sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O compadre e o burro (Histórias da minha avó)

Falávamos aqui há dias da falta de literatura de terror em Portugal e da suposta falta de lendas e fontes onde os autores se inspirarem que teria justificado a ausência dessa literatura. A história que vou contar prova como essa alegação não podia ser mais falsa. É uma história contada à minha mãe pela minha avó (que sabe muitas), contada à minha avó pela mãe dela, contada à minha bisavó sabe-se lá por quem. É uma história da tradição oral, sabe-se lá quão antiga, e da forma que me chegou passa-se no Alentejo mas nada garante que a sua origem seja alentejana. Para meter medo, a história tinha que se passar onde as pessoas viviam. Passo então a relatar a história, pedindo desde já desculpa pela falta dos regionalismos com que me foi contada a mim e que não consegui reter na memória. Tentarei fazer-lhe a melhor justiça.





Ali para os lados de Vila Viçosa, mas não na vila, nas aldeias por ali, um compadre gostava de ir à noite ao bailarico da aldeia vizinha, se pelo vinho de Borba se por ter lá um rabo de saia, ou ambos, não interessa para a história. Uma dessas noites, voltando ele a pé, já um pouco tocado, de regresso a casa, o que nestas veredas de terra batida do Alentejo implica umas boas horas de trajecto a compasso de cajado, o que prova que o compadre era rijo e valente, ia assim o compadre, noite cerrada, só o luar a iluminar-lhe o carreiro, quando lhe sai ao caminho um burro.
Não era um burro qualquer. A alimária, raivosa como um cão, investiu contra o compadre com dentes e cascos, a ponto de o homem se assustar porque nunca tinha visto tal comportamento em burro algum. Pensou, o compadre, que devia ter bebido uns copitos a mais ou julgaria que o cabrão do burro o estava a atacar!
"Eh, burro! Eh, burro!", gritou, e bateu-lhe com o cajado nos costados. O burro, assim enfrentado, zurrou e fugiu e desapareceu no breu da noite. O compadre não o viu mais...  e também não se importou nada com isso. Feliz estava ele de se ter livrado do diabo do animal. A besta tinha-lhe mordido a camisa, que era a sua melhor camisa, a camisa dos bailaricos, e tinha feito um rasgão de tal maneira que já não havia conserto. Isso aborreceu ainda mais o compadre, porque era uma camisa de bom pano, aos quadrados pretos e encarnados, toda vistosa, que não tinha sido nada barata! E ainda nova!
O compadre lá foi para casa mas aquilo ficou-lhe a fazer espécie durante o resto da santa noite. O raio do burro! Morder-lhe a camisa! Onde é que se já vira tal?!
No dia seguinte, continuava a fazer-lhe espécie. Foi para a eira, onde encontrou o compadre seu amigo de muitos anos, e tanto matutou no assunto que à hora do gaspacho este último lhe perguntou que mosca lhe tinha mordido porque não tinha dito nada o dia todo.
"Ó compadre, sabe lá!", disse o nosso compadre, disposto a ouvir uma opinião. "Onte à nôte, vinha eu do baile das comadris, quando aparecê um burro a correr dirêto a mim na estrada, olhe, rasgou-me a camisa, quase me mordia se não lhe tênho dado uma paulada! Rás parta a besta excomungada! A minha camisa aos quadrados, aquela vermêlha, a qu'eu gostava mais, toda rasgada!"
O outro compadre, que achou graça à irritação do compadre vaidoso, desatou-se a rir às gargalhadas. E então o compadre viu-lhe, ainda presos entre os dentes, os fios vermelhos da camisa nova...





7 comentários:

Vampiregrave disse...

Para os interessados no tema, o Círculo de Leitores lançou recentemente a obra "Portugal Lendário" (http://www.circuloleitores.pt/catalogo/1060279/portugal-lendario). Para além disso, o Centro de Estudos Ataíde Oliveira continua a manter um arquivo de contos tradicionais portugueses, em http://www.lendarium.org/

katrina a gotika disse...

http://www.lendarium.org/

Obrigada pela contribuição. Também conheço uma versão da "Menina que pede um agasalho". Esta é muito interessante porque me parece que é internacional. De origem muito antiga, talvez?... Imemorial, mesmo? (medieval, romana, etc?...)
Talvez um destes dias conte aqui a versão que me contaram.
Também encontrei uma versão desta do lobisomem em que uma mulher encontra um lobisomem e no dia seguinte vê fios da roupa dela nos dentes do próprio marido.

Vampiregrave disse...

Acaba por contribuir para opinião de que não é por falta de lendas nacionais que a literatura gótica é praticamente inexistente no nosso país.

Fashion Faux Pas disse...

Katrina, tb conheço uma versão da moça do casaco, e em Manchester ouvi uma tb!!! Verdadeiramente internacional. E a lenda do corfadário? Essa é só nossa ;)

katrina a gotika disse...

Corfadário? Isso é alguma adulteração popular de "correr o fadário"? O lobisomem que tem de correr o seu fadário?
Se não é, não conheço.

Fashion Faux Pas disse...

O corfadário era um homem que á sexta feira á noite se transformava numa espécie de mula com partes de homem e corria pelas ruas da aldeia, atormentando as gentes, sem as deixar dormir, e perseguindo as jovens solteiras que dessem em andar aí por fora ás horas malucas. O feitiço só se quebrava se uma virgem - muito importante!!! - corajosa saísse de casa numa noite em que o corfadário andasse a galopar pelas ruas e fosse ao celeiro onde ele tinha tirado a roupa e lha virasse do avesso. Se o corfadário vestisse a roupa do avesso, nunca mais se transformava, e as jovens ficavam a salvo...é mais ou menos isto.

katrina a gotika disse...

Esse corfadário podia ser primo aqui do burro do compadre. ;)