Falávamos aqui há dias da falta de literatura de terror em Portugal e da suposta falta de lendas e fontes onde os autores se inspirarem que teria justificado a ausência dessa literatura. A história que vou contar prova como essa alegação não podia ser mais falsa. É uma história contada à minha mãe pela minha avó (que sabe muitas), contada à minha avó pela mãe dela, contada à minha bisavó sabe-se lá por quem. É uma história da tradição oral, sabe-se lá quão antiga, e da forma que me chegou passa-se no Alentejo mas nada garante que a sua origem seja alentejana. Para meter medo, a história tinha que se passar onde as pessoas viviam. Passo então a relatar a história, pedindo desde já desculpa pela falta dos regionalismos com que me foi contada a mim e que não consegui reter na memória. Tentarei fazer-lhe a melhor justiça.
Ali para os lados de Vila Viçosa, mas não na vila, nas aldeias por ali, um compadre gostava de ir à noite ao bailarico da aldeia vizinha, se pelo vinho de Borba se por ter lá um rabo de saia, ou ambos, não interessa para a história. Uma dessas noites, voltando ele a pé, já um pouco tocado, de regresso a casa, o que nestas veredas de terra batida do Alentejo implica umas boas horas de trajecto a compasso de cajado, o que prova que o compadre era rijo e valente, ia assim o compadre, noite cerrada, só o luar a iluminar-lhe o carreiro, quando lhe sai ao caminho um burro.
Não era um burro qualquer. A alimária, raivosa como um cão, investiu contra o compadre com dentes e cascos, a ponto de o homem se assustar porque nunca tinha visto tal comportamento em burro algum. Pensou, o compadre, que devia ter bebido uns copitos a mais ou julgaria que o cabrão do burro o estava a atacar!
"Eh, burro! Eh, burro!", gritou, e bateu-lhe com o cajado nos costados. O burro, assim enfrentado, zurrou e fugiu e desapareceu no breu da noite. O compadre não o viu mais... e também não se importou nada com isso. Feliz estava ele de se ter livrado do diabo do animal. A besta tinha-lhe mordido a camisa, que era a sua melhor camisa, a camisa dos bailaricos, e tinha feito um rasgão de tal maneira que já não havia conserto. Isso aborreceu ainda mais o compadre, porque era uma camisa de bom pano, aos quadrados pretos e encarnados, toda vistosa, que não tinha sido nada barata! E ainda nova!
O compadre lá foi para casa mas aquilo ficou-lhe a fazer espécie durante o resto da santa noite. O raio do burro! Morder-lhe a camisa! Onde é que se já vira tal?!
No dia seguinte, continuava a fazer-lhe espécie. Foi para a eira, onde encontrou o compadre seu amigo de muitos anos, e tanto matutou no assunto que à hora do gaspacho este último lhe perguntou que mosca lhe tinha mordido porque não tinha dito nada o dia todo.
"Ó compadre, sabe lá!", disse o nosso compadre, disposto a ouvir uma opinião. "Onte à nôte, vinha eu do baile das comadris, quando aparecê um burro a correr dirêto a mim na estrada, olhe, rasgou-me a camisa, quase me mordia se não lhe tênho dado uma paulada! Rás parta a besta excomungada! A minha camisa aos quadrados, aquela vermêlha, a qu'eu gostava mais, toda rasgada!"
O outro compadre, que achou graça à irritação do compadre vaidoso, desatou-se a rir às gargalhadas. E então o compadre viu-lhe, ainda presos entre os dentes, os fios vermelhos da camisa nova...
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sexta-feira, 23 de agosto de 2013
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Tradições do Dia de Todos os Santos
À medida que cada vez mais gente adopta tradições alheias na noite de Halloween, tenho-me vindo a aperceber que todos os anos é uma paródia mal feita que envergonharia qualquer norte-americano. Mais vale partir logo do princípio que é apenas mais uma véspera de feriado e deixar de lado as palhaçadas que já não têm graça nenhuma. Aliás, nós, os povos do sul da Europa, temos uma altura específica para as palhaçadas e essa data chama-se Carnaval.
Existem verdadeiras tradições portuguesas que caíram em desuso pela pressa dos tempos modernos. Vou relatar a minha experiência. Recordo-me sempre do dia de Todos os Santos porque recebia uma visita da minha avó que vinha dar "os Santos". "Os Santos" eram geralmente bolos ou quaisquer outras guloseimas que se comiam acompanhadas com jeropiga. Hoje decidi investigar a memória familiar sobre as tradições do Alto Alentejo, de um tempo que já não é o meu e de cujo fantasma apenas persiste a visita da minha avó. Parece que antigamente, no primeiro dia de Novembro, as crianças da aldeia iam de porta em porta a pedir "os santos", que eram sempre guloseimas para comer, mas durante o dia e não na véspera. Não se falava em bruxas. Estas guloseimas podiam ser nozes, passas, marmelos, romãs, e principalmente uma espécie de bolos fintos (levedados) que se faziam para a ocasião, os chamados "bolos dos santos". O dia de Finados, 2 de Novembro, era celebrado com a ida ao cemitério onde se dizia a missa e benzia as sepulturas.
Tudo isto deixou de fazer parte da cultura das cidades. Observei como a vida profissional forçou que a visita ao cemitério passasse para o dia anterior ao dia dos Finados, por ser feriado, mas ainda me lembro dos tempos em que mesmo em Lisboa era uma autêntica romaria, pelo menos até aos anos 80. Depois as pessoas deixaram de ir. A sociedade transformou-se, e esqueceu-de da morte como se tenta a todo o custo esquecer-se da velhice. Os velhos, como os mortos, são agora enfiados num lar, ante-câmara do cemitério, e visitados quando há tempo até ao momento em que são dirigidos à última morada e já ninguém lá volta.
Este materialismo da sociedade, esta cultura do jovem e abandono do velho, este virar de costas à morte é também uma falta de espiritualidade que só pode gerar frutos nefastos. Em princípios do século XXI, voltámos a uma falta de respeito pela dignidade humana que possivelmente nem os nossos antepassados medievais experimentaram. O ser humano só é válido enquanto é jovem e produtivo. A partir dos 40 anos já não é considerado apto para o trabalho e a partir dos sessenta, se adoece e não morre logo, torna-se um longo fardo de mais 30 anos a suportar pelas famílias. Curiosamente, outro dos factores que conduziu a esta situação é de facto o milagroso avanço da medicina que prolonga a vida para uma duração média inédita na História. Estamos mesmo a viver um momento verdadeiramente histórico em que os valores sociais não se conseguiram adaptar ao progresso científico. Vive-se um desequilíbrio entre o que é a vida imaginada e a vida real. Uma alienação perfeitamente formidável e sem precedentes, só comparável a momentos na História em que se quis reconstruir civilizações a partir de pressupostos religiosos ou ideológicos irrealistas (assim de repente lembro-me da cristianização forçada no império romano, do comunismo e do nazismo, mas certamente há mais exemplos). Diz-nos a mesma História que este desequilíbrio não pode durar.
As celebrações do dia de Todos os Santos e dia de Finados, o Halloween ou Samhain, são, como o Natal e a Páscoa, mais uma prova de que a espiritualidade do Homem não é forjada a martelo nem pode ser negada, por muito pervertida que ressurja no decurso dos séculos.
Sabendo que a cultura não volta para trás, não proponho de modo algum o retorno às tradições antigas, mas congratulo-me que cada vez há mais festas de Halloween para as pessoas normais. Acabou-se também a romaria aos locais góticos, qual visita anual ao jardim zoológico. Venha pois, a americanização, e em força!
Existem verdadeiras tradições portuguesas que caíram em desuso pela pressa dos tempos modernos. Vou relatar a minha experiência. Recordo-me sempre do dia de Todos os Santos porque recebia uma visita da minha avó que vinha dar "os Santos". "Os Santos" eram geralmente bolos ou quaisquer outras guloseimas que se comiam acompanhadas com jeropiga. Hoje decidi investigar a memória familiar sobre as tradições do Alto Alentejo, de um tempo que já não é o meu e de cujo fantasma apenas persiste a visita da minha avó. Parece que antigamente, no primeiro dia de Novembro, as crianças da aldeia iam de porta em porta a pedir "os santos", que eram sempre guloseimas para comer, mas durante o dia e não na véspera. Não se falava em bruxas. Estas guloseimas podiam ser nozes, passas, marmelos, romãs, e principalmente uma espécie de bolos fintos (levedados) que se faziam para a ocasião, os chamados "bolos dos santos". O dia de Finados, 2 de Novembro, era celebrado com a ida ao cemitério onde se dizia a missa e benzia as sepulturas.
Tudo isto deixou de fazer parte da cultura das cidades. Observei como a vida profissional forçou que a visita ao cemitério passasse para o dia anterior ao dia dos Finados, por ser feriado, mas ainda me lembro dos tempos em que mesmo em Lisboa era uma autêntica romaria, pelo menos até aos anos 80. Depois as pessoas deixaram de ir. A sociedade transformou-se, e esqueceu-de da morte como se tenta a todo o custo esquecer-se da velhice. Os velhos, como os mortos, são agora enfiados num lar, ante-câmara do cemitério, e visitados quando há tempo até ao momento em que são dirigidos à última morada e já ninguém lá volta.
Este materialismo da sociedade, esta cultura do jovem e abandono do velho, este virar de costas à morte é também uma falta de espiritualidade que só pode gerar frutos nefastos. Em princípios do século XXI, voltámos a uma falta de respeito pela dignidade humana que possivelmente nem os nossos antepassados medievais experimentaram. O ser humano só é válido enquanto é jovem e produtivo. A partir dos 40 anos já não é considerado apto para o trabalho e a partir dos sessenta, se adoece e não morre logo, torna-se um longo fardo de mais 30 anos a suportar pelas famílias. Curiosamente, outro dos factores que conduziu a esta situação é de facto o milagroso avanço da medicina que prolonga a vida para uma duração média inédita na História. Estamos mesmo a viver um momento verdadeiramente histórico em que os valores sociais não se conseguiram adaptar ao progresso científico. Vive-se um desequilíbrio entre o que é a vida imaginada e a vida real. Uma alienação perfeitamente formidável e sem precedentes, só comparável a momentos na História em que se quis reconstruir civilizações a partir de pressupostos religiosos ou ideológicos irrealistas (assim de repente lembro-me da cristianização forçada no império romano, do comunismo e do nazismo, mas certamente há mais exemplos). Diz-nos a mesma História que este desequilíbrio não pode durar.
As celebrações do dia de Todos os Santos e dia de Finados, o Halloween ou Samhain, são, como o Natal e a Páscoa, mais uma prova de que a espiritualidade do Homem não é forjada a martelo nem pode ser negada, por muito pervertida que ressurja no decurso dos séculos.
Sabendo que a cultura não volta para trás, não proponho de modo algum o retorno às tradições antigas, mas congratulo-me que cada vez há mais festas de Halloween para as pessoas normais. Acabou-se também a romaria aos locais góticos, qual visita anual ao jardim zoológico. Venha pois, a americanização, e em força!
quinta-feira, 30 de outubro de 2008
Histórias da minha avó
A princesa séria
Era uma vez, havia um senhor e seu criado que andavam a correr mundo. O amo era uma pessoa culta, bem educada e virtuosa, mas o seu criado tinha um vício bizarro e incorrigível: por onde quer que passava, roubava tudo, tudo, tudo!
Sabendo disto, o senhor avisava todos os donos das casas por onde passavam, sublinhando: "Tenham cuidado onde o põem a dormir porque este rapaz rouba tudo, tudo, tudo!"
Um noite, tendo o amo dito, no local onde iam pernoitar, que o criado roubava tudo o que via, decidiram fechá-lo num galinheiro vazio de onde não podia levar nada. Mesmo assim, o rapaz lá deu volta aos cantos todos até encontrar um ovo... e enfiou-o imediatamente no bolso da casaca.
No outro dia de manhã, já iam o amo e criado longe da casa, este mostrou logo o que havia roubado: "Olhe, arranjei este ovo!"
"Ò rapaz, não tens emenda! Para que queres tu isso?"
"Não se preocupe, meu divino mestre, que tudo serve para alguma coisa!"
Isto passou-se, e lá foram à sua vida.
Noutra noite, chegada a hora de pernoitar, disse o amo ao dono da casa: "Tenham cuidado com este rapaz porque onde quer que fica rouba tudo, tudo, tudo! Há pouco tempo dormiu num galinheiro vazio e mesmo assim roubou um ovo!". "Não se preocupe, senhor", respondeu o dono da casa, "porque onde ele vai dormir não há nada para roubar!". Foram então trancá-lo no barracão onde trabalhavam os carpinteiros e no chão só havia lascas de madeira. Não foi de modas, o nosso rapaz, e tratou logo de encher delas os bolsos das calças.
No outro dia de manhã, iam já longe da casa o senhor e o criado, quando este mostra ao amo a "colheita" da noite. "Olhe mestre, arranjei estas palhinhas!"
"Ò meu grande parvo, para que queres tu isso?"
"Não se aflija, meu divino mestre, que tudo tem serventia!"
Isto passou-se, e continuaram caminho.
Foram noutra ocasião pernoitar a outra casa, onde o amo prontamente esclareceu o anfitrião: "Tenham cuidado onde metem este rapaz, porque ele rouba tudo, tudo, tudo! No outro dia, até cavacas de madeira ele meteu nos bolsos!". "Ah sim?", pergunta o dono da casa, com um sorriso malvado, "Então já sei onde o vou pôr!". Nessa noite, o rapaz foi deixado no palheiro onde as galinhas andavam de dia, e só havia caca no chão. Mesmo assim, foi de caca de galinha que ele encheu o chapéu.
No dia seguinte, já a distância da casa, vai o criado mostrar o chapéu ao amo, que ainda gritou mais alto:
"Ò meu grande porco! Deita isso fora!"
"Não se preocupe, meu divino mestre, que tudo tem a sua utilidade!"
Isto passou-se, e seguiram caminho.
Chegaram então a um reino em que a princesa mais nova sofria de estranha doença: nada a fazia rir. O rei tinha um grande desgosto, e era tão grande o seu sofrimento que prometeu casá-la com o primeiro homem que conseguisse quebrar este "feitiço". De quando em vez, a princesa era presente ao público, e vinham pretendentes de todos os cantos do reino para a tentarem fazer rir, mas por mais palhaços, ilusionistas e humoristas de maior ou menor erudição, nobreza ou fortuna, que lá aparecessem, de nada valiam para a divertir. Estava na altura do ano em que esta peregrinação se fazia quando os dois viajantes por lá passavam. Assim que soube disto, o bom do amo, ainda em idade casadoira e não tendo nada a perder, foi tentar a sua sorte. Aos pés da princesa, que olhava sobranceira do seu trono, contou-lhe as melhores anedotas que conhecia e, como não nutrissem efeito, em desespero de causa contou-lhe a seguir todas as outras até se esgotar a memória. Nada. A princesa séria continuava aborrecida. Nada lhe arrancava uma gargalhada.
Chegando ao pé do criado, acabrunhado e abatido, o senhor mal começa a dizer que deviam seguir caminho quando o rapaz o interrompe: "Agora vou lá eu!"
"Tu?! Um parvalhão como tu, deves fazer uma rica figura!"
Mas o criado lá foi, e mal a princesa se vira para ele tira o ovo da casaca e pede:
"Asse-me este ovo!"
"Não tenho lenha!", diz ela, rispidamente, para despachar aquele vagabundo coberto de trapos.
Então ele despeja os bolsos das calças e saem de lá as lascas de madeira: "Tenho aqui estas cavaquinhas!"
Já farta e enjoada daquela insistência, a princesa perde a compostura e desabafa: "Tal não é esta merda!"
E prontamente responde o rapaz: "Aqui tem um chapéu cheio!"
Assim que vê o moço tirar o chapéu, cheio de caca de galinha, a princesa séria desata a rir às gargalhadas sem se conter. E foi assim que o pobre criado obteve a sua mão em casamento e viveu feliz para sempre, junto do antigo amo, da nova esposa, a quem conseguia fazer rir, e do rei, que finalmente curou o coração daquele grande desgosto.
E assim reza a moral da história que mais vale cair em graça do que ser engraçado.
Era uma vez, havia um senhor e seu criado que andavam a correr mundo. O amo era uma pessoa culta, bem educada e virtuosa, mas o seu criado tinha um vício bizarro e incorrigível: por onde quer que passava, roubava tudo, tudo, tudo!
Sabendo disto, o senhor avisava todos os donos das casas por onde passavam, sublinhando: "Tenham cuidado onde o põem a dormir porque este rapaz rouba tudo, tudo, tudo!"
Um noite, tendo o amo dito, no local onde iam pernoitar, que o criado roubava tudo o que via, decidiram fechá-lo num galinheiro vazio de onde não podia levar nada. Mesmo assim, o rapaz lá deu volta aos cantos todos até encontrar um ovo... e enfiou-o imediatamente no bolso da casaca.
No outro dia de manhã, já iam o amo e criado longe da casa, este mostrou logo o que havia roubado: "Olhe, arranjei este ovo!"
"Ò rapaz, não tens emenda! Para que queres tu isso?"
"Não se preocupe, meu divino mestre, que tudo serve para alguma coisa!"
Isto passou-se, e lá foram à sua vida.
Noutra noite, chegada a hora de pernoitar, disse o amo ao dono da casa: "Tenham cuidado com este rapaz porque onde quer que fica rouba tudo, tudo, tudo! Há pouco tempo dormiu num galinheiro vazio e mesmo assim roubou um ovo!". "Não se preocupe, senhor", respondeu o dono da casa, "porque onde ele vai dormir não há nada para roubar!". Foram então trancá-lo no barracão onde trabalhavam os carpinteiros e no chão só havia lascas de madeira. Não foi de modas, o nosso rapaz, e tratou logo de encher delas os bolsos das calças.
No outro dia de manhã, iam já longe da casa o senhor e o criado, quando este mostra ao amo a "colheita" da noite. "Olhe mestre, arranjei estas palhinhas!"
"Ò meu grande parvo, para que queres tu isso?"
"Não se aflija, meu divino mestre, que tudo tem serventia!"
Isto passou-se, e continuaram caminho.
Foram noutra ocasião pernoitar a outra casa, onde o amo prontamente esclareceu o anfitrião: "Tenham cuidado onde metem este rapaz, porque ele rouba tudo, tudo, tudo! No outro dia, até cavacas de madeira ele meteu nos bolsos!". "Ah sim?", pergunta o dono da casa, com um sorriso malvado, "Então já sei onde o vou pôr!". Nessa noite, o rapaz foi deixado no palheiro onde as galinhas andavam de dia, e só havia caca no chão. Mesmo assim, foi de caca de galinha que ele encheu o chapéu.
No dia seguinte, já a distância da casa, vai o criado mostrar o chapéu ao amo, que ainda gritou mais alto:
"Ò meu grande porco! Deita isso fora!"
"Não se preocupe, meu divino mestre, que tudo tem a sua utilidade!"
Isto passou-se, e seguiram caminho.
Chegaram então a um reino em que a princesa mais nova sofria de estranha doença: nada a fazia rir. O rei tinha um grande desgosto, e era tão grande o seu sofrimento que prometeu casá-la com o primeiro homem que conseguisse quebrar este "feitiço". De quando em vez, a princesa era presente ao público, e vinham pretendentes de todos os cantos do reino para a tentarem fazer rir, mas por mais palhaços, ilusionistas e humoristas de maior ou menor erudição, nobreza ou fortuna, que lá aparecessem, de nada valiam para a divertir. Estava na altura do ano em que esta peregrinação se fazia quando os dois viajantes por lá passavam. Assim que soube disto, o bom do amo, ainda em idade casadoira e não tendo nada a perder, foi tentar a sua sorte. Aos pés da princesa, que olhava sobranceira do seu trono, contou-lhe as melhores anedotas que conhecia e, como não nutrissem efeito, em desespero de causa contou-lhe a seguir todas as outras até se esgotar a memória. Nada. A princesa séria continuava aborrecida. Nada lhe arrancava uma gargalhada.
Chegando ao pé do criado, acabrunhado e abatido, o senhor mal começa a dizer que deviam seguir caminho quando o rapaz o interrompe: "Agora vou lá eu!"
"Tu?! Um parvalhão como tu, deves fazer uma rica figura!"
Mas o criado lá foi, e mal a princesa se vira para ele tira o ovo da casaca e pede:
"Asse-me este ovo!"
"Não tenho lenha!", diz ela, rispidamente, para despachar aquele vagabundo coberto de trapos.
Então ele despeja os bolsos das calças e saem de lá as lascas de madeira: "Tenho aqui estas cavaquinhas!"
Já farta e enjoada daquela insistência, a princesa perde a compostura e desabafa: "Tal não é esta merda!"
E prontamente responde o rapaz: "Aqui tem um chapéu cheio!"
Assim que vê o moço tirar o chapéu, cheio de caca de galinha, a princesa séria desata a rir às gargalhadas sem se conter. E foi assim que o pobre criado obteve a sua mão em casamento e viveu feliz para sempre, junto do antigo amo, da nova esposa, a quem conseguia fazer rir, e do rei, que finalmente curou o coração daquele grande desgosto.
E assim reza a moral da história que mais vale cair em graça do que ser engraçado.
quinta-feira, 9 de agosto de 2007
A arte não tem raça
In Blitz:
"Hitler ouvia música de russos e judeus
Tchaikovsky, Borodin e Rachmaninoff constavam da colecção pessoal do Fuhrer.
A colecção de discos de Adolf Hitler, recentemente encontrada nos arredores de Moscovo, contém nomes de compositores e de músicos inesperados. O ditador alemão considerava os músicos judeus e os compositores alemães como pertencentes a uma raça “sub-humana”, para além de considerar que não existia algo a que se pudesse chamar de “arte judia”. No entanto, parece que Hitler os escutava em segredo.
Assim, entre as obras dos alemães Wagner e Beethoven, que com naturalidade se encaixavam na colecção do Fuhrer, surgem alguns discos mais inesperados: um concerto do compositor russo Tchaikovsky onde o violinista judeu, Bronislaw Huberman fazia um solo. O mesmo Bronislaw que havia sido considerado inimigo público do Terceiro Reich alemão.
O nome de Artur Schnabel surgia noutro disco. Schnabel foi um músico e cantor austríaco, forçado a abandonar a Alemanha no ano de 1933 por ser judeu. Outros discos continham obras dos compositores russos Borodin e Rachmaninoff.
No seu famoso livro Mein Kampf , Adolf Hitler disse nunca ter existido arte judia, e que continuava a não existir nenhuma na época, para além de rejeitar qualquer contributo dos russos no mesmo campo. Ironicamente, enquanto guardava obras dos mesmos na sua colecção pessoal de discos."
domingo, 14 de agosto de 2005
Lengalenga
História contada pela minha avó à minha mãe e contada pela minha mãe a mim.
Eu acho uma pena que estas coisas se percam porque dependiam da tradição oral e a tradição oral perdeu-se. Já não há histórias ao serão à roda da lareira.
Formiguinha
Uma formiguinha andava com a carga às costas quando se fez noite. Meteu-se debaixo de uma folha mas deixou uma patinha de fora. De noite nevou e, de manhã, a formiguinha tinha a patinha gelada, toda branquinha, coberta de neve, e não conseguia sair de onde estava.
E perguntou a formiguinha ao sol:
- Sol, tu que és tão valente, não derretes a neve do meu pézinho?
E disse o Sol:
- Mais valente que eu é a Nuvem que me tapa.
E disse a formiguinha:
- Nuvem, tu que és tão valente, porque não destapas o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse a Nuvem:
- Mais valente que eu é o Vento, que me empurra.
- Vento, tu que és tão valente, porque não espalhas a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Vento:
- Mais valente que eu é o Muro que me detém.
- Muro, tu que és tão valente, porque deténs o vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Muro:
- Mais valente que eu é o rato, que me fura.
- Rato, tu que és tão valente, porque furas o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Rato:
- Mais valente que eu é o gato, que me papa.
- Gato, tu que és tão valente, porque papas o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Gato:
- Mais valente que eu é o Cão, que me morde.
- Cão, tu que és tão valente, porque mordes o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Cão:
- Mais valente que eu é o Homem, que me bate.
- Homem, porque bates no cão, que morde o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Homem:
- Mais valente é a Morte, que me mata.
Nisto, a formiguinha reparou que o tempo tinha passado, e o vento espalhou a nuvem, que destapou o sol, que tinha derretido a neve do seu pézinho. E pôde ir à sua vidinha.
Esta história lembra-me este país. É um jogo do empurra em que os mais fortes oprimem os mais fracos mas em que ninguém quer assumir a responsabilidade e onde se pensa que as coisas se resolvem por si próprias.
Eu acho uma pena que estas coisas se percam porque dependiam da tradição oral e a tradição oral perdeu-se. Já não há histórias ao serão à roda da lareira.
Formiguinha
Uma formiguinha andava com a carga às costas quando se fez noite. Meteu-se debaixo de uma folha mas deixou uma patinha de fora. De noite nevou e, de manhã, a formiguinha tinha a patinha gelada, toda branquinha, coberta de neve, e não conseguia sair de onde estava.
E perguntou a formiguinha ao sol:
- Sol, tu que és tão valente, não derretes a neve do meu pézinho?
E disse o Sol:
- Mais valente que eu é a Nuvem que me tapa.
E disse a formiguinha:
- Nuvem, tu que és tão valente, porque não destapas o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse a Nuvem:
- Mais valente que eu é o Vento, que me empurra.
- Vento, tu que és tão valente, porque não espalhas a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Vento:
- Mais valente que eu é o Muro que me detém.
- Muro, tu que és tão valente, porque deténs o vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Muro:
- Mais valente que eu é o rato, que me fura.
- Rato, tu que és tão valente, porque furas o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Rato:
- Mais valente que eu é o gato, que me papa.
- Gato, tu que és tão valente, porque papas o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Gato:
- Mais valente que eu é o Cão, que me morde.
- Cão, tu que és tão valente, porque mordes o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Cão:
- Mais valente que eu é o Homem, que me bate.
- Homem, porque bates no cão, que morde o gato, que papa o rato, que fura o muro, que tem não no vento, que não espalha a nuvem, que tapa o sol, que não derrete a neve do meu pézinho?
E disse o Homem:
- Mais valente é a Morte, que me mata.
Nisto, a formiguinha reparou que o tempo tinha passado, e o vento espalhou a nuvem, que destapou o sol, que tinha derretido a neve do seu pézinho. E pôde ir à sua vidinha.
Esta história lembra-me este país. É um jogo do empurra em que os mais fortes oprimem os mais fracos mas em que ninguém quer assumir a responsabilidade e onde se pensa que as coisas se resolvem por si próprias.
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