósmica de “A Rainha dos Malditos”. Nenhum dos livros esgota o tema, pelo contrário, até lança pistas para a sua continuação, de uma forma tão natural e pouco comercial que se diria que as “Vampire Chronicles” não podem acabar enquanto os protagonistas existirem.
A rede de relações entre todos e uns e outros em particular é tão intricada e misteriosa como só a vida pode ser. Muitos dos personagens que falam na primeira pessoa não fazem ideia do que os outros tramam e escondem nas suas costas. Mas nem só de traições e segredos se faz a vida destes vampiros. Os amores falsos e os amores verdadeiros e os amores não correspondidos também lá estão.
Lestat é um jovem fidalgo de uma família aristocrática mas falida do século XVIII, em França, pouco antes da Revolução. Propositadamente ou não, Anne Rice diz-nos que ele foi o 7º filho do marquês, mas é o irmão mais novo dos três sobreviventes. A mãe, Gabrielle, é uma mulher fria que se refugia na leitura, mais uma vítima do seu tempo e de um casamento arranjado e de uma vida que odeia mas da qual não se pode libertar. Num castelo pobre e frio, o jovem Lestat mostra desde cedo uma personalidade invulgar e extraordinária. Sai à mãe e tem jeito para os estudos mas o poder paterno não o deixa ingressar num mosteiro porque ser um humilde monge não é digno da sua condição social. Por exemplo, Gabrielle nem perde tempo a ensinar os filhos a ler. E Lestat ressente-se de ser preterido pelos livros. Na adolescência, alimenta o sonho de ser actor. Chega a fugir com uma companhia de saltimbancos italianos e actuar pelas feiras da região. É apanhado pelos irmãos e obrigado a voltar ao castelo porque ser actor nesse tempo era uma vergonha inconcebível. Na sua frustração e infelicidade, Lestat remete-se a ser o caçador que mais tarde se torna na única fonte de sustento de toda a família.
O seu destino é traçado quando enfrenta um alcateia de oito lobos e consegue matá-los todos. Finalmente conquista o respeito da família e da aldeia, mas este acontecimento é apenas o princípio de tudo. É assim que conhece Nicholas, um jovem violinista que, tal como Lestat, tem sonhos artísticos irrealizáveis. Mas agora estão juntos e conseguem gerar força um no outro para fugirem para Paris e dedicarem-se ao teatro. Gabrielle sabe que está a morrer de tuberculose e num dos seus raros gestos de ternura, incentiva o filho a fugir.
Os dois rapazes de vinte anos partem para Paris e dão asas ao seu sonho. Nicholas toca violino e Lestat consegue um papel principal num pequeno teatro para gente pobre. Nessa altura são felizes.
Aqui termina a curta vida humana do vampiro Lestat. A sua fama de caçador, a sua beleza e o seu talento atraem um velho vampiro que quer fazer dele seu herdeiro. É contra a sua vontade que Lestat é obrigado a tomar a Dádiva Negra. De seguida, o seu criador suicida-se e deixa-o entregue a si próprio, sem fazer ideia das leis que regem o submundo onde acabara de entrar.
Mais uma vez, Lestat é obrigado a desistir dos seus sonhos, a viver nas sombras, longe do palco onde brilhava. É prisioneiro da sua condição.
Mas algo mudou: o seu criador deixou-lhe uma enorme fortuna. Subitamente rico, rodeia-se de todos os luxos que o seu castelo arruinado nunca conheceu e reparte o dinheiro com a família e os amigos. Uma coisa lhe é proibida: o contacto com eles. Até ao dia em que Lestat não suporta a solidão e acaba por voltar, mas Nicholas nunca lhe perdoará ter desaparecido de um momento para o outro. É assim que perde o maior amigo.
Quando Lestat fala da insuportável sede de sangue, não será esta também uma ânsia da vida que o Destino não o deixa viver?
E depois Gabrielle está às portas da morte. E Lestat, que não acredita em Deus, tem tanto pavor da morte como da solidão. Com o consentimento de Gabrielle, transforma-a noutra vampira. Torna-se no criador da sua mãe.
Mas assim que Gabrielle se liberta das condições restritivas da vida, transforma-se no que chamamos agora uma “exploradora de terras desconhecidas”. Tinham em comum, ela o filho, serem prisioneiros de um século feudal e demasiado atrasado para duas pessoas extraordinárias que não se conformavam com a mediocridade das suas existências e com as convenções que lhes eram impostas. Atraída pelos desertos, pelas montanhas, pelo desconhecido, pelos povos primitivos e exóticos, Gabrielle não suporta a sociedade moderna do século XVIII. Aliás, Gabrielle não suporta nenhuma sociedade. Livre como um animal selvagem, é no espaço bravio e desabitado que encontra o seu lugar. Lestat, apaixonado pela vida e pelo amor, jamais a poderia seguir. O próprio admite que espera da mãe o que ela não lhe pode dar. E no entanto, existe amor entre os dois. E no entanto, não podem ficar juntos.
Lestat ainda tenta redimir-se perante Nicholas transformando-o também num vampiro, mas é tarde demais para reconquistar o seu amor. Pior, Nicholas é uma espécie de Louis ainda mais atormentado e acaba por se suicidar numa pira de fogo.
A família aristocrática de Lestat é assassinada durante a revolução, sobrevivendo apenas o velho pai, que se refugia na colónia americana da Louisiana. Confrontado com a necessidade de tomar conta do pai, é Lestat quem se sacrifica. Gabrielle nunca mais quis ver os outros filhos, quanto mais o marido. É a separação definitiva.
Mais uma vez sozinho e sem rumo, Lestat entra na sua primeira depressão vampírica: debaixo da terra, permanece vivo, mas sem vontade de viver. A visita de Marius ensina-lhe alguns segredos que o fazem reagir, mas mais tarde volta a procurar esta hibernação, depois de perder Cláudia e Louis, e como Marius lhe disse, se não fosse esta fuga do mundo muitos imortais não teriam coragem de continuar a viver.
Vampiros muito humanos
É interessante notar a evolução do vampiro Lestat da “Entrevista” para este Lestat que escreve a sua autobigrafia e mais tarde ainda para o Lestat pós-“Queen of the Damned” em “The Tale of the Body Thief”. É o cidadão do século XX que nos fala, como não podia deixar de ser, e já não o aristocrata francês, contemporâneo de Maria Antonieta, que não sabia ler nem escrever, que usava tricórnio e fatos de “todas as cores do arco-íris” (citação) - Consegue-se imaginar um homem elegante de tricórnio cor-de-rosa?... Dificilmente. Grande inteligência, a de Anne Rice, e ao mesmo tempo pergunto-me se o interregno de 9 anos entre o início das crónicas em 76 e a sua continuação nos anos 80 não teve também importância nesse salto qualitativo das personagens.
Como já aqui disse, Louis é que é o gótico mas é de Lestat que eu gosto mais. Lestat é aquela criatura que ninguém nunca conhece completamente, tal é a sua complexidade, e as suas aparentes incoerências só se desfazem quando o próprio explica, com uma inocência mais que convincente, aquele pormenorzinho que os outros ignoravam porque nunca perguntaram, porque Lestat pensava que eles sabiam, ou porque Lestat não podia ou não teve coragem de contar antes.
Por exemplo, a morte de Cláudia. Quem viu o filme e quem leu o primeiro livro, pela perspectiva de Louis, não imagina o que realmente se passou. Só um século depois, quando Lestat lê a interpretação que Louis faz dos factos e da sua personagem (o tal ignorante, cruel, egoísta e vaidoso aristocrata que não tem muitos escrúpulos) é que se revolta e decide contar a sua versão da história. Aliás, como qualquer um de nós faria.
Então, seguir o percurso destas personagens torna-se apaixonante. É preciso, como no jornalismo, ir ouvir a versão de cada um e, como na justiça, não esquecer que todos são inocentes até se provarem culpados. Inevitavelmente, criam-se amores e ódios de estimação.
Já tenho o meu ódio pessoal a Armand. Sedutor e carismático, Armand tem a moral de um tubarão. Não ama ninguém a não ser ele mesmo, isto é, e duvido muito, se é que se ama a ele mesmo. Às vezes a falta de auto-estima leva certas criaturas a encontrarem compensação na sensação de poder que é liderar alguma coisa, manipular as pessoas para benefício próprio, sentir-se importantes aos olhos dos outros mesmo que não gostem deles próprios. (Mal posso esperar por ler “Armand”)
Armand engana Louis, deixando-o pensar durante quase um século que Lestat morreu e, mesmo quando confessa que Lestat está afinal vivo e que foi ele, Armand, a ordenar a morte de Cláudia, não conta que Lestat nunca pediu que o fizesse. A Lestat, Armand também engana e também diz que Louis morreu pouco depois de Cláudia. Chama-se “dividir para reinar”. Graças a isto, manteve os dois afastados até ao século XX e privou da companhia de Louis enquanto lhe apeteceu.
Todos nós conhecemos Armands. O mundo está cheio de Armands. Se calhar por isso o meu ódio de estimação à personagem. Quem não conhece essa personagem intriguista e manipuladora, da família, do escritório, do círculo de amigos?
Só a verdade pode expor a criatura, e é isso que faz Lestat na sua biografia, como a luz que dissipa as trevas. Basicamente é isso que Lestat representa, a luz, e já lhe perguntava o seu amigo Nicholas, “para que serve um monstro cheio de luz”?
O amor de Lestat e Nicholas, por outro lado, lembra-nos que quando o amor se torna em ódio é dos ódios mais fortes que existem. E todos também já vimos isso todos os dias.
O que não vemos todos os dias é uma personagem brilhante e honesta como Lestat, que procura pelo amor. E quem é que pode amar um ser como Lestat? Talvez ninguém. Talvez apenas Louis, à sua maneira, porque partilham da mesma inocência e do mesmo desespero. E mesmo assim, nenhum se consegue adaptar à forma de viver do outro. Este já é o grande problema do século XXI, consciente ou inconscientemente antecipado aqui por Anne Rice. A extrema individualidade e independência dos anos 90, a mesma razão porque Mulder e Scully dos “Ficheiros Secretos” nunca assumem a sua ligação romântica.
Na mãe, Lestat tem uma amiga mas não uma alma gémea. E em relação ao pai, Lestat é implacável. Nada está perdoado. Existe apenas um vago sentimento de obrigação que o faz ficar com ele até ao fim. Os pedidos de desculpa do velho marquês, no leito de morte, já vêm tarde demais. Lestat pede a Louis: “Mata-o!”. Louis responde: “Não posso, é o teu pai!” Ao que Lestat responde: “Eu sei. Por isso não o posso matar eu”. (in “Entrevista com o vampiro”)
Até que ponto a falta de sentir amor na infância pode moldar as pessoas? E se não há almas gémeas, pode haver amor? Como é que os familiares de Lestat poderiam imaginar como este se sentia preso ao destino imposto pela família? A frieza de Lestat no leito de morte do pai, portanto, é completamente natural. Estranho seria se chorasse o homem que o fez tão infeliz. Não havia nada, mesmo nada, em comum entre os dois excepto a casualidade estranha de um ser pai do outro. E viver entre almas estranhas é o inferno da incompreensão. Já dizia Jean-Paul Sartre, “o inferno são os outros”.
Mas não todos os outros. O inferno aumenta na medida em que as almas são diferentes. Porque Lestat e Gabrielle tinham muito em comum mas se ela não compreendia a necessidade de Lestat viver entre as pessoas, muito menos ele poderia compreender que ela preferisse viver entre rochas inacessíveis. Eram almas mais gémeas do que Lestat e o velho marquês, mas ainda não suficientemente gémeas.
Lestat procura desesperadamente reconstruir a família. Ao saber da morte dos irmãos e cunhadas e sobrinhos, sonha que voltou a casa e os transformou a todos em vampiros, desde o pai, passando pelas crianças, até ao bebé de colo - a primeira visão de Cláudia? - porque para Lestat tudo e qualquer coisa é melhor do que a morte.
Vampiro vs anticristo
Nos anos 80, Lestat volta a sair de uma depressão de 50 anos e dedica-se à música. Quer ser, nem mais nem menos, uma estrela rock.
Aqui tenho de sorrir e ser condescendente para com Anne Rice. Nem vou transcrever as letras que ela escreveu para Lestat. Não, são piores que “Black #1” dos Type O Negative. Mas muito piores!!!
Digamos que Anne Rice queria dizer que Lestat se tornou um ídolo internacional à escala de Marilyn Manson, mas sem a polémica de Marilyn Manson porque ninguém acreditava que ele fosse mesmo um vampiro. Pobre Anne Rice, que em 1985 não acreditava que certas pessoas fossem tão estúpidas que pensassem que um cantor rock pudesse mesmo ser um vampiro - ou o Anticristo!!! E, no entanto, em pleno século XXI, ainda há quem veja o Demónio em Brian Warner.
O que é que aprendemos daqui?
1, Que Anne Rice é uma optimista e que as pessoas podem ser mais estúpidas do que nós imaginamos, ou
2, Que nos anos 80 se vivia uma euforia artística e cultural que não deixava antever a regressão dos anos 90?
Aposto na segunda hipótese porque o progresso é mesmo feito de avanços e recuos.
De volta ao vampiro
Na sua existência vampírica, o destino de Lestat repete-se. O próprio acaba por perceber isto não só em relação a ele próprio como aos outros que o rodeiam. Mortais ou imortais, parece que todas as voltas vão dar ao mesmo fim. Ao tentar brilhar de novo num palco e fazer aquilo para que nasceu... a nova “família” insurge-se. Não pode expor-se assim dessa maneira, não lhe é permitido expor os outros. É preciso remeter-se às sombras e ao anonimato. Não admira que Lestat venha a ter um comportamento suicida e auto-destrutivo. Está tão aprisionado pelo destino como mais tarde se vê aprisionado num corpo humano, já em “The Tale of the Body Thief”.
Sozinho, frustrado... e a precisar de muita terapia.
Mal posso esperar por ler “Memnoch, o diabo”.
Mas, antes, vou reler “Queen of the Damned”. Acontece que já li em português e se há pensamentos de Anne Rice que não se percebem em inglês, muito menos noutra língua. Não me queixo dos tradutores nem da escritora. Pelo contrário, muitas vezes a grandiosidade de um escritor está na dificuldade em interpretar e traduzir as suas frases que evocam toda uma corrente de pensamentos e sentimentos associados aos sons, às sílabas, aos jogos de palavras... Isso fica “lost in translation”. É um pouco como traduzir Fernando Pessoa para outra língua sem lhe assassinar a poesia. É daqueles casos em que não basta traduzir mas re-escrever. Não se pode pedir tanto a um tradutor. (Não se pode pedir tanto a ninguém.)
“O Vampiro Lestat” só termina na introdução da “Rainha dos Malditos” Diz ele: “É uma verdade horrível que o sofrimento nos pode tornar mais profundos, dar mais brilho às nossas cores, uma ressonância mais rica às nossas vozes. Isto é, se não nos destrói, se não nos queima o optimismo e abate o espírito, a capacidade de sonhar, e o respeito pelas coisas simples mas indispensáveis. Por favor perdoem-me se vos soo amargo”.
Como não? Afinal, é apenas a destruição da humanidade que Lestat quase provoca com a Rainha dos Malditos... E só queria voltar a ser o jovem actor que fugiu de casa para andar de feira em feira com saltibancos italianos... É lixado sermos nós próprios.
Notas de humor
“Todas as noites quando regressava a Carmel Valley eu pegava nos sacos de correio dos fãs (...) e procurava neles escrita de vampiros (...) mas não havia nada excepto a devoção fervorosa dos mortais.
‘Querido Lestat, eu e a minha amiga Sheryl adoramos-te, e não conseguimos bilhetes para San Fransciso embora tenhamos estado na bicha durante seis horas. Por favor manda-nos dois bilhetes. Nós seremos tuas vítimas. Podes beber o nosso sangue.’”
Delicioso!
Fantástico!
E eu queixava-me do preço dos bilhetes para o Nick Cave.
E há aquela parte em que Louis fala dos bares onde os vampiros se encontram, e de uma certa fauna humana que também por lá anda... Esta, confesso, foi dolorosa. Diz Louis:
“Os mortais que lá vão são um autêntico circo de tipos teatrais - jovens punks, artistas, aqueles que vestem capas negras e dentes de vampiro de plástico. Eles mal dão por nós! Comparados com eles, somos ofuscados!”
Senhor Louis, já é suficientemente mau ter nascido numa época de trajes elegantes - nada de tricórnios e fatos brilhantes cor de malva que são coisas do seu ilustre amigo - e não poder apontar um dedo ao seu bom gosto, e ainda por cima ser um vampiro famoso e quase antigo e aos antigos não se falta ao respeito, não pela hierarquia gótica porque o senhor não é gótico nem percebe nada do assunto (faz de conta!), mas com a respectiva vénia: beba-nos o sangue mas não critique as nossas roupas!
Publicado por _gotika_ em 02:59 AM | Comentários: (6)
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