terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Gotika: arquivos Março 2004

março 12, 2004

Louis, o gótico

(De volta aos meus apontamentos sobre o movimento gótico, para o livro... Um ensaio de ensaio sobre Louis, o vampiro.)

Quando Anne Rice escreveu “Entrevista com o vampiro”, em 1976, o movimento gótico como o conhecemos hoje ainda não tinha sequer despertado. No entanto, a personagem Louis é um exemplo paradigmático do existencialismo gótico. Eis aqui também um exemplo de que o gótico já existia. A música que hoje chamamos gótica só veio juntar-se a muitas e anteriores obras de arte amadas pelos góticos de todos os tempos.
Não é fácil apontar uma personalidade da História e dizer com toda a certeza: aquele ou aquela era gótico. Podemos presumir que provavelmente o seria. O gótico é um estado de espírito e uma forma de pensar que só revela quem quer. Não tendo acesso aos sentimentos e pensamentos dessas pessoas notáveis, como por exemplo, Florbela Espanca, dificilmente podemos dizê-lo com tanta certeza. Tudo nos sonetos de Florbela aponta nessa direcção, mas... Seria apenas uma mulher deprimida? E em que medida é que isso (a depressão diagnosticada) tira ou anula a essência da alma gótica?
Não será para debater neste momento mas seria bom realçar que existem dois tipos de depressão: a passageira (provocada por uma morte ou desemprego ou outro facto traumatizante) e a crónica. A principal diferença entre as duas é a sua duração. A depressão ocasional acaba por desaparecer, com ou sem ajuda de terapia ou medicamentos. Pode-se considerá-la uma depressão normal, uma vez que a pessoa acaba de perder algo que muito estimava ou de passar por um evento traumático. Tal como normal é a sua recuperação.
A depressão crónica pode durar anos. E também pode passar. Ou não. Mas não é uma depressão normal e situada. Muitas vezes não é provocada por um acontecimento isolado. Muitas vezes o deprimido nem sabe porque se sente triste. Na maioria das vezes, na origem desta depressão estão vários acontecimentos sobrepostos, quase sempre dificuldade em lidar com fantasmas da infância e problemas da idade adulta. Muito mais complexa do que a primeira, esta depressão pode ser resistente à terapia e aos medicamentos e pode nunca desaparecer.
O que sabemos de Florbela Espanca é que era uma pessoa deprimida. Possivelmente crónica.
Mas quando falo em Louis tenho a vantagem de ter lido os pensamentos mais profundos de uma personagem, e aqui já não falo em depressão. Aqui já falo da descrição de uma personalidade (mesmo que ficcional) que congrega em si a essência do sentir gótico, onde a tristeza e a melancolia são consequências, e não causas, do estado de alma que define o gótico em todos os tempos, em todos os lugares. Daí toda esta vasta introdução para distinguir entre a depressão clínica e o sentimento gótico.

O percurso de Louis
Possivelmente Anne Rice não sabia que estava a descrever um gótico nas páginas do seu livro. Terá talvez conhecido alguém semelhante ao seu Louis, é muito provável. Os escritores inspiram-se bastante nas pessoas que conhecem. Ao escrever um livro de vampiros, poder-se-á pensar, era difícil não descrever um gótico. Mas não é assim. Louis é o único exemplo entre todas as capas negras da vampirada. Mais uma vez, tal como o hábito não faz o monge, a roupa não faz o gótico. (E continua a ser assim, principalmente agora que o gótico se tornou uma moda juvenil.)
Na sua vida mortal, Louis já era gótico. Mas a sua relação amor-ódio com a morte rebentou ruidosamente com o falecimento do seu irmão. A partir daí ficou obcecado com todos os pormenores que a rodeiam: a decomposição, o luto, a culpa, o destino da alma. Forçosamente, é levado também a questionar o próprio sentido da vida. E não o encontrou. Entra assim no estado de alma a que as pessoas chamam depressão. Deseja a morte mas não tem coragem de se matar. Contudo arrisca a vida em comportamentos violentos, no álcool, nas brigas. Perde todo o interesse pelos negócios, pela família, pela vida. Este seria o momento em que, no século XX, lhe seriam receitados anti-depressivos. Mas neste caso a solução não passava nem perto pelas pílulas mágicas. Uma vez feita a pergunta “porquê?”, não há saciedade possível antes de obter a resposta ou, pelo menos, uma resposta satisfatória.
É então que Louis encontra Lestat. Pede-lhe a morte e deseja morrer, mas no momento da verdade falta-lhe a coragem. É então transformado num vampiro, num estado mental de “tanto faz”, essa passividade de quem já não se interessa pela vida. E depois de ser vampiro, continua a não se interessar. A vida nada lhe diz. Sente-se deslocado, perdido entre dois mundos em que não se reconhece. Repugna-lhe o mal e odeia-se por tirar vidas mas continua a não ter coragem de pôr um ponto final à sua existência. Vive contrariado, como vivia antes de ser vampiro. Começa a questionar a sua natureza. Procura respostas em Deus e no Diabo mas não as encontra. Não consegue desligar-se da sua natureza humana que o acusa sempre que tem de matar alguém para se alimentar. Sente que está sob uma maldição, mas que mesmo antes de ser um vampiro a sua vida já estava sob uma maldição.
“Eu nunca pertenci a nenhum sítio, a ninguém, em tempo algum!”, confessa a Armand. A sua solidão é absoluta, mesmo rodeado dos companheiros, porque não é um deles nem nunca o será. Tem a consciência disto e às vezes deseja a completa solidão em vez da incompreensão de que é alvo. Os outros acusam-no de sentir demais e pensar demais. Dizem-lhe que deve deixar a carne guiar a mente em vez de se perder em pensamentos éticos que o fazem sofrer. Mas Louis não consegue ser igual a eles, e essa distância, essa absoluta solidão por não encontrar eco dos seus pensamentos e sentimentos em nenhum deles ainda o faz sofrer mais. Por isso isola-se. Mesmo estando presente em pessoa, está ausente em espírito. O desinteresse pela vida faz dele uma pessoa passiva, um observador, levado pelas decisões dos outros porque a ele tanto faz. A certa altura já não vive sequer. Existe. Simplesmente existe.
Ao conhecer Armand, conheceu a verdade. Que não é nenhum filho do diabo, que ninguém jamais conheceu Deus, que o seu estado de vampiro é tão misterioso como tinha sido o seu estado de ser humano. Descobre que não há respostas. E conforma-se.
Aqui já não vestígios de depressão. Resta apenas a resignação, a melancolia, o ser atormentado pelo simples facto de ter de existir. E continua a desejar o fim. A sua sensibilidade não lhe permite ser feliz - neste caso, porque tem que ser um assassino e odeia-se por isso. Sente demais e pensa demais. Sente-se um condenado. E é um condenado. Tem que aceitar a maldade dos outros vampiros para não ser hipócrita - afinal, ele também mata para saciar a fome - mas jamais se conforma em ser um “maldito”. Deseja a bondade e ama a bondade mas a vida só lhe mostra maldade e obriga-o a praticar a maldade. É por isso um condenado, porque a sua extrema sensibilidade não lhe permite ser feliz no mundo do Mal.
Por esta altura já desistiu da felicidade. Procura apenas uma espécie de paz de espírito.
Mesmo quando Armand se apaixona por ele e Louis se sente tentado a embarcar nessa “paixão”, é ainda em Cláudia que ele pensa, e se a fará sofrer por deixá-la para ficar com Armand. Longe de ser egoísta, Louis continua a pensar demais. Até pensa demais nos outros. Apesar de desgostado pela falta de escrúpulos de Cláudia, não deixa de a amar. Dividido, mesmo no amor não consegue deixar de pensar na dor que pode provocar aos outros e é incapaz de agir sabendo que está a magoar alguém.
Uma pessoa normal, como normais são os vampiros que o rodeiam, dir-lhe-ia que gosta de inventar problemas. Mas Louis sabe que não está a inventar nada. Os problemas estão lá. Os outros é que preferem não os ver.
Depois, um grande choque que o faz sair da sua passividade. Cláudia é violentamente morta. Possivelmente Armand é culpado. Finalmente Louis salta da sua apatia e vinga-se dos assassinos de Cláudia. Pensava que ia morrer de desgosto, mas em vez disso a sua alma fica fria. Entre os vampiros, Louis é considerado um fraco, exactamente por ser sensível e cheio de moral, mas de repente apercebe-se que não morreu do desgosto e que a vida continua. O desgosto é demasiado grande para ser suportado. E o que não nos mata torna-nos mais fortes. Ou não. Completamente gelado, Louis aceita a companhia de Armand e parte com ele pelo mundo fora.
Agora Louis refugia-se na arte, encontrando nela o único consolo para a sua infelicidade. E percorre o mundo pela arte, desinteressado da vida e dos que o rodeiam porque nada lhe dizem. Sozinho, embora na companhia de Armand. Muitas vezes ansiando que Armand simplesmente se vá embora. É o completo desespero.
E nunca mais Armand o teria, especialmente depois de confessar que sim, que foi ele quem ordenou a morte de Cláudia. E é sem emoção que Louis recebe a notícia, décadas mais tarde. E é com perplexidade que Armand percebe que já não existe um pingo de emoção visível na alma de Louis.
A última conversa entre os dois é notavelmente eloquente:
Armand: Não te interessas por nada. Pensei que pelo menos quisesses saber disto. Pensei que sentisses a antiga paixão, a antiga raiva, se o visses de novo [a Lestat]. Pensei que algo se movesse e voltasse à vida se o visses... se voltasses a este local.
Louis: Que eu voltasse à vida?
Armand: Sim! Sim, que voltasses à vida! (...) Eu acreditava que quando tu ultrapassasses isso - quando toda a dor te deixasse, tu te tornarias afectuoso e cheio de amor outra vez, e cheio daquela curiosidade insaciável e selvagem com que vieste ter comigo, aquele pensamento fixo, e aquela fome por conhecimento que te trouxe até Paris e aos meus aposentos. Pensei que era uma parte de ti que não podia morrer. E eu pensei que quando a dor tivesse desaparecido tu me perdoasses pela parte que eu tive na morte dela. Ela nunca te amou, sabes? Não da maneira que eu te amo, e da maneira que nos amaste aos dois. Eu sabia isto! Eu compreendia isto! E acreditei que te ia trazer para mim e manter-te comigo. E o tempo ia abrir-se para nós, e seríamos mestres um do outro. Todas as coisas que te faziam feliz far-me-iam feliz, e eu seria o protector da tua dor. O meu poder seria o teu poder. A minha força, a mesma coisa. Mas tu estás morto por dentro para mim, estás frio e fora do meu alcance! É como se eu não estivesse aqui, ao pé de ti. E não estando aqui contigo, tenho a sensação horrível de que nem sequer existo! E tu és tão frio e distante para mim como esses quadros modernos de linhas e formas duras que eu não posso amar nem compreender, tão estranho como essas esculturas mecânicas desta era que não têm forma humana. Eu estremeço quando estou ao pé de ti. Eu olho para os teus olhos e o meu reflexo não está lá...
Louis: O que pediste era impossível. Eu queria amor e bondade nesta coisa que é a morte na vida. Era impossível desde o princípio, porque não podes ter amor e bondade quando fazes o que sabes que é mau, o que sabes que é errado. Só se pode ter a confusão desesperada e o anseio e perseguir o fantasma da bondade na sua forma humana. Eu sabia as verdadeiras respostas às minhas perguntas ainda antes de chegar a Paris. Soube-o quando tomei pela primeira vez uma vida humana para satisfazer a minha necessidade. Foi a minha morte. E no entanto eu não quis aceitar, não podia aceitar, porque como todas as criaturas eu não desejo morrer! E por isso procurei por outros vampiros, por deus, pelo diabo, por centenas de coisas sob centenas de nomes. E era tudo a mesma coisa, tudo maldade. E tudo errado. Porque ninguém podia de forma nenhuma convencer-me do que eu próprio sabia ser verdade, que eu sou um maldito na minha própria mente e alma. E quando eu cheguei a Paris eu pensei que tu eras poderoso e belo e sem remorsos, e eu queria isso desesperadamente. Mas tu eras um destruidor tal como eu era um destruidor, ainda mais implacável e velhaco que eu. Tu mostraste-me a única coisa que eu podia de facto almejar alcançar, essa profundidade do Mal, esse nível de frieza que eu teria de atingir para pôr fim à minha dor. E eu aceitei isso. E por isso essa paixão, esse amor que viste em mim, extinguiu-se. E agora vês apenas um espelho de ti próprio.

Louis sofria demais por sentir demais. A única maneira de pôr fim à sua dor era revesti-la de gelo. Mas a mesma frieza que o protegia da dor impedia-o também de sentir o amor. Porque o que Louis fez foi simplesmente anular os seus sentimentos. Mas não podia fazer outra coisa. A dor era demasiada. Escolheu continuar a viver e encontrou uma espécie de paz, sem ódio nem paixão. Não o desespero, como pensa o entrevistador - o tal humano que lhe faz a entrevista - porque o desespero é uma palavra demasiado fraca para explicar a ausência de sentimento. Talvez a palavra exacta nem exista. Uma imagem me ocorre: a anestesia. A mesma anestesia que não deixa a pele sentir dor também não a deixa sentir uma carícia. E foi assim que Louis se anestesiou da sua imensa dor.

Louis, o exemplo gótico
Desde a sua vida humana, Louis procurou o sentido da vida perante a inevitabilidade da morte. E depois de se tornar imortal, continuou à procura. Nada mudou. Esperava encontrar as verdades que diminuíssem o seu desespero e solidão. Por isso se vira para os segredos do sobrenatural, para a procura por deus e pelo diabo, por tudo e alguma coisa que lhe possa mostrar um sentido maior para a vida do que simplesmente existir (seja meia dúzia de anos, seja uma eternidade). É um ser atormentado pelo simples facto de viver.
Enquanto os outros estão contentes por simplesmente viver, Louis não foi talhado para a vida. Para esta vida. Louis espera as respostas que não chegam. E angustia-se, incompreendido pelos outros que não partilham da mesma ansiedade.
Louis não é talhado para viver, muito menos para “viver feliz”. Encontra-se frequentemente a contemplar o abismo da morte, fascinado, e por várias vezes quase se atira de cabeça. Como se quisesse encontrar na morte as respostas que a vida não lhe dá. Uma coisa é certa, não encontra prazer neste viver com que os outros se contentam. Podem chamar-lhe fraco e choramingas mas Louis sofre com a falta de sensibilidade dos outros e já não espera ser compreendido. Isso torna-o muitas vezes agressivo porque a paciência também tem limites. Aliás, ele não esconde que também pratica a maldade. E por isso também sente que merece morrer. Cheio de ética, não se perdoa por “condenar” outros à morte quando ele se tornou também um monstro. Ao contrário dos companheiros, sofre quando mata, mas isso, aos seus olhos, não o torna menos maldito. Culpa-se eternamente. Pensa que não merece a existência. Sente demais e pensa demais.
Encontra o único prazer da vida numa procura incessante pela arte, o seu único prazer transcendente, o seu único momento de felicidade.
Podia ter sido sempre humano. Louis jamais seria feliz. A felicidade não faz parte da vida de um gótico e não adianta procurá-la. Porque uns já nascem amaldiçoados, outros não. A verdadeira maldição de Louis é sentir a dor dos outros como se fosse a sua. É por isso que mata com raiva, com raiva por matar.
O que separa Louis do suicídio? Pouco, muito pouco. É uma alma no arame, nada a perder, nada a ganhar, à deriva pelos ventos do tempo. Nada dentro dele desiste de encontrar as respostas. Pensar que desistiu é a mentira que diz a si próprio para não perturbar a sua paz artificial, pois tudo dentro dele arde e apenas um igual pode trazer esse fogo cá para fora.
Louis não nasceu para a vida mas para o além-vida, para a transcendência. Encontrará paz, sim, quando perceber a pessoa especial que ele próprio é e perdoar aos outros que temem e repudiam quem vive a pensar na morte.
Antes disso, haverá apenas ódio e isolamento. E arte. Mas a arte fica. O ódio vai-se. E as respostas estão onde ele não supõe que estejam - dentro dele próprio - porque não se sente digno do privilégio.
Mais solitário que um ser humano por ser um vampiro, Louis finge que não sente a torrente de sentimentos que mais ninguém sente senão ele. O ser atormentado pela Vida desiste do sobrenatural e vira-se para a arte em busca de alegria para os sentidos. Mas basta o sobrenatural estalar os dedos que o velho gótico se põe à escuta, pois nasceu para ouvir o que está para lá da vida e do seu destino não se livra, nem se quer livrar, porque lá no fundo se sabe dono de um destino tão amargo quanto raro mas, por isso mesmo, precioso.

Publicado por _gotika_ em 03:24 AM | Comentários: (3)

1 comentário:

Fashion Faux Pas disse...

Boa análise psicológica do Louis. E eu sempre embirrei imenso com ele, eheheh.