maio 14, 2004
“Merrick”
De Anne Rice.
“Merrick” é uma história de amor. Capaz de agradar mais às meninas do que aos meninos. Não me agrada constatar o facto mas a alma feminina tem uma maior inclinação para o romantismo. Penso que isto se deve à educação - os homens não choram, os homens não se emocionam... - e já era altura de mudar as coisas. Homens, revoltem-se!
Antes de passar à história, uma breve descrição dos personagens que a movem:
Lestat de Lioncourt
Bem, Lestat está presente mas não interfere. Desde a sua viagem com Memnoch ao Céu e ao Inferno, o Brat Prince (Príncipe Fedelho), como Marius lhe chama, ficou em estado de choque. Primeiro foi tomado pela loucura e o medo. Depois deixou-se cair num torpor, numa imobilidade parecida com o sono, em que se fechou para o mundo exterior. Não comunica, não responde, não se alimenta. Está noutro mundo. Por vezes parece a David que o espírito de Lestat já não está sequer no corpo do seu amigo. Mas adivinha-se que muito se passa naquela cabeça. É óbvio que Lestat precisa desse isolamento absoluto para conseguir incorporar todas as verdades de que tomou conhecimento durante a sua grande experiência mística. Como é possível voltar a existir da mesma maneira? Que espécie de criatura sairá desse profundo sono?
David Talbot
David é um vampiro recente com uma história extraordinária. Em vida, David tinha já 74 anos e uma doença fatal quando o seu envolvimento com Lestat, de quem se tornou amigo, o levou a enfrentar o Ladrão de Corpos. Foi este ser que invadiu o corpo do velho David e o obrigou a “mudar-se” para o corpo de um jovem cuja alma já passara para o “outro lado”. A história é interessantíssima. Mas o que interessa para agora é que Lestat não se contentou por ter o seu amigo humano num corpo rejuvenescido; o medo de o perder para sempre leva-o a transformar David num vampiro, mesmo contra a vontade do próprio. (“The Tale of the Body Thief”).
A princípio, David não aceita muito bem a transformação mas acaba por se apegar irremediavelmente à sua imortalidade terrena. Com crises existenciais frequentes. Aliás, todos os vampiros, por motivos vários, ponderam pôr fim à vida a certa altura da sua existência. Os outros que lhes acodem nesse momento acabam eles próprios por cair no mesmo desespero mais tarde ou mais cedo.
David está portanto dentro de um corpo jovem mas a sua alma é a do académico versado no sobrenatural, o cavalheiro inglês de invejável idade e sabedoria. Os outros vampiros respeitam-no por isso. David é de todos o mais sensato de uma forma que os outros não poderiam nunca ter sido porque nunca viveram em anos mortais o suficiente para terem semelhante visão do mundo. Tanto Louis como Lestat, os companheiros de David, abandonaram a vida muito jovens para conhecerem uma resignação que só se aprende com a idade humana.
Louis de Pointe du Lac
Regressa o vampiro da “Entrevista”, cada vez mais deprimido, cada vez mais atormentado. Longe estão os anos de raiva. Agora até é bastante amigo de Lestat. O tempo acabou por trazer o perdão e a conclusão de que havia mais para ganhar na amizade do que no ódio. Mas agora Louis está desesperado. Não há razão para continuar. O suicídio torna-se uma obsessão constante.
Merrick Mayfair
Ao contrário do que o nome pode dar a entender, Merrick é uma mulher. O nome da personagem foi-lhe posto por falantes de francês de New Orlans, logo, pronunciava-se Merrique antes de ser americanizado.
O facto de a história girar em torno de uma mulher - até que enfim! - pode explicar o seu carácter romântico (?).
Não vou ao ponto de dizer que as mulheres são de Vénus e os homens são de Marte - acredito que são ambos da Terra - mas que de facto há diferenças, há!
É como as bruxas, que elas existem, existem. E Merrick é uma bruxa, uma feiticeira poderosa e conhecedora do vodu e do camdomblé brasileiro. Desde o começo que gostei desta personagem, uma mulher adulta e solitária que bebe. E não é sangue. É mesmo rum. Sem coca-cola. Da garrafa, para ser mais rápido. E quando bebe - o que não é sempre - faz questão de não parar. “Até cair”.
Merrick entra na história por ter sido amiga (e amante) de David quando este era humano, embora os separasse uma diferença de idades de 50 anos. Aliás, foi por causa dessa diferença de idades que David nunca aceitou a relação e preferiu recolher-se à sua condição de velho e doente.
Merrick, a feiticeira, também tem os seus planos. Conhece os vampiros e quer tornar-se uma deles. É ela quem os manobra - embora eles não saibam - para essa conclusão.
Pergunto-me se as crónicas não seriam mais interessantes se existissem mais personagens humanos entre os vampiros. Por exemplo, David teria dado uma personagem humana extremamente interessante. Merrick também. Mas no fundo, como nós sabemos, os vampiros de Anne Rice são uma metáfora para os seres humanos, os “desperados”, os verdadeiros imortais perdidos na escuridão do destino.
E como tal, esta é uma história de emoções humanas, de paixões e de amizades humanas.
Amor, morte e fantasmas
Desde que uma investigadora do paranormal se confrontou com o fantasma de Cláudia que Louis questiona se o espírito da criança-vampira está em paz, ou se sofre, e se há algo que ele possa fazer para a ajudar. É por isso que David, a pedido de Louis, volta a encontrar Merrick, a quem pede que convoque o fantasma de Claúdia e a encaminhe para a luz se esta estiver perdida.
A princípio, era só isso.
De resto, há muito tempo que Anne Rice não se debruçava tanto sobre a personagem de Louis, e as notícias de Louis não são agradáveis. Considerado o mais fraco de todos os vampiros, muitos dos antigos quiseram oferecer-lhe o sangue deles, mais poderoso, o sangue que permitiria a Louis tornar-se menos humano mas, ao mesmo tempo, prescindir da morte das suas vítimas que tanto o atormenta, vivendo do que os vampiros chamam “a pequena bebida”. É que, paradoxalmente, apesar de ser o mais humano e o mais sensível de todos os vampiros, Louis não consegue poupar as suas vítimas; precisa demasiado do seu sangue. O sangue e o poder dos mais velhos libertá-lo-iam da sua maldição (“cada noite que eu caminhe na terra alguém tem de morrer”, já dizia na “Entrevista”), mas esse poder tem uma contrapartida. Depois de um certo patamar, a luz do sol já não chega para pôr fim à vida. Se Louis quiser morrer, terá que entrar numa pira de fogo. E hesitante entre a vida e a morte, Louis preferiu, durante séculos, ter a hipótese da morte “fácil” ao nascer do sol. Tal como um suicida que guarda centenas de comprimidos para o momento em que se decidir, Louis preza essa pequena vantagem, embora o que mais o atormente na sua existência de vampiro seja, sem dúvida nenhuma, a morte das suas vítimas.
Em todo um capítulo tão bom que o poderia transcrever, Louis explica a David que deseja a morte. Ele não vê o mundo como o Jardim Selvagem de Lestat. A única coisa que o faria continuar a desejar viver seria “uma consciência tranquila”, mas o próprio Louis confessa: “Eu não sei o que quero”.
Perante o desespero de Louis, David chega à conclusão de que ele próprio, afinal, não deseja morrer e pede ao amigo que não pondere essa hipótese. Mas não é sempre assim quando se trata dos “outros”? E como poderia David arranjar argumentos para convencer o amigo a ficar, se no fundo, bem no fundo, ele também não os tem?
Antes de tentar deixar este mundo (desculpem estragar a surpresa, mas ele tenta...) Louis ainda se recorda do que significa estar vivo. Por Merrick.
Esta é a história da paixão de David e Merrick. E de Merrick e Louis. David não gostou mesmo nada de perder a sua amante mortal para o amor de outro homem (ou vampiro, whatever). Mas aconteceu perante os seus olhos e a sua alma despeitada. Merrick e Louis apaixonam-se à sua frente, sem que nenhum dos três tivesse culpa ou pudesse impedir. E Merrick, a feiticeira, aceita chamar o fantasma de Claudia para Louis.
Diz Merrick que os espíritos mentem quando são chamados, mas ouvir Cláudia maldizê-lo está muito longe do alívio que Louis esperava: “Morre por mim, meu amado. Penso que vou ter prazer nisso. Pensavas que eu não estava a sofrer, Pai? Esperavas uma preciosa consolação dos meus lábios? Acreditavas que Deus ta daria, não é? Que a merecias depois de todos os teus anos de penitência. Vem para mim. Vem, fá-lo com grande dor, como um sacrifício. Nunca me encontrarás. Vem.”
Meticulosamente, Louis cumpre o ritual dos suicidas, despedindo-se de Lestat, deixando um bilhete de explicação, distribuindo os seus pertences, e por fim enfrenta a morte. Não há nada que ninguém possa fazer para o deter. E quem tem o direito de impedir alguém de partir só porque a companhia dessa pessoa é agradável? Ao tentar travar o suicídio de um amigo, não haverá nisso uma ponta de egoísmo? E ao tentar salvar a vida de um estranho, não será para nos convencermos a nós próprios que a nossa própria vida vale a pena?
E fantasmas...
(David)
“Essa constante na minha vida é que, não importa o que dissesse em contrário, sempre suspeitei que não havia nada para lá desta existência terrena.
É claro que aqui e ali ‘acreditei’ alegremente no contrário. Convenci-me a mim próprio com aparentes milagres - ventos fantasmagóricos e o correr do sangue vampírico. Mas em última análise, eu temia que não houvesse nada, nada para além da ‘escuridão imensa’ que este fantasma, este fantasma cheio de maldade e raiva, tinha descrito.
Sim, estou a dizer que acredito que podemos ficar a pairar. Claro. Permanecer depois da morte por algum tempo não está fora do alcance de uma futura explicação científica - uma alma de substância definível separada da carne e presa nalgum campo de energia que envolve o planeta. Não é impossível de imaginar, não, de todo. Mas não significa a imortalidade. Não significa um Paraíso ou um Inferno. Não significa justiça ou retribuição. Não significa êxtase ou dor interminável. (...)
Se eu morrer, pode não haver nada. Se eu morrer, pode haver um pairar. Se eu morrer, posso até nunca chegar a saber o que foi feito da minha alma. As luzes à minha volta - o calor de que falou tão tentadoramente a criança fantasma - o calor simplesmente desapareceria.”
Este não será, para os estranhos à saga, o melhor exemplo das crónicas dos vampiros até agora, principalmente depois das interrogações existenciais de “Memnoch”, mas a nível das qualidades literárias da escritora, que melhoram a cada obra como seria de esperar, é o melhor livro de Anne Rice que já li.
Facto a que não é alheio o desespero de Louis e a sua obsessão com o próprio fim. Louis não é feliz, não o era enquanto humano e não o será nunca. Alguns não nasceram para a felicidade. Essa verdade perturbadora para a maioria a mim encanta-me.
E depois a escrita abandona as fastidiosas descrições, a perda de tempo com os detalhes supérfluos, e mergulha directamente no mar de emoções que nos interessa descobrir nos outros para melhor as reconhecermos em nós. Os personagens desabrocham e amadurecem. Reconhece-se a felicidade depois do desespero, ou a felicidade que segue forçosamente o desespero, quando não se espera ganhar mais nada mas também já não há nada mais a perder. Por outras palavras, quando a vida terrena se aproxima do fim e a alma se deleita no prazer dos últimos dias para não perder esse tempo com distracções inúteis.
Por fim, os vampiros acabam por reforçar os laços de amizade. Demorou-lhes séculos. Nós, que não temos séculos, não poderemos abreviar a coisa, ou teremos forçosamente de ficar pelo meio?...
Notas sobre Anne Rice
Na capa de “Blood and Gold”, a crónica seguinte:
“A wonderfully Gothic writer whose talents far outshine those of Stephen King and others in the field” Boston Globe
Não sei se este comentário compara o estilo literário dos dois autores. Só pode ser porque, a nível da história contada, não há comparação possível. Anne Rice comove-nos. Stephen King aterroriza-nos.
“Anne Rice offers more than just a story: she creates myth” Washington Post
Nenhum elogio é maior do que este. Poucos autores se podem gabar do mesmo. Mas o mito está criado. Lestat e Louis são a versão do século XX de Drácula e Mina. Imortais.
Publicado por _gotika_ em 04:40 AM | Comentários: (18)
2 comentários:
Ui, ela a mim não me emociona. E muito menos o Stephen King me aterroriza... naquele que é para mim o seu escrito mais assustador (Duma Key) dei por mim lavada em lágrimas de emoção com certos acontecimentos os quais já eu estava a prever desde o inicio. E isto tudo ainda com a benesse de ficar com a sensação de que "something lurks in the daaaaark..." agora muito a sério, acho de ima injustiça - e até estupidez - a comparação entre estes dois autores. É o mesmo que comparar uma batata assada a um gelado de chocolate. Gosto de ambos, mas um é um acompanhamento e o outro uma sobremesa. Não há comparação: são coisas diferentes.
A comparação aparece porque escrevem ambos dentro do mesmo género, terror.
A ti Stephen King pode não aterrorizar mas a mim aterroriza, quase em todas as histórias. Já a Anne Rice só me meteu medo duas vezes, uma com o fantasma de Claudia (alguma coisa naquilo me arrepiou: criança/vampiro/fantasma) e a outra com o terror cósmico de Memnoch. Tirando isso, acho que até os objectivos são diferentes nos dois autores. Enquanto King se senta a escrever para meter medo, Rice escreve o que eu poderia chamar de "romances cujas personagens, por acaso, são vampiros, mas podiam não ser". Daí a grande diferença.
Outro que também escrevia para meter medo: Lovecraft.
Enviar um comentário