Aqui começa a mais bela história sobre o tabaco jamais contada.
Havia nicotina nos espermatozóides que me conceberam. A minha mãe, felizmente para mim, não fumava. Não porque não tivesse tentado mas não conseguiu porque não gostava. Isto de fumar não é para quem quer, é para quem gosta. Ela só queria ter estilo e ser aceite. Ficou-se pelo caminho. E nunca foi aceite nem nunca teve estilo (mas essa história não merece ser contada por ser demasiado banal).
Nasci. Nasci numa casa de fumador, num tempo em que as crianças andavam sozinhas na rua e descalças, e nenhum mal lhes vinha por isso.
Tempo de liberdade.
Desde que conheci o meu pai, conheci-o com um cigarro na boca. Naquela altura não gostava do cheiro. Há odores e paladares subtis que escapam aos sentidos mal desenvolvidos de uma criança, como o sabor suave de uma cenoura cozida.
Aquele cheiro era agressivo mas cresci com ele e habituei-me a ele. Aquele era o cheiro de que o pai estava em casa, à mesa, a fumar SG Filtro. E quando o pai estava em casa, à mesa, a fumar SG Filtro, nada me podia fazer mal.
Mais tarde, o pai começou também a beber. Aguardente, era o que ele bebia. E começou a beber muito, e também o cheiro da aguardente se tornou repulsivo. Ainda hoje a aguardente me cheira a morte.
O meu pai chegava a casa, de um clube privado onde se jogava à sueca até altas horas da noite, sentava-se à mesa a ler livros científicos e tomava um Rophinol para dormir. Esses eram os bons tempos.
Quando tinha sono ia para a cama e dormia como um anjo.
Não foi o cigarro que o matou, mas a aguardente. Cancro no pâncreas. Bem, cientificamente, pode-se dizer que foram as duas coisas, mais o Rophinol. Mais uma vida de prazeres até ao fim dos seus dias.
O meu pai teve tuberculose e foi mandado para o Caramulo curar-se, uns vinte anos antes de eu nascer, e a tuberculose não o matou. Irmão de sete ou oito irmãos, fora os que morreram em crianças, nem mais tarde uma operação que lhe tirou parte do estômago lhe deu sumiço.
Aos 75 anos, finalmente, chegou-lhe o cancro. Demorou uns seis meses. Ninguém sabia quanto tempo tinha de vida. Não houve quimioterapia nem radiações nem hospitais. Mas nesse tempo havia tempo para cuidar dos moribundos. O meu pai morreu na cama dele, no mesmo quarto em que eu durmo agora, com um enfermeiro que lhe vinha dar cada vez mais injecções de morfina. Dois ou três dias antes de morrer, sem dores mas em plena posse das suas faculdades, o meu pai deixou de fumar. Foi também nessa altura que entrou no pré-coma em que passou as últimas horas de vida. Morreu na cama, na cama dele, junto dos familiares, como deve ser, depois de uma vida bem vivida.
Ò morte, qual é o teu triunfo?
Invejo o meu pai por ter vivido num tempo em que se fumava, em que se tomava Rophinol, em que se bebia aguardente até cair, em que se morria fisicamente antes de se perder a razão, em que nos deixavam partir no tempo devido. Só queria da vida ter a sorte que ele teve e morrer suavemente na minha cama, com alguém que eu amo a segurar-me a mão e um enfermeiro a dar-me injecções de morfina. Morrer antes de me esquecer de quem sou, lúcida e consciente, uma jovem de 75 anos.
O meu pai nem sabe a sorte que teve. Mas eu sei. E não estou disposta a deixar de fumar senão dois ou três dias antes de morrer, na minha cama, com os meus amigos de volta. Nesse dia não me vai apetecer fumar, nem comer, nem beber, mas simplesmente partir, para Deus, onde pertenço. Assim seja.
3 comentários:
Eu estou a contar continuar a fumar depois de morto e dar um espectro fumarento! :)
Assim seja. Para mim também.
Lamento ter-me esquecido de fechar os comentários. Este post é "read only".
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