terça-feira, 30 de outubro de 2012

Gotika: arquivos Dezembro 2003

dezembro 28, 2003

Manifesto existencial

É engraçado como raramento falo deste poema. Penso que até o sei de cor, que versos dele me ocorrem ao pensamento todos os dias, que está gravado no meu ADN para lá de qualquer hipótese de escolha. É a base da minha pizza, se podemos brincar com coisas sérias. Não se pôe em questão. Não se liga àquela parte da sociedade que sempre verá heresia nestas palavras. É como é, sou como sou, somos como somos, e alguém o escreveu em poesia. Fica aqui, mais uma vez, até para o dar a conhecer às gerações mais novas que não o estudam na escola.


Cântico Negro
José Régio

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces,
estendendo-me os braços, e seguros
de que seria bom que eu os ouvisse
quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
e cruzo os braços,
e nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
-Que eu vivo com o mesmo sem vontade
com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
por que me repetis: "vem por aqui"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
redomoinhar aos ventos,
como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
a ir por aí...

Se vim ao mundo,
foi só para desflorar florestas virgens,
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
e vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
tendes jardins, tendes canteiros,
tendes pátrias, tendes tectos.
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
-Sei que não vou por aí!

Publicado por _gotika_ em 11:32 PM | Comentários: (5)

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