«No fundo, o propósito é o de reformatar a modernidade económica, banindo do vocabulário corrente as perigosíssimas noções de desenvolvimento humano, equidade e bem-estar social.
Estamos, assim, a assistir à emergência de uma nova classe social, a que alguns sociólogos já chamam «precariado». Uma espécie de neologismo que resulta da síntese dos termos proletariado (ao qual fora arrancada grande parte da classe média, no século XX) e precariedade (do emprego, do salário, da vida quotidiana e, portanto, do futuro). Viva, então, o precariado! Uma nova classe social tanto mais vulnerável quanto menos solidários e mais solitários forem os seus putativos membros - política e sindicalmente incapazes de se organizarem, envergonhados pela sua despromoção social, com receio de serem tratados como comunistas pela esquerda moderna e, por isso, já resignados.»
Acho estas afirmações injustas e mesmo ofensivas para com a classe social à qual involuntariamente pertenço, os escravos, ou, no engenhoso termo acima, o precariado, que é política e historicamente mais bonito. Mas a verdade é que estamos de mãos atadas. Antigamente o objectivo era ter uma vida. Hoje é sobreviver.
Diz Alfredo Barroso que não somos solidários, que somos incapazes de nos organizarmos, como se fazê-lo pudesse mudar a situação. Quando é a sobrevivência que está em jogo, o pão para a boca, o cão come cão, a luta contra o sistema é um luxo de poucos, e os que podem não devem de certeza pertencer assim tanto ao precariado, porque depressa passariam da classe de escravos à classe dos mendigos (ver história real aqui) e ainda menos se fariam ouvir.
Quando a lei é a do dinheiro, os ricos mandam nos pobres. Ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Cabe ao Estado impor a lei do Direito para repor a igualdade. Cabe ao Estado fiscalizar as empresas que não cumprem a lei e punir as irregularidades. Caberia ao Estado proibir que milhares de recém licenciados (e não só) trabalhem meses e anos a fio, nas empresas e no próprio Estado!!!, sem ganhar um tostão ou ganhando poucos tostões, obrigando os pais (muitos já reformados) a sustentar os filhos com o modesto ordenado ou a pensão. Cabe ao Estado impedir que a imigração descontrolada tire o emprego aos nacionais e os obrigue também a emigrar, passando, como os imigrantes são aqui, a ser escravos noutro sítio.
Já o disse, muitas vezes, que a Justiça é o grande cancro do país e da nação. Sem ela, o cidadão individual não pode lutar pelos meios legais. Não pode o trabalhador sozinho, nem adianta estar num sindicato que também nada pode fazer quando há dezenas que candidatos ao emprego, à porta, à espera de se venderem por menos tostões.
A análise do senhor Alfredo Barroso é típica das mentalidades que ainda pensam que vivem no PREC e os outros também. Curiosamente, foi a geração deste senhor, e as seguintes, que tornaram as coisas no que são agora. E aparentemente continuam a apontar o dedo a tudo e a todos sem pesarem a culpa própria. A Educação não presta, a Justiça não funciona, a Economia apagou-se como as luzes do Titanic quando já estava partido ao meio.
O que quer então Alfredo Barroso que a minha geração, a dos trinta, e as gerações mais novas façam perante a situação? Quem pode, foge para o estrangeiro. E os outros? Quererá que eu processe o Estado por fraude quando os professores do Estado me garantiram que estava a ter uma boa Educação e a trabalhar pelo meu futuro? Sem opções legais, quererá que façamos uma revolução como no tempo dele, para dar os resultados que hoje vemos? Repetir o erro?
Não é uma questão de resignação. Resignado, ninguém está. São as gerações mais velhas e de memória curta (deve ser da senilidade precoce) que votam sempre nos mesmos partidos e não dão oportunidade a quem se lhes oponha nos jeitos corruptos, vendidos e desonestos de sempre. No fundo, até gostam que ninguém lhes troque as voltas viciadas.
Durante muito tempo, tive esperança de que a Europa, uma autoridade externa e imparcial, impusesse ao Estado a Justiça que os corruptos e vendidos governos nacionais só aplicam para punir os pobres. Mas as coisas mudaram. O mundo levou um pontapé no cu a 11 de Setembro de 2001 e a Europa encolheu-se e largou mão dos direitos sociais. Todo o planeta vai entrar às cegas num conflito global sem precedentes em que os mais pobres da aldeia global ameaçam os senhores do castelo com forquilhas e tochas.
Como consequência, isto aqui é um cadáver anunciado. Não é por acaso que eu gosto da metáfora do Titanic. Como lá, houve avisos a tempo mas ninguém acreditou. Ninguém acreditou em mim e noutros visionários nos anos 90, quando ainda se podia fazer alguma coisa, pelo menos no que a Portugal diz respeito. Nada se fez e agora é tarde. Só se vê trevas e abismo. Já estamos na água e começa a arrefecer. Quem apanhar uma tábua que se agarre a ela. É o salve-se quem puder. Quem sobreviver que conte a história.
3 comentários:
Viva, Gotika! Muito bem dito, partilho da mesma opinião e não vejo como salvar o Titanic. Só nos resta continuar a carregar no botão de alarme, sem esmorecer.
Abraços
Muito grato pela transcrição do texto do «Sorumbático».
Acho que já uma vez comentei que o velho "proletariado" do século XIX viveu coisas piores. O "Estado" nem sequer fingia preocupar-se: limitava-se a fazer avançar a guarda a cavalo.
Independentemente do que pensemos do marxismo e das revoluções socialistas, houve quem se organizasse, resistisse, conseguisse o reconhecimento do direito à greve, fizesse baixar as horas de trabalho por dia.
De modo que não tenho a certeza de que o Alfredo Barroso não esteja a tentar passar uma ideia séria não quer dizer que o aprecie muito): o "precariado" de hoje não tem tantas hipóteses de vencer, apesar de o inimigo ser menos brutal (fisicamente).
Razões? Bem, "proletariado" quer dizer "aqueles que só têm a sua prole", os seus filhos. Famílias. Grupos. Religiões. Terra, para os camponeses (mesmo que lhes não pertença). Espírito de alcateia. Tribos. Estavam unidos, para o bem e para o mal (mesmo odiando-se, mesmo batendo nas mulheres, mesmo violentamente). E nisso eram iguais aos burgueses, iguais aos nobres.
Dantes, para que aparecessem as forquilhas e as tochas, bastava tanger os sinos da igreja, ou fazer um discurso na taberna, ou lançar um panfleto do partido.
Tempos difíceis, estes. Pela primeira vez na história do ocidente, os impérios estremecem e nem sequer se pode contar com os bárbaros.
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