domingo, 21 de junho de 2020

Homeland / Segurança Nacional (2011-2020)


[crítica às oito temporadas; não revela o fim]

Não é todos os dias que acabo de ver uma série que segui durante oito temporadas e fico de boca aberta sem saber o que dizer. Talvez por isso seja a primeira vez que aqui falo de “Homeland”, algumas semanas depois de ver o final e de ficar novamente de boca aberta a processar o que tinha acabado de ver.
“Homeland”, série de espionagem baseada na luta contra o terrorismo e na (geo)política da actualidade, sempre teve essa capacidade de chocar. A qualquer momento podíamos ver qualquer coisa de verdadeiramente arrepiante que se podia passar connosco. A série lembra-nos constantemente de onde vem o “terror” na “palavra “terrorismo”. Mas a série tinha também uma capacidade impressionante de “prever o futuro”, a tal parte que me deixava de boca aberta, criando cenários que muitas vezes eu rejeitava como demasiado irrealistas ou mesmo catastrofistas, para alguns meses depois ficar outra vez de boca aberta quando os “cenários” se tornavam realidade nas notícias. Bem, não é que a série conseguisse “prever” o futuro. Os escritores é que têm um conhecimento profundo dos temas que estão a desenvolver, que lhes permite facilmente antever onde é que o presente vai dar no futuro. Tiro-lhes o chapéu. “Homeland” foi uma das séries mais bem feitas desta última década.
E uma série que teve o bom senso de não se arrastar demasiado, de não se prolongar artificialmente por causa das audiências, de acabar no momento certo, o que cada vez mais começa a ser digno de elogios.
Por esta altura já toda a gente conhece a série, por isso não vou perder tempo a contar a história. “Homeland” teve duas fases bem distintas: durante Brody e pós-Brody. Devo estar em minoria mas comecei a gostar mais de “Homeland” na fase pós-Brody em que se tornou numa série de espionagem pura e dura. Toda aquela parte do prisioneiro de guerra que chega do Iraque com uma lavagem cerebral e vontade de cometer actos terroristas me pareceu demasiado americana, demasiado para consumo doméstico e terapia anti-stress de guerra de uma nação inteira. Aliás, na última temporada a série fecha o círculo e regressa à temática de lidar com as consequências da guerra ao terrorismo sem olhar a meios. Foi sempre isto que a série quis fazer e fê-lo bem feito. Mas gostei mais das temporadas pós-Brody, que assumidamente tomaram o rumo de herdeiras da série “24”. Gostei bastante da temporada passada na Alemanha, numa altura de muitos ataques terroristas na Europa, e aqui estou em minoria também. Mas é assim: um ataque terrorista numa rua europeia de pedras antigas e num sistema de Metro que parece o nosso causa-me mais arrepios do que qualquer explosão distante lá para a América ou para a Ásia. É humano. Quanto mais perto, mais nos toca.
Mas “Homeland” não é “24”, Jack Bauer era um super-herói de metralhadora na mão, Carrie Mathison é uma agente da CIA com um distúrbio bipolar grave que fica incapacitada quando não toma a medicação. O público que gostava de “24” (eu incluída) já exigia mais do que o bom, o mau e o vilão. “Homeland” é uma série dramática e realista, com uma forte carga política, em que muitas vezes questionamos quem é o verdadeiro vilão. Carrie Mathison, de tão implacável e sem escrúpulos, não é uma personagem simpática. Compreendemos o seu ponto de vista (o genérico da série fez questão de no-lo lembrar no princípio de cada episódio) mas aqui não há heróis sem mácula. O que Carrie é, sem qualquer questão, é super-eficiente.
Ainda assim, todos precisamos de heróis, aparentemente, porque durante estes nove anos de “Homeland”, durante alguns momentos mais difíceis, dei por mim a  perguntar-me “o que faria a Carrie Mathison nesta situação?” Confesso que às vezes segui-lhe o exemplo. Na maior parte das vezes não, porque o que Carrie faria era uma completa maluquice, e os heróis também servem para nos ensinar o que não fazer.
Carrie não é apenas doente mental, que o é de facto. Carrie é completamente doida mesmo quando está medicada. Observar Carrie é como ver um acidente na estrada, não conseguimos parar de olhar até quando nos incomoda.
Se dúvidas houvesse sobre o estado mental de Carrie, a cena do banho da bebé, uma das cenas mais chocantes que vi numa série de televisão na última década, esclarece-nos completamente. Carrie é desequilibrada, perigosa para os outros e para si própria. É esta perigosidade que a torna imbatível, descontrolada, mais imprevisível do que os grupos terroristas que persegue. A doença, os “super-poderes”, como ela lhe chama certa vez, torna-a ainda mais obcecada. E Carrie não pára até atingir o objectivo, o que nos leva muitas vezes a pensar que ainda bem que ela não trabalha para o “outro lado”.
Mas esta também é a história de como Carrie perde tudo por causa do seu trabalho. O amor da sua vida, a família, a filha, os amigos. Todas estas perdas, sacrificadas à causa da segurança nacional, deixam dor e amargura, e quanto mais Carrie se aliena de uma vida normal mais a sua vida se torna o trabalho, e o trabalho é tudo, e mais despegada e eficiente ela se torna. É como uma pescadinha de rabo na boca. Carrie perde tudo por causa do trabalho, e quanto mais perde mais se embrenha unicamente no trabalho porque é a única vida que tem. Foi fascinante assistir a este percurso.
Também foi engraçado, às vezes. Como daquela vez em que ela arranjou um encontro com possíveis terroristas e não tinha com quem deixar a bebé, e levou-a no banco de trás do carro, na cadeirinha. Até um simpatizante de terrorista lhe perguntou: “A senhora é doida, traz uma criança para aqui?” Mas onde é que Carrie deixaria passar uma oportunidade destas só porque tinha a filha com ela? Sim, Carrie é doida, a doideira é o seu maior “super-poder”.
“Homeland” teve percalços. O maior de todos na sexta temporada, que teria a primeira mulher presidente dos Estados Unidos. Os escritores estavam a pensar em Hillary Clinton e deviam ter toda a temporada encaminhada numa direcção quando, de repente, foi Donald Trump quem ganhou as eleições. Desta vez até estes escritores, com provas dadas de que sabem o que fazem, foram apanhados de calças na mão. Tiveram de alterar o enredo a meio e a série levou ali um grande solavanco, mas novamente lhes tiro o chapéu porque se aguentaram à bronca em grande estilo. Um extraterreste que assistisse aos episódios, sem saber nada do que se passa neste planeta, nem perceberia o solavanco que aquilo levou. Mesmo assim, e apesar do choque, nunca a série caiu na armadilha fácil de se tornar propaganda anti-trumpista. Os autores são muito mais ambiciosos do que isso e já estavam a olhar para mais longe no horizonte. Esperemos que o conflito nuclear com o Paquistão da última temporada nunca passe disso mesmo, ficção, e não daquela que aparece depois nas notícias. Às vezes via esta série e tinha medo.
A série não escapou a momentos embaraçosos e irrealistas, mesmo assim. Como daquela vez que Quinn sobreviveu a um teste com gás sarin a que ninguém poderia ter sobrevivido, só para ficar comatoso e incapacitado, mas a série ainda precisava dele e não o deixou morrer. Então, num episódio Quinn quase não conseguia andar sem muletas nem articular duas palavras seguidas, e três episódios depois já estava a dar uma tareia aos terroristas. Ou como daquela outra vez em que Carrie desencanta uma peruca à última da hora, e não apenas uma peruca qualquer mas igual ao cabelo da mulher a quem ela ia salvar, o que levou a internet a conjecturar com quantas perucas é que Carrie anda habitualmente e onde é que as guarda. Ou, um pouco menos engraçado porque foi mais preguiçoso da parte dos autores, quando Carrie é suspeita de participar numa tentativa de assassinato do presidente e Saul consegue tirá-la da prisão para aguardar julgamento em liberdade, e Carrie anda à solta por todo o lado como se não tivesse sido acusada de ser uma ameaça à segurança nacional. Sim, Saul tem poder, mas isto foi um bocadinho longe demais em esticar a credibilidade.
Apesar de tudo, sou da opinião que a crítica foi muito mais impiedosa para com “Homeland” exactamente porque era uma série de grande qualidade onde qualquer pormenor mais atabalhoado saltava à vista como uma nódoa negra. O mais curioso é que nunca me apercebi do quanto gostava desta série enquanto ela existia. Agora vou sentir-lhe a falta. Que ao menos venha outra, no mesmo estilo, que continue a deixar-me de boca aberta.

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