domingo, 25 de setembro de 2022

Heir to Sevenwaters, de Juliet Marillier

Os amantes de sagas, como eu, adoram regressar a um universo familiar e agradável que os encantou. É como encontrar velhos amigos, ou inimigos, conforme o caso. Foi esta a minha sensação ao ler o quarto livro da série Sevenwaters, “Heir to Sevenwaters”, de Juliet Marillier.
Já conheço a família toda. O que me fez muita espécie foi que Ciarán* está lá com eles, embora não na mesma casa porque decidiu retomar os estudos como druida, o que ele já queria ser desde jovem. Pergunto-me por que raio é que um feiticeiro do calibre dele quer ser um druida, mas acho que são sonhos de infância ou uma parvoíce assim. Também me pergunto o que raio faz ele em Sevenwaters depois da velhacaria que Conor, Sean e Red lhe fizeram e a Niamh. Sim, o nosso amado Red, marido de Sorcha e pai de Sean, a quem perdoo mais porque foi o único que foi fazer justiça pela filha com as próprias mãos. (Por alguma razão ele é o nosso amado Red.) Mas, mesmo assim, velhacaria. Conor até tem alguma desculpa, tendo passado tanto tempo com cérebro de pássaro não pode ter ficado muito bem, mas Sean (actual senhor de Sevenwaters) não tem desculpa nenhuma. Logo, o que está Ciarán lá a fazer? A família é uma coisa muito viciante e tóxica, é só o que posso concluir. Eu nunca mais os queria ver, nem que fosse para os transformar em lagartixas. E até tenho a certeza de que Ciarán também teria feito justiça por Niamh se ela o tivesse deixado. Mas o tempo que tiveram juntos foi tão escasso, se calhar não valia a pena desperdiçá-lo. Por outro lado, Fainne, a filha de ambos, também teve para onde ir, e Ciarán ficou mais ou menos sozinho (se exceptuarmos o corvo Fiacha que não me parece grande companhia). Voltar aos planos antigos talvez lhe tenha ocorrido por alguma razão que não é aqui explicada.
Nota-se quem é o meu personagem preferido, não nota? Esta história não é sobre ele, mas de certa forma implica a partida de Fainne para uma ilha sagrada onde será a guardiã de não sei o quê (nunca prestei muita atenção aos aspectos religiosos). Com ela foi, se me lembro correctamente, a Senhora da Floresta e o Senhor dos Cabelos de Fogo. E isto já tem a ver com o quarto livro da série.
Na ausência da Senhora da Floresta (a tal que “ajudou” Sorcha em “A Filha da Floresta”), instala-se na floresta de Sevenwaters (isto é, no Otherworld de Sevenwaters, o reino dos Fair Folk, ou, mais tradicionalmente, das fadas) um príncipe sem escrúpulos chamado Mac Dara. Ora, se os Fair Folk nunca foram muito de fiar, Mac Dará só não é mais violento porque não precisa. Basta-lhe um feitiço e já está. Mas já lá vamos.
O início do livro pode parecer lento e até aborrecido. Nada de interessante acontece. Deirdre, uma das filhas de Sean e Aisling, vai casar-se com um nobre importante. Os guerreiros de Inis Eala, inclusive Johnny (filho de Liadan, irmã gémea de Sean) estão presentes para a boda. A irmã gémea de Deirdre, Clodagh, parece namorar com um destes guerreiros com quem partilha o gosto pela música, e detestar o amigo dele, Cathal, um jovem sardónico que nunca parece ter nada de bom a dizer.
Entretanto, Aisling encontra-se à espera de uma criança, o que na idade dela pode ser muito perigoso. Felizmente, tudo corre bem e nasce um menino, chamado Finbar em homenagem ao tio-avô. Uma vez que Sean não tinha filhos, Johnny, seu sobrinho, seria o herdeiro de Sevenwaters, mas agora há um filho varão.
Até este momento, como eu dizia, pouco acontece. E, de repente, o livro começa a disparar em todos os cilindros. Cathal conta a Clodagh, ao pormenor, a possibilidade de um ataque a uma propriedade de Sean no norte. O pior é que este ataque acontece mesmo. Cathal decide ir-se embora e despedir-se de Clodagh sem dizer nada a mais ninguém. Clodagh estava a tomar conta de Finbar, e, assim que vira costas, num ápice, Finbar desaparece. No lugar dele foi deixado (e agora vai ser difícil explicar isto) um boneco feito de paus, com olhos de pedras e cabelo de musgo. Um changeling.
Não temos palavra em português que equivalha a changeling porque não temos este mito. Quando muito, um “trocado”. Mas na Irlanda e na Escócia, segundo vi em “Outlander”, acreditava-se piamente que as fadas roubavam as crianças e deixavam as delas, os tais changelings.
É claro que cai tudo em cima de Clodagh, e que Cathal é altamente suspeito. Para piorar as coisas, e isto também vai ser difícil de explicar, o changeling é uma espécie de criança, e Clodagh é a única que o ouve chorar e pedir comida. Todos a julgam louca. Todos menos Sibeal, a irmã vidente, que acredita em Clodagh. Clodagh acaba por se afeiçoar à criatura e chama-lhe Becan.
Clodagh e Cathal não são os únicos a quem os dedos são apontados. Já não é a primeira vez que noto como esta família de Sevenwaters é disfuncional. As suspeitas até chegam a recair no próprio Johnny, sobrinho de Sean. Não conhecemos assim tanto de Johnny, mas do que conhecemos é-nos bastante difícil de imaginar que fosse capaz de raptar uma criança (matar, até, o próprio primo) para ser ele o herdeiro de Sevenwaters. Esta família devia ir toda ao psiquiatra.
Entretanto, Clodagh decide que há apenas uma coisa a fazer: procurar um portal para o Otherworld e trocar o irmão pelo changeling, custe o que custar. Parte sozinha e à toa, quando subitamente encontra nada mais nada menos do que Cathal, que está a ser perseguido pela floresta pelos homens de armas de Sevenwaters, aparentemente sem saber porque é que o perseguem.
Aqui as coisas tornam-se estranhas. Cathal sabe muito mais do que diz, mas teima em manter-se em silêncio. No entanto, também ele consegue ouvir Becan, e, mais surpreendentemente, garante a Clodagh que consegue encontrar um portal para o Otherworld. Obviamente, Cathal esconde um segredo qualquer.
E em termos da história fico por aqui porque o resto são spoilers.
Já tinha dito de Juliet Marillier que se consegue sempre encontrar um ou outro elemento perturbador nas suas Fantasias Românticas, e se calhar é mesmo por isso que as leio. Em “Heir to Sevenwaters”, a certa altura (não vou dizer quando), desejei mesmo que a história enveredasse completamente pelo género do Terror, o meu preferido. E teve os seus momentos, se calhar porque são géneros que se tocam bastante e podem derivar um no outro a qualquer instante. Claro que não é o género de Marillier e as coisas suavizaram-se logo de seguida. Mas Marillier conseguiu pôr-me lágrimas nos olhos, o que não tinha acontecido em nenhuma das histórias anteriores (é preciso muito para me tocar tanto).
Por outro lado, fiquei muito triste ao ver que Marillier voltou a usar a palavra “piquenique”, como já não acontecia desde o livro de estreia. Isto põe-me os cabelos em pé. Não havia piqueniques no século VIII. Havia merendas e refeições ao ar livre. O que me chateia mais é que não era preciso usar esta palavra anacrónica. Outra palavra que me fez confusão foi “manequim” para descrever Becan. Não conheço o suficiente de inglês antigo (nem que língua falavam na Irlanda neste tempo) para saber se era uma palavra comum à época, mas às vezes o mais importante é a conotação que a palavra tem na compreensão do leitor moderno, e para um leitor moderno a palavra manequim soa estranha no contexto histórico. Mais uma vez, desnecessariamente. “Boneco”, ou mesmo “pequeno espantalho”, servia muito bem e até dava uma ideia mais clara do changeling. Gostaria muito que Marillier prestasse tanta atenção a estes pormenores como presta aos outros.
Por último, ia falar de Mac Dara, mas apercebi-me de que não há nada que possa acrescentar sem incorrer em spoilers. O que posso dizer é que quando tudo parecia perdido quem é que salvou a situação, quem foi? Ora, quem podia ser senão o meu adorado Ciarán (e já agora o corvo Fiacha também ajudou, mas não sei porquê nunca consegui ir à bola com ele). Ciarán conhece o novo príncipe do Otherworld e diz especificamente “ainda não é a minha altura de fazer guerra com Mac Dara”, o que dá a entender que a altura vai chegar. Se eu fosse a Mac Dara não deixava escrever a sequela, porque dava corda aos sapatos e fugia. Ciarán, filho da malvada feiticeira Oonagh, com quem aprendeu “as artes”, é um feiticeiro tão poderoso que causou uma tempestade para os Vikings não invadirem a terra onde ele morava. Ciarán tem com ele a sua filha Fainne, outra feiticeira de meter medo, e são ambos meio-Fair Folk.
Será que, mais uma vez, Marillier está a introduzir um segundo sentido no título, porque o herdeiro de Sevenwaters (ou do mundo oculto de Sevenwaters), por agora, é Mac Dara? Isto levanta hipóteses interessantes, mas não gosto de especular.
Às vezes penso que o único problema dos universos de Marillier é mesmo a Fantasia Romântica que os rege, porque, na minha opinião, muitos destes romances não faziam falta nenhuma à história.
Até admito mais. Disseram-me que os livros seguintes a “Filha da Floresta” não eram tão bons, mas quanto mais a série se embrenha no universo dos Fair Folk mais me interessa. Afinal, quanto mais Dark Fantasy melhor. A Dark Fantasy é a irmã mais “bem-comportada” do Terror. Um ou outro, é mesmo para mim.

*Por alguma razão atarantada, parece que passei as críticas aos livros anteriores da série a chamar “Chiaran” ao personagem Ciarán, ainda por cima o meu preferido. Acho que se calhar me “apossei” dele e até lhe mudei o nome. As minhas desculpas.



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